Crítica | Uma Aventura LEGO
Chris Miller e Phil Lord conseguiram uma façanha inestimável mais uma vez. Após terem dirigido dois filmes que considero ótimos e que facilmente se enquadram nas listas de melhores do ano – “Anjos da Lei” e “Tá Chovendo Hambúrguer”. Agora, atingiram o estado de obra-prima. Vocês vão falar que é um absurdo, mas, para mim, é a mais pura verdade. “Uma Aventura LEGO”, que estreia nessa sexta-feira junto com “Trapaça”, é uma das melhores animações da última década superando até mesmo algumas animações de estúdios muito conceituados como Pixar, Disney e Dream Works.
Mas qual é o porquê disso? O primeiro motivo é que este filme está como referência para a animação em stop motion como “Toy Story” está para a animação digital. Ele pode não ser o pioneiro assim como foi no caso do primeiro filme da Pixar, mas o nível de qualidade da animação é simplesmente estonteante – aparentemente, a animação do longa é uma miscigenação entre stop motion e computação gráfica, mas é praticamente impossível de notar a diferença. Nunca fizeram algo de proporções tão gigantescas pensando em detalhes fotográficos e de movimentos de câmera belíssimos – todos os planos sequência do filme são capazes de te deixar boquiaberto. Para se ter ideia da sua complexidade basta olhar os outros elementos que não estão em primeiro plano durante planos majestosos. Tudo está em movimento constante narrando pequenas histórias ou esquetes cômicas – isso, claro, inserido em uma paleta de cores vibrantes como é característico da autoria de Miller e Lord. Até mesmo explosões e o movimento das ondas do mar são simulados em peças LEGO impecavelmente.
Mas o mérito não é apenas visual. O roteiro não se leva a sério na maioria do filme garantindo uma identidade única para este universo criado. Usa livremente artifícios mau conceituados pelos críticos como o deus ex machina (soluções arbitrárias para conflitos da narrativa), mas o faz de forma escancarada com finalidade de provocar o riso. A história é repleta de clichês, todos muito bem explorados e utilizados. Este é um dos casos que prova que se um filme é clichê, ele não é necessariamente ruim.
Apesar de o filme contar com piadas muito engraçadas, explorar o ridículo e a non-sense, não se levar a sério e explorar muitíssimo bem o universo dos estúdios Warner, o roteiro traz mensagens edificantes para as crianças e também para os adultos. Não quero estragar a grata surpresa que é a história do longa, mas seu desenvolvimento baseia-se na famosa Jornada do Herói que já foi explorada tantas vezes como em Harry Potter, Senhor dos Anéis e Star Wars – um homem comum destinado a salvar o mundo. Porém, o mais surpreendente para mim, foram os moldes para o antagonista da trama inspirado completamente em obras de George Orwell, no caso, “1984” – repare como o primeiro universo que o filme explora se aproxima muito da Pista Nº 1, mas claro que numa versão muito mais açucarada e inebriante. A verdadeira ditadura do ópio.
Já nesse contexto, o filme me fisgou e fiquei completamente extasiado com as aventuras de Emmet, o protagonista. Sei que não sou o único. Todos riam em praticamente todas as piadas criativas do filme – os adultos até mais que as crianças, pois tem piadas que levam certa maturidade para entender (às que tangem os vícios da nossa sociedade, principalmente), além de inúmeras referências desde “O Exterminador do Futuro 2” a “Tron Legacy”.
Miller e Lord mantém outra parceria que se provou muito interessante com o compositor Mark Mothersbaugh. Assim como em “Tá Chovendo Hambúrguer”, há momentos em que a trilha musical se sobressai como durante a cena excelente que trata sobre o plano de Emmet, o protagonista. As músicas, num crescendo de vários instrumentos, lembram notas musicais que se sobrepõem remetendo a construção dos brinquedos lego.
Enfim, “Uma Aventura LEGO” é sensacional. Um filme que merece ser visto e revisto. Até mesmo a dublagem brasileira não desaponta. Com piadas inteligentes, o filme vai divertir tanto as crianças quanto aos pais. Sendo a primeira animação lançada oficialmente em 2014, ela já ganhou o mérito de ser uma das melhores do ano.
Uma Aventura LEGO (The Lego Movie, EUA, Austrália, Dinamarca – 2014)
Direção: Chris Miller, Phil Lord
Roteiro: Chris Miller, Phil Lord
Vozes originais: Chris Pratt, Will Ferrell, Elizabeth Banks, Morgan Freeman, Will Arnett, Charlie Day, Jonah Hill
Gênero: Animação infantil, aventura, comédia
Duração: 100 minutos
Crítica | O Grande Hotel Budapeste
No curto ensaio “Brinquedos”, Barthes afirma a inferioridade dos brinquedos de plástico em relação aos de madeira. Os soldadinhos, as bonecas que urinam, salas de operação em miniatura, trens, postos de gasolina etc. teriam sempre o intuito de significar algo para a criança, funcionando como ferramentas de aprendizado do mundo adulto para elas – como se fossem apenas adultos pequenos. Sua reflexão coerente à sociedade moderna (o texto é da década de 1950), hoje, pode assumir muita firmeza em frente à evolução desse universo de plástico. Ao pensar nisso, não podemos, no entanto, cometer o erro de subestimar as crianças e as graças que o adjetivo infantil pode inspirar, mesmo nas mãos de um adulto. Wes Anderson parece ser, dentro do sistema dos estúdios, essa criança que não se deixou alienar pelo utilitarismo dos brinquedos de plástico, mas que soube encontrar no químico uma “substância familiar e poética” (presente, para Barthes, apenas nos brinquedos de madeira).
Cabe pensar quanto os artifícios do cinema de Anderson são uma resposta, orgânica e irônica, a um cinema enlatado que vende truques pasteurizados. Essa atitude perpassa toda sua filmografia, e encontra constantemente espaço de projeção e desenvolvimento em figuras adolescentes, ou em adultos que, em diferentes medidas, carregam uma inocência ou paixão correspondentes à imaturidade: o estrelato de Schwartzman em Três é Demais, o cinismo de Steve Zissou em A Vida Marinha, os irmãos de A Viagem para Darjeeling, ou, quando o “infantil” atinge seu ápice formal, um desenho animado, todo O Fantástico Sr. Raposo. Até O Grande Hotel Budapeste, no entanto, o cineasta não tinha conseguido alcançar uma equivalência entre seus roteiros e sua vontade infinita de brincar.
A realidade é, antes de tudo, irreproduzível. Anderson sabe que o ato de contar e recontar uma história sempre altera os fatos, dá pesos diferentes. Não é à toa o comentário que funciona como prólogo do livro O Grande Hotel Budapeste. Por isso, é muito funcional contar uma história (o enredo principal do filme), dentro de uma outra (do escritor que encontra o narrador da história principal) relatada no livro lido pela garota que só aparece no começo e no final do filme. Atenção para o fetichismo pelos objetos que já ganham tanto destaque nos planos perpendiculares (especialmente no olhar clínico dos plongées) em todos os filmes do diretor. Aqui, logo na primeira sequência, Wes Anderson revela uma reverência à literatura, justificando as inspirações nos escritos de Stefan Zweig. Longe de ser uma consideração acadêmica, é uma saudação ao prazer transmitido pela leitura. O contexto temporal desse primeiro momento é incerto, mas o espectador já é apresentado ao universo ficcional. A jovem vai ao cemitério e começa por prestar uma homenagem ao Autor (tesouro nacional de Zubrowka) ao pendurar uma chave no suporte do seu busto, e continuará sua veneração ao ler o livro inteiro no banquinho ao lado, como revela o plano final.
O luxo exuberante do Grande Hotel, com muitos tons de rosa, roxo e vermelho, anuncia desde já, uma antevisão da decadência que corroerá o mesmo em poucas décadas, quando o marrom e o amarelo tomarão conta de seus grandes salões, com exceção dos funcionários, que manterão a elegância dos trajes, apesar de todo o desleixo de M. Jean (Jason Schwartzman), por exemplo. Os tempos passam, e a sagacidade e o requinte de M. Gustave (Ralph Fiennes), o insuperável concierge, protagonista junto do lobby boy, Zero Mustafa (Tony Revolori/F. Murray Abraham), futuro proprietário do Hotel, uma alegoria americana calcada nas bases da aristocracia europeia, jamais é recuperada – senão de forma extrapolada na ficção.
Os trajes com que Anderson veste o passado são justos, mas nunca desconfortáveis. Os excessos de planos frontais ou de perfil, perpendiculares, assim como a mudança de razão de aspecto da tela de época em época evidenciam o entorno do quadro (a autoconsciência do cinema, também consciência da sua artificialidade), tanto quanto planos estáticos fazem em outros cinemas. Mesmo que o ambiente seja uma Europa Oriental idealista e cômica, a mobilidade do cinema americano é latente. O humor peculiar herdado de diferentes cineastas e também do teatro, que não perde a inocência nem ao expor cabeças decapitadas, gatos mortos ou um desenho de duas lésbicas, mostra-se cortante nos diálogos rápidos (mesmo os momentos mais estendidos são sobrepujados por uma velocidade e dicção singulares, com destaque para o garbo britânico de Fiennes) e, sobretudo, nas dezenas de gags, aparições em segundo plano, pequenos gestos dos atores ou da câmera, com a boca ou com os olhos, sustos, soluções visuais kitsch. É tudo tão organizado que qualquer detalhe estranho é utilizado a favor da riqueza da narrativa.
A comédia de inspirações europeias se desenrola de forma rocambolesca, ou melhor, como uma matrioska, encontrando a cada movimento um novo núcleo de acontecimentos, que leva a outro, e assim sucessivamente. M. Gustave é concierge no Grande Hotel Budapeste e mantém estreitas relações (entenda-se sexuais, inclusive) com várias clientes de idade avançada, sempre muito ricas, inseguras, carentes e loiras. Até que uma delas (Tilda Swinton), uma das mais ricas e poderosas, é assassinada e deixa uma vasta herança. Dentre os itens, deixa para M. Gustave um quadro muito valioso ("Boy with Apple", McGuffin que também é uma piada excelente ao se mostrar como fruto de mais uma camada ficcional da história). A atenção dada ao concierge incomoda a família da falecida, especialmente o filho Dmitri (Adrien Brody). A desconfiança gera uma acusação e Gustave é preso após roubar o quadro, acusado de ter cometido o crime.
Até que sua inocência seja provada, conheceremos um imenso e secreto universo, num ritmo infatigável, conduzindo-nos por um roteiro inteligente, interessado em todos os personagens que apresenta (o guarda de Dmitri, interpretado por Willem Dafoe; Agatha, o par romântico de Zero, que carrega uma mancha gorbacheviana na bochecha; bem como uma rede secreta de hoteleiros; o exército fascista com a sigla ZZ, a guerra que vem enterrar um passado romântico com a sua deselegância bárbara e cinzenta), mesmo que apareçam por poucos segundos, e por abalos visuais. Anderson atinge seu auge em termos de composição, somadas à trilha ora grave, ora agitada de Alexander Desplat, e umas pontas de Strauss e Vivaldi, e faz sequências memoráveis – possibilitando um epílogo dramático e sério como o que tem.
Nesse filme, Wes Anderson faz sua brincadeira mais bem resolvida, com várias referências da realidade, sem deixar sua mise-en-scène idiossincrática, seu humor afiado e um gosto pelo clássico, discutindo, com prudência fabular, herança, vaidade, esvaziamento, enfim, ilusão. Moonrise Kingdom mostrou como o diretor poderia ser passageiro. Seria esse filme impressionista um sinal de que o diretor chegou no seu limite? O Grande Hotel Budapeste mostra que não. Um brinde aos bonecos de plástico.
Crítica | O Chamado 3
O primeiro trimestre para lançamentos comerciais nos cinemas geralmente é reservado para os filmes bomba dos estúdios. Longas tão ruins e de baixo potencial de público que praticamente passam despercebidos em meio a tanta correria típica do início de um novo ano. Claro que essa regra não se aplica ao Brasil já que temos as estreias dos tão aguardados filmes do Oscar que quase sempre esbanjam tremenda qualidade.
Porém, mesmo preparado psicologicamente para encarar alguns filmes ruins nesse período do ano, nada poderia me preparar para a verdadeira bizarrice que se trata O Chamado 3. Outrora um filmão de terror em sua estreia com uma atmosfera inquietante, boas atuações, condução muito competente de Gore Verbinski, além de uma narrativa lotada de mistério, O Chamado foi reduzido a um filme de comédia involuntária. Nada pode te preparar para a experiência proporcionada por essa terceira parte. Nem mesmo esta crítica.
S.O.S - Sistema Operacional Samara
Três mentes pensaram na “brilhante” história de O Chamado 3: David Loucka, Jacob Estes e o infame Akiva Goldsman, um dos piores roteiristas do ramo. Esse é o melhor exemplo que nem sempre mais cabeças pensam melhor do que uma. A premissa até que é interessante. Um professor de biologia, Gabriel (Johnny Galecki, o Leonard de The Big Bang Theory, já tornando difícil levar o personagem a sério), compra um aparelho de VHS em um antiquário.
Ao ligar o aparelho, Gabriel descobre a fita Watch Me, o vídeo maldito que provoca a ligação de Samara avisando sobre os 7 dias. Nisso, a trama apresenta os dois outros personagens, um casal, que guiarão a história pelo restante do filme. Depois de algumas descobertas, o namorado de Julia assiste ao vídeo amaldiçoado. Para salvá-lo, Julia assiste a cópia tomando a maldição para si. Porém, o que ela não esperava, é que sua maldição é diferente e muito mais intensa do que as que já conhecia. A partir de visões, o jovem casal terá que resolver um grande enigma para quebrar a maldição de uma vez por todas.
O que já dá para perceber é o quão burocrático o roteiro é. A história começa três vezes antes de engrenar o conflito majoritário indicando o propósito da narrativa. Temos um prólogo completamente desnecessário que apresenta um ataque de Samara em um avião em pleno voo que já define, involuntariamente, o tom de pastiche que o longa carregará em sua totalidade.
Apesar de mudanças tão drásticas para justificar encontros que não precisavam de todo esse “cuidado”, os roteiristas apresentam boas ideias sobre um filme que teria sido mais interessante de assistir. Como já devem ter percebido, a história de O Chamado 3 é praticamente a mesma de O Chamado. Apenas mudaram algumas regras do jogo, definiram um novo mistério e colocaram outra protagonista para solucionar uma ameaça maior. A sequência lógica é praticamente a mesma da estrutura do original. Até mesmo revisitando o clichê clássico do “fantasma benigno que só quer a sua ajuda, mesmo tentando te matar a cada três cenas" que já pintou nessa franquia.
A boa ideia apresentada se trata do grupo de estudos de Gabriel, o professor aloprado de biologia, em tentar trabalhar a maldição de Samara em método científico, comprovando a vida após a morte. Para isso, ele dissemina a maldição para alguns alunos já os ensinando como se livrar da morte certa através das cópias do vídeo – que aqui tudo foi modernizado para usar gadgets eletrônicos contemporâneos como notebooks e smartphones. Essa espécie de “seita científica” teria sido uma das maiores proezas do texto abissal de O Chamado 3, porém, os roteiristas, em vez de enxergarem a oportunidade de criar uma história original em cima dessa ideia, rapidamente a descartam para trilhar o mesmo caminho da narrativa dos filmes anteriores.
Ou seja, o único ponto original que esse filme possuía, é abandonado rapidamente. Os diversos problemas do texto não necessariamente surgem a partir do ponto que os protagonistas investigam o passado “não revelado” de Samara Morgan. O festival de conveniências narrativas e diálogos expositivos beiram o absurdo, principalmente por conta de Julia se tornar uma verdadeira “xeroque rolmes” a partir do segundo ato que concentra o miolo da investigação do casal a respeito de Samara.
A mulher presume tanta coisa tão rápido que torna passagens do texto que deveriam transbordar tensão, em verdadeira comédia, pois Julia atesta o óbvio para toda a plateia. Alguns exemplos da exposição: “Prenderam ela aqui! Ela viveu aqui! Eu estava lá e nem percebi! ”. Até mesmo em passagens de solilóquio, quando a personagem fica completamente sozinha, Julia já se prontifica a explicar para si mesma que tal personagem morava ali ou quem estava grávida, etc.
Dentre tantos clichês do gênero, O Chamado 3 consegue atingir elementos mais graves pela cópia de conceitos de filmes muito recentes e melhor realizados. As principais influências são Premonição e Corrente do Mal para a primeira metade e O Homem nas Trevas para a segunda. E mesmo se “inspirando” em histórias melhores, o filme não consegue decolar.
Muito vem do fato do mistério não engajar ninguém, já que é difícil simpatizar com os personagens seja devido a nulidade de desenvolvimento ou pelos diálogos horrorosos. Logo, o terror que se pretende fazer é flácido, pois é difícil ligar para os personagens que não tem desejos, histórias próprias ou até mesmo um passado. Tudo jogado no pouco carisma dos jovens atores. Os roteiristas criam detalhes do mistério que servem para reviravoltas nada impactantes e também de quase nenhum sentido.
Praticamente nada tem uma lógica aparente, pois detalhes importantes da história são deixados de lado, esquecidos ou mal explicados. Outros problemas narrativos surgem com a inserção de novos personagens no segundo ato, principalmente do cego Burke, interpretado com boa vontade por Vincent D’Onofrio que, involuntariamente, arranca risadas pela óbvia associação de um dos seus papéis mais famosos: o Rei do Crime no seriado do Demolidor, um super-herói cego.
Não obstante em apostar nos caminhos mais manjados para delinear sua narrativa, os roteiristas conseguem embalar a crítica/analogia mais estúpida contra o cristianismo que eu já tenha visto em um filme de terror. Hollywood tem uma obsessão em pintar o cristianismo como o algoz da humanidade. Em certos filmes, isso funciona e ajuda a qualidade da história criando obras geniais como A Profecia e O Exorcista. Já em O Chamado 3 é extremamente gratuito que só consegue afundar ainda mais a deplorável qualidade do filme.
Em um momento específico, jogando uma situação bem similar a uma sequência de O Chamado, um personagem pega uma estola – o “cachecol” sagrado usado por padres em datas comemorativas, estampada com uma imensa cruz dourada para sufocar uma personagem enquanto prega orações. Não contentes com esse tipo de “simbologia”, ainda forçam uma equiparação esdrúxula inferindo que Samara seria um “Jesus Cristo” naquela diegese – que inclusive contou com 12 “seguidores”. Péssimo, simplesmente péssimo.
Azar de Principiante
Com uma história tão abissal, o que há para se salvar em O Chamado 3? Bom, nada, pois a direção e outros aspectos técnicos não conseguem marcar algum ponto relevante. A direção do estreante F. Javier Gutiérrez é competente no sentido mais básico possível: o filme é cinematográfico, como obrigatoriamente há de ser. Logo, há um cuidado simples com movimentação de câmera, jogos de magnetismo de plano e contraplano, além de alguma tentativa com simbologias e pistas visuais que são tão óbvias que revelam as reviravoltas previsíveis.
Porém, na sua função de tentar salvar o texto criando uma atmosfera genuína de terror, Gutiérrez falha bastante. É difícil ficar apreensivo por conta de sua mão pesada na encenação que praticamente revela onde um jump scare aparecerá por conta de algum barulho alto. Como na franquia de O Chamado os roteiristas quebram constantemente a regra mais básica: veja o vídeo e morra daqui sete dias, a direção arrisca flertar com outros clichês de encenação em vez de apostar na atmosfera densa e marcante do filme original.
Logo, diversas cenas têm essa comédia involuntária causada pelo exagero do diretor vide, novamente, a infame sequência do avião. Coisas básicas do gênero como a relação entre claro e escuro, solidão e confronto com a criatura são ineficazes pela completa falta de identidade que a encenação desse filme sofre. É algo batido demais que só deve assustar criancinhas.
Algumas ideias visuais são interessantes e até mesmo uma explícita simbologia com o mito de Morfeu parecem tentar elevar a chatice completa que é assistir a esse filme. Mas, como de costume, roteiro e direção tendem a esquecer as boas ideias e investem em peso nas piores. Outros elementos manjados do trabalho de Gutiérrez é a presença constante do número 7 em diversas cenas.
Outro bom exemplo de como suas decisões são equivocadas é o momento que Julia encontra o grupo de estudos do professor Gabriel. Ela se depara em um corredor mal iluminado que praticamente anuncia perigo. Depois, ao abrir uma porta, ela encontra a sala divertida dos encontros com música e joguinhos para todo o lado. São mudanças tonais bizarríssimas que permeiam a experiência inteira. Muitos dos problemas de atmosfera vêm justamente da péssima trilha musical de Matthew Margeson que parece não ter muita ciência de que compôs músicas para um filme dito de terror.
Altas, de melodias mais convenientes a filmes de super-herói, Margeson destrói a encenação através da trilha equivocada e da má inserção em diversas cenas. Gutiérrez, já sabendo que uma história como O Chamado é mais complicada de provocar sustos, não busca mimetizar o clima criado por Verbinski que exalava paranoia e presença maligna constante. Ele escolhe o caminho mais fácil: criar os jumpscares mais idiotas que você verá por um longo tempo.
Ele tenta te assustar sempre com a sonoplastia e através de transições ordinárias da montagem. Seja com um personagem abrindo um guarda-chuva, outros dois invadindo um quarto durante uma sessão de confidências via Skype, alguém quebrando uma janela com um tijolo, um cachorro latindo e outras coisas marginais bobocas. O terror e medo genuíno ficaram para trás, a comédia prevalece.
Fora o enorme problema que é o roteiro em termos de didatismo e exposição estúpida, a direção de Gutiérrez não fica atrás pegando vícios de Gore Verbinski no primeiro filme, mas os usando em extremo exagero. Toda bendita vez que a personagem visita um local que esteja no novo vídeo surrealista amaldiçoado, o diretor já encaixa rápidos frames com os filtros visuais rudimentares para que o espectador ateste o óbvio: se tratam do mesmo lugar e que a mocinha está cada vez mais próxima de concluir o mistério.
O Fundo do Poço
O Chamado 3 leva Samara aos níveis do pré-sal em termos de qualidade cinematográfica. A ressurreição da garotinha que mata quem ousar assistir ao seu vídeo-arte não consegue nem atingir a margem da mediocridade. As pouquíssimas boas ideias, o cuidado estético simplório do design de produção e fotografia são completamente obscurecidos ou “tampados” pelo trabalho horroroso da direção inexperiente, da trilha musical equivocada e, principalmente do roteiro esburacado que recicla os dois filmes anteriores a fim de engrenar uma promessa de uma nova “aventura”.
Difícil recomendar até mesmo como entretenimento banal, já que como terror, é um fracasso. Já como comédia, um sucesso. O maior medo de Samara pode ser testemunhado aqui: definitivamente, O Chamado chegou ao fundo do poço.
O Chamado 3 (Rings, EUA – 2017)
Direção: F. Javier Gutiérrez
Roteiro: David Loucka, Jacob Estes, Akiva Goldsman
Elenco: Matilda Lutz, Alex Roe, Johnny Galecki, Vincent D’Onofrio, Aimee Teegarden, Bonnie Morgan
Gênero: “terror”
Duração: 102 minutos.
Crítica | A Qualquer Custo
Muitos dizem que o gênero do faroeste morreu no cinema americano, mas os mais atentos definitivamente perceberam que histórias de cowboys e índios em tramas de assalto e perseguição nunca acabaram, elas só evoluíram. Aliás, é curioso como o atual cinema americano vem apostando em diversos longas do gênero, desde os remakes e homenagens como Bravura Indômita, Sete Homens e um Destino, Django Livre e Os Oito Odiados, até aqueles que corajosamente introduzem novos elementos e os modernizam, seja pela abordagem ou pelo setting da história - vide o espetacular Bone Tomahawk ou o premiado O Regresso. Um exemplo formidável dessa vertente também vem do faroeste moderno, com tramas ambientadas em períodos contemporâneos, mas que são westerns em sua essência.
A Qualquer Custo é o longa dessa categoria que mais ganhou destaque em 2016, partindo de um roteiro original de Tyler Sheridan (seu segundo trabalho na função, depois de Sicario - Terra de Ninguém) que acompanha o plano de dois irmãos, Tanner e Toby Howard (Ben Foster e Chris Pine, respectivamente) que assaltam algumas agências bancárias pela região interiorana do Texas, tudo na ambição de garantir uma herança decente para os filhos de Toby. Enquanto a dupla passa por poucas e boas ao longo da jornada, sua cruzada atrai a atenção dos policiais Marcus Hamilton (Jeff Bridges) e Alberto Parker (Gil Birmingham), que perseguirão os dois até o fim.
É o clássico road movie de perseguição, onde os incidentes incitantes da trama vão aparecendo ao longo do caminho enquanto mergulhamos nas relações entre os personagens, o que rende um fantástico exercício de roteiro, e também direção. Só pelo fato de termos duas duplas em situações opostas já garante um espelhamento eficiente, e Sheridan já demonstra uma melhora considerável na escrita de diálogos (convenhamos, foi Denis Villeneuve quem fez Sicario tão especial) e na personalidade de seus personagens. Tanner e Toby trazem o clássico estereótipo da intriga entre o sujeito mais violento/impulsivo e aquele mais racional e que geralmente costuma ser a bússola moral, mas o truque funciona pelo background familiar expressivo dos dois. O núcleo dos policias também parte da premissa mais clichê possível, com o veterano a poucos dias de sua aposentadoria e um parceiro de outra etnia que acaba bombardeado por comentários e insultos racistas - mesmo que todos sirvam como alívios cômicos.
Sheridan faz bem com o material, e mantém uma linha de diálogos e acontecimentos que jamais deixam de prender o interesse ou entreter o espectador. O esquema dos irmãos para "lavar" o dinheiro em um cassino pode tornar-se um tanto maçante, tendo em vista que é o tipo de ideia que fica ótima no papel, mas um tanto absurda em sua execução, visto que envolve que os personagens apostem fichas em jogos de azar... Mas é um recurso eficiente e original. A crítica de Sheridan ao colapso da economia dos EUA também se manifesta através de diálogos e intenções, visto que frequentemente temos personagens fazendo alguma menção à perdas pessoais ou a embaraçosa situação onde uma garçonete recusa-se a entregar a um dos policiais os 200 dólares de gorjeta que recebera de um dos irmãos assaltantes, mesmo servindo de evidência.
Esse mundo caído e decadente é algo maravilhosamente traduzido pelas lentes do diretor David Mackenzie. Com o auxílio do fotógrafo Giles Nuttgens, Mackenzie oferece uma paisagem árida marcada por cores pastéis fortes e vibrantes, capturando a atmosfera quente e opressora do deserto texano. As composições do diretor também são eficientes em retratar personagens sendo esmagados pela gigantesca paisagem, quase formigas sobrevivendo à todo custo em um ambiente hostil, o que também é uma ótima ferramenta para a construção do suspense. Logo nos minutos iniciais, a câmera de Mackenzie nos apresenta a um plano sequência discreto e silencioso, acompanhando uma funcionária de banco chegando a seu local de trabalho (notem como uma das paredes traz uma pichação com o dizer "três idas ao Iraque e nada mudou para nós", eficientemente nos estabelecendo ao contexto) apenas para ser vítima de um brutal assalto.
E durante essas cenas, é ótimo perceber como estamos diante de personagens não muito habilidosos. Ainda nessa cena de abertura, chega a ser cômico que a funcionária que acabara de chegar seja praticamente inútil para os assaltantes protagonistas, que são forçados a ter uma espera embaraçosa com a moça enquanto o gerente - o único capaz de abrir o cofre - não chega para trabalhar. É um senso de humor muito sutil, e que ganha mais força com os longos planos optados pelo diretor, incluindo também uma ótima cena na qual Tanner acaba provocando dois sujeitos num posto de gasolina, fornecendo mais um indício de sua natureza autodestrutiva. Mas o grande ápice de Mackenzie se dá no tiroteio que marca o clímax, e nas explosões de violência que definitivamente chocam por sua imprevisibilidade.
Finalmente, temos o elenco. Quem foi lembrado pela Academia (e praticamente todos os prêmios da temporada) foi o policial vivido por Jeff Bridges, que mantém sua postura descontraída e divertida para uma ótima performance, que ganha tons mais dramáticos e interessantes à medida em que vamos nos aproximando do clímax. Mas Bridges também deve muito a Gil Birmingham, que interpreta seu parceiro de forma silenciosa e antagônica, oferecendo o perfeito contraponto às tiradas irônicas e sarcásticas de Hamilton. Já os dois irmãos ganham algumas das melhores performances das carreiras de Ben Foster e Chris Pine, com o primeiro chegando a assustar por sua imprevisibilidade e agressão, mas também surpreendendo por sua compaixão e lealdade - vide sua decisão no violento terceiro ato. Quanto a Pine, sua postura de bom moço/bad boy é quebrada pela atuação "desesperado, mas calmo" do irmão mais racional, sendo extremamente bem sucedido ao transmitir a responsabilidade do personagem e fazer com que o público perdoe suas ações questionáveis e torça para seu sucesso, apesar de tudo.
Simples e eficiente em sua proposta, A Qualquer Custo é mais um exemplar digno do neo western, e um atestado do crescente talento de Taylor Sheridan como roteirista, que aqui tem suas ideias e personagens ganhando vida pelas mãos de um impecável diretor e um elenco talentoso.
Crítica | Jackie
As mulheres são grandes na História. O problema é ter o estudo e os meios necessários para encontrá-las. É um péssimo vício que ocorre, mas a importância feminina na nossa História, apesar de presente e celebrada, é muito pouco conhecida. Podemos falar de muitas personalidades masculinas com quase nenhum esforço que já reconhecemos suas conquistas, glórias, vícios e desgraças.
Até de mulheres que conseguiram superar e quebrar a barreira nublada da História como Marie Curie, Cleópatra, Rainha Vitória, Margaret Thatcher, Joana D’Arc ou Hannah Arendt, muitos desconhecem completamente seus feitos.
Porém, basta falarmos de Santa Teresa de Ávila, Margaret Fuller, Elizabeth Blackwell, Clara Barton, Pearl S. Buck, Amelia Earhart, entre outras, que grande maioria nem reconhecerá seus nomes, que dirá seu papel histórico.
A memória coletiva sobre a importância feminina na História tende a ser menos nublada no século XX – vide algumas exceções. Ainda que a força de coletivos ou movimentos quase consuma a personalidade, rapidamente já reconhecemos Simone de Beauvoir, Anne Frank, Audrey e Katherine Hepburn, Frida Kahlo, Helen Keller, Madre Teresa, Rosa Parks, Eleanor Roosevelt, Princesa Diana ou Malala, no exemplo mais recente possível.
Porém, de todas essas mulheres, onde estão as primeiras-damas dos Estados Unidos? Tirando Eleanor Roosevelt, basicamente ignoramos a importância dessas mulheres. Mesmo que para a cultura latina, tenham pouco significado, foi justamente o chileno Pablo Larraín o responsável em resgatar e preservar a memória da grande e sofrida Jacqueline Kennedy, ou simplesmente Jackie.
Horas de Horror
Jackie Kennedy ficou marcada na História pelo episódio de horror ocorrido em 22 de novembro de 1963. Em meio a muito sangue e desespero, Jackie precisou encontrar esforços para socorrer, em vão, seu marido e presidente, John Kennedy.
Jackie de Larraín e Noah Oppenheim trata-se justamente sobre a vida de Jacqueline Kennedy nos dois anos que viveu como Primeira Dama dos Estados Unidos. Entre seus momentos de singela alegria até o profundo luto após o assassinato.
O maior diferencial deste biopic é a escolha do roteirista Oppenheim em fugir dos elementos óbvios que tangem diversos longas biográficos. Acompanhar a semana de Jackie após o assassinato de Kennedy é algo que se provou extremamente digno de ser conferido, além de proporcionar outra camada de importância histórico a respeito da primeira dama.
Praticamente, a narrativa inteira se concentra em flashbacks inseridos durante a longa entrevista do jornalista de Theodore White, da revista LIFE, com Jackie após a morte do marido. Oppenheim caminha por partes, elaborando contrastes no primeiro ato para então nos jogar ao profundo melodrama carregado pela narrativa sobre luto e perda.
Vemos Jackie feliz ao chegar em Dallas, treinando o discurso em espanhol nunca proclamado, ante sua figura gélida, magra e antipática durante os trechos da entrevista, sempre oferecendo invertidas cínicas com aberturas de perguntas equivocadas do jornalista. Em contraponto, Oppenheim dedica muitas cenas para mostrar o histórico documentário do Tour na Casa Branca apresentado por Jackie em 1962.
Apesar dessas passagens parecerem tediosas, elas são de suma importância para definir o papel que Jackie desempenhava enquanto primeira dama. Seu trabalho de restauração, preservação e modernização de diversas alas da Casa Branca foi considerado um dos mais importantes já feitos na história do edifício. Essa preocupação com identidade, legado e tradição marcam o discurso de Jackie a todo momento na entrevista debatendo sobre como a História veria a passagem dos Kennedy na presidência.
Acuidade histórica
Como apontado, Oppenheim não constrói a história linearmente. São diversos flashbacks que ocorrem antes e depois do assassinato – e a partir do terceiro ato, temos flashforwards também. Então, de certo modo, é fácil se perder onde cada cena se situa na linha do tempo, caso se distraia. Apesar da história ser simples, mostrando o sofrimento de Jackie e das escolhas imediatas que ela tem de tomar após a perda do marido, ela exige sua atenção por conta dessa estrutura.
Alguns roteiristas erram muito ao escolher o esquema não linear de narrativa, mas em Jackie é uma decisão acertada. Tudo para realçar contrastes dos estados emocionais de Jackie ou para denotar tópicos importantes levantados em temas semelhantes nos diálogos entre Jackie e outro personagem.
Nisso, a personagem desenvolve seu luto e sofrimento, sozinha, enquanto batalha pelas súbitas mudanças trazidas em sua vida. Para essas confidências e explosões delineando a fina insanidade que a mulher está prestes a sucumbir, há bons diálogos com sua amiga Nancy e cunhado Robert Kennedy. O grosso mesmo da verdadeira qualidade do trabalho de Oppenheim estão nas conversas/confessionários de Jackie com o padre.
Poucos são os roteiristas que conseguem trabalhar tão bem com um tema tão complexo como a fé e o divino. Aqui, Oppenheim tira de letra, trazendo um dos padres mais humanos e genuínos que já vi em uma obra cinematográfica. São diálogos que flertam com o existencialismo, além da didática do luto, principalmente com mortes violentas. Não bastasse o personagem ter um tratamento excepcional do roteirista, há a excelente performance de John Hurt, conseguindo passar a ternura, zelo e compaixão necessários para comprarmos a ideia da bondade autoconsciente do padre.
Admito que o bom tratamento do melodrama e a sensibilidade dos diálogos religiosos me conquistaram bastante, mas o mais interessante é a abordagem mais realista de John Kennedy e seu legado. O tema de legado é recorrente para Jackie e Bobby Kennedy, nos quais ambos se perguntam ou confessam sobre atitudes tomadas pelo ex presidente. Através de uma simbologia religiosa, Jackie comenta sobre as constantes traições e das amizades duvidosas, de contatos mafiosos, dos quais Kennedy cometia. Já Robert, questiona como o mundo lembraria da resolução da Crise dos Mísseis e das tentativas de invasão organizadas pela CIA que resultaram no massacre da Baía dos Porcos.
Ou seja, Oppenheim, foge do senso comum histórico que cerca a figura de John Kenney que praticamente o torna uma figura imaculada, um salvador oprimido e silenciado. Nos poucos anos de presidência, Kennedy cometeu erros e acertos e esse olhar menos apaixonado por ele certamente é bem-vindo. Porém, importante lembrar, que apesar de dar descrédito à algumas políticas do presidente, Jackie é um filme narrado sob o ponto de vista de Jacqueline, uma mulher extremamente leal e apaixonada pelo marido. Logo, o discurso final favorece esta aura, mas se sobressai pelo relato tão sincero da personagem sobre a sonhada Camelot.
Jackie’s got an Oscar
Como o roteiro de Oppenheim aposta em muitas cenas silenciosas, todo o grande trabalho de estudo sobre Jackie seria perdido caso não fosse a performance arrebatadora de Natalie Portman. Ainda que não haja a menor semelhança nas feições, Portman domina o sotaque característico de Kennedy – isso pode te tirar do filme, embora não seja muito artificial. O que realmente conquista, é o manifesto do sofrimento tão real e palpável que Portman demonstra a cada cena.
A atuação de Portman é marcada por profundas mudanças tonais ao longo das cenas marcadas pela felicidade, desespero, insanidade e luto. As dos flashbacks concentrados antes do assassinato, a atriz esbanja olhares meigos, ingênuos e inocentes. Há muita euforia contida pela classe e elegância em seus movimentos lentos, porém, a atuação se torna muito mais rica após o assassinato.
Em termos gerais, a atuação é favorecida pela não-linearidade por tornar os contrastes gritantes a olhos vistos. O choque demonstrado por Portman, toda ensanguentada, decidindo sobre qual porta do avião que sairá, ou enquanto remove as vestes rosadas para banhar-se e abandonar os restos de seu marido ou quando tenta invadir a sala de autópsia. Depois, o luto, onde Portman explora uma linha muito tênue entre o sofrimento e a insanidade que rende uma das sequências mais poderosas do filme na qual é apresentada a principal simbologia do longa.
Passada a loucura e as difíceis escolhas, Portman mostra a transformação final de Jackie: totalmente pálida, mais magra e abatida. O estilo mais cru e opaco do figurino segue a mudança no emocional da personagem, agora muito amarga, cínica, assumindo um estilo passivo-agressivo que rendem os poucos momentos cômicos do filme. No geral, Portman oferece um show em Jackie. Praticamente, o filme só funciona graças aos esforços hercúleos de sua atuação que empalidece o desempenho do restante do elenco.
O Historiador, Larraín
Nada mais irônico do que um latino resgatar a memória histórica de uma primeira dama americana. Larraín, basicamente o diretor mais competente em termos de recriação histórica, possivelmente realiza seu melhor trabalho com Jackie.
Filmado em razão de aspecto de 1:1,66 – padrão pré-Cinesmascope, Larraín e o cinematografista Stéphane Fontaine optam pelo antiquado formato justamente para conferir todo o aspecto “sujo”, antigo e deveras granulado de alguns filmes dos anos 1960 – vide Mary Poppins, aliado à técnicas cinematográficas mais recentes de iluminação e enquadramento como no incrível plano sequência no qual Jackie perambula em diversos corredores e salas da Casa Branca, tornando estado de espírito “perdido” em algo literal, abandonando os diálogos alegóricos.
Larraín começa estranhamente mal com enquadramentos mal equilibrados que volta e meia insistem em surgir no longa. No geral, o trabalho é extremamente autoral. Larraín quer ser notado e usa a câmera para gritar sua assinatura. Isso é explícito com os enquadramentos centralizados em Jackie – embora alguns outros personagens também apareçam enquadrados desse modo para compor unidade visual na relação plano/contraplano.
O propósito é mais do que óbvio, no caso. Larraín mantém os enquadramentos centralizados para reforçar parte do discurso do filme: jogar uma figura que estava acostumada a ser coadjuvante para subitamente tornar-se a pessoa mais importante/interessante do mundo sendo obrigada a tomar decisões complexas.
Quando JFK aparece, Larraín sabiamente o joga para cantos de quadro. Mesmo quando vivo, o foco é sempre Jackie – tome nota um dos enquadramentos mais belos do longa com Jackie, JFK e convidados apreciando a performance de um violoncelista. Além de já cravar o ponto alto de sua estética, é ali que o figurino começa a exclamar sua voz.
Assim como o texto e a atuação de Portman, Larraín e outros setores visuais trabalham com contrastes bem fáceis de interpretar. Neste concerto, Jackie está reluzente, é o melhor momento de sua vida espelhado pelo estonteante vestido amarelo. Toda essa sequência explora a felicidade que ela sente. Seu último figurino verdadeiramente colorido é justamente o clássico rosa no qual usou no dia do assassinato.
Após isto, a figurinista Madeline Fontaine aposta única e exclusivamente em tons sóbrios, cada vez mais cinzentos, sem pompa, apesar de muito elegantes. Jackie explora beleza fúnebre, quase como Larraín transformasse seu filme em uma arte de natureza morta. A estética não tem essa virada absurda, já que o restante da cinematografia é bastante centrado em um tom.
Larraín, vindo diretamente do cinema latino – chileno, injeta o modo de filmar já característico a ele. Há muita câmera na mão com objetivas próximas ao rosto dos atores, conferindo ar claustrofóbico, de prisão pessoal e desespero. São diversos momentos que o diretor enquadra o rosto de Jackie, lateralmente, com o do outro participante da conversa. Em certos momentos, pela repetição, cansa e nos irrita o manejo excessivo da técnica, pois a mensagem é captada de primeira. É uma insistência no erro que praticamente joga a estética bela no lixo.
O diretor recriou o documentário já citado acima, no qual Jackie nos apresenta suas reformas na Casa Branca. Certamente algo que valoriza o longa, com todas as imperfeições e chiados provocados pelo equipamento da época. Aliás, que exemplar design de produção em recriar tantos cenários e objetos com orçamento tão limitado.
Aliás, um dos detalhes mais sólidos da direção do chileno são os momentos de contemplação nos quais seu filme respira profundamente. Vagaroso e cínico, Larraín constrói momentos cinematográficos poderosíssimos como o da saída final de Jackie da Casa Branca. Nesse momento, o discurso responde as ponderações da protagonista sobre a História. Ao olhar a nova primeira dama, fica nítido que ela não espera ninguém, é implacável, cruel, e que, principalmente, nunca escolhe lados mesmo que suas versões sejam contestadas à exaustão.
Camelot
Jackie é um filme completo. Logo, significa que há primor em todas suas áreas. Não terminaria este texto ousando ignorar a trilha musical maravilhosa de Mica Levi que compôs apenas meia hora de música para o longa. Assim como muito do filme, é explícito que não é uma música de gosto universal, afinal a compositora segue sua linha tradicional de trabalhar com músicas modais. Ou seja, cíclicas, perenes que puxam certos desarranjos sem praticamente nunca resolvendo os conflitos internos da estrutura da partitura.
Basicamente, os arranjos são simples quase nunca superando mais de quatro instrumentos. As músicas também não possuem grandes diferenças entre uma e outra. É como se as faixas perambulassem sozinhas, complementando-se perfeitamente. Absolutamente todas as composições visam refletir o estado psicológico da personagem – é impressionante como o filme completa tão bem a psique de Jackie.
Como a personagem encontra-se totalmente perdida, em choque, deprimida e instável, o mesmo segue com a música lamuriosa, severa e fraca demais para explodir. As cordas graves se repetem, a composição praticamente não avança. O único instrumento que ousa em sair dessa penumbra lenta, morta, é o leve clarinete que oferece certo toque onírico, belo e feminino, mas ainda em lamentação. O clarinete, apesar de tentar avançar as graves cordas, é perdido, também repetindo sua melodia singela em meio a tanto pesar.
O instrumento representa o delicado sopro de esperança que pode resgatar Jackie da completa escuridão que a deixará inapta para travar suas batalhas diárias e confrontar todos os demônios que rapidamente se apossaram de sua vida. Duas músicas marcam a presença do clarinete divino: primeiro, a das crianças, e a segunda, que marca sua vaidade. Curiosamente, a faixa destinada para a vaidade é tremendamente mais forte no filme, com sopros menos sonolentos do clarinete. Enfim, é uma trilha excelente que rende um exercício fantástico de interpretação musical.
São poucos os compositores que conseguem criar narrativas através de músicas instrumentais. Muita atenção a carreira promissora de Mica Levi, artista de sensibilidade ímpar.
Agora, o x da questão, para quem é recomendado Jackie? É uma pergunta cretina, pois eu, como adorei o longa, certamente indicaria para todos. Porém, sei que é um caso complicado. A dica é fácil, se gosta muito de História Americana, principalmente do curto governo repleto de polêmica de John Kennedy e que já tenha algum interesse na figura de sua esposa, é evidente que é o perfil ideal. Um conhecimento histórico extra-filme é muito bem-vindo para apreciar o drama em outra dimensão, bem mais profunda.
Mesmo que Jackie sonhe e acredite que seu marido tenha conseguido criar uma Camelot – o reinado mágico e justo de Rei Arthur, para os EUA em seu governo, é prepotência minha afirmar ou negar. Todavia, me arrisco a dizer que Pablo Larraín conseguiu criar uma Camelot para a memória tão apagada de Jacqueline Kennedy. Uma mulher que, certamente, foi muito mais do que apenas um ícone estético para a moda dos anos 1960.
Crítica | Estrelas Além do Tempo
Estrelas Além do Tempo, dirigido por Theodore Melfi - mesmo diretor de Um Santo Vizinho – e baseado no livro de Margot Lee Shetterly, conta a história de Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), três brilhantes mulheres afro-americanas que trabalharam na NASA, no programa espacial dos anos 1960. O filme foca mais no lançamento do astronauta John Glenn para a órbita terrestre, tendo as três trabalhadoras por trás das cortinas lutando contra todo o preconceito massivo que permeava a época.
O filme brilha em sua simplicidade e elegância. Melfi mostra que sabe como manejar uma situação delicada como a segregação e preconceito dos anos 1960, de uma forma tocante e séria ao mesmo tempo sendo que leve e divertida. Toda hora o trio é colocado para baixo por diversos motivos, mas a graciosidade que elas dão a volta por cima é de tocar o coração de qualquer um. Tem um bom bocado de humor no filme que deixa tudo mais fluido e causa várias situações de réplicas, por parte das personagens principais, que se aplaude de pé e também da uma boa risada.
As três atrizes estão perfeitas em cada papel, logo na primeira cena que elas estão juntas o carisma das personagens envolve o espectador. Não acredito que nenhuma esteja melhor que a outra, mas como Taraji P. Henson tem mais tempo de tela, por a história se centralizar mais em Katherine, é possível sair com a impressão de que ela de sobressai. Você torce a todo momento pelas personagens, se apaixonando cada vez mais.
Depois de algumas baixas na vida das personagens elas não se dão por vencidas. Dorothy Vaughan cativa pelo desejo de sempre crescer e pela sua persistência, Mary Jackson é ousada e nunca abaixa a cabeça ou perde a compostura, e Katherine G. Johnson mostra-se quieta no começo, porém se fortalece a cada minuto que se passa no filme, se transformando ao final, ou seja, cumpre com muito mérito seu protagonismo.
O elenco coadjuvante também conta com grandes nomes como Kevin Costner, Kirsten Dunst, Mahershala Ali e Jim Parsons. Apesar de serem secundários eles se sobressaem brilhantemente. Costner é o chefe que se importa mais com resultados do que qualquer outra coisa, porém traz uma levesa e amor para com seus empregados bem sutil e maravilhosa. Já Kirsten Dunst e Jim Parsons se encaixam naquela velha formula de personagens preconceituosos daqueles tempos, Parsons acaba sendo um pouco mais, mas isso não os impede de sofrerem transformações e redenções também sutis, mas que se encaixam perfeitamente para a mensagem do filme. Agora Mahershala Ali também entra em sua busca por uma redenção diferenciada, aqui se tratando do interesse amoroso de Katherine ele deixa uma péssima impressão n começo que se reconstrói ao final.
O filme ainda conta com uma bela trilha sonora composta por Benjamin Wallfisch, Pharrell Williams e o grande Hans Zimmer, junto também com uma bela e competente fotografia, feita por Mandy Walker. A trilha dá um grande toque de esperança, em diversos momentos ela inspira esse tipo de pensamento, o que só faz o bom astral do filme subir mais e mais. A fotografia demonstra a todo momento como os personagens estão situados em seus pensamentos em relação a uns aos outros, como, por exemplo, em diversos planos que dizem a distancia de ideais entre os personagens de Kevin Costner e Jim Parsons, que eles estão em páginas completamente diferentes.
Claro que o filme não é perfeito. Mary Jackson (Janelle Monáe) não tem tanta presença quanto as outras no quesito de importância para os eventos envolvendo o lançamento do astronauta. Também a todo o momento os personagens fazem cálculos matemáticos, praticamente incompreensíveis para a maioria do publico, o que pode distanciar alguns. Porém seus problemas não são nada quando comparados com a graciosa e maravilhosa história.
Ele pode ser confundido com filme alegre para levantar a moral, mas vai muito além. A história tem um ótimo ritmo que nunca te faz olhar no relógio. Conta ótimas personagens. Estrelas Além do Tempo conta uma história que deve ser ouvida, sobre pessoas muito importantes que não só levaram a humanidade a lua, mas também quebraram preconceitos e estigmas dentro da NASA e consequente no mundo.
Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures, EUA – 2016)
Direção: Theodore Melfi
Roteiro: Theoore Melfi, Allison Schoroeder
Elenco: Taraji P. Henson, Octavia Spencer, Janelle Monáe, Kevin Costner, Kirsten Dunst, Jim Parsons, Mahersala Ali
Gênero: Drama biográfico
Duração: 127 minutos
Texto escrito por Daniel Sodré
Review | Resident Evil 4 (2005)
"Resident Evil 4" passou por um processo de desenvolvimento extremamente complicado com direito a troca de diretor, ideias em estágio avançado, fases inteiras redesenhadas, história, perspectiva de câmera... No meio disso, ainda se deu o nascimento de outra franquia, "Devil May Cry". Shinji Mikami, o criador da franquia, acabou assumindo de vez o comando determinado a apostar longe da zona de segurança da série.
O resultado? O novo padrão para jogos em terceira pessoa a ser seguido pela indústria em jogos de ação em terceira pessoa.
Primeiramente, gostaria de apontar que, apesar do apelo emocional que o game tem sobre mim por ser o primeiro contato que tive com a franquia - o que me levou a correr atrás do início e seguir a cronologia normal da saga, irei me ater a análise imparcial quanto ao seu significado geral dentro da franquia.
O aspecto mais simples de se analisar trata-se da história. Leon Scott Kennedy, agora agente especial do governo americano, é encarregado de salvar a filha do Presidente, Ahsley Graham, raptada por uma seita, em uma zona rural da Espanha. A analogia simbólica dos inimigos que Leon enfrenta durante a jogatina, é clara. Os moradores possuídos pelo vírus Las Plagas representam fiéis cegos, o que ganha potência logo de início com o tocar de um sino e pelo cenário da trama. Até poderia render uma suposta crítica interessante se não fosse abordado de forma superficial, mas essa nunca foi a proposta da saga, não cabe a mim apontar erro aqui.
As viradas e andamento da trama são bem convencionais e previsíveis, assim como as idas e vindas de personagens secundários, principalmente com o subaproveitados Luis Sera, além disso não há um desenvolvimento de personagem crível para Leon, visto que ele não cresce e se eleva internamente com os eventos que passa. O trunfo é como o roteiro consegue amarrar de forma bem articulada os locais por onde Leon passa durante a campanha, sempre variados e com potenciais absurdos de oportunidades de desafios e estratégias de gameplay.
Entretanto - e aqui entro na área de análise mais controversa do jogo, que alguns preferem esquecer ou elaborar desculpas mirabolantes para defesa - a redefinição dos rumos da franquia a partir do segundo ato da campanha possui 2 falhas graves, uma dentro do contexto narrativo e outra no contexto da série.
A primeira trata-se de uma conveniência de roteiro, em meio a várias outras presentes na história, principalmente com o emburrecimento de Ashley acima do nível aceitável, em relação a Jack Krauser, antigo parceiro de Leon supostamente morto que aparece aqui somente para amarrar uma ponta simples do roteiro e concretizar uma divertida e extremamente bem coreografada luta de boss.
A segunda já é um pouco mais pesada e, talvez, mais complexa de se entender para alguns fãs mais aficionados. Perceba, o trabalho de construção de tensão e sensação de vulnerabilidade construídas no primeiro ato é excepcional, digno do mais sufocante survival horror, devido muito a ambientação, a trilha inquietante e grave, aos inimigos mais agressivos, às munições e sprays de vida escassos e ao fato do jogador não poder andar enquanto mira. Ou seja, por mais que o foco de câmera tenha mudado, a ação tenha recebido maior foco de gameplay do que nos anteriores com maior valorização do ataque com armas de fogo e desafios com hordas de inimigos, o clima estabelecido na primeira entrada da franquia ainda era sentido.
Porém, ao chegarmos na capela para resgatar Ashley e pelo que se segue depois, o foco muda e o restante dos atos não possui mais uma ligação com o primeiro. Não há uma conexão enquanto estabelecimento de proposta. O terror de sobrevivência se concretiza mais em relação de sugestão e puxando do primeiro ato os outros elementos que não são retirados (trilha, parte da ambientação e hordas agressivas), enquanto que o jogador não se sente mais vulnerável, não somente por, à essa altura, estar com a maleta particular cheia de munições e armas, mas por enfrentar inimigos que destoam demais dos costumeiros zumbis, com alguns deles, lá para o final, portando armaduras e armamento pesado e passar por trechos que colocam Leon como um herói de filme de ação realizando movimentos impossíveis em um corredor de lasers ou lutando contra um super mutante, quase abraçando de vez a galhofa, horas soando como uma paródia da série com ecos de "Metal Gear".
O responsável pelos jogos-equívocos que viriam depois ("Resident Evil 5 e 6") é, portanto, o conceito mal estabelecido de "Resident Evil 4" durante os atos, herdado, provavelmente, do complicado processo criativo. Logo, analisando pelo contexto estabelecido anteriormente na saga, "RE 4" peca por não saber conciliar sempre as novas ideias de mecânica com o que "RE" representava.
Mas digamos que eu utilize a ótica de análise que toda saga de jogos pode ser mutável e que esse é um dos casos em que o que veio antes não serve como base comparativa para julgamento. Então, "RE 4" é quase impecável? Não necessariamente, pois a estrutura dos atos ainda não iriam conversar uma com as outras. Entretanto, o problema da "alma" da franquia não existiria, facilitando o gosto de novatos que não se aventuraram pelas aventuras passadas.
Eu, pessoalmente, não gosto de utilizar essa ótica pelo simples motivo de coesão interna de uma linha de títulos de uma saga. Você gostaria de um tom "Batman v Superman" em um filme dos Vingadores depois de ter assistido "The Avengers - Os Vingadores"? Certamente que não... Eu também não iria gostar de uma "Liga da Justiça" com o tom quase pastelão de "Era de Ultron" e por aí vai...
Mas e a discrepância entre "Alien" e sua sequência, "Aliens"? Nesse caso, a franquia demonstrou-se mutável já em sua segunda entrada, auxiliada inclusive, pela visão criativa intensa de dois diferentes diretores e não depois de 3 apostas com títulos similares diferenciados somente pelo número posterior às letras. Consequentemente, considero o desvio de conduta da franquia sim, um defeito válido de ser apontado.
Entrando agora onde o jogo mais acerta, em sua nova concepção de mecânica com o foco de câmera atrás do protagonista e sobre seus ombros durante o uso da arma. A adição da mira a laser implementa maior profundidade ao apontar podendo apontar para diversas direções utilizando bem o espaço ampliado das áreas mais abertas. Como a inteligência dos inimigos também melhorou - com esquivas, comunicação entre o bando e ataques próximos, a elaboração de estratégias é necessária, obrigando o jogador a pensar em que local ou objeto do corpo ou ao lado do inimigo deve atirar ou se economiza e se arrisca com uma faca. A presença de QTEs durante um ataque próximo inimigo deixa tudo mais tenso e a maior interação com o ambiente também aumenta o leque de possibilidades com derrubadas de escadas e saltos por janelas.
Os recursos do jogador devem ser administrados no inventário em uma maleta com limitação de espaço, com compra e venda de itens através de um comerciante com visual peculiar que, por vezes, dá as caras em diversos trechos do jogo proferidos frases hoje já icônicas. Os gráficos também sofreram uma evolução brutal, com mais detalhes no cenário e em inimigos - pouco diversificados mas extremamente bem desenhados, como o camponês da serra elétrica - bem modelados mas não tanto quanto o protagonista, cuja técnica atinge o auge em sua roupa e corpo.
Os trechos de gameplay são bem diversificados e com level designs excelentes, dando a oportunidade ao jogador de enfrentar um monstro em uma lagoa, um gigante infectado, um mutante com compridos espinhos em sua superfície, se safar de um labirinto com cães e presenciar boss fights que variam de intensos combates corporais a um confronto com oponentes enormes em estágios avançados de mutação.
Em meio a um processo de desenvolvimento, contra todas as probabilidades, a Capcom mostra que fez o dever de casa ao criar um excelente jogo de terror em seu primeiro ato e um igualmente elogiável jogo de ação com elementos de terror do segundo para frente. Pena que a coesão interna não só do produto em si mas da franquia no geral foi sacrificada em prol da diversificação de gameplay dentro de uma ambiciosa campanha que, ao tentar sair da zona segura da série e agradar vários tipos de jogadores de uma vez, acaba abrindo espaço para o futuro desvirtuamento absoluto do foco e identidade primária iniciados com o fantástico primeiro game e estabelecidos de vez com a obra prima do segundo.
PS: A versão rejogada para a análise trata-se da versão remasterizada para PlayStation 4, esta que apenas recomendo para os novatos que nunca experimentaram o game em consoles passados, visto que as melhorias são mínimas e insignificantes para um veterano.
Resident Evil 4 (Biohazard 4, EUA/Japão - 2005)
Desenvolvedora: Capcom
Gênero: Survival Horror, Tiro em Terceira Pessoa
Plataformas: GameCube, Playstation 2, PlayStation 3, Playstation 4, Xbox 360, Xbox One, Wii, iOS, Android, Zeebo, Microsoft Windows.
Crítica | Armas Na Mesa
Existem algumas traduções de títulos de filmes que, mesmo sendo boas e condizentes com a obra, não possuem o mesmo poder de síntese visto no título original. Armas Na Mesa é uma dessas traduções. Embora aborde dois elementos importantes da história do filme, como a discussão sobre a questão do controle de armas e o embate de estratégias entre duas agências de lobby inimigas, é um título que não consegue atingir o centro da narrativa como o faz Miss Sloane. Pois, o filme é, acima de tudo, um profundo estudo de personagem. Além disso, o uso do pronome de tratamento "Miss" (senhorita) contém a sutileza de já indicar um dos componentes essenciais da personalidade da protagonista, cuja obsessão pela vitória a transformou numa mulher solitária que negligencia qualquer tipo de interação romântica ou social. Infelizmente, Armas Na Mesa é um título que ignora tudo isso.
No entanto, feita essa ressalva, vamos à trama do filme. Nela, Elizabeth Sloane (Jessica Chastain) trabalha para uma empresa de lobby mais aliada à direita política. Ao receber um convite para comandar uma equipe engajada em aprovar no Congresso uma lei que aumenta o controle sobre o porte de armas, ela enxerga na oportunidade um desafio inédito na carreira. Agora, trabalhando no outro lado do espectro político, Sloane fará de tudo para sair como a vencedora dessa batalha, mesmo que isso signifique sacrificar as relações pessoais e usar os outros como meras ferramentas estratégicas.
Escrito pelo estreante Jonathan Perera, o roteiro de Armas Na Mesa tem o mérito de abordar um assunto polêmico e que costuma polarizar as opiniões - o porte de armas - de uma maneira complexa e madura. O roteirista poderia facilmente adotar um dos lados e pesar a mão no moralismo barato e superficial, mas, ao invés disso, ele apresenta situações que mostram como tanto os argumentos contrários quantos os favoráveis possuem uma parcela de verdade e razão. Embora, ao longo da narrativa, o espectador tenha a impressão de que o filme está ao lado daqueles que defendem um maior controle sobre a venda de armas, na transição do segundo para o terceiro ato há um acontecimento que coloca o filme de cabeça para baixo, engrandecendo-o ao mostrar que o roteirista não teve medo de abordar o assunto de frente, expondo todas as suas contradições e complexidades.
Exibindo essa coragem também na hora de revelar os meandros da política, Perera oferece o mesmo tratamento imparcial aos discursos ideológicos. Ele faz questão de ressaltar como a realidade concreta das operações políticas pouco ou nada condizem com a idealização tão presente nesses discursos. Sejam conservadores, sejam liberais, os políticos quase nunca levam em consideração a sua visão de mundo no momento em que precisam tomar uma decisão. No fim, tudo o que importa são os apoios políticos e financeiros por detrás das leis e projetos. Ao término da narrativa, fica claro que quem comanda o país são os lobistas, que, trabalhando para os seus clientes, "compram", legal ou ilegalmente, os políticos para que ajam de acordo com os seus interesses. Nesse sentido, a fotografia morna e sem vida de Sebastian Blenkov é perfeita para ilustrar a pobreza espiritual desse mundo.
Também acertando ao investir em diálogos rápidos e irônicos no estilo dos filmes e séries de televisão de Aaron Sorkin para dar urgência à narrativa (os cortes rápidos da montagem de Alexander Berner auxiliam o ritmo desses diálogos), Perere cria algumas das melhores falas dos últimos anos. Como não ficar fascinado com frases como "Eu durmo contigo porque, às vezes, gosto de imaginar como seria a vida que sacrifiquei em prol da minha carreira"?! E como não rir fascinado com a parábola às avessas envolvendo o padre e a freira? Embora a velocidade com a qual a maioria das falas são ditas possa dar a sensação de que as interações são um pouco maquinais ou artificiais, os diálogos são tão inteligentes e sonoros que a reação mais comum será relevar essa aparente artificialidade pelo simples prazer de acompanhá-los e ouvi-los.
No entanto, é mesmo o cuidado com a construção da protagonista que faz Armas Na Mesa deixar de ser apenas um bom filme para se tornar uma obra memorável. Aceitando ir trabalhar numa agência menor não por ser uma defensora voraz da causa (embora ela seja a favor do controle de armas), mas sim pela dificuldade do desafio, Elizabeth Sloane se importa apenas com vencer, e, quanto mais obstáculos estiverem no caminho, mais prazerosa é a vitória. Inteligente, audaciosa e sempre com dois passos à frente dos adversários, ela não se importa de passar por cima dos outros para conseguir aquilo que deseja. Com roupas negras e os lábios e cabelos rubros, ela é, como a viúva negra, uma predadora insaciável e imparável.
No entanto, essa postura não a satisfaz completamente. Viciada em remédios, sofrendo de insônia e com uma vida social inexistente (suas relações sexuais são com um garoto de programa), ela sabe que o estilo de vida que leva é destrutivo, mas, ainda assim, continua se alimentando das vitórias nas batalhas travadas com os lobistas adversários. É só quando as decisões que toma começam a trazer consequências devastadoras àqueles que estão ao seu redor que ela passa a repensar nos seus princípios e a maneira como enxerga a vida. Simbolizada nas roupas brancas vestidas por ela em alguns momentos do filme, essa autoconsciência é perfeitamente trabalhada no julgamento no Senado ao qual ela é submetida, onde é obrigada a enfrentar os próprios demônios na busca pela redenção. Nessa escala quase épica em que a maldade e posterior bondade dela é trabalhada, a personagem vai ganhando contornos shakespearianos (fica fácil entender por que John Madden, diretor também de Shakespeare Apaixonado, exibe tanta destreza neste filme) que a transformam aos poucos numa daquelas personagens maiores que a vida. E o fato de que não é fornecida nenhuma informação sobre o seu passado serve para aumentar ainda mais a qualidade do trabalho realizado por Perere.
Pecando apenas nos últimos minutos (o plot twist final é forçado e muito idealizado) e com uma atuação soberba de Jessica Chastain, Armas Na Mesa é um filme difícil, denso, mas altamente recompensador. Aborda assuntos espinhosos de uma maneira complexa, não procura defender nenhuma ideologia e é protagonizado por uma personagem extremamente rica e profunda. Quem dera todos os filmes políticos fossem assim...
Armas Na Mesa (Miss Sloane 2017 – Estados Unidos, França)
Diretor: John Madden
Roteiro: Jonathan Perere
Elenco: Jessica Chastain, Mark Strong, John Lithgow, Michael Stuhlbarg, Alison Pill, Sam Waterston
Gênero: Thriller, Drama
Duração: 132 minutos
Crítica | Resident Evil 5: Retribuição
Creio que faz pouco mais de dois anos desde que escrevi pela última vez sobre esta franquia de “estrondoso” sucesso. É inegável, “Resident Evil” teve um início razoável, mas conseguia se sustentar naquela base interessante devendo terminar por ali. Mas… Passaram-se anos, a direção saiu das mãos de Paul W. S. Anderson e a cinessérie, por fim, entrou em declínio absoluto. Se alguém me perguntar sobre um filme ruim, logo indico a segunda e a terceira parte da aventura de Alice no País dos Zumbis. Entretanto, por algum milagre, Paul retornou para encabeçar o projeto do quarto tentando, de alguma forma, reparar o estrago feito por Alexander Witt e Russell Mulcahy nos termos estéticos e de linguagem cinematográfica.
Entretanto, não defendo de forma alguma esse diretor limitadíssimo, pois todos os roteiros da franquia foram escritos por suas mãos hábeis em criar desastres fílmicos. Com a volta deste “espetacular” cineasta, a franquia revigorou. “R.E.: Recomeço” conseguiu alavancar nitidamente a qualidade da série – tanto que, na época, tinha avaliado o filme como “muito bom”. Entretanto, tudo que é bom, dura pouco. As inovações técnicas de Anderson foram eficazes no quarto filme, mas aqui a história é um pouco diferente. Enquanto sua direção melhora a cada projeto, suas proezas como roteirista retornaram ao nível de “R.E.: Apocalypse” para pior.
Nesta nova peripécia alucinante, Alice continua em maus lençóis. Seu tempo de paz é curto a bordo do “navio esperança” Arcadia, pois logo a Umbrella chega para explodir miolos e realizar outras vilanias – “afinal ela é uma empresa muito má” como disse Paul W. S. Anderson. Infográficos vão e vem e, enfim, reencontramos Alice nos mesmos moldes de “O Hóspede Maldito” – aprisionada e nua contando apenas com dois papéis toalha grandes que encobrem suas partes íntimas para a infelicidade dos marmanjos. Nesta cela high Apple tech touch screen, Alice é submetida por terríveis torturas comandadas pela sua “iniamiga” Jill – você também será torturado. Mas como todos nós sabemos a ajuda/solução arbitrária não tarda a chegar – mesmo que esta seja bem absurda.
O serviço de firewall dos softwares da Umbrella é podre. Logo em poucos minutos, Albert Wesker invade o sistema para retirar Alice de seu confinamento. Com tanta chatice em tela, Anderson sabe que está na hora de esquentar a história e, pasmem, ele consegue! Mesmo que por um breve momento. Depois de detonar com alguns mortos meio loucos, a heroína recebe um auxílio asiático fornecido por Wesker. Ada Wong e seus decotes estão na luta tentando conquistar um amor no fim do mundo. Depois de mais enrolação, uma equipe de resgate encabeçada por Leon S. Kennedy é enviada para os confins da Terra onde Alice está. Entretanto, para eles se reencontrarem, será preciso atravessar todos os desafios mortais que a base da Umbrella oferece. Eles terão de sobreviver aos terríveis cenários destinados a testes pandêmicos apocalípticos sendo eles Moscou, Times Square, Tokyo e o Subúrbio. E é basicamente isto durante o filme inteiro.
Evil Goes Global?
O mal se tornou global. Ao menos no planeta de Paul W. S. Anderson. Como sempre, seu roteiro é de erros e poucos acertos. No caso, o argumento do roteiro é muito bom e seria um ótimo filme se fosse destinado apenas à televisão como um spin-off da série – contando com outros personagens, claro. Mas este não é o caso de “Retribuição” que está mais para um filme caça-níqueis descarado, pois além de não adicionar praticamente nada significativo para a história de toda a série, é uma solução imbecil para resolver um conflito criado em “Recomeço” no qual Alice perde os poderes provenientes da fusão bem sucedida de seu DNA com o T-Vírus. E, meu Deus, fazer um filme inteiro para solucionar uma imbecilidade do filme anterior provou ser uma idiotice ainda maior. Aliás, é inexplicável como Alice continua a lutar tão bem, já que ela não possui mais seus poderes.
Após uma bela sequência em slow motion combinado com o bom e velho efeito rewind, A.K.A. rebobinar o filme, Anderson tem uma sacada “genial”, enfiar a cara tridimensional de Milla Jovovich no meio da tela enquanto explica todos os eventos que ocorreram nos quatro filmes anteriores. Sim, isso soa tão datado e maçante o quanto é. Além disso, existem vários pequenos hologramas circulando pela tela exibindo alguns trechos de outros longas. Depois deste presente “maravilhoso” para os espectadores, acontece o ponto mais alto do filme. A sequência que engloba a luta pela sobrevivência de Alice e sua filha quando o mundo está se acabando nem parece pertencer a uma obra de Paul W.S. Anderson.
Se este segmento fosse uma obra independente do longa, não hesitaria em conferir a pontuação máxima. Entretanto, a vida não é tão bela para esta franquia e muito menos para este filme. Após essa cena fantástica, o rendimento da obra entra em declínio em que melhora somente em seu clímax. Mas para chegar até lá, o espectador terá que aguentar o péssimo desenvolvimento do roteiro por um bom tempo.
Anderson não demora em jogar as melhores cartas de seu roteiro. Teorias conspiratórias são lançadas durante o primeiro ato que aborda a Guerra Fria. Durante a sequência excelente que havia já havia dito, o roteirista tem a pretensão de tornar esse quinto filme em um daqueles que marcam pelo “mindfuck”, ou seja, que embaralham seu raciocínio tornando possível várias interpretações de uma mesma obra. Entretanto, Anderson logo descarta essa característica interessante sem ao menos tentar tornar aquilo algo maior para o filme. Após isso, a narrativa entra naquele bolo amontoado de cenas de ação pelo resto do filme.
Como a história não vinga em sua grande maioria resta apenas aos personagens tornarem esse roteiro um pouco mais profundo, mas isto também não acontece. Mesmo com personagens novos como Leon e Ada Wong, Anderson não elabora nenhum tipo de conflito diferenciado para eles. Tudo se concentra em fugir da base da Umbrella e apenas isso. Isso é deplorável, já que são personagens muito importantes para a franquia de videogames. O tratamento dado a eles neste roteiro é uma vergonha. Porém, há uma transformação interessante que ocorre na metade da fita (SPOILER) em que Alice reencontra sua “filha” (Fim do Spoiler). Ali, o problema da personagem se torna maior, pois além de ter que salvar sua pele, tem que salvar a menina também.
Claro, isso é clichê e tudo mais sendo que a execução de todo esse arco narrativo é praticamente idêntica a “Aliens – O Resgate” em que Ripley tem que superar o mesmo desafio. Aliás, é igual – se você já viu ao filme de James Cameron, já sabe como essa história termina. Mas lembre-se, este é um filme de Paul W. S. Anderson. Só dele ter se esforçado de incluir esse clichê, já é uma dádiva.
No mais, não há nada de novo. Quem surpreende é o trio Milla Jovovich, Michelle Rodriguez e Aryanna Engineer. Milla consegue sair um pouco daquilo que foi apresentado nos outros filmes. Durante a sequência que foge dos padrões da série, Milla exprime todo o desespero da situação enquanto traça laços de ternura para tentar acalmar sua filha, Becky, durante o “fim do mundo”. É uma cena carregada de emoção que estreita rapidamente a relação personagem/espectador nos levando a torcer por Milla – coisa que nunca aconteceu comigo antes.
Do restante, é mais do mesmo: carinhas sexies, poses provocantes, postura rígida acompanhados do semblante sóbrio carregado de olhares frios e compenetrados. Já Rodriguez interpreta duas versões de si mesma. Como ela consegue escapar da sua característica principal – a macho woman, em uma delas, o público já sai no lucro ao testemunhar algo novo. A pequena Aryanna Engineer surpreende a todo o momento na sessão. Ao contrário de muitas crianças que acabam em filmes de terror, esta não é uma inútil que grita a todo o momento enervando os espectadores – quem não quis matar Dakota Fanning em “Guerra dos Mundos”?. A garota supera com facilidade Johann Urb que interpreta o icônico personagem Leon S. Kennedy.
Além de lembrar vagamente Leon graças à caracterização competente, Urb não condiz com a essência do personagem. O ator raramente confere senso de liderança e seu algoz de valentia não convence nem o mais fanático pela franquia cinematográfica. Bing Bing Lee trouxe Ada Wong para os cinemas, mas seu resultado também não casa com o original. Não digo que eles tem que entregar as mesmas características das apresentadas pelos videogames, mas como não conseguem nem chegar aos pés do carismas de personagens criados por computação gráfica. Um conselho: se você acha que não consegue superar o original, crie ao menos algo parecido. Este é mais um episódio da série “O Diretor que não estava Lá”. Conclusão, Paul W.S. Anderson é uma vergonha em direção de atores.
Let’s blow the whole thing!
Extremamente inspirado no design de “O Hóspede Maldito”, o departamento artístico fez um trabalho sublime ao criar e recriar. Sejam os cenários físicos ou os compostos em computação gráfica, tudo é muito belo. O salto da qualidade técnica entre o último filme e este é gritante o que me deixa muito otimista em questão aos avanços visuais que o sexto longa irá apresentar.
As representações dos “estágios” Tóquio, Moscou, Subúrbio e a Times Square são de cair o queixo. Tudo muito belo e fidelíssimo à realidade sendo que cada um deles recebem atmosferas completamente distintas, apesar do tom sombrio estar presente em todas. A iluminação da fotografia espetacular de Glen MacPherson é responsável por segregar estes cenários do restante da obra. Perceba, em Tóquio, MacPherson e Anderson utilizam a chuva como recurso estético combinado com as múltiplas luzes das publicidades montadas nos prédios, além da saturação das cores vibrantes dos guarda-chuvas que dançam na cena. O resultado disto tudo é fantástico. As luzes se misturam graças aos reflexos garantidos pelo chão molhado e, quando o slow motion é ativado e o caos, liberado, tudo fica ainda mais belo.
Durante a perseguição desta sequência, o diretor nos apresenta um dos cenários “originais” do filme. Ali, a fotografia aposta forte nos altos contrastes, note. Alice traja sua vestimenta a lasadomasoquismo totalmente preta enquanto o corredor é totalmente branco, muito polido, desprovido de sombras, logo, chapado, mas sem comprometer a profundidade de campo do cenário. Então temos o preto no branco durante alguns segundos. Logo depois, a carnificina começa. Assim, é adicionado o vermelho-sangue na paleta da cena. Três cores majoritárias: branco, preto e vermelho e, ainda assim, este padrão não é rompido, pois todos os zumbis, estranhamente, trajam roupas munidas de tons escuros. Logo, a unidade de cores não é comprometida e a composição dos planos se mantém única.
Infelizmente, não vou detalhar todos os esquemas fotográficos deste filme. Mas em síntese, todos apresentam texturas distintas. Como havia dito anteriormente, no antro tecnológico da Umbrella, tudo têm um design clean. Leitoso, desprovidos de sombras, polidos e um tanto chapados conferindo a atmosfera claustrofóbica necessária ao confinamento de Alice. O outro cenário de concepção original também é interessante de analisar, assim como sua iluminação. Vou me ater a apenas uma passagem de toda a cena que ocorre lá – no armazém depósito de submarinos. Em determinado momento, Alice vai resgatar a pequena Becky. Quando Milla está prestes a encontrar a menina, Anderson e MacPherson tem seu momento mais inspirado do filme inteiro. A cena acontece em um corredor acinzentado e pouquíssimo iluminado, mas o jogo de iluminação presente é interessante. O corredor inteiro possui fileiras de lâmpadas de LED em suas paredes. Os LEDs se acendem e apagam de maneira sequencial partindo da posição da personagem até o final do corredor.
Apenas com esses flashes luminosos, Anderson cria, enfim, alguma metáfora visual para sua obra que até ali era, em parte, ausente. Conferindo uma atmosfera totalmente tenebrosa, enervante e inconstante, o diretor também sugere o decorrer do tempo e que a cada segundo corrido, o perigo fica mais próximo. E é apenas isso. Sei que é pouco, mas estamos falando de Paul W.S. Anderson…
E por falar no capeta… Anderson melhorou sua técnica de direção. Ele deixou de ser um diretor péssimo para um medíocre. E que evolução! É notável que ele está mais violento e ousado. As cenas esbanjam sangue e carnificina como nunca antes, além de tomar proporções épicas em algumas batalhas. Ele realmente tentou fundir duas linguagens aqui – a cinematográfica e a dos videogames.Entretanto isso não funciona muito bem, pois compromete bastante a continuidade das cenas removendo a ilusão que temos ao assistir a um filme. Isso acontece porque Anderson ficou viciado em infográficos e hologramas, pois em praticamente todas as transições de sequências ou quando o espectador acompanha um personagem diferente, há um maldito holograma para quebrar a diegese fílmica. Claro que uma hora isto começa a te aborrecer, cedo ou tarde.
Anderson também desaponta em vários momentos. Ele erra no timing de todas as cenas de ação. Ou seja, elas são supersaturadas, muito longas, repetitivas e desprovidas de elementos novos para te manter acordado. Por exemplo, há um tiroteio entre zumbis comunistas e a equipe de Leon S. Kennedy. Se juntarmos todas as partes dessa sequencia – ela é eventualmente quebrada para dar lugar as cenas com Alice, teremos aproximadamente 15 minutos de tiroteios extremamente chatos e ininterruptos. Se a ação é falha, o roteiro também não sustenta a cena apostando nos diálogos. Quando eles existem, são banais e descrevem o que acontece na tela – como: “Oh, God! Fulaninho has been shot! Let’s kill those bastards now!”.
Até mesmo o clímax é inflado até não poder mais, fora a presença de uma visão raio-x para lá de brega – o efeito também é reutilizado exatamente da mesma forma por duas vezes. É igualzinho. Se já soa porco agora, imagine se houvesse mais desses efeitos repetidos no mesmo filme. Mas espere! Há sim! Durante o primeiro combate entre Alice x Zumbis, a moça encontra uma corrente localizada dentro da cestinha de uma bicicleta e esta passa a ser sua arma para explodir zumbis. Enquanto o visual é impecável, esta cena possui o pior desenho sonoro que já escutei desde “Skyline”. Durante seus cinco ou seis minutos de pancadarias chatas e bem coreografadas acompanhadas das medíocres composições musicais, Alice maneja sua corrente pelos ares e o mesmo efeito sonoro é repetido por incontáveis vezes. Seja quando a arma corta o ar ou a carne, a sonoplastia é igual. Em uma produção de US$ 65,00 milhões, isto é inadmissível. Talvez este seja o momento “vergonha alheia” do filme, pois esse equívoco é tão perceptível que até o mais desatento espectador perceberia.
O diretor também reutiliza monstros de filmes anteriores. Como o bicho açougueiro Majini. Claro que para não ficar igual a luta de “Recomeço”, Anderson insere dois monstros na cena. Também existe o famoso zumbi da serra elétrica aqui. Tudo isto como homenagem aos fãs da franquia milionária dos joguinhos. O destaque mesmo fica para o brutamontes de carne-viva Licker. Fora esses acertos pontuais, Anderson teve um cuidado muito especial em relação a fotografia maravilhosa, da atuação de Jovovich e do tema musical do filme. De resto, é a mesma porcaria de sempre.
O Caminho para o Fim
“Resident Evil: Retribuição” não é um filme ruim. Até consegue divertir no meio de suas tantas excentricidades que beiram o ridículo em alguns momentos. Apesar do roteiro supérfluo, das atuações meia boca, dos efeitos especiais reutilizados e da trilha sonora banal, Anderson consegue sustentar seu interesse durante boa parte do filme. Seja pela fotografia belíssima ou com o design de produção afiado. Mesmo sendo uma parte totalmente desnecessária, ela provou ser algo além de um filme caça-níquel descarado, afinal os cuidados estéticos visuais conferem certa elegância para este filhote torto de zumbi.
O amadurecimento de Paul W.S. Anderson é notável. Ao menos em seu esforço de tornar essa série algo especial seja para quem for. Quem sabe ele nos presenteia com um filme que seja realmente bom no futuro. Talvez seja apropriado chamar o sexto longa de “Resident Evil 6: Redenção” em que, enfim, está franquia acabe de modo decente. Mas que, pelos Céus, Paul W.S. Anderson não se atreva em solucionar a infestação zumbilomaníaca com algum maldito deus ex machina a lá bomba atômica. Vamos torcer para que este sexto filme realmente dê certo.
Crítica | Resident Evil 4: Recomeço
Depois de duas adaptações medianas e uma mais ou menos boa, o clássico jogo da Capcom finalmente ganha um filme que consegue sair razoavelmente na fita.
O mundo está acabado depois de quatro anos da infestação do vírus-T com cada vez menos sobreviventes. Porém, ainda resta uma esperança para a população: um lugar chamado Arcadia, que promete abrigo, comida e proteção aos não infectados.
Alice e sua balaiada clônica estão em Tóquio explodindo a sede da Umbrella com sede de vingança após os experimentos em seu corpo. Após a festinha privê de Alice e Wesker, ela tenta encontrar suas amigas (Claire e K-Mart) na tão encantada Arcadia.
Por mais incrível que pareça o roteiro do quarto do filme é satisfatório apesar do argumento boboca. Consegue seguir uma linearidade boa, um ritmo adequado e foge de alguns diálogos desnecessários, apesar de ser bem sério, puxando para o humor somente no fim do filme.
Milla Jovovich faz seu papel de Alice como sempre, ou seja, sem inovar em nada, a não ser novas poses de herói que deixaria Deadpool orgulhoso. A nossa querida e polêmica Claire (Ali Larter) consegue melhorar o seu papel graças ao seu maior destaque no filme, consequência da inclusão de Chris (Wentworth Miller), falando algumas frases de efeito somente para os fãs ficarem felizes.
Algo estranho nesse longa é sua montagem que aposta em elipses muito espaçadas. Por exemplo, uma cena Alice está numa montanha com seus equipamentos em chamas e suas roupas rasgadas, logo após muda a cena e ela está com uma roupinha de Amelia Earhart e um monomotor sobrevoando o Alasca. Agora me perguntem como ela conseguiu um monomotor e a roupa de aviadora dos anos 30 no meio de um mundo infestado de zumbis tarados por carne. Eu não faço a mínima ideia e certamente nem Milla vai saber lhe responder essa.
A direção de arte do filme é muito boa, mesclando belas paisagens e a Los Angeles pós-apocalíptica com cores sombrias e cinzentas. Os efeitos visuais do filme sofreram uma melhora visível do terceiro para este. Apenas algumas CGs ficaram bem chulas, como o machadão do açougueiro maníaco-zumbi que, às vezes, parece mais um cabo de vassoura com um papelão pintado de guache vermelho.
O 3D é excepcional! Os efeitos não ficaram chulos como em outros filmes que foram convertidos posteriormente para o 3D. É bem legal receber uns tiros digitais e sangue zumbi nos seus óculos.
Outros detalhes dos filmes que vou apontar, são como algumas sequências de ação são parecidíssimas com umas cenas da trilogia “Matrix”. Chega a ser tão parecido que pode até chamar de plágio, vide os clones de Alice caindo da janela atirando para o alto, exatamente igual à Trinity em “Matrix Reloaded”.
A direção de Paul W.S. Anderson fica mesmo em destaque, graças à condução das filmagens com os efeitos 3D, realizadas com maestria.
Depois de alguns anos sem Resident Evil nas telonas, esse chega para arrebentar, é de longe o melhor dos quatro filmes existentes. Com vários zumbis tirados do quinto game da série e uma apresentação de créditos iniciais totalmente dispensável, Resident Evil 4 deixa de ser um filme de terror e torna-se um de ação desenfreada. Vale à pena dar uma chance a versão 3D da película, vocês não irão se arrepender de gastar um pouco mais no ingresso com esse filme. É demais tentar limpar os óculos quando o sangue espirra em você, confiram.