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Crítica | Vidro – M. Night Shyamalan completa seu estudo sobre o mito do super-herói

Muitos quilômetros foram percorridos desde que M. Night Shyamalan estourou como um dos grandes nomes do século passado com O Sexto Sentido, sendo chamado de “O novo Spielberg” pela Newsweek de 2002, na época de Sinais. O diretor que foi comparado também com Alfred Hitchcock passou por uma das fases mais negativas que um cineasta de Hollywood já enfrentou, enfrentando críticas ferozes aos péssimos A Dama na Água, Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar e Depois da Terra.

Assim como Michael Myers e outras franquias de terror modernas, Shyamalan encontrou sua reinvenção na Blumhouse, com o renomado produtor Jason Blum, que levou Shyamalan para um caminho mais modesto com A Visita e Fragmentado, dois filmes que acabaram sendo seus melhores resultados com a crítica em anos. Com a bola de volta ao jogo, Shyamalan une sua nova nova fase com um de seus melhores filmes, Corpo Fechado, trazendo a inesperada continuação Vidro, que também serve de sequência para Fragmentado. Felizmente, Shyamalan ainda não voltou a seus dias sombrios.

A trama começa algumas semanas após Fragmentado, com o psicopata Kevin e sua Horda (James McAvoy) continuando a cometer sequestros para oferecer à Fera, a personalidade bestial do sujeito. Paralelamente, o vigilante David Dunn (Bruce Willis) procura pelo sujeito enquanto se torna um mito pela cidade. Quando os dois são presos e internados em uma instituição psiquiátrica, a dupla se reúne com o maquiavélico Sr. Vidro (Samuel L. Jackson), que arquiteta um plano que envolve Kevin e David.

Estudo sobre heróis

Por muitos anos M. Night Shyamalan brincou com a ideia de uma continuação para Corpo Fechado, um filme que trazia uma visão muito particular e original sobre super-heróis, algo um pouco a frente de seu tempo. Em uma época em que filmes do gênero são responsáveis pela maior fonte de renda de Hollywood e praticamente todo o imaginário popular, o impacto de Vidro é mais forte do que o primeiro filme em 2000, e é um alívio ver que Shyamalan mantém a mesma inteligência e visão para explorar o gênero de quadrinhos, com o novo filme sendo uma digna continuação de Corpo Fechado – ao mesmo tempo em que é eficiente ao trazer de volta os temas de Fragmentado, em um ótimo equilíbrio de tons e narrativa.

Shyamalan nunca foi um roteirista sutil ou discreto, sendo fácil reconhecer sua escrita robusta e a retórica um tanto “mecanizada” em alguns momentos, e tais elementos se mostram fortes durante os longos monólogos e linhas de exposição do longa. A personagem de Sarah Paulson é uma máquina de diálogos excessivos e nada naturais, mas que trazem ótimas ideias e reflexões sobre a obsessão da indústria cultural por quadrinhos e super-heróis, sendo divertido ver como – da mesma forma que no filme de 2000 – revistas em quadrinhos ainda são tratadas com louvor, neste filme sendo ainda mais populares do que os próprios filmes hollywoodianos que tanto inspiram. Em diversos momentos o Vidro de Samuel L. Jackson literalmente fala os pontos de história e virada em voz alta, deixando claro que a proposta de Vidro não é ser um filme de super-herói, mas sim um estudo sobre histórias em quadrinhos e super-humanos.

A proposta de Vidro é quase como um Vingadores, onde temos o crossover de outros filmes no mesmo universo cinematográfico, mas fãs de blockbusters podem se decepcionar, já que Shyamalan não aumenta a escala ou os riscos. A trama permanece intimista e sem grandes invenções visuais, que se traduzem na direção do diretor: quase todos os enquadramentos são frontais e resolvem-se em planos médios ou closes, sem tempo para variação ou detalhes. Isso se reflete bastante nas cenas de ação do filme, que trazem esse mesmo intimismo, com o confronto entre Fera e David sendo captado através de câmeras acopladas nos dois personagens, que lutam através de uma coreografia simplificada e pouco elaborada – algo que surge como sequência sensata para o confronto igualmente simplificado de Corpo Fechado.

Em aspectos técnicos, vale destacar que Shyamalan segue com sua equipe mais modesta. Trazendo todos os envolvidos com Fragmentado de volta. A fotografia de Mike Gioulakis segue brincando com sombras e tons sombrios para trazer um toque apropriado de terror a uma história de super-heróis, enquanto a montagem da dupla Luke Ciarrocchi e Blu Murray confere velocidade e ritmo para a trama – repare na inteligência da montagem paralela na cena em que Paulson entrevista Willis, McAvoy e Jackson de forma quase “simultânea”. Mas o grande charme fica com a excepcional trilha sonora de West Dylan Thordson, que mistura as cordas arrepiantes do tema de Kevin com a orquestra mais intimista de Corpo Fechado, que agora ganha também acordes mais urgentes e inquietos graças ao uso de um relógio, aproximando-se de um estilo similar ao de Hans Zimmer.

24 personalidades encontram uma mente brilhante

Um dos grandes atrativos de combinar Corpo Fechado com Fragmentado é ter o magnífico elenco de ambos os filmes interagindo juntos. Com uma das melhores performances da década no filme de 2017, James McAvoy retorna igualmente inspirado e sobrenatural ao viver Kevin e todas as suas 24 personalidades, e Shyamalan explora ainda mais o potencial do ator ao apostar em planos sem cortes onde vemos diferentes entidades assumirem “a luz” de Kevin, dando espaço para que McAvoy literalmente se despedace em frente à câmera. Sua dinâmica também funciona com ar mais calmo e hipnotizante de Samuel L. Jackson como Elijah Price, que sempre se movimenta e fala como se estivéssemos diante do homem mais inteligente do mundo, e é divertido ver como Jackson olha para a Fera com grande admiração, e até aceita o pedido ridículo de uma das personalidades de Kevin para dançar abruptamente.

Infelizmente, Bruce Willis não tem a mesma sorte, e acaba empalidecendo diante desses dois monstros. Porém, não é culpa do ator, visto que o roteiro não dá muito o que fazer a David Dunn, que é resumido a um vigilante que luta para fazer o certo, sem conflito ou desenvolvimento, e com tempo de cena consideravelmente mais reduzido do que os colegas. Só foi interessante ver Willis com a velha capa de chuva do original, além de vê-lo contracenando com Spencer Treat Clark, já crescido após seu papel como o filho do personagem em 2000. 

Legado respeitado

Vidro é uma conclusão satisfatória para a inusitada trilogia iniciada por M. Night Shyamalan em seu ápice. É um filme mais preocupado na análise do super-herói e seus arcos de história do que um longa agitado e cheio de ação, o que pode irritar os fãs mais casuais de filmes de quadrinhos, mas que certamente vai agradar os aficionados por esse tipo de história.

Vidro (Glass, EUA – 2019)

Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: James McAvoy, Samuel L. Jackson, Bruce Willis, Sarah Paulson, Anya Taylor-Joy, Spencer Treat Clark, Charlayne Woodard
Gênero: Drama, Suspense
Duração: 132 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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