Crítica | Águas Rasas
Jaume Collet-Serra vem em uma boa fase nos cinemas americanos. Aliás, ele é um dos melhores exemplos de diretores que têm péssimas estreias de carreira, mas que, de bico fechado e com muito estudo, conseguem fixar carreira em Hollywood até realizarem bons filmes. Collet-Serra surgiu com o deplorável, péssimo A Casa de Cera, um filme de 2005 que certamente entra na lista dos piores que vi na vida.
Porém a recuperação foi rápida. Três anos depois, ele trouxe A Órfã, um empolgante thriller de suspense que certamente é um de seus melhores filmes. Nisso, fez dois longas de ação com Liam Neeson sendo Noite Sem Fim o ápice de sua carreira. Agora com Águas Rasas, é possível afirmar que o diretor cresceu e conseguiu manter boa qualidade em suas obras.
Nancy resolveu tirar um período sabático em sua vida agitada como estudante de medicina. Para homenagear sua mãe, falecida há pouco tempo, ela parte para uma praia secreta na costa mexicana onde seus pais costumavam surfar. O cenário paradisíaco, deserto e sereno é fantástico no começo do dia. Porém, quando o sol começa a se pôr, uma ameaça gigantesca surge e ataca Nancy: um tubarão branco. Mesmo ferida, ela consegue chegar em uma diminuta ilha de rochas no meio do oceano. Lá, ela terá que enfrentar todos os perigos vindos de seu ferimento e ficar atenta ao tubarão que ronda sua ilha a todo o momento até encontrar alguma maneira de retornar à praia em segurança.
O roteiro de Anthony Jaswinski escolhe rumos menos óbvios para um filme de ataques de tubarão. Ao contrário de Mar Aberto, longa de situação muito similar à de Águas Rasas, Jawinski aposta muito na força de sua personagem Nancy. Logo, de modo inteligente e bem-humorado, o roteirista oferece um bom momento de exposição para situar a motivação da protagonista.
Já ali, ele situa bons elementos através do uso de redes sociais e aplicativos de smartphones. Após uma primeira sessão de surfe onde também ocorre outra interação da personagem com outros coadjuvantes, se estabelece um conflito secundário que torna a surfista bem mais complexa, além de justificar diversas ações que ela toma após o ataque do tubarão.
Quando finalmente o tubarão entra em cena, boa parte do desenvolvimento humano é deixado de lado, afinal todos os esforços se concentram no jogo da sobrevivência. O maior ganho do roteiro é definir uma lógica interna fantástica para a rotina de Nancy em cima da rocha. Enquanto ele sucede bem ao estabelecer as medidas da protagonista para sobreviver, além de delinear os perigos como insolação, desidratação intensa, necrose dos ferimentos, febre, hipotermia, os horários de maré alta e baixa e as rondas do tubarão obcecado, o roteirista exagera na dose da exposição ruim quebrando a todo momento o silencio do solilóquio de Nancy.
Para justificar tantas vezes que a personagem fala consigo mesmo, até insere uma gaivota ferida na mesma rocha rendendo alguns momentos de leveza em meio a tanta tensão e desespero. Talvez, o único verdadeiro porém do longa, seria a inteligência por vezes muito avançada do tubarão. De resto, as saídas para o conflito até o clímax são muito bem inseridas encaixando elementos novos para o espectador não cair no marasmo durante o filme.
Com um texto bastante satisfatório, Jaume Collet-Serra consegue fazer bonito na direção do filme, exceto logo na primeira sequência. Como o roteiro usa o auxílio de redes sociais para definir quem é Nancy, Serra sempre insere caixinhas virtuais ao lado dos atores enquanto eles interagem com fotos ou vídeos. A primeira sequência se concentra em uma camionete que segue até a praia secreta onde Nancy e o motorista conversam.
Como em todas as cenas que se passam dentro de carros, a quebra de eixo de direção é normal por conta do jogo do campo e contracampo. Ou seja, ora o carro vai para a direita da tela, ora para a esquerda. Seguindo um jogo de decupagem infeliz por se concentrar em close ups durante essa conversa, além de encaixar nos mesmos planos as telinhas virtuais, o diretor joga toda a atenção para essa quebra de eixo já que os quadradinhos ficam mudando de lado no enquadramento a cada novo plano. É feio, é amador e gera confusão visual.
Após esse grande tropeço no começo, o diretor toma as rédeas e capricha bastante no resto do filme. Já na primeira grande sequência de surfe, ele consegue realizar uma ótima metáfora de montagem ao mudar os planos de superfície que acompanham a ação, para os subaquáticos mais contemplativos. Toda vez que estamos na superfície, sempre há presença de música que, por sua vez, some, quando nos planos submersos. Infere que a ameaça invisível e despercebida já está presente enquanto a protagonista se diverte com o surfe. Não muito delicado, mas eficiente.
A mesma qualidade segue quando finalmente o tubarão surge. Para isso, ele aproveita praticamente quase todos os planos possíveis para realizar em um filme desses. Logo, a linguagem visual é bastante rica e diversificada. Até mesmo há algumas mudanças de ponto de vista necessárias para a melhor compreensão de algumas passagens. Aliás, o campo de cinematografia brilha bastante conseguindo resultados fantásticos para tomadas submarinas. O mesmo ocorre com o uso adequado das cores para refletir os estados de espírito da protagonista. Novamente, não é à toa que clímax do longa se dê debaixo de forte tempestade.
Dominando bem o campo visual, fazendo algumas montagens videoclipadas para as cenas de surfe, Collet-Serra soube entender bem o tipo de filme que faz. Águas Rasas é, intrinsicamente, um filme de sobrevivência. E como toda obra desse tipo, a montagem tem que ser eficiente para transmitir o momento de marasmo necessário. Fora isso, há todas as outras dicotomias clássicas presentes em filmes de náufragos como a grande ironia da sede – afinal a personagem está cercada por água.
Também não funcionaria bem caso não nos importássemos com a protagonista. Por competência, Blake Lively consegue segurar bem o longa com momentos de horror e determinação. Além disso, o paralelo criado entre o passado da mãe da personagem com a sua luta pela sobrevivência ser competente. Collet-Serra confia tanto em sua atriz que até realiza um plano hitchcockiano que aposta na reação de horror da expressão de Lively ao presenciar uma cena bastante grotesca.
Com absoluta certeza, Águas Rasas é um dos melhores longas que exploram esse tema de ataques de tubarão. Seu roteiro consegue criar laços competentes para a personagem, elaborar planos de sobrevivência críveis, além de firmar bem a figura antagônica do tubarão. O mesmo se dá com Collet-Serra através da linguagem visual rica e das boas metáforas. A ação é igualmente competente, assim como o senso de urgência que ele traduz em sua montagem acertada. Até mesmo a maquiagem e o departamento de efeitos visuais impressionam muito – o tubarão só fica artificial em tomadas aéreas que capturam sua silhueta cafona.
Não há muito erro com esse filme. Se é fã desse tema e de cinema de horror competente, é a escolha mais adequada.
Águas Rasas (The Shallows, EUA, 2016)
Direção: Jaume Collet-Serra
Roteiro: Anthony Jaswinski
Elenco: Blake Lively, Óscar Jaenada, Brett Cullen, Sedona Legge, Pablo Calva, Janelle Bailey, Sully Seagull
Gênero: Suspense, Terror
Duração: 86 min
Crítica | Ben-Hur (2016)
Refazer um dos longas considerados como o maior feito do cinema americano é uma tarefa para poucos – algo que certamente a Paramount arriscou muito ao indicar Timur Bekmambetov na direção deste longa. O clássico épico de 1959 brilha com suas três horas e meia de duração para contar a grande história de Judah Ben-Hur. Já com os remakes sendo vistos com maus olhos, do elenco pífio, da redução de uma hora e meia na projeção e com um diretor para lá de duvidoso, algo salva nessa readaptação do clássico? Por incrível que pareça, o filme tem seus méritos.
Obviamente, os roteiristas ainda se baseiam no livro homônimo de Lew Wallace, mesmo que seja uma interpretação bastante livre no começo. Explorando uma passagem que antecede a história do filme de 1959, acompanhamos a juventude de Judah Ben-Hur e de Messala, seu irmão adotivo. Apaixonado por Tirzah, irmã de Ben-Hur, Messala, sabendo das diferenças de parentesco, nacionalidades e de classe social, decide partir para Roma a fim de fazer parte das legiões romanas em campanha para alcançar o prestígio necessário para um casamento.
Anos depois, Messala retorna à Judeia para conquistar o coração de sua amada, entretanto, tudo dá errado quando Pôncio Pilatos sofre um atentado justamente na rua da casa de Ben-Hur. Conhecendo a sede de sangue de Pilatos, Messala condena toda a família Hur à escravidão. Vivendo por quase uma década nas galés, Ben-Hur jura vingança à Messala por ter destruído sua vida e sua família.
O longa ganha e perde diversos pontos com as comparações ao clássico de William Wyler, porém, até mesmo em sua estrutura relativamente simples, consegue tropeçar ao burocratizar algumas passagens. A escolha de acompanhar uma dinâmica familiar entre Ben-Hur e Messala certamente é um dos pontos altos do filme, mesmo que se valha de clichês já há muito ultrapassados, além de pesar a mão na típica psicologia do oprimido – que se torna agressor, gradativamente – e abusar muito da exposição gratuita para fazer o espectador entender o emaranhado de personagens.
Justamente, por cortarem uma hora e meia de desenvolvimento textual, essa relação acaba prejudicada graças à pressa que o diretor conduz o longa. Todavia, é inegável que se trata de uma sequência inicial competente para estabelecer diversos conflitos, relações, motivações, ideologias e personagens – mesmo que quase tudo isso não seja desenvolvido apropriadamente.
Graças a essa grande pressa do primeiro ato, introduzindo elementos além da conta, diversas atitudes de Judah acabam não fazendo o menor sentido, pois contradizem suas palavras a todo momento. O personagem é ao mesmo tempo egoísta e altruísta, pessimista e otimista, uma verdadeira bagunça – no filme de Wyller, todos os personagens são muito bem resolvidos.
Além de todo esse grande problema envolvendo a família Hur e Messala, os roteiristas ainda tentam inserir o núcleo dos zelotes, uma seita que se rebela contra a dominação romana e de suas campanhas de expansão. Ainda, nisso, há alguma discussão sobre o papel romano civilizatório e da alienação promovida pelo “pão e circo”, elementos ausentes no filme de 1959. Seria ótimo, caso não fosse apenas uma muleta de roteiro para justificar o destino da família Hur, além de ser um núcleo apressado que aparece, some e reaparece do nada. Ao menos, no clímax do longa, os roteiristas conseguem criar um retrato cômico explorando toda a hipocrisia de grupos que seguem “fortes” ideologias.
Infelizmente, o texto da dupla de roteiristas passa a contar muito com o acaso e na simplificação dos personagens na segunda metade do filme. Ben-Hur vira um retrato ambulante do ódio e da vingança, sua esposa Esther reaparece na trama com facilidade, além de diversos outros acontecimentos importantes surgirem espontaneamente sem a menor conexão narrativa necessária para fazerem sentido. Messala também se torna uma figura antagônica muito simplificada perto do conflito e da introdução que eles haviam apresentado no início do longa.
Entretanto, nenhuma das rasas situações e da pressa inabalável da segunda parte consegue superar a tremenda mediocridade que banha o apressado epílogo que é totalmente diferente da versão de 1959. Atende um chamado utópico e da necessidade contemporânea de finais açucarados para blockbusters. Ou seja, sim, o filme perde parte da essência da mensagem do clássico.
Porém ainda se trata de “um conto de Cristo”. Dessa vez, abandonando a sutileza de Wyller em tornar Jesus uma figura quase ausente em 1959, Bekmambetov usa o personagem de modo mais incisivo tendo maior participação na história. Ainda há as passagens clássicas dos encontros de Ben-Hur com Jesus, porém o primeiro contato serve apenas para mostrar a descrença de Judah nas palavras do filho de Deus – algo que, novamente, não casa com as decisões do protagonista nos momentos decisivos.
Ao longo do filme, outros relances de cenas com a participação de Cristo surgem, além de outros personagens do filme orbitarem a importância de sua figura. Aliás, alguns conflitos também têm origem por conta dessas novidades. Mesmo que interessantes, é curioso como tudo se resolve em passes de mágica, sem a menor vontade ou esforço do time roteirista, além da filosofia do desapego que os personagens parecem seguir – principalmente entre Esther e Judah.
É evidente que Timur Bekmambetov não é nenhum William Wyller. Contando apenas com o bom O Procurado e o abismal Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros como grandes projetos, a escolha de seu nome não poderia ser mais inusitada e bizarra, afinal Ben-Hur deveria ser um projeto para diretores mais contemplativos, de bons dramas, fugindo bastante da vertente da ação descerebrada de Bekmambetov.
Dito e feito, enquanto as duas grandiosas sequências de ação brilham e marcam os pontos altos desse filme, todo o necessário desenvolvimento das cenas dramáticas falha miseravelmente. A abertura do filme já sofre com o estilo frenético de decupagem repleto de shaky cams, as famosas câmeras tremidas em seu próprio eixo. Bekmambetov, nesse primeiro segmento, também tem uma mania bizarra de enquadrar elementos totalmente alheios à ação da cena para fazer um falido ponto de corte.
Nesse ritmo intenso de decupagem e bombardeio visual, raramente Bekmambetov segura os planos do longa por mais tempo gerando algum momento de contemplação – mesmo que o filme exija isso. Toda a elegância cinematográfica, a escala colossal dos enquadramentos fantásticos auxiliados pelo filme Super 70, o ritmo memorável de diversas cenas do clássico de 1959 se perdem nas mãos do remake.
Entretanto, quando finalmente as duas grandiosas sequências de ação aparecem, Timur Bekmambetov consegue mostrar o que faz de melhor. Toda a sequência das galeras é visceral, com tons adequados da fotografia, além da escolha muito interessante de diversos pontos de vista que o diretor utiliza para construir o primeiro ponto alto de seu filme. É particularmente muito interessante a escolha de toda a ação externa, das guerras entre as galeras, nunca ser mostrada devidamente. Acompanhamos tudo a partir dos porões onde os escravos são confinados aos remos. O resultado final é absurdamente fantástico.
A histórica sequência do clímax, da corrida das bigas de William Wyller ainda se sustenta até hoje. O ritmo da montagem é adequado, a ação é estupenda, a decupagem perfeita e os efeitos visuais impressionantes. Talvez, somente por ela, já renderia os merecidos onze Oscar. Logo, a expectativa para ver como essa mesma sequência seria feita em 2016 e todo o poderio tecnológico possível era imensa.
Como o trabalho de Wyller é plasticamente perfeito, Bekmambetov consegue, ao menos, criar uma sequência tão boa quanto. O diretor recusou os efeitos visuais e apostou na exuberante quantidade cavalos reais em cena. É uma grandiosa cena que merece ser vista na melhor tela possível – indico o IMAX. O diretor fez o sequenciamento visual de modo excelente, respeitando as lógicas do jogo. Ainda temos os cavalos pretos de Messala correndo contra os cavalos brancos de Ben-Hur.
A tensão é envolvente, a violência continua a impressionar, os efeitos sonoros e de mixagem, impecáveis. A sequência do remake não deve nada para o clássico de 1959. Enquanto Bekmambetov impressiona com a ação estupenda do longa, ele praticamente esquece o trabalho com o elenco que é verdadeiramente péssimo.
O protagonista, Jack Huston, até que consegue segurar o filme, mas também parece perdido com as decisões incoerentes que Ben-Hur toma a todo momento. Rodrigo Santoro faz Jesus no piloto automático apostando em olhares caramelizados e expressões de serenidade. Já Toby Kebbel tem a pior performance com Messala, um personagem que exige atuações fortes que o ator não entendeu muito bem. Dos coadjuvantes, Pilou Asbaek é o pior com seu tosco Pôncio Pilatos. Assim como Santoro, Morgan Freeman reprisa papéis anteriores mantendo apenas uma postura mais austera com seu Ilderim.
O novo Ben-Hur funciona perfeitamente bem apenas como entretenimento descartável e comum, apesar de suas duas sequências de ação espetaculares. A pressa em contar uma história gigantesca prejudicou toda a narrativa deste remake que busca modernizar ao inserir diversos temas que não eram abordados na versão de 1959.
Com toda essa pressa, eventos que atropelam uns aos outros, além das soluções arbitrárias dos roteiristas, a grandiosa jornada de Judah Ben-Hur toma ares de telenovela, sem impressionar ninguém com seu desfecho açucarado. Se tivessem levado o projeto mais à sério, tendo escolhido nomes verdadeiramente importantes para conduzir o filme, talvez teríamos um clássico moderno e não apenas esse bom filme que somente se sustenta graças a força do livro de Lew Wallace e de suas grandiosas cenas de ação.
Ben-Hur (idem, EUA – 2016)
Direção: Timur Bekmambetov
Roteiro: Keith R. Clarke, John Ridley e Lew Wallace (Livro)
Elenco: Jack Huston, Toby Kebbell, Rodrigo Santoro, Nazanin Boniadi, Ayelet Zurer, Pilou Asbæk, Sofia Black-D'Elia, Morgan Freeman, Marwan Kenzari
Gênero: Ação, Aventura, Drama
Duração: 123 min.
https://www.youtube.com/watch?v=uefsSKX2YkM
10 Melhores Filmes de Terror de Baixo Orçamento
Nessa quinta-feira teremos a estreia da adaptação de Lights Out, famoso curta de 2013 que causou grande furor na internet. Assim como todos os longas da nossa lista, Quando as Luzes se Apagam foi feito com recursos limitados: apenas 5 milhões de dólares.
Obviamente, as nossas indicações não somente enaltecem a quantia limitada de recursos de cada filme, mas também apontam as suas grandes qualidades. Ou seja, é amante do terror? Então não perca tempo e procure todos esses filmes o quanto antes!
10 – O Massacre da Serra Elétrica (1974)
Orçamento: US$ 83.532 (estimado)
Bilheteria: US$ 30,9 milhões (domésticos)
Quem nunca ouviu alguma história sobre esse clássico slasher do horror? Leatherface é até hoje um dos vilões mais icônicos e assustadores que já vimos em tela. Inspirado por diversos episódios de violência, Tobe Hoper juntou os limitados recursos e colocou sua inspiração ao trabalho. O resultado disso tudo, todos nós sabemos.
9 – Tesis: Morte ao Vivo (1996)
Orçamento: 721.214 euros (estimado)
Bilheteria: US$ 3,5 milhões
Um dos longas mais importantes sobre a discussão acerca dos snuff movies, vídeos nos quais são registradas mortes reais de pessoas ou animais. Nesse trabalho de ouro, Alejandro Amenábar apresenta a história de Ángela que trabalha numa tese sobre violência. Em sua pesquisa, assiste a um vídeo onde matam uma garota, não uma qualquer, mas sim uma antiga aluna desaparecida de sua faculdade.
8 – Holocausto Canibal (1980)
Orçamento: US$ 100 mil
Bilheteria: ESP 133,432,635 pesos espanhóis. Equivalentes a US$ 800.000
Definitivamente um dos filmes mais polêmicos que se tem notícia. Tendo sido preso após dez dias da estreia de seu filme, o diretor Ruggero Deodato entrava para a História. O longa de estilo misto que transita entre a narrativa clássica e o found footage, mostrava um grupo de documentaristas sendo mortos e comidos por canibais sul americanos. O diretor só conseguiu deixar a prisão após seus atores aparecerem nos tribunais alegando sua inocência. Entretanto, o longa, até hoje, possui dois cortes.
O mais polêmico, além de mostrar a forte violência gráfica, também possui diversas sequências onde alguns animais são mortos no momento das filmagens.
7 – A Vingança de Jennifer (1978)
Orçamento: US$ 650 mil
Bilheteria: desconhecida
Um clássico cult. Muito antes de ter a versão conhecida através do remake de 2011, Day of the Woman foi um dos primeiros longas a ter em sua narrativa uma protagonista que sofre estupro coletivo. Abandonada e ferida, Jennifer persegue os quatro homens que a estupraram matando um a um. Ótimo longa!
6 – Cronos (1993)
Orçamento: US$ 2 milhões
Bilheteria: US$ 620 mil (doméstico)
Um dos primeiros longas de Guillermo Del Toro. Mesmo sendo considerado um dos filmes espanhóis mais caros já feitos, perto dos grandes orçamentos Hollywoodianos, a produção de Del Toro é notória pelo gerenciamento dos recursos.
O filme estabelece uma mitologia intrigante a respeito de um dispositivo que garante a vida eterna para seu dono. Ressurgindo após 400 anos, em vez de oferecer a imortalidade, acaba trazendo um rastro de sanguinolência.
5 – Vampyros Lesbos (1971)
Orçamento e bilheteria: desconhecido
Um dos sexploitations mais conceituados do gênero, além de ser dirigido por Jesús Franco, um cineasta de recursos sempre limitados, embora confeccione um charme quase indescritível para seus filmes. Além de contar com a beleza estonteante de Soledad Mirando, a trilha sonora do longa é tão boa a ponto de Quentin Tarantino utilizar uma das faixas em seu longa Jackie Brown.
A história é tão simples quanto seu orçamento. Trata-se das investidas sexuais de uma vampira ao seduzir diversas mulheres para saciar sua fome de sangue. Certamente uma expressão artística que está muito acima do que a história pode oferecer para o espectador.
4 – Mártires (2008)
Orçamento: US$ 6,5 milhões
Bilheteria: desconhecida
Possivelmente a pérola do novo século, Mártires é uma das obras mais chocantes que já vi em anos. Tratando de temas pertinentes ao traçar sua narrativa intrincada com religião, fé, seitas, tortura, filosofia, vingança e psicologia, não resta dúvidas que o filme merece figurar nessa lista.
A história acompanha Anna buscando vingança das pessoas que a torturam intensamente durante a infância. Porém o longa é muito mais do que isso ao contar com diversas reviravoltas que mudam totalmente o rumo da narrativa. É o equivalente de Psicose para os dias atuais com as escolhas narrativas muito corajosas.
3 – Incubus (1982)
Orçamento: 5,1 milhões de dólares canadenses
Bilheteria: desconhecida
Outro clássico cult, dessa vez estrelando John Cassevetes. A história muito interessante acompanha os sonhos de um jovem adolescente. Porém, não se tratam de sonhos normais, mas sim pesadelos com diversas jovens sendo estupradas e mortas. Perturbado, procura a ajuda de um doutor e do xerife local. Juntos, descobrem que os sonhos do garoto se tratam de acontecimentos reais.
2 – A Bruxa de Blair (1999)
Orçamento: US$ 60.000
Bilheteria: US$ 140,5 milhões
Quem nunca ouviu falar das histórias por trás da produção de A Bruxa de Blair? Um revival do formato found footage que aposta muito no terror psicológico e nada na violência gráfica. Para atingir o realismo desejado, a produção do filme abandonou o trio dos atores no meio das gravações na sombria floresta que servia de locação. Em diversos momentos, os atores sentem medo real ao escutarem barulhos sinistros na floresta que na verdade era apenas a produção pregando peças neles. A sorte é ter tudo registrado no vídeo.
Na história, um grupo de jovens tenta provar a existência de uma bruxa na macabra floresta que circunda a cidade local. Obviamente, as coisas começam a dar errado já na primeira noite.
1 – Parque Macabro (1962)
Orçamento: US$ 30.000
Bilheteria: desconhecida
Feito muito à frente de seu tempo em termos de direção e narrativa, Parque Macabro merece o primeiro lugar. Contar o final do longa certamente é um baita spoiler, mas digamos que essa característica de personagem só foi resgatada com M. Night Shyamalan em O Sexto Sentido.
Na história, após um acidente de trânsito muito violento, uma mulher sobrevive sem algum arranhão. Ao explorar as redondezas, descobre um circo abandonado. Para seu terror, ela não é a única visitante do macabro local.
Hors Concours – A Orgia da Morte (1964)
Orçamento: filme do Roger Corman = menor custo de produção possível
Bilheteria: desconhecida
Roger Corman ainda trabalha com os filmes mais baratos possíveis, mesmo já com seus 90 anos de idade. Em 1964, já estava acostumado com sua característica autoral. Em A Orgia da Morte, um príncipe europeu humilha a plebe local enquanto faz um cerco em seu castelo para se proteger da praga da morte vermelha. Nisso, organiza bailes para a realeza. Durante uma das polêmicas festas, observa um convidado misterioso usando uma máscara vermelha. Acreditando que se trata do próprio Diabo em pessoa, o príncipe resolve perseguir o convidado.
Obs: lista organizada por nosso colaborador, Daniel Moreno.
Crítica | Um Espião e Meio
Há poucas semanas, Shane Black revitalizou o subgênero do buddy cop com Dois Caras Legais. Não por mera coincidência que temos mais uma comédia destinada as histórias celebres constituída pela dinâmica de uma dupla de policiais. Com Um Espião e Meio, a Universal aproveita a pegada da proposta, mas subvertendo algumas características genuínas ao misturar formatos da comédia e até mesmo da técnica narrativa.
A história escrita por Ike Barinholtz, David Stassen e também pelo diretor do filme, Rawson Thurber, se vale de diversos clichês. Aliás, inicia com um. A vida de Calvin Joyner não foi o sucesso que ele esperava. A realidade de um trabalho maçante, pacato e irritante que ele odeia o acompanha para afogar quaisquer expectativas que ele possa vir a ter. Deprimido por ter perdido a alegria e altas esperanças sobre seu futuro de quando era uma estrela do colégio durante o ensino médio, vê sua vida virar de cabeça para baixo quando um estranho colega de sala, Bob Stone o chama para sair.
Após um reencontro casual e a ótima surpresa ao descobrir que Bob era nada menos que o menino gordinho e esquisitão do colégio, Calvin se vê envolvido em uma trama de espionagem e perseguição de agentes secretos. A verdade é que Stone é um agente desertor da CIA e precisa da ajuda de seu antigo colega para conseguir decifrar um código que revelará o ponto de encontro para uma negociação de armas com potencial de destruir o mundo.
Como toda comédia que se preze, a narrativa de Um Espião e Meio move-se rapidamente. Mesmo se tratando de uma história bastante básica e previsível – é muito fácil deduzir suas vindouras reviravoltas, o filme se sustenta ao máximo a partir das performances de Kevin Hart e Dwayne Johnson esbanjando carisma e explorando sua verve cômica até então pouco aproveitada.
Por incrível que pareça, a comédia aposta muito pouco no pastelão e sim nas referências de um universo exterior ao filme fazendo piada com outras obras como Jason Bourne e outros filmes de espionagem. Também por Aaron Paul ser presente no elenco, há uma ótima piada com seu personagem anterior, Jesse Pinkman de Breaking Bad.
Os roteiristas também acertam ao escolher poucos conflitos secundários para guiar a história. O principal drama se utiliza das suspeitas que Calvin têm das verdadeiras intenções de Bob. Tudo é reforçado com a utilização dos agentes da CIA que vestem a carapuça de antagonistas que a história necessita. Então há um jogo onde Calvin vira um agente duplo justamente por ter contato com Bob e com a agente da CIA que está o caçando. Como o protagonista não quer prejudicar a própria vida casual e quer manter a esposa em segurança, ele reluta em acompanhar Bob em suas aventuras.
Aliás, é justamente nesse aspecto no qual o roteiro sai do convencional ao apostar na reação realista de Calvin que ele toma caminhos um tanto burocráticos e fracos na comicidade. Isso inclui toda a relação do protagonista com sua esposa que é bastante rasa, além de utilizar situações clichês. O maior problema desse núcleo é que os roteiristas não fundamentam bem essa dita “crise” no casamento do protagonista. Os conflitos acontecem do nada.
Porém há outros problemas que tornam os personagens mais complexos como a dura realidade dos sonhos destruídos de Calvin e dos reflexos emocionais vindos do bullying que assombram Bob Stone. Nada fora do convencional, mas também não ofende. Ao menos enriquecem os personagens, além do diretor utilizar uma metáfora visual impressionante para um filme de comédia padrão.
Apesar do péssimo título nacional, Um Espião e Meio rende uma boa sessão ao cinema. A comédia funciona bem em sua maioria graças às piadas lotadas de referências a outras obras cinematográficas. Aposta em clichês, mantem o texto seguro na previsibilidade, mas também investe em reações realistas para qualquer cidadão que se encontrasse na situação de Calvin ao se deparar com um agente secreto. Como esperado, a dupla Hart e Johnson sustentam o filme de modo excelente garantindo boas risadas. Até mesmo a direção do longa tem seus momentos inspirados, apesar do modo bastante preguiçoso no qual o clímax é inserido.
Crítica | Batman - Ataque ao Arkham
Ironicamente, a infame formação de vilões comandados por Amanda Waller não apareceu pela primeira vez em um longa-metragem com Esquadrão Suicida, novo longa da DC dirigido por David Ayer. Na verdade, a trupe teve sua estreia com um filme animado do selo DC Animated. Sob uma formação diferente, o Esquadrão Suicida é protagonista de Batman: Assalto em Arkham. E, surpreendentemente, é um filme muito mais interessante que a nova aventura milionária com Will Smith e Margot Robbie.
Após Charada roubar segredos de governo em posse de Amanda Waller, a agente casca grossa coloca em prática seu infame projeto Força Tarefa X – a.k.a. Esquadrão Suicida. Antes que sua equipe paramilitar conseguisse matar Charada, Batman intervém e salva o vilão, o condenando para uma nova estadia no Asilo Arkham. Sabendo que as posses de Charada estão no inventário do manicômio, Waller manda Pistoleiro, Arlequina, Nevasca, KGBesta, Aranha Negra, Capitão Bumerangue e Tubarão-Rei, invadirem o Asilo Arkham para reaver seus planos. Enquanto isso, Batman revira Gotham procurando uma bomba que Coringa escondeu na cidade.
Como boa parte das animações DC, Assalto em Arkham sofre com as limitações da duração do filme e da linguagem bastante acelerada. Exatamente por isso, o roteiro de Heath Corson começa em alta velocidade. Em poucos minutos, a narrativa já engrena e avança rapidamente com diversas reviravoltas – algumas até imprevisíveis.
Obviamente, os personagens brilham pela interação muito afinada que Corson realiza entre diversos diálogos recheados de palavrões e violência – afinal se tratam de vilões. Em nenhum momento, há quaisquer indícios de cumplicidade entre eles. Por competência, mesmo se tratando de personagens desprezíveis, os diálogos acertados conseguem levar o filme adiante, além de um bom jogo de níveis de conhecimento de cada um deles acerca da missão no Arkham.
Nisso, Corson aposta muito mais em sua narrativa do que na construção dos personagens, afinal são muitos e o tempo é curto. Decisão acertada, mas que certamente empobrece o longa. Somente Pistoleiro e Arlequina recebem algum tratamento mais elaborado. Aliás, o conflito sobre o término do romance entre Arlequina e Coringa é escanteado no terceiro ato do filme. Uma pena, pois há elementos interessantes, inclusive a relação que ela possui com Pistoleiro.
Outro acerto do roteirista é o plano da invasão. Mesmo pulando a tradicional sequência de planejamento do golpe, Corson, ao nos jogar diretamente para a execução de um plano até que elaborado, cria uma sequência similar com a muito famosa de Onze Homens e um Segredo onde diversos integrantes do grupo dependem do sucesso da ação de um terceiro. É uma das partes mais divertidas do longa que poderia ter mais proveito criativo da direção-padrão de Jay Oliva.
Quando chegamos ao Arkham e o filme caminha para seu terceiro ato, Coringa faz parte da narrativa de modo mais ativo com sua ameaça de explodir Gotham. É um núcleo bastante descartável e bizarro, mas consegue injetar mais ação ao filme. Pena que toda a concentração narrativa envolvida com ele, Arlequina e Pistoleiro se resolve somente na porrada.
Ao fim do filme, Corson deixa a narrativa ainda mais acelerada ao introduzir com inteligência o Batman em Arkham. Com reviravoltas que acabam causando praticamente o colapso do manicômio, diversos vilões conseguem fugir de suas celas e parte para a briga. Ali, Corson que já demonstra não ter a menor piedade ao matar muitos personagens do filme, faz a festa com o restante do grupo.
É curioso notar como David Ayer buscou alguma inspiração em Assalto em Arkham para seu Esquadrão Suicida, tanto no texto quanto na direção de Jay Oliva e Ethan Spaulding. Desde o desfecho parecidíssimo do Coringa nos dois filmes até com a introdução dinâmica de cada um dos integrantes do esquadrão. Já o que tange a direção do desenho, Oliva realiza um dos seus melhores trabalhos. As cenas de ação empolgam, além de possuir qualidade superior à de outros filmes animados no que se refere à técnica de animação feita com mais cuidado.
Os cenários permanecem pouco inspirados e vazios com quase nenhum elemento interessante. Por ser um filme inspirado na série de games Arkham, o traço dos desenhos é bem mais encorpado, adulto, delineando os músculos e apostando nos detalhes dos uniformes de cada um. Infelizmente, os diretores desperdiçam completamente o sistema e a movimentação de combate que a Rocksteady criou para o Batman nos jogos. Aqui, certamente seria bastante interessante adicionarem a brutalidade do combate do game já que a temática do filme é bastante adulta contendo sexo, nudez parcial, sangue e mutilações – uma baita incógnita, aliás.
Batman: Assalto em Arkham consegue ser uma animação de melhor qualidade dentro do DC Animated. A atmosfera mais adulta e violenta consegue encantar quem procura muita ação e pouca história. Do pouco que possui, consegue sustentar o filme inteiro por conta da interessante relação entre os personagens, além de manter um ritmo excelente para boas reviravoltas. Uma pena que o formato limite bastante o filme, restringindo qualquer aprofundamento em seus personagens ou que força o desperdício de boas ideias, além do clímax se resolver sem maiores problemas graças ao exagero envolvendo Batman e seu poder. Ainda assim, é uma ótima dica de entretenimento. Rápido e fácil, consegue superar a qualidade inconstante de Esquadrão Suicida.
Crítica | O Bom Gigante Amigo
Se houve alguma colaboração na história do cinema que mais tinha necessidade de acontecer era a de Steven Spielberg com os Estúdios Disney. Com o currículo contando com muitas aventuras que fizeram alegrias de crianças e jovens como E.T.: O Extraterrestre, a franquia Indiana Jones, As Aventuras de Tintim, Hook e Jurassic Park, uma parceria entre Spielberg e Disney poderia render um filme que unisse o melhor dos dois mundos.
Porém, o resultado dessa inesperada aliança foge totalmente dos trabalhos moderadamente histéricos da Disney como Procurando Dory ou dos muito histéricos como Mogli: O Menino Lobo. É até mesmo um filme muito inusitado para os padrões novos e clássicos de Spielberg. Como havia dito na crítica de Mogli, o calendário centrado da Disney comportou O Bom Gigante Amigo como o seu blockbuster principal para o fim do verão americano – uma faixa que só traz más lembranças para o estúdio graças aos fracassos sucedidos de John Carter, O Cavaleiro Solitário e Tomorrowland. Mais uma vez, o filme não caiu nas graças da bilheteria, porém, desta vez, trata-se de uma obra muito superior.
A verdade é que BGA é um daqueles filmes paradoxais que enriquecem, e muito, a sétima arte. Ou seja, é um filme consideravelmente chato, mas também é um dos mais belos que verá neste ano.
O roteiro de Melissa Mathison adapta o livro homônimo do escritor Roald Dahl, um dos autores mais premiados de obras infantis como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda. Aqui, agora se assemelhando muito com uma história de ninar, o texto traz a história da pequena Sophie, uma garotinha inglesa que vive em um orfanato londrino. Sofrendo de insônia, a garota sempre repete a mesma rotina em suas perambulações noturnas entre as instalações do casarão.
Quando, enfim, se prepara para dormir, às três horas da manhã, Sophie percebe um movimento nada ordinário na rua defronte a sua enorme janela. Ao sair para a sacada, tremendo de medo, Sophie encara um enorme gigante se escondendo na esquina. Ao perceber que é espionado, o imenso homem a captura e leva a garota até a inexplorada Terra dos Gigantes. Lá, ele terá que aprender como lidar com Sophie e suas muitas tentativas de fuga. Entretanto, o perigo maior, tanto para o bom gigante amigo e Sophie, são os outros habitantes da ilha, devoradores de humanos.
Como em muitos outros trabalhos autorais de Spielberg, o que manda no filme é mesmo a essência fantástica do texto. Entretanto, apesar da excelente qualidade, é bem evidente que não se trata de uma história para crianças, pois, mesmo apropriada, é bastante tediosa – certamente a história deve funcionar melhor no livro. Aliás, é isso o que mais intriga em O Bom Gigante Amigo. Trata-se de um filme que não consegue se comunicar bem com a maioria do público por conta da atmosfera serena de profunda contemplação pouco habitual para blockbusters desse porte.
O fato de ser um longa da Disney contemporânea só assusta ainda mais, pois certamente trata-se de um projeto que foge dos padrões do estúdio – evidência incontestável de como Spielberg tem poder nos trabalhos que assume. E isso, na minha opinião, é o grande diferencial positivo de seu filme.
A roteirista dedica diversos minutos para fundamentar bem a mitologia que o enredo traz assim como a essência de seus personagens ficam cada vez mais nítidas. É através dos ingênuos e fofos diálogos entre Sophie e BGA que isso é feito, aliás. E são bastante enriquecedores, brincando com dialetos atrapalhados dos gigantes, a importância narrativa e simbológica dos sonhos e revelando o passado sofrido dos dois.
Trabalhando no clichê manjado sem novas adições, Mathison somente peca em relação aos antagonistas, outros gigantes mal-encarados muito maiores que o BGA. A motivação deles é básica, ordinária, mas combina com a essência simplória dos personagens. Graças à boa construção dos protagonistas e das performances ótimas de Ruby Barnhill e Mark Rylance, o conflito funciona por nos deixar apreensivos com a ameaça que os gigantes representam, pois fica implícito um episódio tenebroso envolvendo todos eles.
Assim como Ponte dos Espiões, esse novo filme de Spielberg aposta muito mais na "contação" do que na ação propriamente realizada. Essas, quando surgem, são bastante ligeiras como até mesmo o clímax da história.
Mesmo com o trabalho maravilhoso na relação dos protagonistas, a história reserva uma surpresa que chega somente após oitenta minutos de filme. É a reviravolta mais imprevisível que eu tenha visto nos últimos anos e, ainda assim, de muita qualidade brincando com conceitos vistos em A Origem. Se trata de uma sequência surreal que injeta nova vida ao filme, mesmo durando apenas pouco mais de quinze minutos.
O mais impressionante é que todos os conceitos, para tornar essa reviravolta bem justificada, foram inseridos com precisão cirúrgica nas cenas anteriores. Mesmo partindo de uma ideia absolutamente absurda, ela tem toda a racionalidade que predomina no texto. Nisso, acontece o mais improvável, uma piada escatológica genial. Somente Spielberg e sua magistral condução de cena para fazer eu rir como uma criança com uma das vertentes mais simples da comédia. Aliás, todo o texto de humor dessa sequência aposta no nonsense. Logo, a figura do diretor é de importância extrema para contruir o timing exato. Há até mesmo brincadeiras com pontos de vista, escolha de planos, dilatações de cenas que conversam com o nível de conhecimento do espectador em comparação com o do personagem.
A execução da direção de Spielberg ainda é a melhor quando se trata de câmera invisível. A dedicação visual é estonteante com grande organicidade entre um plano ou outro. Toda a movimentação da graciosa câmera é sutil sempre apostando na naturalidade do movimento puxado pelo magnetismo da encenação que o diretor cria. É simplesmente poesia em movimento. Mas dessa vez, poesia que remete ao cinema asiático de Kurosawa e Ozu misturada com sua técnica de direção.
Spielberg sempre foi um gênio no manejo de câmera e de decupagem. Isso vem desde Encurralado. Mas tirando As Aventuras de Tintim, essa é a primeira vez em anos que ele trabalha em um filme com auxílio intenso de computação gráfica. A ilusão realmente funciona pelo detalhamento de texturas, cores e animações fluidas somente devendo na qualidade duvidosa do resultado final dos outros gigantes.
Enquanto seu cinematografista favorito, Janusz Kaminsky, ainda trabalha com as maravilhosas e atmosféricas luzes duras, altas luzes, névoa e contraluz podendo agora explorar cores mais vivas e interessantes, Spielberg adota um estilo de direção que realmente remete ao ritmo asiático clássico, mas o traduzindo para os anos 2010 chegando próximo do modo que Miyazaki conduzia algumas obras recentes do Studio Ghibli. Aliás, o diretor também insere algumas referências muito nostálgicas de alguns filmes marcantes de sua carreira.
Devido a tecnologia da época, a mobilidade da câmera sempre fora um enorme desafio para diversos grandes diretores dos anos 1940 e 50. Sem esse empecilho e aproveitando muito o suporte fantástico que a computação gráfica oferece, Spielberg mistura a magia da contemplação com efeitos elegantes de movimentação visual.
Movimentação visual não é o mesmo que movimentação de câmera, ainda que o diretor use os dois recursos aqui. A grande maioria dos filmes de Kurosawa se traduziam pela força da movimentação visual mesmo que os planos permanecessem estáticos – vide Os Sete Samurais. A grandiosidade dos dois elementos combinados em O Bom Gigante Amigo vem sempre quando surge um plano sequência – esse é, de longe, o filme que melhor e mais utiliza o recurso nesse cinema de 2016.
Os planos sequência sempre foram uma das maiores marcas autorais de Steven Spielberg, além dos sempre presentes reaction shots repletos de olhares que carregam seu melodrama. A graça dessa técnica de Spielberg é o modo que ele realiza sempre visando que nós não notemos de que se trata de fato de um plano sequência. Quando ele resolver segurar o plano, o faz sempre de modo orgânico alterando as suas riquíssimas composições visuais com afinco. Temos dois particularmente encantadores: o que encerra o clímax e um que ocorre quando Sophie cai nas rudimentares tubulações da casa do gigante.
Para completar o brilhantismo técnico artístico, o favorito compositor de longas datas, John Williams, retorna com uma das trilhas musicais mais doces e emocionantes que já compôs em tempos. Deve haver alguma magia que une esses dois profissionais para criarem resultados maravilhosos. Explicitando totalmente sua linha romântica e homenageando o uso clássico da música nos filmes Disney, Williams trabalha com tons melódicos leves, saltitantes e irrequietos vindos através de harpas e uso intenso de flautas para preencher os temas que acompanham Sophie.
Para os gigantes, há uma grande distinção de temas. Como o Bom Gigante Amigo é uma criatura mais esguia e ágil, Williams usa instrumentos de sopro mais agudos e violinos ora entusiasmados, ora levemente melancólicos. Os antagonistas, quando surgem em cena, ganham elementos sonoros mais pesados e abafados, mas acompanhados de ritmos nada ameaçadores e sim bobos refletindo diretamente o espírito dos personagens.
Já outras composições, como as destinadas para a conclusão do filme ou que trabalham em cima de passagens que tratam sobre o futuro de Sophie rasgam no melodrama. Flautas bem menos agitadas surgem, de tons melódicos belos, porém um tanto pálidos e tristes, pois indicam que a relação de incrível amizade entre os dois terá que ter um inevitável fim. Mais uma vez, John Williams criou música que move.
O Bom Gigante Amigo é a prova concreta que Steven Spielberg retornou com tudo para sua forma encantadora como um ápice de talento e vontade de trabalho dessa fase distinta de sua carreira: a contemplação serena e bela que abraça e reflete o espírito jovem de um criador já na terceira idade. Um filme sobre velhice, juventude, solidão, esperança, onipresença e amizade. São aspectos profundos que parecem dialogar a todo momento com Spielberg. Logo, todo esse ritmo da obra refletir tanto o cinema asiático dos realizadores citados assim como boa parte das animações do Studio Ghibli não é por mera coincidência.
Como já apontado, o filme é realmente uma incógnita para escalar uma recomendação baseado no gosto de cada um. Há de se considerar que é quase certo que o público destinado não fique tão envolvido com uma história que aposta tanto em diálogos e contemplação em vez da ação desenfreada. Porém, é impossível não parabenizar a Disney pela escolha muito corajosa de entregar um longa tão introspectivo e tímido como esse mesmo sabendo que se tornaria um fracasso de bilheteria.
Steven Spielberg é um dos melhores realizadores da História do Cinema e merece ser celebrado por isso em vida e também na posterioridade. Todos os valores passados pelos seus filmes em minha infância serão carregados comigo até o fim. Agora, no sentido profissional, continua um dos melhores professores de Cinema que alguém poderia pedir.
O Bom Gigante Amigo (The BFG, EUA - 2016)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Melissa Mathison, baseado na obra de Roald Dahl
Elenco: Ruby Barnhill, Mark Rylance, Penelope Wilton, Jemaine Clement, Bill Hader, Rafe Spall, Rebecca Hall, Ólafur Darri Ólafsson
Gênero: Aventura
Duração: 117 min
https://www.youtube.com/watch?v=UU4HC9yP3Ds
Crítica | Batman: A Piada Mortal (2016)
Em diversas obras já conceituadas, rasgar elogios à toa é uma grande redundância. Esse é o caso claro para A Piada Mortal, uma das HQs mais icônicas do Batman, resultado de uma parceria de Alan Moore – que não estava muito a fim de escrever, segundo ele – e do desenhista Brian Bolland – explodindo de ansiedade por trabalhar com um gênio dos quadrinhos, segundo ele.
É difícil descrever a sensação de ler pela primeira vez essa história poderosíssima. O nível de maestria na construção visual e narrativa é raro de se ver. Através de um trabalho puramente cinematográfico da diagramação acertada de Bolland, nos horrorizamos, surpreendemos, lamentamos e nos amarguramos graças ao fim ambíguo da obra. Inegável que se trata de trabalho de mestre.
Logo, é difícil segurar a ansiedade e expectativa a respeito do novo filme da Dc Animated que adapta a clássica história. No caso de uma história tão querida, era bastante óbvio que o estúdio precisava fazer seu filme de ouro, de qualidade inquestionável. Uma pena que isso não acontece.
O filme conta com um grande nome dos roteiros das HQs, Brian Azzarello, que foi o responsável por tornar a história mais, digamos, cinematográfica. Para isso, temos dois filmes em um como foi amplamente divulgado em tantas notícias. Como a própria Barbara Gordon conta em voz over, o filme não começa do modo que você espera.
No primeiro segmento de quase quarenta minutos, acompanhamos uma história original que tenta aprofundar a relação entre Batman e Batgirl e os impulsos sexuais que surgem durante as cruzadas noturnas. Importante citar que esse mythos que tange uma relação amorosa entre os dois encapuzados vem diretamente dos trabalhos realizados em Batman: A Série Animada. Porém aqui, Azzarello tenta levar para outro nível mais complexo arranhando a psicologia freudiana.
Em meio a tudo isso, surge um vilão extremamente genérico chamado Paris Franz. Através dele, Azzarello tenta (e falha) em criar uma espécie de Coringa para a Batgirl. Ou seja, um antagonista narcisista extremamente fissurado na moça. Com poucos personagens, a história até que se sustenta por ser divertida, mas não deixa de ser extremamente simplória. Há novamente o discurso sobre o abismo que separa a figura do vigilante do criminoso ordinário e da tentação assassina que há sobre as ações do Batman.
Para quem já leu muito sobre o Cruzado Encapuzado, o primeiro segmento realmente não oferece muita coisa nova. Mas o talento da voz de Tara Strong que dubla Batgirl aliada à algumas boas cenas cômicas, além desse olhar particularmente interessante, embora repetitivo, sobre a relação dos dois render um bom divertimento.
Então, sem qualquer transição orgânica, somos jogados para a linha clássica da comic de Alan Moore. Como muita gente sabe, o one-shot trata-se de uma história de origem para o Coringa enquanto mostra um dos lados mais cruéis e dementes do vilão. O arqui-inimigo do Batman tenta provar que a loucura pode acometer a qualquer pessoa que encarar um péssimo dia – assim como aconteceu com ele.
Muito do texto do Azzarello trata-se de uma enorme transcrição. Ipsis Literis. Então, obviamente, nessas partes os diálogos são brilhantes. Onde o roteirista adiciona elementos, acaba tornando diversas situações muito piegas como um breve diálogo entre Coringa e Jim Gordon antes do detetive entrar no trem dos horrores. Ao menos, uma alteração positiva se encontra na adição da investigação do Batman para descobrir onde Coringa se meteu – ainda que se trate de uma sequência filler que praticamente arruína a sagacidade da escrita de Moore sobre a ação do Coringa durante a sessão de fotos com Barbara Gordon.
Particularmente, para mim, não funciona, pois isso foge muito dos métodos de terror do vilão. Piorando a situação, há o dedo de produtores que parecem não compreender bem o público alvo do longa. Isso também inclui o trabalho medíocre de Sam Liu na direção.
É bizarro notar como tentam inserir sequências de ação com frequência nessa segunda parte da adaptação quando era para o trabalho ser mais introspectivo e cerebral. Temos lutas relativamente longas entre Batman e as aberrações de circo que Coringa contrata como capangas. Na HQ, os personagens eram apenas alegóricos para contextualizar o tema circense.
O diretor mais erra do que acerta, na verdade. A começar, é realmente inacreditável que a Warner Animation tenha tratado essa adaptação apenas como mais um novo desenho de sua série de filmes. Ou seja, a animação segue o exato mesmo padrão reciclado de todos os outros filmes como as duas partes de Cavaleiro das Trevas, Ponto de Ignição, Liga da Justiça: Guerra, entre outros.
Então a animação principal é até que razoável, porém os cenários são totalmente simplórios, sem graça, vida ou cor, o trabalho de iluminação é péssimo – um tiro na obra de sombreamento de Bolland na HQ – e, por fim, a animação de personagens em segundo plano é abissal, inexistente. Repare no flashback de Coringa na cena do bar com os dois criminosos, é absolutamente surreal como os demais personagens se comportam como estátuas – até a diagramação de arte sequenciada de Bolland tem mais animação que nesse filme.
Até mesmo há deslizes imperdoáveis de reciclagem de animações dentro da mesma sequência. No caso, na chata cantoria do número musical de Coringa com seus capangas bizarros. Ao menos, o traço foge um pouco daquele estilo anime que marca outros filmes animados. Claro que nada próximo do trabalho de Brian Bolland, mas uma mistura de características clássicas dos desenhos de Bruce Timm que ele injetou em tantos seriados da DC nos anos 1990.
Enquanto o diretor acerta ao copiar os enquadramentos de Bolland e Moore da HQ, é impressionante como consegue falhar miseravelmente nos raccords visuais tão presentes na obra original para viajarmos entre os flashbacks e a linha do tempo normal. Mesmo estando todos absolutamente prontos, o diretor apenas insere um, o mais sutil deles, da “mulher gorda para a grávida”. Sinceramente, fico estarrecido quanto a isso já que o trabalho de enquadramentos está absolutamente pronto porque a arte que Bolland fez é cinematográfica por si só. Era melhor ter apenas copiado e pronto.
O desfecho antológico da HQ também perde força e sua ambiguidade. Quando Coringa enfim conta a tal Piada Mortal, em mais um erro na direção de vozes – infelizmente, não é Andrea Romano quem cuida da dublagem desse longa – temos risadas tímidas de Batman e Coringa. Ou seja, aquele momento brilhante de insanidade compartilhada, de histeria cômica, é inexistente.
Chegando aos cinemas Cinemark apenas no dia 25 desse mês, o longa de A Piada Mortal é mesmo um telefilme com direito a todas as limitações da técnica de animação da Dc Animated. Obviamente, não há o que reclamar da história já que é praticamente a mesma com apenas algumas adições filler medíocres. Para Kevin Conroy e Mark Hamill só restam elogios. Impecáveis como sempre.
Apesar de todos os seus defeitos, não deixa de ser uma ótima oportunidade de atrair um punhado de novos leitores para uma história tão clássica e inesquecível. Para os fãs mais fervorosos, talvez não haja tanta graça para a mesma piada.
Crítica | Stranger Things - 1ª Temporada
A Netflix ousa no campo dos seriados. E ousa como ninguém. Há quem diga que os tempos áureos da televisão contemporânea morreram com o fim dos fenômenos Mad Men e Breaking Bad – filhos da geração revolucionária de Os Sopranos, The Wire e A Sete Palmos. Abraçando esse tipo de narrativa, o serviço quebra fronteiras com sua especialização em boas séries como House of Cards, Bojack Horseman, Marco Polo, Narcos, Demolidor, etc. Na semana passada, um dos gêneros mais convidativos para o trabalho, a ficção científica, ganhou este ótimo seriado, Stranger Things.
Praticamente saídos do mundo invertido, os muito desconhecidos irmãos Duffer capturaram o espírito da cultura de ficção científica e molecagem vindas diretamente dos anos 1980. Aqui, a proposta é escancarada: trata-se do raro, mas muito bem-vindo, trabalho exclusivo com os clichês. Então, caso você seja uma pessoa que consome muita cultura, certamente já viu esse seriado antes, mas não em uma obra só. Na verdade, em várias.
Não há como definir Stranger Things como outra coisa além de “Steven Spielberg e Stephen King Mix Tape”, pois é exatamente o que ela é. A única coisa de original que esse seriado possui é o resultado dessa mistura muitíssimo agradável. Tendo assistido vorazmente os concisos oito episódios notei um número impressionante de referências audiovisuais e literárias tanto, ocidentais quanto orientais.
Obviamente, a principal obra que guia o seriado inteiro é o belíssimo E.T.: O Extraterrestre pautando tanto as relações humanas como boa parte dos cinco núcleos dramáticos existentes. Muito do conteúdo da série vem de obras oitentistas como Tubarão, Poltergeist, Os Goonies, Conta Comigo, O Clube dos Cinco, Alien: o 8º Passageiro, Viagens Alucinantes, Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Chamas da Vingança, A Hora do Pesadelo, Scanners, O Enigma de Outro Mundo e It. Porém, isso não exclui o fato dos irmãos Duffer terem ido além e encaixado obras relativamente novas como Apanhador de Sonhos, Sobrenatural, Sob A Pele, Elfen Lied, Max Payne, Alan Wake e Os Suspeitos. Há até mesmo elementos de Janela Indiscreta e o uso do voyeurismo, além de alguns acenos ao clássico moderno Super 8, filme por si próprio muito similar na proposta de Stranger Things.
Na narrativa, acompanhamos um quarteto de amigos na pré-adolescência. Mike, Lucas, Dustin e Will sempre se reúnem para jogar Dungeons and Dragons. Após uma das casuais partidas de apenas dez horas, Lucas, Dustin e Will partem para suas casas durante a calada da noite tranquila da cidadezinha de Hawkins. Tomando o caminho próximo à densa floresta, Will sente que alguém o persegue. Já desesperado e tendo confrontado seu perseguidor, o garoto corre para sua casa. Porém seus esforços são inúteis já que ele resiste a algo muito mais poderoso, algo que não pertence a esse mundo. Sem saída, Will é sequestrado pela estranha criatura.
Com o sumiço do garoto, sua mãe, Joyce, une forças com o delegado degenerado e cético para tentar encontrar Will. Porém, notando que não se trata de um sumiço como qualquer outro, Joyce trilha um caminho cada vez mais perigoso e surreal. Já o trio de amigos acaba encontrando uma estranha garotinha chama Onze. Ainda desconhecendo os poderes telecinéticos na menina, o trio parte em busca de seu amigo desaparecido enquanto tentam descobrir o misterioso passado de Onze.
Como já dito, os irmãos Duffer realmente comportam seu roteiro como se fosse um enorme liquidificador de referências adicionando elementos de inúmeras obras. Logo, reclamar que o seriado é cliché é o mesmo que condenar a água por ela ser molhada. Isso também não quer dizer que a qualidade do trabalho é inferior por não ser original. Na verdade, é esse o ponto crucial de Stranger Things: fazer algo de qualidade trabalhando com conceitos vastamente conhecidos para seu público alvo.
Nisso, os Duffer acertam em cheio: tanto como capturar o sentimento nostálgico que essas histórias trazem assim como trabalhar com firmeza em uma narrativa rápida, sem delongas e bastante concisa em seus personagens. Os cinco arcos se desenvolvem com clareza e muita lucidez por um simples motivo: mesmo clichés, os roteiristas não insistem necessariamente em dramas já muito batidos. Por exemplo: a dúvida sobre o desaparecimento de Will ter sido causado por fatores sobrenaturais é rapidamente sanada em um episódio. Logo temos focos separados, crentes na existência do monstro, trabalhando para encontrar o menino caminhando até a união completa no clímax. Aliás, rapidez certamente é o lema dos Duffer, pois usam e abusam de diversas conveniências narrativas para fazer a trama avançar avidamente.
O melhor núcleo, evidentemente, é o que acompanha as crianças e Onze onde reúne toda a esfera ingênua, escolar, dos laços de amizade e do primeiro amor – muita coisa vem de E.T. e Os Goonies. Graças aos diálogos deliciosos e piadas que tornam a atmosfera da série mais light, o quarteto consegue segurar todas as cenas aliada à excelente performance do elenco-mirim. Em particular, a atuação de Millie Bobby Brown, a Onze, é a mais envolvente por conta da limitação de fala da personagem. Ou seja, tudo o que a garota sente tem que ser bem enfatizado pela linguagem corporal adequada e expressões faciais cuidadosas.
Graças a performance monstruosa de Winona Ryder, todo o arco envolvendo os esforços de Joyce é extremamente interessante. Os Duffer acertam por fugir um pouco do convencional. Inserem diversos elementos sobrenaturais no drama intenso vivido pela personagem injetando todas as referências possíveis à Poltergeist. Dele, abre-se as narrativas que acompanham o detetive da cidade e de todo o conflito entre os adolescentes.
No caso do detetive Jim Hopper, muito de sua narrativa é segurada pela investigação e através da interessante relação com Joyce. Custa bastante para o personagem crescer em termos de substância, porém tudo ocorre dentro dos parâmetros clichês da série. Diversas pistas são oferecidas para mostrar que o passado do detetive é pouco agradável escondendo algum trauma. Aliás, tanto com ele quanto com Onze, o uso de flashbacks é bastante intenso.
Os de Onze são os mais interessantes, apesar de bastante vazios. Como boa parte do mistério da relação do monstro com a menina é previsível, as revelações dificilmente oferecem grande impacto. Aliás, a mitologia envolvendo o monstro toma bastante a referência de Enigma de Outro Mundo, pois o uso do ponto de vista do mundo invertido é pouco utilizado.
Nessa troca de personagens, entra o núcleo dos adolescentes encabeçado pela irmã de Mike, Nancy, e com o irmão de Will, Jonathan. Os Duffer tentam fazer uma espécie de trabalho de desconstrução dos estereótipos muito similar com o trabalho de John Hughes em O Clube dos Cinco. Certamente se trata de uma das subtramas mais fracas, porém o romance aliado ao bullying ajudam a sustentar seu interesse até os personagens unirem forças para encontrar o garoto desaparecido. E é justamente nele que há o pior desfecho de toda a série.
Além de Will, outros personagens desaparecem, levados pelo monstro para o mundo invertido. Durante o epílogo, a repercussão do fim de uma personagem com alguma importância para Nancy é totalmente pífia e fora da realidade proposta pelos roteiristas que insistem em inserir a preocupação paterna sobre os filhos ao longo do seriado. Destoa demais, é surreal, além de ser um tratamento bastante porco para as horas de jornada que o espectador encarou. Nem mesmo com Nancy, o elemento se ajeita de modo mais apropriado. O relacionamento amoroso da personagem também é encerrado de modo apressado.
Então, enfim, temos a última concentração narrativa de relevância. Esta que se relaciona diretamente com Onze. Se trata de uma organização secreta que a persegue após sua fuga nunca esclarecida para o espectador. Este, claramente é o pior núcleo do seriado. Cumpre o papel de antagonistas filler que sempre ajudam a atrasar o desenvolvimento da narrativa. O uso deles é tão pouco inspirado que praticamente não há diálogos envolvendo suas cenas. Não há nem mesmo um payoff final de relevância. É pura e simples perda de tempo que só serve para responder uma questão. Além disso, a explicação fornecida para a origem dos poderes de Onze é uma das mais insatisfatórias que já tive a tristeza de conhecer.
Como podem perceber, o texto de Stranger Things é sim ótimo. A história te mantém sempre interessado com o ritmo sadio de reviravoltas, mas nada faria ela brilhar tanto caso não fosse o excelente design de produção, além da direção praticamente impecável dos Duffer e de Shawn Levy – apenas no último episódio que há típicas trapalhadas de diretores entusiasmados demais com a obra.
A começar, é bem óbvio que os cuidados com direção de arte são realmente impressionantes. Eles capturam o espírito oitentista cheio de adornos afetados com neons, pôsteres de filmes clássicos contemporâneos para a época, papeis de parede, carros, equipamentos eletrônicos, jogos de tabuleiro, telefones, mobília, tecido, vestuário, absolutamente tudo é crível e encaixado com muitíssimo cuidado fazendo as distinções necessárias entre os estilos de um personagem e outro.
Até mesmo há, graças aos bons senhores do audiovisual, metáforas visuais que casam com o o drama dos personagens. Claro que o principal trabalho é com Joyce. Não só o design de produção que lentamente deteriora a casa conforme o desespero da mãe se torna mais agudo, assim como a fotografia absolutamente excelente – vejam esse seriado em 4K se possível - de Tom Ives.
O cinematografista também acompanha os rumos tenebrosos que a personagem toma conforme cresce a latência de seu horror. A casa antes pouco iluminada, fica cada vez mais sombria, adquirindo somente luz, cor e vida quando o menino se comunica com ela através das lâmpadas de Natal. Já em outros termos de concepção visual, os Duffer se apropriam muito do trabalho de Sob a Pele e E.T.
Porém, para quem tenta mimetizar tanto a técnica de Spielberg na forma cinematográfica, eles falham muito em dois pontos: o uso raríssimo de planos sequência e de reaction shots. De resto, a linguagem visual é bem competente. O preparo de cena é sempre muito adequado conseguindo tirar todas as emoções que a encenação busca afetar.
Fora o trabalho muito elegante com o elenco, incluindo as crianças, os Duffer brilham num ponto que poucos diretores andam arriscando ultimamente: na infame e perigosa montagem paralela. Na série, são várias, mas duas delas atingem o ápice do brilhantismo. Uma por unir situações similares por contrastes dispares e linhas temporais diferentes – oferecendo até mesmo o momento de catarse – e outra, a melhor, envolvendo um contraste de situações discrepantes entre o horror e o conforto.
Mesmo assim, com tantas jogadas ótimas de encenação e montagem, outro ponto muito a ser elogiado é no uso da trilha musical. Seja com a excelente metáfora com Should I Stay or Should I Go para representar todo o dilema que envolve a família de Will ou com tantas outras músicas épicas dos anos 1980 como Elegia de New Order. Os gêneros musicais passeiam através da deliciosa jornada trazida no seriado.
O único escorregão técnico do seriado fica mesmo por conta da realização de animação e textura gráfica para o monstro. Enquanto é mostrado em relances ou através da escuridão, os efeitos funcionam e bicho realmente assusta. Porém, no ápice, toda a sutileza vai embora para escancarar um ser que não chega perto das realizações atemporais dos animatrônicos de John Carpenter em Enigma de Outro Mundo.
Sei que hoje em dia investir tempo para um seriado é algo muito custoso. Eu mesmo me encontro em diversos desses dilemas e até admito que arrisquei ver a Stranger Things por conta da sua duração relativamente curta – oito episódios que raramente chegam aos 50 minutos. Grata surpresa que foi, pois não sabia de nada que envolvia a narrativa ou o longo tributo ao gênero de ficção científica e de diversos filmes dos anos 1980. Se é fã do gênero e dos saudosos longas com elencos juvenis fantásticos, não há obra melhor para se ver agora. Melodrama, suspense, diversão não faltam aqui.
Com toda certeza, os irmãos Duffer pavimentaram seu caminho saído da escuridão rumo ao sucesso imediato. Agora só resta aguardar para ver se o talento se sustenta na segunda temporada. Particularmente, eu aposto muito que sim.
Stranger Things - 1ª Temporada (EUA, 2016)
Criado por: Matt Duffer e Ross Duffer
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Andrew Stanton, Rebecca Thomas
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, Justin Doble, Jessie Nickson-Lopez, Paul Dichter, Jessica Mecklenburg, Alison Tatlock, Kate Trefry
Emissora: Netflix
Episódios: 8
Gênero: Aventura, Suspense, Ficção Científica
Duração: 55 min aprox
Crítica | Caça-Fantasmas
Um dos últimos casos de histeria coletiva que acometeu o mundo pop aconteceu com o novo Caça-Fantasmas. O reboot conseguiu angariar o ódio generalizado de muitos ditos “fãs” da franquia original de 1984. Nas sucessivas ondas de desprezo, o primeiro trailer do longa conseguiu a marca recorde de ser o vídeo mais negativado da história do YouTube. Já com a polêmica, o longa se tornou histórico.
Agora, trinta e dois anos depois que o mundo conheceu os Caça-Fantasmas originais, temos uma nova geração de caçadoras chegando aos cinemas. Mas será que se trata de uma obra tão péssimo como tantos acreditam? Não, na verdade é uma excelente comédia.
A história tem início com a demissão de Erin Gilbert, uma renomada cientista candidata à cátedra da universidade, após uma sucessão de eventos que levam sua reputação como teórica ao lixo. Tudo por conta das atrapalhadas aventuras empreendedoras de sua amiga de infância, Abby, que abriu um negócio nada convencional: uma empresa que pretende capturar e exterminar fantasmas.
Sem uma oportunidade melhor de trabalho, Erin parte com Abby e sua assistente maluca, Jillian, para a aventura desse jogo de negócios nada convencional. Para a sorte do grupo, uma suspeita infestação de espíritos malignos assola a cidade de Manhattan. Ao sinal do perigo surreal, elas atendem ao chamado.
Qualquer um que tenha o longa de 1984 fresco na cabeça, conseguirá notar alguma semelhança com essa breve sinopse. E de fato, o roteiro de Paul Feig e Katie Dippold possui uma estrutura narrativa muito similar ao clássico. Apesar de se comportar muito como uma versão vinda diretamente do universo paralelo graças as trocas de sexo nos papéis principais: a equipe de caça-fantasmas e o novo recepcionista, o hilário Kevin, os roteiristas escolhem caminhos bastante seguros enquanto encaixam toneladas de referências e homenagens ao filme original e outros longas clássicos dos anos 1970 e 80.
Portanto, a história é bastante telegrafada e previsível, mas agrada em seu formato graças a semelhança nostálgica. Na verdade, após dois filmes com mesma estrutura, a vinda de um terceiro que conta a mesma história com elementos diferentes pode ser bastante decepcionante para alguns fãs. Tudo depende do modo que irá encarar a proposta desse reboot.
A liberdade criativa reside mesmo com o fantástico trabalho – o melhor até então em sua carreira, que Feig insere no humor de seus diálogos e encenações criativas na sua direção. Não há como negar, é impressionante como esse Caça-Fantasmas é engraçado. A maioria das piadas funcionam espetacularmente bem.
Aliás, arrisco dizer que este é o filme mais engraçado da franquia, já que os primeiros nunca foram comédias de rolar de rir, além do timing cômico de Ivan Reitman já ter envelhecido ao longo de três décadas. Feig também acerta em modernizar a diegese do longa. Ao contrário do clássico, temos alguma motivação para o antagonista, o surgimento dos fantasmas tem uma correlação direta com o vilão, algumas personagens têm certa complexidade e boas motivações, a relação com o prefeito é diferente e mais interessante, além do fato delas permanecerem desacreditas pela mídia e população ao longo da cruzada espiritual.
Além desses retoques necessários – e básicos, ao tratamento do roteiro, Feig e seu ótimo elenco se esforçam em criar personagens novas e originais. O novo quarteto nada tem a ver com Venkman, Stantz, Spengler e Winston. Apesar de todas elas se basearem em estereótipos clássicos de esquetes cômicas curtas – temos “a certinha tresloucada”, “a gordinha barra pesada”, “a esquisitona dos gadgets” e a “negra histérica”, as atrizes se esforçam em criar características carismáticas únicas. Quem rouba a cena, sempre, é Kate McKinnon que encarna Jillian.
Como o texto não favorece seu humor, McKinnon incorpora o tipo da esquisitona com louvar a partir de inúmeras expressões visuais contrastantes ou com os muitos reaction shots que Feig encaixa na decupagem com timing ímpar. O diretor também tem a sagacidade de usá-la muitas vezes na profundidade de campo maquinando reações mais sutis e igualmente esquisitas. Aliás, com as inconveniências inerentes à personagem, é difícil não lembrar da performance de Zach Galifianakis e seu Alan de Se Beber, Não Case. São personagens semelhantes e muito funcionais.
Outro ator que se destaca no meio dos demais é Chris Hemsworth vivendo o personagem mais burro e estúpido do cinema contemporâneo, o recepcionista Kevin. Absolutamente todas as piadas envolvendo o ator são sensacionais. A linha de humor que ele adota é bastante física apostando no nonsense. Logo, pelas idiotices totalmente imprevisíveis do personagem, o ator prova uma verve cômica inesperada.
Porém nem tudo é um mar de rosas para esse reboot. Fora Hemsworth e McKinnon, pouquíssimos atores protagonistas conseguem surpreender ou superar performances anteriores. Isso é explicito com Melissa McCarthy que já nem se preocupa mais em quebrar a personagem que criou anos atrás. Então, caso goste do humor dela, não sairá desapontado, porém é uma zona de conforto que incomoda depois de tanto tempo.
Aliás, é justamente com ela e Kristen Wiig onde o diretor Paul Feig mais erra no tom. Tentando emplacar muito improviso e na insistência de algumas piadas, o trio só consegue arrancar constrangimento do espectador. Nada de risadas. Esses momentos são recorrentes durante o filme. Fora isso, o diretor derrapa na construção da sequência da primeira captura de espíritos que o grupo faz. Há um corte muito estranho e nada orgânico. Ao menos, o uso do silêncio e de planos distantes, rende uma boa piada.
Fora os improvisos ruins como um diálogo envolvendo coelhos e cartolas, absolutamente todas piadas que envolvem proselitismo político não funcionam. Até mesmo a atmosfera leve do longa se altera quando uma dessas aberrações “cômicas” surgem na tela. Também é particularmente interessante notar como o roteiro desse longa trata todas as figuras masculinas com representações negativas. Repare, temos o idiota, o vilão recalcado, o prefeito que se esconde por trás de sua assessora, dois investigadores bobocas, etc.
Tirando isso, Feig tem seus ótimos momentos dirigindo, enfim, um verdadeiro blockbuster. Até mesmo arrisca na linguagem de gêneros que transitam entre o horror e a ficção científica. Acredite, é possível ficar apreensivo durante algumas cenas mais focadas nos fantasmas. Toda a linguagem visual é correta para o suspense, porém a trilha musical mais infantil sempre quebra a tensão poucos momentos antes da revelação de um espectro.
Não somente na boa encenação, no jogo de câmera adequado e no ritmo certo que Feig trabalha bem. Uma das características mais interessantes do seu comando é justamente na valorização do design de produção e da fotografia bastante colorida de seu filme. Vemos diversos dispositivos novos, a rabeca clássica com a placa ECTO-1, os detalhes dos uniformes e da mochila de prótons em enquadramentos que se assemelham bastante com os de Ivan Reitman no filme de 1984. São homenagens singelas, fan service bem alocado dentro da narrativa. Isso inclui também as diversas participações especiais do elenco original.
Até mesmo na questão tecnológica, o diretor acerta justamente com um dos elementos mais polêmicos do cinema atual: o uso do 3D. Em resumo, é excelente! Feig brinca com os elementos dos fantásticos efeitos visuais ultrapassando as bordas do cinemascope gerando um efeito único de projeção de elementos da tela para o público. É um trabalho que tínhamos visto brevemente em 2012 com As Aventuras de Pi. Aqui, o diretor usa e abusa do recurso. Chega a brincar com a razão de aspecto do longa que se altera durante uma rápida cena em formato IMAX.
Além dos outros problemas já citados cometidos pelo diretor, o mais grave deles ocorre no terceiro ato espalhafatoso. Feig realmente peca pelo exagero, mesmo que a ação seja bem divertida, o visual dos fantasmas coloridos seja muito interessante e pela beleza visual das pirotecnias, os acontecimentos do clímax se estendem demais oferecendo muito pouco para o espectador em termos de substância. Logo, é fácil ficar cansado já que a narrativa estaciona e não avança até a resolução final do conflito.
Agradando bastante com o humor inteligente, ótimas atuações, boa história e visual surpreendente, o novo Caça-Fantasmas certamente é a dica certa para uma visita aos cinemas. O longa é extremamente divertido e não chega a se comprometer com os poucos erros apresentados. Realmente teremos de aguardar uma sequência para que a Sony apresente uma história que fuja um pouco da fórmula feita por Dan Aykroyd e Harold Ramis.
Enfim, até mesmo o fã mais fervoroso e irritadiço, nutrido de bom senso, terá que admitir que essas mulheres realmente são ótimas em caçar fantasmas. Querendo ou não, o fazem em um filme bem-humorado de muita qualidade.
Caça-Fantasmas (Ghostbusters, EUA - 2016)
Direção: Paul Feig
Roteiro: Paul Feig e Katie Dippold
Elenco: Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Kate McKinnon, Leslie James, Chris Hemsworth, Ed Begley Jr, Neil Case, Andy Garcia, Charles Dance
Gênero: Comédia, Aventura
Duração: 116 min
Crítica | Sicario: Terra de Ninguém
Dennis Villeneuve pode muito bem ter sido um dos primeiros diretores estrangeiros a experimentar a receptividade de Hollywood para os cineastas independentes da vanguarda atual que demonstraram talento e potencial econômico. Dessa lista, também temos Gareth Edwards que ficou com Godzilla e Colin Trevorrow com Jurassic World. E claro, Josh Trank que afundou sua carreira com Quarteto Fantástico.
Porém, ao contrário desses diretores da nova leva, Villeneuve já demonstra mais tino cinematográfico, uma alta dose de trabalho autoral – este, concentrado no suspense com requintes estilísticos visuais e sonoros. Com apenas quatro longas nessa fase hollywoodiana, o canadense já pode aparecer do lado de nomes como Hitchcock e David Fincher em algumas listinhas como um verdadeiro mestre do gênero.
Aqui em Sicario: Terra de Ningúem, Villeneuve trabalha em cima do roteiro do estreante Taylor Sheridan – ator do seriado Sons of Anarchy, que traz uma história normal sobre um tema que já foi amplamente explorado por filmes e seriados: os cartéis mexicanos que comandam o tráfico de drogas.
O filme apresenta a história de Kate Mancer, uma agente do FBI que trabalha em conjunto ao esquadrão antissequestro da SWAT. Graças à sua competência e ao resultado inesperado de uma missão, a agente é chamada para trabalhar em uma divisão nova da CIA que está concentrada em derrubar o mais temido e violento chefão do narcotráfico do cartel da cidade de Juárez, próxima à fronteira México-EUA. Nessa divisão, ela terá que aprender a trabalhar com os agentes Alejandro e Matt que utilizam métodos nada ortodoxos
Apesar do setting ser sempre interessante e generoso para novas ideias – exemplo disso é Breaking Bad, Sheridan, seja por inexperiência – é seu primeiro roteiro, ou por quaisquer outros motivos, é um roteirista falho. A forma que ele opta por contar a história é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que a trama cresce em sua cabeça, aumentando sua expectativa, ela vai se tornando mais frágil em sua lógica e sacrifica muito de seu desenvolvimento para dar lugar a uma conclusão média, uma reviravolta padrão e nada impactante. Ou seja, ao meu ver, a texto mais perde do que ganha.
Isso acontece por uma escolha muito simples: o espectador só tem ciência dos fatos na medida que a personagem de Emily Blunt vai mendigando informações para Josh Brolin e Benicio Del Toro. E, acredite, isso acontece durante o filme todo. Aqui não temos a revelação pelo visual, mas sempre pela exposição que é jogada para Kate em meio a um diálogo morno que acaba não surpreendendo ninguém – bom, fora a protagonista. Além disso, seu parceiro do FBI, Reggie é tão mal elaborado quanto sendo que nem chega a ter um desfecho satisfatório.
Com essa escolha, ela vira uma personagem de uma nota só. Existem diversas cenas para exibir o descontentamento de Kate com os rumos duvidosos que a operação vai tomando. Isso é constante, porém o arco da personagem é estruturado corretamente. Há a catarse, de modo contido, mas já vimos casos semelhantes com diversos tipos de personagens em inúmeros outros filmes que passam pela mesmíssima fórmula de roteiro realizadas de maneiras muito superiores. Aqui, simplesmente não há o impacto esperado – é manjado demais. Está mais para um tapinha nas costas.
Infelizmente, não é somente a personagem de Blunt que sofre na mão do texto. Esse formato conseguiu detonar a complexidade de praticamente todos os personagens que carecem muito de desenvolvimento. Se não fossem as atuações excelentes de Emily Blunt, Josh Brolin e Benicio Del Toro, eles mal conseguiriam cativar, não haveria empatia e você pouco se lixaria para o destino deles.
Felizmente, Blunt adiciona camadas para Kate, apesar do texto terrorista. Blunt demonstra coragem e medo. Força e fragilidade. Segurança e vulnerabilidade. É uma atuação que reforça a luta interna e a desconstrução da crença da personagem. Pena que o desfecho de seu arco seja fraquíssimo.
Já Josh Brolin acaba funcionando mais como um alívio cômico classe A. O ator é refinadíssimo na canalhice de Matt. Extremamente funcional, Brolin consegue distrair a tal ponto que nem percebemos como diversos dos diálogos entre ele e Blunt são parecidos – Blunt pede informações sobre a missão, Brolin faz piada e desconversa, Blunt fica irritada e faz uma ameaça, Brolin mente com outra piada, pede para ela aprender e a deixa falando sozinha.
O destaque mesmo fica por conta de Benicio Del Toro que reforça a imagem do ator formidável que ele é. Seu personagem, o mais desenvolvido, é um enigma. Fala pouco, tem olhar cansado, pavio curto, extremamente ameaçador e genial. Arrisco-me a dizer que ele pode tirar uma indicação ao Oscar como ator coadjuvante. O trabalho é muito rico e a trama que envolve ele te mantém acordado, mas também não espere algo grandioso. Mesmo com ele, o texto é clichê, mas a reviravolta agrada e faz alusão direta ao título do filme.
Além dos personagens razoáveis, poucos plot twists e a previsibilidade aguda que o texto sofre, Sheridan ainda investe tempo em uma subtrama paralela completamente inútil. Ela acompanha um policial mexicano e sua família. A mensagem que ele tenta transmitir aqui também é fraca, mal alocada e clichê – lembrando que não acho resoluções clichês um demérito desde que sejam bem desenvolvidas e tenham um bom propósito. Esse arco é tão fraco que pode ser facilmente esquecido após o termino da sessão. É simplesmente ineficaz porque, novamente, não criamos vínculo algum com estes personagens.
Com uma história fraca dessas, já daria para imaginar que se trata de apenas um filme razoável sobre tráfico de drogas e do fracasso das instituições. Entretanto, temos o fator X que vira o jogo e torna esse texto um filme muito bom. Esse fator é Dennis Villeneuve, o diretor mais promissor da nova leva.
Após sair de dois excelentes longas, Incêndios e Os Suspeitos – filme que considero o melhor de 2013, Villeneuve consolida de vez sua posição autoral na direção cinematográfica de Sicario. Para quem não conhece, o canadense adora trabalhar com thrillers de suspensa, com tramas densas e complexas. Mesmo que esse filme falhe no texto, o diretor lhe conferiu uma estética elegante e aprimorou ainda mais a sua impecável construção de atmosfera.
Como autor, Villeneuve opta por alguns planos gerais abertos distantes dos personagens, algo que já havia trabalhado em Os Suspeitos. Como de costume, suas composições são ricas, visualmente simétricas e equilibradas. Oras, em termos plásticos, Villeneuve é tão bom quanto David Fincher. Assistir à um filme deles é se deliciar com planos fantásticos do início ao fim.
Não somente por sua indubitável competência e apuro estético, Villeneuve trabalha novamente com um dos maiores diretores de fotografia da atualidade – Roger Deakins. Infelizmente, conferi o filme em uma projeção bem aquém da média o que prejudicou com toda a certeza a análise da cinematografia. Porém, conferindo clipes e trailer com a união do que julguei adequado pela projeção, é possível afirmar que novamente Deakins surpreende e que deve ganhar sua 13 indicação – e, provavelmente perder, de novo, para Lubezki por O Regresso.
Aparentemente, o DF diminuiu a intensidade da correção cromática que ele tanto se dedicava na pós-produção de seus trabalhos. Aqui, Deakins trabalha intensamente com um estilo naturalista que predomina nas cenas externas. Ele aproveita de tudo: pôr do Sol, lusco-fusco, Sol a pino e o sol menos agressivo da tarde. A locação colabora muito – o filme se passa no Arizona e sua zona árida, mas lembro que fotografar em local de deserto, seja areia ou neve, é sempre sinônimo de dor de cabeça. Mas estamos falando de Deakins aqui. O domínio sobre a câmera é avassalador e o resultado, espetacular. Não temos imagens estouradas de céu ou deserto. Tudo sempre na exposição correta sem prejudicar um pingo da key light para os atores. Existem momentos que, mesmo na contraluz, Deakins ajusta o diafragma da câmera de tal modo, que a luz principal para os atores não é comprometida.
Falando em contraluzes, novamente, assim como em Skyfall, Bravura Indômita e Os Suspeitos, Deakins refina ainda mais sua principal técnica autoral. As silhuetas moldadas por ele, seja no por do Sol ou no lusco-fusco, são extremamente belas. Aqui, em um dos diversos momentos que ele utiliza a técnica, transmite o negro que preenche os soldados antes da operação final. Sombrio, poético, maravilhoso.
Nas internas, Deakins trata a luz com ainda mais delicadeza. A predominância é sempre da soft light, difusa, clean. Assim como em Os Suspeitos, o cinematografista dá preferência para um posicionamento único da key light para gerar um tom sombrio no rosto dos atores. Há uma sutil queda proposital da luz de preenchimento para isso. Somente para iluminar o ator Daniel Kaluuya que Deakins não agrada tanto – seja proposital ou não. Falta luz de preenchimento para o rosto do ator que muitas vezes acaba quase com um dos olhos totalmente ocultados pelas sombras.
Villeneuve também usa Deakins para algumas novidades, umas bem-vindas, outras nem tanto. Uma das boas novidades é o uso constante de diversos planos aéreos que mostram a vastidão dos subúrbios e das paisagens naturais. Alguns, azimutais, que não ficam chapados apesar da inclinação total da câmera em noventa graus – quase um estudo da topografia do Arizona e do Texas. As outras duas novidades, por mais justificadas que sejam, considero falhas, pois sacrificam um ótimo trabalho de silhuetas que poderia ser gerado nessas cenas. No caso, Villeneuve faz Deakins utilizar câmeras de visão térmica e noturna. O resultado é interessante, mas no caso da noturna, resulta em uma imagem com ruído alto detonando a foto belíssima construída até aqui.
Para criar a tensão crescente característica de seus filmes, Villeneuve sempre movimenta a câmera com notável cuidado – travellings laterais e panorâmicas lentas, sucintas e suaves, enquanto sustenta o plano por um bom tempo – o corte, na teoria, alivia a tensão para o espectador. Outra marca autoral presente é a decupagem sempre muito equilibrada para as muitas cenas que acontecem em interiores de veículos. Acredite, Villeneuve domina o ritmo e a linguagem como ninguém durante essas cenas. Isso chega ao ápice quando nos deparamos com a melhor sequência do filme todo: a extração de um prisioneiro na cidade de Juárez.
O diretor cria uma atmosfera tão aterradora que a cidade infernal vira um personagem vivo. Só que não é apenas pelo visual estonteante do caos, da decupagem bem planejada e do ritmo perfeito da cena, mas sim pelo âmbito sonoro. Villeneuve é um verdadeiro diretor de cinema no sentido mais clássico do termo. Ele se preocupa muito além da plasticidade visual.
O som é um dos instrumentos pensados com cuidado tanto que assim como Os Suspeitos, Sicario termina com o ótimo uso do som para agregar à linguagem. Um final tão agridoce quanto. Em outras cenas, é possível perceber como ele utiliza para resolver algumas deficiências do roteiro – isso acontece na cena do jatinho enquanto Alejandro tirar uma soneca, repare.
Além da edição de som quebrar a mesmice, Villeneuve tem o auxílio da trilha musical esplendida de Jóhann Jóhannsson para fortalecer a atmosfera e lhe deixar na poltrona da cadeira. A música aqui tem base em ritmos constantes de percussão, no caso, no uso do som abafado e onipotente dos surdos. Obviamente, Jóhannsson não se limita apenas com surdos. As composições são constituídas de ritmos cíclicos, viciosos e padronizados que crescem e crescem e crescem e crescem até não poder mais. É como se o espectador se defrontasse com uma ameaça perigosíssima, cruel, sanguinária e gigantesca. Não é por menos que a música reflete o temor que há com a figura emblemática dos cartéis mexicanos.
Para realizar esse efeito, Jóhannsson usa com muita racionalidade seus ritmos certeiros na percussão, no choro melancólico dos violinos que lutam para existir na música enquanto são interrompidos pela violência súbita dos violoncelos que por sua vez são engolidos pelo sopro grave dos sousafones e das tubas. A estrutura de sua partitura é fantástica. Digamos que é possível notar a matemática por trás dos temas aterrorizantes.
Sicario: Terra de Ninguém é um filme muito acima da média e certamente um dos melhores do ano. Taylor Sheridan teve uma sorte enorme ao ter Denis Villeneuve para dirigir logo seu primeiro roteiro. Com tamanho domínio da técnica e do senso artístico, é difícil reparar na fragilidade do texto decepcionante. Não somente a direção salva, mas também o elenco afiadíssimo contando com o excepcional Benicio Del Toro, além da cinematografia sempre espetacular de Roger Deakins e da trilha musical perfeita de Jóhann Jóhannsson. O que te recomendo, é que vá sem grandes expectativas para a história de Sicario. Na verdade, nem ligue para ela, pois se não fosse os atores, você pouco se importaria pelos personagens – isso também é discutível, pois mesmo com as atuações, eu não senti empatia por nenhum deles.
Apenas faça como Matt diversas vezes diz para Kate: “Olhe e aprenda. ”. De fato, Sicario é uma das melhores aulas de cinema que se pode conseguir hoje em dia.
Sicario: Terra de Ninguém (Sicario, EUA - 2015)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Taylor Sheridan
Elenco: Emily Blunt, Benicio Del Toro, Josh Brolin, Daniel Kaluuya, Jon Bernthal, Victor Garber, Jeffrey Donovan
Gênero: Suspense, Crime
Duração: 121 min
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