Crítica | Jason Bourne
Embora lançado brevemente após os atentados de 11 de setembro de 2001, o original “A Identidade Bourne” (2002), adaptação do romance de Robert Ludlum, foi posteriormente compreendido e incorporado junto ao esforço da indústria do entretenimento em assimilar uma nova conjuntura geopolítica que fugia bastante do retrato habitualmente entendido como uma pacificação institucionalizada relacionada aos conceitos de “fim da história” e “nova ordem mundial”.
Como era de se supor, numa indústria dominada por executivos e cabeças pensantes formadas no ambiente universitário tipicamente progressista que impera na educação superior (aqui e lá fora), não demoraria a Bourne virar uma espécie de símbolo solitário anti-imperialista, num novo esforço generalizado de culpar, dentro do ambiente da ficção, os próprios norte-americanos e, por tabela, toda a civilização ocidental, por qualquer mal vindo de fora que eventualmente a aflige.
A crítica internacional, por sua vez, tratou de enxergar em Paul Greengrass, diretor da continuação “A Supremacia Bourne” (2004), algum tipo de novidade estética que pudesse, de toda forma, acompanhar o suposto vanguardismo político da franquia, atribuindo ao diretor o estabelecimento de um novo estilo (baseado na instabilidade provocada nos eixos do enquadramento, sem, contudo, perder a distância focal e o centro da atenção do plano), que na verdade é anterior a ele e pode muito mais corretamente ser atribuído ao trabalho de câmera proposto durante anos pela série policial “NYPD Blue” (1993-2005).
Tudo isso não justifica, mas possivelmente explica, por que uma franquia tão corriqueira quanto esta possa ter adquirido ares de grande arte dentro de um gênero não raramente desprezado pelos críticos, muitas vezes procurando como loucos justificações políticas para suas eventuais preferências cinematográficas.
Agora em 2016, o personagem ressurge depois de idas e vindas em três outras versões (a primeira, dirigida por Doug Liman, e as duas subsequentes por Greengrass) e uma versão que abre outra linha narrativa (esta, dirigida por Tony Gilroy e dispensando o protagonista original).
No novo enredo, o diretor da CIA Robert Dewey (Tommy Lee Jones) comanda a caçada ao agente renegado Jason Bourne (Matt Damon), após a deserção da analista de informações Nicky Parsons (Julia Stiles), usando para isso as habilidades de campo de um homem de operações (chamado banalmente de Asset e vivido por Vincent Cassel) e de uma nova analista, a arrivista Heather Lee (Alicia Vikander, o destaque do elenco, em atuação repleta de nuances). Em trama paralela, Dewey pressiona um megaempreendedor da web (Aaaron Kalloor, vivido por Riz Ahmed) para que use seu portal para compartilhar informações com os serviços de inteligência norte-americanos.
Um filme de ação que, de alguma maneira, pretende também oferecer um recorte da realidade, não pode abrir mão, contudo, de cenas de ação que privilegiam o frenesi de perseguições e explosões aos momentos de maior respiração (e, eventualmente, algum raciocínio mais elaborado da parte do espectador). Este Bourne é amarrado por duas grandes sequências de ação, uma logo no início, em Atenas, e uma perto do desfecho, em Las Vegas. São como duas vigas que procuram dar sustentação à trama e onde o diretor pretende dar satisfação do orçamento acima de 100 milhões de dólares para, nos intervalos, expor sua visão a respeito dos problemas (reais) dos quais o filme apresenta discreto testemunho.
Sempre que personagens dentro do ambiente ficcional remetem a pessoas e situações que existem ou existiram fora das telas, o filme expande seu próprio universo, de certa forma exigindo da audiência que (mesmo involuntariamente) faça uma analogia com aquilo que o enredo diz e mostra com aquilo que se sabe – ou que eventualmente se poderia saber – a respeito do tema. No caso de “Jason Bourne”, que cita vagamente o nome de “Snowden” (Edward Snowden, um ex-funcionário da NSA – Agência de Segurança Nacional do Governo dos EUA – que veio a público revelar metodologia de vigilância usada pelos órgãos de defesa de seu país e que, hoje, vive em asilo temporário na Rússia) para localizar os conflitos, estamos lidando com o ruído permanente entre o que os governos querem obter de informação a respeito das atividades de seus cidadãos (e quais meios são usados para tal fim) e o quanto se pode ou não confiar no uso que se faz dela.
Embora seja, na maior parte do tempo, ligeira e discreta, essa referência direta à realidade geopolítica obrigaria a produção (na verdade, uma “superprodução”) a ser mais expositiva e fiel, o que não ocorre – ou porque a direção de Greengrass está mais interessada em colocar os personagens para apostar corrida, ou porque ela falha a respeito da acuidade naquilo que expõe. O momento no qual tal falha fica mais evidenciada é na quase interminável sequência que mostra os protestos em Atenas, quando superficialmente elaborada ambientação exibe inumeráveis bandeiras gregas entre os manifestantes, mas convenientemente se esquece de produzir também um número equivalente de bandeiras vermelhas, o que altera a percepção do espectador em relação ao que realmente aconteceu – como se sabe, um movimento com protagonismo da extrema esquerda e dos sindicatos do funcionalismo público ligados a esta na Grécia. O espectador mais atento eventualmente verá até uma suástica entre os “black blocs” gregos, mas a foice e o martelo mantêm-se em segundo plano, imperceptíveis.
O filme peca não só nesse registro da realidade como também em propor um desenrolar da trama dentro de terreno mais estrito regido pela verossimilhança (e não por uma abordagem fantasiosa da “realidade”). Em ao menos dois momentos os roteiristas (entre eles o próprio Greengrass) jogam a razoabilidade pela janela: o segundo, não revelarei aqui porque é um momento crucial da trama e está localizado próximo a seu desfecho. O primeiro, por sua vez, pode ser apontado: é quando o bilionário do ambiente digital (Kalloor), uma figura popular e seguida constantemente por fãs e paparazzi, acha uma brecha em sua agenda para tomar um cafezinho na lanchonete da esquina com o homem forte da CIA, trazendo à tona a relação que eles mantêm e que deveria, supostamente, permanecer sub-reptícia para coerência interna da própria história.
Embora esta seja uma falha de roteiro, sabemos que ela não é inusual em filmes com ambientação parcialmente transcorrida em “ambientes virtuais”: trocas de mensagens criptografadas, hackeamentos, segredos binários trancados aos quais apenas gênios da computação seriam capazes de decifrar, parecem, contudo, ser insuficientes para construir por si só o desenrolar típico da narrativa cinematográfica, que muitas vezes tem de recorrer ao bom e velho “olho no olho” (ou plano e contraplano), obrigando a plateia a ignorar que, naquele momento preciso, os meios de vigilância (dos quais o próprio filme deseja dar testemunho) também estariam em funcionamento, impedindo qualquer possibilidade de esse tipo de situação (como o encontro entre Kalloor e Dewey) ser mantida em sigilo – conforme o filme quer, ingenuamente, fazer crer.
Um filme como “Jason Bourne”, então, mantém seu interesse e a plateia em suspensão não pelo que ele supostamente oferece de “real”, mas muito mais por aquilo que, embora fantasioso, é apresentado como “realístico”. No caso, são especialmente as perseguições motorizadas, nas quais a expertise hollywoodiana faz seus inevitáveis solos para o público. Nesse sentido, o novo Bourne – tal qual, na verdade, seus antecessores – insere-se numa tradição de cinema em movimento cujo tributo deve ser pago a pelo menos dois filmes: “Operação França”, o clássico de 1971 dirigido por William Friedkin (e brilhantemente sucedido pela continuação “Operação França II”, de 1975, com direção de John Frankenheimer) e “Ronin”, a ainda insuperável produção dentro do subgênero lançada em 1998 e também dirigida com absoluta maestria por Frankenheimer.
Embora realizado décadas após estes três sucessos, “Jason Bourne” compartilha com eles, numa época em que boa parte do fenômeno cinematográfico dentro da indústria acaba reduzida (ou sintetizada) em programas de computação, a experiência física, mecânica, da filmagem em ambientes reais (ou que ao menos se parecem tão reais quanto seria possível), abrindo mão da aparência de videogame em benefício de uma encenação vibrante onde os atores têm papel decisivo (onde uma eventual projeção em 3D, por exemplo, revela-se totalmente dispensável). Aqui, eles estão absortos num emaranhado de proezas físicas que se alternam, entre explosões e tiros, de modo que seu elemento mais humano não é trazido pelos diálogos reduzidos (ainda que estes tenham por objetivo revelar suas emoções e sentimentos escondidos), mas pelo sofrimento físico, pelo cansaço, pelo atrito entre os corpos e o ambiente que os cerca, o que confere ao filme uma veracidade que nenhum discurso politizado seria capaz de propiciar.
Ao drama originalmente proposto por Robert Ludlum, faltam o cinismo e a maturidade política que sobram em outro autor de espionagem: Frederick Forsyth, este o grande mestre literário do gênero e autor de livros que também resultaram em bem-sucedidas incursões cinematográficas (“O Dia do Chacal”, “Cães de Guerra, “O Dossiê Odessa”).
Seria demais pedir a Greengrass que ele tocasse além da superfície em pontos críticos da discussão na qual ele pretende estar inserido, como por exemplo o fato impossível de ignorar de que Snowden (um símbolo da “resistência” dos indivíduos à intromissão do governo) seja hoje protegido por aquele que é possivelmente o mais atuante e tentacular serviço de inteligência em funcionamento (o dos russos). Ao enfrentar tal conflito sem rodeios, o cineasta abriria uma infinidade de outras portas para reflexão dos espectadores (e não é esta sua intenção?). Por outro lado, é justo poupar o filme de qualquer análise ideológica mais aprofundada.
Por mais que os críticos queiram fazer deste Bourne um panfleto que possa ser usado em sua pregação política, por mais que o próprio Greengrass gaste seu idioma tentando tornar a superprodução em algo mais relevante do que realmente é, o que resta na tela é uma trama onde, o tempo todo, os personagens colocam em atrito sua obrigação para com as instituições e o mundo exterior e a fidelidade quanto a si mesmos, ao seu mundo interior, repleto de memórias (perdidas e recuperadas), sentimentos familiares e dúvidas morais. É talvez nesse ponto que o filme finalmente se converta num libelo político, e não quando exibe um balé distorcido e incompleto contra a atuação da Troika na Grécia.
Review | Where's My Helmet?
É interessante ver como a indústria de videogames muda de tempos em tempos. Há alguns anos, fazer um jogo completamente independente era considerável uma coisa extremamente difícil de se fazer. Falta de recursos, investimento e o potencial de venda de jogos AAA que grandes empresas colaboravam para o cenário indie não florescer. Porém estamos agora em 2016 e os tempos mudaram. Hoje grande quantidade de jogos são feitos por empresas independentes e com um excelente resultado batendo de frente com títulos e continuações importantes dos jogos AAA em geral.
No Brasil o conceito de games e indústria vem se transformando e ganhando importância a cada dia que passa. Graças a isso muitas pessoas estão colocando suas ideias, histórias, e esforço para criar o seu próprio game independente e realizar um sonho que apenas antigamente poderia estar no papel, mas será que jogos brasileiros seriam fortes para entrar e enfrentar grandes nomes como Super Meat Boy, Braid e, até mesmo, Fez?
Where’s My Helmet? é um jogo indie lançado em 2016 desenvolvido e distribuíd9 pela Mega Boss Game Studio empresa totalmente brasileira. Vale ressaltar que o game foi montado em um programa bem conhecido para quem gosta de desenvolver jogos chamado Construct 2. Bem famoso por dar vida a muitos jogos como Câmera Obscura e Dreamming Sarah, jogos também brasileiros.
A história de Where’s My Helmet? é bem fraca servindo apenas como propósito do jogo existir. Nele, um gnomo que viaja no tempo tem uma coleção peculiar, coletar todo tipo de capacete das diversas eras que ele navega. Porém, o ultimo elmo de sua coleção está na época dos Vikings, o que faz ele navegar até essa época e encontrar o protagonista Axel que está dormindo em uma pedra. Devagar o gnomo pega seu elmo e deixa um boné em troca para nosso herói, que acorda furioso e vai em busca de seu tão amado elmo. A história em si é mostrada em forma de artes sem vocabulário ou animação apenas para falar o motivo da aventura do Viking. Com mais pesquisas, é capaz do jogador descobrir o nome do personagem e entre outras curiosidades.
Os gráficos de Where’s My Helmet? são bem chamativos, com uma temática nórdica. Podemos reparar escudos, construções estátuas e outros objetos feitos a mão. Tudo com um toque bem artístico para não desagradar os olhos de quem joga. Mesmo impossibilitados de rodar o jogo em resoluções mais altas, Where’s My Helmet? não deixa isso abalar o jogador e mostra sua beleza escondida com seus cenários, obstáculos e inimigos.
Ao todo, o game tem 10 fases, cada uma com um level design mais interessante e difícil que a outra. Conforme o jogador avança, mais comprida e mais desafiadora se torna a fase. Para estender a vida extra do jogo, elas contêm um sistema de medalha sendo bronze a mais básica e ouro a mais alta do sistema, para conseguir essa proeza o jogador deve achar a chave espalhada no mapa e abrir o baú secreto, coletar todas as moedas e finalizar a fase normalmente, porém existe uma grande falha nessa parte já que não há nenhum tipo de sistema de conquistas para motivar o jogador a concluir as fases com medalha de ouro.
Where’s My Helmet? também tem muitos erros incômodos ao decorrer do jogo. Por exemplo, o sistema de combate é estranho fazendo o jogador não sentir que está atacando ou acertando o inimigo, existem alguns locais no qual o personagem principal acaba tendo “espasmos” ou acaba escalando a tela aleatoriamente, hitbox de armadilhas que te acertam sem ter encostado exatamente em seu personagem e, talvez o mais importante, a falta de uma câmera móvel para ver onde pular e avançar. Essa falta de visão atrapalha muito resultando em mortes bobas e receio de dar certos pulos que seriam totalmente seguros, nesse ponto o jogo peca e muito mesmo, talvez com atualizações futuras esses problemas sejam corrigidos limpando esses problemas.
Falar da trilha sonora de Where’s My Helmet? é algo a se pensar. De início, as duas trilhas principais vão lhe empolgar e entrar na sua cabeça, com um belo estilo nórdico e muito bem instrumentada, porém por apenas ser duas músicas no game todo, se torna enjoativo e até mesmo chato de ficar ouvindo, logo depende de sua paciência.
Where’s My Helmet? tem uma jogabilidade diferente. Mesmo sendo um jogo de plataforma, o sistema de jogar os machados na parede criando um tipo de escada é inovador, dando acesso a lugares diferentes na fase. Poderia dizer que essa é a diversão do jogo, coletar e explorar os mapas nas suas diversas áreas que apenas graças ao sistema de escalada com o machado. Vale ressaltar que nosso personagem principal pode se machucar apenas 2 vezes antes de morrer, logo cuidado com seus adversários nas fases mais extensas.
Where’s My Helmet? pode ser o início de um grande passo para jogos que possam representar o Brasil no mundo indie. É um jogo apenas bom, não chega a ser um jogo ruim de forma alguma, mas não chega a ser um jogo de grande performance, a falta de conquistas traz a sensação de um pouco de abandono no jogo não trazendo aquela vontade concluir 100%. Porém suas artes e referências da época nórdica é de se elogiar o trabalho que a equipe teve.
Crítica | O Bom Gigante Amigo
Se houve alguma colaboração na história do cinema que mais tinha necessidade de acontecer era a de Steven Spielberg com os Estúdios Disney. Com o currículo contando com muitas aventuras que fizeram alegrias de crianças e jovens como E.T.: O Extraterrestre, a franquia Indiana Jones, As Aventuras de Tintim, Hook e Jurassic Park, uma parceria entre Spielberg e Disney poderia render um filme que unisse o melhor dos dois mundos.
Porém, o resultado dessa inesperada aliança foge totalmente dos trabalhos moderadamente histéricos da Disney como Procurando Dory ou dos muito histéricos como Mogli: O Menino Lobo. É até mesmo um filme muito inusitado para os padrões novos e clássicos de Spielberg. Como havia dito na crítica de Mogli, o calendário centrado da Disney comportou O Bom Gigante Amigo como o seu blockbuster principal para o fim do verão americano – uma faixa que só traz más lembranças para o estúdio graças aos fracassos sucedidos de John Carter, O Cavaleiro Solitário e Tomorrowland. Mais uma vez, o filme não caiu nas graças da bilheteria, porém, desta vez, trata-se de uma obra muito superior.
A verdade é que BGA é um daqueles filmes paradoxais que enriquecem, e muito, a sétima arte. Ou seja, é um filme consideravelmente chato, mas também é um dos mais belos que verá neste ano.
O roteiro de Melissa Mathison adapta o livro homônimo do escritor Roald Dahl, um dos autores mais premiados de obras infantis como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda. Aqui, agora se assemelhando muito com uma história de ninar, o texto traz a história da pequena Sophie, uma garotinha inglesa que vive em um orfanato londrino. Sofrendo de insônia, a garota sempre repete a mesma rotina em suas perambulações noturnas entre as instalações do casarão.
Quando, enfim, se prepara para dormir, às três horas da manhã, Sophie percebe um movimento nada ordinário na rua defronte a sua enorme janela. Ao sair para a sacada, tremendo de medo, Sophie encara um enorme gigante se escondendo na esquina. Ao perceber que é espionado, o imenso homem a captura e leva a garota até a inexplorada Terra dos Gigantes. Lá, ele terá que aprender como lidar com Sophie e suas muitas tentativas de fuga. Entretanto, o perigo maior, tanto para o bom gigante amigo e Sophie, são os outros habitantes da ilha, devoradores de humanos.
Como em muitos outros trabalhos autorais de Spielberg, o que manda no filme é mesmo a essência fantástica do texto. Entretanto, apesar da excelente qualidade, é bem evidente que não se trata de uma história para crianças, pois, mesmo apropriada, é bastante tediosa – certamente a história deve funcionar melhor no livro. Aliás, é isso o que mais intriga em O Bom Gigante Amigo. Trata-se de um filme que não consegue se comunicar bem com a maioria do público por conta da atmosfera serena de profunda contemplação pouco habitual para blockbusters desse porte.
O fato de ser um longa da Disney contemporânea só assusta ainda mais, pois certamente trata-se de um projeto que foge dos padrões do estúdio – evidência incontestável de como Spielberg tem poder nos trabalhos que assume. E isso, na minha opinião, é o grande diferencial positivo de seu filme.
A roteirista dedica diversos minutos para fundamentar bem a mitologia que o enredo traz assim como a essência de seus personagens ficam cada vez mais nítidas. É através dos ingênuos e fofos diálogos entre Sophie e BGA que isso é feito, aliás. E são bastante enriquecedores, brincando com dialetos atrapalhados dos gigantes, a importância narrativa e simbológica dos sonhos e revelando o passado sofrido dos dois.
Trabalhando no clichê manjado sem novas adições, Mathison somente peca em relação aos antagonistas, outros gigantes mal-encarados muito maiores que o BGA. A motivação deles é básica, ordinária, mas combina com a essência simplória dos personagens. Graças à boa construção dos protagonistas e das performances ótimas de Ruby Barnhill e Mark Rylance, o conflito funciona por nos deixar apreensivos com a ameaça que os gigantes representam, pois fica implícito um episódio tenebroso envolvendo todos eles.
Assim como Ponte dos Espiões, esse novo filme de Spielberg aposta muito mais na "contação" do que na ação propriamente realizada. Essas, quando surgem, são bastante ligeiras como até mesmo o clímax da história.
Mesmo com o trabalho maravilhoso na relação dos protagonistas, a história reserva uma surpresa que chega somente após oitenta minutos de filme. É a reviravolta mais imprevisível que eu tenha visto nos últimos anos e, ainda assim, de muita qualidade brincando com conceitos vistos em A Origem. Se trata de uma sequência surreal que injeta nova vida ao filme, mesmo durando apenas pouco mais de quinze minutos.
O mais impressionante é que todos os conceitos, para tornar essa reviravolta bem justificada, foram inseridos com precisão cirúrgica nas cenas anteriores. Mesmo partindo de uma ideia absolutamente absurda, ela tem toda a racionalidade que predomina no texto. Nisso, acontece o mais improvável, uma piada escatológica genial. Somente Spielberg e sua magistral condução de cena para fazer eu rir como uma criança com uma das vertentes mais simples da comédia. Aliás, todo o texto de humor dessa sequência aposta no nonsense. Logo, a figura do diretor é de importância extrema para contruir o timing exato. Há até mesmo brincadeiras com pontos de vista, escolha de planos, dilatações de cenas que conversam com o nível de conhecimento do espectador em comparação com o do personagem.
A execução da direção de Spielberg ainda é a melhor quando se trata de câmera invisível. A dedicação visual é estonteante com grande organicidade entre um plano ou outro. Toda a movimentação da graciosa câmera é sutil sempre apostando na naturalidade do movimento puxado pelo magnetismo da encenação que o diretor cria. É simplesmente poesia em movimento. Mas dessa vez, poesia que remete ao cinema asiático de Kurosawa e Ozu misturada com sua técnica de direção.
Spielberg sempre foi um gênio no manejo de câmera e de decupagem. Isso vem desde Encurralado. Mas tirando As Aventuras de Tintim, essa é a primeira vez em anos que ele trabalha em um filme com auxílio intenso de computação gráfica. A ilusão realmente funciona pelo detalhamento de texturas, cores e animações fluidas somente devendo na qualidade duvidosa do resultado final dos outros gigantes.
Enquanto seu cinematografista favorito, Janusz Kaminsky, ainda trabalha com as maravilhosas e atmosféricas luzes duras, altas luzes, névoa e contraluz podendo agora explorar cores mais vivas e interessantes, Spielberg adota um estilo de direção que realmente remete ao ritmo asiático clássico, mas o traduzindo para os anos 2010 chegando próximo do modo que Miyazaki conduzia algumas obras recentes do Studio Ghibli. Aliás, o diretor também insere algumas referências muito nostálgicas de alguns filmes marcantes de sua carreira.
Devido a tecnologia da época, a mobilidade da câmera sempre fora um enorme desafio para diversos grandes diretores dos anos 1940 e 50. Sem esse empecilho e aproveitando muito o suporte fantástico que a computação gráfica oferece, Spielberg mistura a magia da contemplação com efeitos elegantes de movimentação visual.
Movimentação visual não é o mesmo que movimentação de câmera, ainda que o diretor use os dois recursos aqui. A grande maioria dos filmes de Kurosawa se traduziam pela força da movimentação visual mesmo que os planos permanecessem estáticos – vide Os Sete Samurais. A grandiosidade dos dois elementos combinados em O Bom Gigante Amigo vem sempre quando surge um plano sequência – esse é, de longe, o filme que melhor e mais utiliza o recurso nesse cinema de 2016.
Os planos sequência sempre foram uma das maiores marcas autorais de Steven Spielberg, além dos sempre presentes reaction shots repletos de olhares que carregam seu melodrama. A graça dessa técnica de Spielberg é o modo que ele realiza sempre visando que nós não notemos de que se trata de fato de um plano sequência. Quando ele resolver segurar o plano, o faz sempre de modo orgânico alterando as suas riquíssimas composições visuais com afinco. Temos dois particularmente encantadores: o que encerra o clímax e um que ocorre quando Sophie cai nas rudimentares tubulações da casa do gigante.
Para completar o brilhantismo técnico artístico, o favorito compositor de longas datas, John Williams, retorna com uma das trilhas musicais mais doces e emocionantes que já compôs em tempos. Deve haver alguma magia que une esses dois profissionais para criarem resultados maravilhosos. Explicitando totalmente sua linha romântica e homenageando o uso clássico da música nos filmes Disney, Williams trabalha com tons melódicos leves, saltitantes e irrequietos vindos através de harpas e uso intenso de flautas para preencher os temas que acompanham Sophie.
Para os gigantes, há uma grande distinção de temas. Como o Bom Gigante Amigo é uma criatura mais esguia e ágil, Williams usa instrumentos de sopro mais agudos e violinos ora entusiasmados, ora levemente melancólicos. Os antagonistas, quando surgem em cena, ganham elementos sonoros mais pesados e abafados, mas acompanhados de ritmos nada ameaçadores e sim bobos refletindo diretamente o espírito dos personagens.
Já outras composições, como as destinadas para a conclusão do filme ou que trabalham em cima de passagens que tratam sobre o futuro de Sophie rasgam no melodrama. Flautas bem menos agitadas surgem, de tons melódicos belos, porém um tanto pálidos e tristes, pois indicam que a relação de incrível amizade entre os dois terá que ter um inevitável fim. Mais uma vez, John Williams criou música que move.
O Bom Gigante Amigo é a prova concreta que Steven Spielberg retornou com tudo para sua forma encantadora como um ápice de talento e vontade de trabalho dessa fase distinta de sua carreira: a contemplação serena e bela que abraça e reflete o espírito jovem de um criador já na terceira idade. Um filme sobre velhice, juventude, solidão, esperança, onipresença e amizade. São aspectos profundos que parecem dialogar a todo momento com Spielberg. Logo, todo esse ritmo da obra refletir tanto o cinema asiático dos realizadores citados assim como boa parte das animações do Studio Ghibli não é por mera coincidência.
Como já apontado, o filme é realmente uma incógnita para escalar uma recomendação baseado no gosto de cada um. Há de se considerar que é quase certo que o público destinado não fique tão envolvido com uma história que aposta tanto em diálogos e contemplação em vez da ação desenfreada. Porém, é impossível não parabenizar a Disney pela escolha muito corajosa de entregar um longa tão introspectivo e tímido como esse mesmo sabendo que se tornaria um fracasso de bilheteria.
Steven Spielberg é um dos melhores realizadores da História do Cinema e merece ser celebrado por isso em vida e também na posterioridade. Todos os valores passados pelos seus filmes em minha infância serão carregados comigo até o fim. Agora, no sentido profissional, continua um dos melhores professores de Cinema que alguém poderia pedir.
O Bom Gigante Amigo (The BFG, EUA - 2016)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Melissa Mathison, baseado na obra de Roald Dahl
Elenco: Ruby Barnhill, Mark Rylance, Penelope Wilton, Jemaine Clement, Bill Hader, Rafe Spall, Rebecca Hall, Ólafur Darri Ólafsson
Gênero: Aventura
Duração: 117 min
https://www.youtube.com/watch?v=UU4HC9yP3Ds
Crítica | Jessica Jones - 1ª Temporada
Foi realmente surpreendente que um personagem do calibre B como o Homem de Ferro fosse responsável por um dos maiores sucessos de super-herói de todos os tempos. Isso mostra a força de uma narrativa bem feita e de um elenco perfeitamente escalado, regra que fora seguida com as subsequentes adaptações cinematográficas da Marvel Studios. Agora, todo mundo pelo menos já tinha ouvido falar ou visto alguma coisa sobre Capitão América, Thor e até mesmo o Homem-Formiga, mas acredito que quase ninguém que não fosse um aficionado hardcore sabia quem diabos era Jessica Jones.
A personagem é a protagonista da HQ Alias, de Brian Michael Bendis, e foi a escolhida para a segunda série da parceria entre Marvel e Netflix. Trata-se de uma super-heroína aposentada que agora segue uma vida de investigadora particular, isto quando não sucumbe a seus vícios em sexo, álcool e surtos violentos. Jessica é uma personagem difícil e que parecia perfeita para esse universo mais sujo e adulto a que fomos apresentados na Hell's Kitchen de Demolidor.
Sob a alcunha da showrunner Melissa Rosenberg, Jessica Jones ganha uma primeira temporada com os costumeiros 13 episódios, mas aposta em uma narrativa um pouco mais linear do que a do amigão da viz... Quer dizer, o Demônio de Hell's Kitchen. A trama já inicia-se com Jones (vivida por Krysten Ritter) atuando como investigadora enquanto temos indício de seu passado fantástico e de suas habilidades descomunais, que ela clama terem sido provocadas em um acidente. No meio de noitadas, biritas e escapadas sexuais, o caso de uma garota desaparecida chama sua atenção, especialmente quando ela suspeita que um antigo inimigo, o mais perigoso que já encontrou, esteja de volta para atormentar sua vida.
É uma excelente premissa que infelizmente fica aquém de seu gigantesco potencial. Desde a belíssima abertura que abraça o espírito do noir até a personagem-título. Jones em si é uma personagem fascinante por fugir de todas as convenções do gênero e trazer um perfil que dificilmente associaríamos a uma figura super-heroica, o que por si só é um ponto positivo por trazer diversidade a este famigerado gênero. A performance de Krysten Ritter é eficiente em trazer uma mulher perturbada e que simplesmente parece "cansada de toda essa merda" (a personagem mal troca de figurino na série toda, por exemplo), como seu discurso quase entediado e o olhar caído sugerem.
Isso se alterna quando Jessica conhece Luke Cage (Mike Colter), outro super-herói B que ganhará sua própria série ainda este ano. Também dotado de habilidades sobrenaturais, Cage é incapaz de se machucar graças à sua pele indestrutível, e temos aí o início de uma relação estranha, porém divertida de se acompanhar. Dois "super-heróis" em uma amizade colorida que vai desdenhando diferentes facetas de Jessica, em um bom trabalho de Ritter, que consegue muito expressar a dificuldade de Jones em se abrir com outro homem. Funciona bem até a reviravolta esdrúxula que coloca Jones diretamente relacionada a um trauma do passado de Cage, exigindo muita suspensão de descrença em tamanha coincidência.
Mas é mesmo com o vilão que a série realmente decola. Kilgrave, ou o Homem Púrpura é uma figura assombrosa que é capaz de provocar genuíno pavor graças a sua habilidade de impor seus desejos e ordens sobre qualquer um a seu redor - um poder batido e tradicional, mas cujo uso é muito criativo aqui. A performance de David Tennant é um dos motivos para que Kilgrave funcione tão bem, tendo o ator completamente mergulhado em uma figura manipuladora e sádica, que nitidamente tem prazer em torturar e bagunçar a vida de pessoas comuns. A obsessão com Jessica chega a ser tenebrosa, principalmente pelos flashbacks que nos revelam sua influência no passado da heroína e os atos que fora forçada a realizar sob o efeito de sua habilidade. É uma clara alusão ao estupro e aos abusos da mulher, e isso funciona de forma muito eficiente; graças também à sutileza do poder de Kilgrave - que inclui até mesmo o envio de fotos por celular!
O que fica a desejar é uma história melhor para jogadores tão engenhosos. A estrutura de 13 episódios certamente se revela como um problema aqui, já que a investigação de Jessica em torno do paradeiro de Kilgrave dá voltas e voltas, repete pontos de virada e fica presa em repetições temáticas irritantes. Por exemplo, temos cerca de três arcos diferentes, ficando preso em uma cíclica Escada de Penrose cujos degraus lêem: Kilgrave deve ser encontrado -> Kilgrave é capturado -> Kilgrave foge. É cansativo e pouco empolgante, com exceção das situações retratadas em AKA WWJD?, onde aprendemos mais sobre a relação passada de Jessica e Kilgrave em sua casa de infância, e AKA Sin Bin, onde Kilgrave encontra-se em uma elaborada jaula para um excitante interrogatório com Jones e as demais personagens. Só é triste que um vilão tão bom seja descartado de qualquer jeito na anticlimática conclusão.
A situação não melhora com as subtramas, que são tão esquecíveis que tive que rever praticamente a série toda em resumos da Wikipédia para escrever esta análise. A começar com a Trish Walker de Rachael Taylor, melhor amiga de Jessica que tem um arco dispensável com um policial que acaba tornando-se um stalker. São poucas as cenas entre as duas que realmente valem a pena, já que a personagem se limita ao velho clichê de "retomar os bons tempos de amizade" e não oferece muita profundidade. Pior ainda é o arco jogado de Carrie-Anne Moss como Jori Hoghart. Além de a personagem não ter um pingo de carisma nem qualquer característica que a torne algo além de "a chefe rabungenta", a menos que você conte o tedioso arco que envolve seu divórcio e não leva a lugar nenhum. Puro filler.
Sem dúvida alguns episódios a menos fariam bem a Jessica Jones. O fato de termos uma jornada repetitiva em torno do vilão principal só comprova isso, e nenhuma das subtramas tem a força para preencher as lacunas da história principal. Uma pena, já que os personagens centrais são excelentes e mereciam um tratamento melhor.
Jessica Jones - 1ª Temporada (EUA - 2015)
Criado por: Melissa Rosenberg
Direção: Simon Cellan Jones, S.J. Clarkson, David Petrarca, Stephen Surjik, Uta Briesewitz, John Dahl, Billy Gierhart, Rosemary Rodriguez, Michael Rymer
Roteiro: Michael Gaydos, Jenna Reback, Scott Reynolds, Dana Baratta, Micah Schraft, Liz Friedman, Hilly Hicks Jr, Jamie King, Jack Kenny, Edward Ricourt
Elenco: Krysten Ritter, Rachael Taylor, David Tennant, Carrie-Anne Moss, Mike Colter, Will Traval, Susie Abromeit, Erin Moriarty
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Drama
Duração: 50 min
https://www.youtube.com/watch?v=3qDf-8-rUo8
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Crítica | As Provações de Apolo: O Oráculo Oculto (Livro 1)
Após um passeio entre as mitologias grega, romana, egípcia e nórdica, Rick Riordan volta a mergulhar no universo grego – porém, desta vez, sem o auxílio de Percy Jackson. O Oráculo oculto é o primeiro livro de As Provações de Apolo, contendo outros cinco volumes. A história começa seis meses após os acontecimentos de O sangue de Olimpo, ou seja, é uma continuação das outras duas sagas.
Como praxe da escrita de Rick, a narrativa é lotada de sarcasmos e ironias; a começar por Apolo – Deus das artes, perfeição, profecia e cura – ser reduzido a Lester Papadopoulos, um adolescente de 16 anos, mortal, com gordura e acne jogado numa caçamba de lixo.
Pela primeira vez, o autor ousa mudar seu enredo habitual – e um pouco cansativo por tantas repetições – de heróis semideuses como protagonistas partindo atrás de uma profecia e, basicamente, sem ajuda dos deuses. Desta vez, o oráculo está bloqueado, não havendo, então, profecias para iniciar missões e muito menos heróis disponíveis. Ao colocar um deus como personagem principal, Riordan traz mais um pouco de seus livros clássicos, porém com essa torção que nos permite ter um olhar de como é ser divino e nos dá uma perspectiva diferente sobre o vilão – já que eventualmente podemos contar com lampejos de memória de Apolo.
Para os que se perguntavam sobre os sete semideuses após a guerra contra Gaia, Rick dá algumas atualizações – como Percy amadurecido se preparando para a ir à faculdade com Annabeth e Piper viajando feliz com Jason e seu pai. Não os colocar como principais foi algo inteligente, pois depois de passar tanto tempo com eles, estamos extremamente ligados aos heróis e seus futuros brilhantes. Ou seja, mantê-los perto, porém tentadoramente fora de alcance torna suas aparições ainda mais emocionantes e permite que a história se concentre em personagens que não tiveram tanto tempo no centro das atenções.
A narração em primeira pessoa caiu como uma luva e arranca boas risadas, pois vemos a completa evolução – e humanização – de Apolo ao decorrer da história. Ele é, como você pode lembrar, terrivelmente egocêntrico e hilariante por seus comentários e características anti-heroicas. Mas a medida que a história se desenrola, a profundidade de sentimentos dentro dele rapidamente se evidencia. É surpreendente pensar que o deus nos conquista logo nos primeiros capítulos, já que personagens queridos como Nico, Leo, Percy (e Bob), heróis olimpianos, só conseguiram nos cativar depois de passar cerca de mil páginas com eles.
Trazendo lembranças de A Maldição do Titã – livro no qual Apolo fica fissurado por poesias japonesas – os títulos dos capítulos são escritos com haicais, propositalmente péssimos para gerar ainda mais ironia em torno do deus das artes.
Riordan trabalha constantemente para preencher e expandir o universo de seus livros. Além do Acampamento Júpiter, o autor traz algumas referências a Magnus Chase e os Deuses de Asgard também. Lembrando-nos que, sim, esses livros estão todos conectados, mesmo que apenas pelo mais fino dos fios.
Através das habilidades divinas de Apolo, Rick carrega a narrativa com alusões ligadas à música, literatura, arqueria e medicina – como Britney Spears no VMA de 2007, Festival de Woodstock, Yoko Ono e John Lennon, Sweet Carolne, criação da coroa de louros, etc
Já que Apolo está, a princípio, desmemoriado e sem poderes, era necessário criar um personagem novo e forte para proteger e ajuda-lo em sua trajetória. A escolha foi certeira com Meg McCaffrey – a rainha do lixo – além do péssimo gosto para roupas, outras características a tornam excêntrica, como a aparição memorável salvando o dia com sacos de lixo e bananas podres, e ter poder suficiente para invocar karpos – tirando todo seu histórico pessoal, que aparenta ser essencial para a solução da trama. Semelhante a Leo Valdez, Meg destaca-se dos outros semideuses que estamos acostumados, ambos enfrentam os perigos com senso de humor e extrema força, porém sem se tornar o centro.
Como já sabemos, Rick é um amante da diversidade, e mostra isso claramente ao não deixar que a mitologia seja o único aspecto presente em seus livros. Em o Oráculo oculto, ele incorpora várias nacionalidades e etnias para tornar o Acampamento Meio-Sangue dinâmico – há uma enorme quantidade de novos semideuses, alguns até brasileiros. A questão LGBT também volta a ser abordada – e até expandida, já que em A casa de Hades, Nico apenas confessa ter tido uma queda por Percy – desta vez, temos a história de Apolo com Jacinto, e também o pensamento do deus sobre seu filho, Will, namorar Nico. O comentário franco pode soar um pouco pesado para alguns adultos, mas pode dar abertura a muitas discussões abertas com os filhos após ler este livro.
Aliás, sobre pais e filhos, podemos citar o relacionamento desenvolvido entre Apolo, Austin, Kayla e Will. Toda a cumplicidade entre eles é algo bem profundo e são essenciais para a evolução de um deus autocentrado à uma figura simpática, amiga, e, estranhamente, paterna. Quando sua prole precisa ser resgatada, ele se mostra determinado a encontrá-los, mesmo estando sem poderes e com um grande risco de ser morto. Colocá-lo nesta posição de responsabilidade é um grande passo para o autor, que geralmente mostra os deuses com poucos sinais de afeto quando se trata de suas crianças; também nos remete a aquilo que dizem sobre “pais quererem sempre o bem de seus filhos e fazerem tudo por eles”.
O antagonista desconhecido é o que chama mais a atenção, tornando-o o prato principal, pois conexões sutis, encontradas nas duas primeiras sagas, criam um vilão que pode não parecer tão perigoso quanto Cronos ou Gaia, mas é esperto e possui influência o suficiente para conspirar há todo esse tempo, estudando as possibilidades entre os semideuses e aguardando o tempo certo de atacar.
No entanto, se por um lado O oráculo oculto atrai e inova, por outro decepciona e afasta alguns leitores; Riordan insiste em reciclar ações desgastadas, assim como Percy Jackson e os Olimpianos, tem Luke como traidor e Silena Beauregard como espiã. Os heróis do Olimpo têm Octavian como servo de Gaia. As Provações de Apolo também apresenta algum semideus trabalhando para outro lado. Isso pode tornar a história, além de repetitiva, um pouco previsível para um público mais velho. Porém prende a atenção dos adolescentes entre 15 e 17 anos – que é a faixa etária indicada.
Com frases simples e curtas, a leitura flui rápido, de modo conciso e divertido. Você se encontrará rindo das piadas e se inclinando para a frente em seu assento com as reviravoltas da história. Mesmo reutilizando muitos elementos, Rick Riordan traz aos adolescentes uma história muito boa, com uma lição bem mais pessoal do que as vistas com Percy Jackson e Jason Grace; ver o mundo desta forma nos faz perceber que, enquanto os deuses sempre foram uma força um pouco distante e ameaçadora, eles têm enfrentado amor e perda tanto quanto, se não mais, do que os nossos heróis mortais. É um livro novo, com ângulos promissores de serem explorados, embora não pareça garantir muitas surpresas.
Crítica | Batman: A Piada Mortal (2016)
Em diversas obras já conceituadas, rasgar elogios à toa é uma grande redundância. Esse é o caso claro para A Piada Mortal, uma das HQs mais icônicas do Batman, resultado de uma parceria de Alan Moore – que não estava muito a fim de escrever, segundo ele – e do desenhista Brian Bolland – explodindo de ansiedade por trabalhar com um gênio dos quadrinhos, segundo ele.
É difícil descrever a sensação de ler pela primeira vez essa história poderosíssima. O nível de maestria na construção visual e narrativa é raro de se ver. Através de um trabalho puramente cinematográfico da diagramação acertada de Bolland, nos horrorizamos, surpreendemos, lamentamos e nos amarguramos graças ao fim ambíguo da obra. Inegável que se trata de trabalho de mestre.
Logo, é difícil segurar a ansiedade e expectativa a respeito do novo filme da Dc Animated que adapta a clássica história. No caso de uma história tão querida, era bastante óbvio que o estúdio precisava fazer seu filme de ouro, de qualidade inquestionável. Uma pena que isso não acontece.
O filme conta com um grande nome dos roteiros das HQs, Brian Azzarello, que foi o responsável por tornar a história mais, digamos, cinematográfica. Para isso, temos dois filmes em um como foi amplamente divulgado em tantas notícias. Como a própria Barbara Gordon conta em voz over, o filme não começa do modo que você espera.
No primeiro segmento de quase quarenta minutos, acompanhamos uma história original que tenta aprofundar a relação entre Batman e Batgirl e os impulsos sexuais que surgem durante as cruzadas noturnas. Importante citar que esse mythos que tange uma relação amorosa entre os dois encapuzados vem diretamente dos trabalhos realizados em Batman: A Série Animada. Porém aqui, Azzarello tenta levar para outro nível mais complexo arranhando a psicologia freudiana.
Em meio a tudo isso, surge um vilão extremamente genérico chamado Paris Franz. Através dele, Azzarello tenta (e falha) em criar uma espécie de Coringa para a Batgirl. Ou seja, um antagonista narcisista extremamente fissurado na moça. Com poucos personagens, a história até que se sustenta por ser divertida, mas não deixa de ser extremamente simplória. Há novamente o discurso sobre o abismo que separa a figura do vigilante do criminoso ordinário e da tentação assassina que há sobre as ações do Batman.
Para quem já leu muito sobre o Cruzado Encapuzado, o primeiro segmento realmente não oferece muita coisa nova. Mas o talento da voz de Tara Strong que dubla Batgirl aliada à algumas boas cenas cômicas, além desse olhar particularmente interessante, embora repetitivo, sobre a relação dos dois render um bom divertimento.
Então, sem qualquer transição orgânica, somos jogados para a linha clássica da comic de Alan Moore. Como muita gente sabe, o one-shot trata-se de uma história de origem para o Coringa enquanto mostra um dos lados mais cruéis e dementes do vilão. O arqui-inimigo do Batman tenta provar que a loucura pode acometer a qualquer pessoa que encarar um péssimo dia – assim como aconteceu com ele.
Muito do texto do Azzarello trata-se de uma enorme transcrição. Ipsis Literis. Então, obviamente, nessas partes os diálogos são brilhantes. Onde o roteirista adiciona elementos, acaba tornando diversas situações muito piegas como um breve diálogo entre Coringa e Jim Gordon antes do detetive entrar no trem dos horrores. Ao menos, uma alteração positiva se encontra na adição da investigação do Batman para descobrir onde Coringa se meteu – ainda que se trate de uma sequência filler que praticamente arruína a sagacidade da escrita de Moore sobre a ação do Coringa durante a sessão de fotos com Barbara Gordon.
Particularmente, para mim, não funciona, pois isso foge muito dos métodos de terror do vilão. Piorando a situação, há o dedo de produtores que parecem não compreender bem o público alvo do longa. Isso também inclui o trabalho medíocre de Sam Liu na direção.
É bizarro notar como tentam inserir sequências de ação com frequência nessa segunda parte da adaptação quando era para o trabalho ser mais introspectivo e cerebral. Temos lutas relativamente longas entre Batman e as aberrações de circo que Coringa contrata como capangas. Na HQ, os personagens eram apenas alegóricos para contextualizar o tema circense.
O diretor mais erra do que acerta, na verdade. A começar, é realmente inacreditável que a Warner Animation tenha tratado essa adaptação apenas como mais um novo desenho de sua série de filmes. Ou seja, a animação segue o exato mesmo padrão reciclado de todos os outros filmes como as duas partes de Cavaleiro das Trevas, Ponto de Ignição, Liga da Justiça: Guerra, entre outros.
Então a animação principal é até que razoável, porém os cenários são totalmente simplórios, sem graça, vida ou cor, o trabalho de iluminação é péssimo – um tiro na obra de sombreamento de Bolland na HQ – e, por fim, a animação de personagens em segundo plano é abissal, inexistente. Repare no flashback de Coringa na cena do bar com os dois criminosos, é absolutamente surreal como os demais personagens se comportam como estátuas – até a diagramação de arte sequenciada de Bolland tem mais animação que nesse filme.
Até mesmo há deslizes imperdoáveis de reciclagem de animações dentro da mesma sequência. No caso, na chata cantoria do número musical de Coringa com seus capangas bizarros. Ao menos, o traço foge um pouco daquele estilo anime que marca outros filmes animados. Claro que nada próximo do trabalho de Brian Bolland, mas uma mistura de características clássicas dos desenhos de Bruce Timm que ele injetou em tantos seriados da DC nos anos 1990.
Enquanto o diretor acerta ao copiar os enquadramentos de Bolland e Moore da HQ, é impressionante como consegue falhar miseravelmente nos raccords visuais tão presentes na obra original para viajarmos entre os flashbacks e a linha do tempo normal. Mesmo estando todos absolutamente prontos, o diretor apenas insere um, o mais sutil deles, da “mulher gorda para a grávida”. Sinceramente, fico estarrecido quanto a isso já que o trabalho de enquadramentos está absolutamente pronto porque a arte que Bolland fez é cinematográfica por si só. Era melhor ter apenas copiado e pronto.
O desfecho antológico da HQ também perde força e sua ambiguidade. Quando Coringa enfim conta a tal Piada Mortal, em mais um erro na direção de vozes – infelizmente, não é Andrea Romano quem cuida da dublagem desse longa – temos risadas tímidas de Batman e Coringa. Ou seja, aquele momento brilhante de insanidade compartilhada, de histeria cômica, é inexistente.
Chegando aos cinemas Cinemark apenas no dia 25 desse mês, o longa de A Piada Mortal é mesmo um telefilme com direito a todas as limitações da técnica de animação da Dc Animated. Obviamente, não há o que reclamar da história já que é praticamente a mesma com apenas algumas adições filler medíocres. Para Kevin Conroy e Mark Hamill só restam elogios. Impecáveis como sempre.
Apesar de todos os seus defeitos, não deixa de ser uma ótima oportunidade de atrair um punhado de novos leitores para uma história tão clássica e inesquecível. Para os fãs mais fervorosos, talvez não haja tanta graça para a mesma piada.
Crítica | Stranger Things - 1ª Temporada
A Netflix ousa no campo dos seriados. E ousa como ninguém. Há quem diga que os tempos áureos da televisão contemporânea morreram com o fim dos fenômenos Mad Men e Breaking Bad – filhos da geração revolucionária de Os Sopranos, The Wire e A Sete Palmos. Abraçando esse tipo de narrativa, o serviço quebra fronteiras com sua especialização em boas séries como House of Cards, Bojack Horseman, Marco Polo, Narcos, Demolidor, etc. Na semana passada, um dos gêneros mais convidativos para o trabalho, a ficção científica, ganhou este ótimo seriado, Stranger Things.
Praticamente saídos do mundo invertido, os muito desconhecidos irmãos Duffer capturaram o espírito da cultura de ficção científica e molecagem vindas diretamente dos anos 1980. Aqui, a proposta é escancarada: trata-se do raro, mas muito bem-vindo, trabalho exclusivo com os clichês. Então, caso você seja uma pessoa que consome muita cultura, certamente já viu esse seriado antes, mas não em uma obra só. Na verdade, em várias.
Não há como definir Stranger Things como outra coisa além de “Steven Spielberg e Stephen King Mix Tape”, pois é exatamente o que ela é. A única coisa de original que esse seriado possui é o resultado dessa mistura muitíssimo agradável. Tendo assistido vorazmente os concisos oito episódios notei um número impressionante de referências audiovisuais e literárias tanto, ocidentais quanto orientais.
Obviamente, a principal obra que guia o seriado inteiro é o belíssimo E.T.: O Extraterrestre pautando tanto as relações humanas como boa parte dos cinco núcleos dramáticos existentes. Muito do conteúdo da série vem de obras oitentistas como Tubarão, Poltergeist, Os Goonies, Conta Comigo, O Clube dos Cinco, Alien: o 8º Passageiro, Viagens Alucinantes, Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Chamas da Vingança, A Hora do Pesadelo, Scanners, O Enigma de Outro Mundo e It. Porém, isso não exclui o fato dos irmãos Duffer terem ido além e encaixado obras relativamente novas como Apanhador de Sonhos, Sobrenatural, Sob A Pele, Elfen Lied, Max Payne, Alan Wake e Os Suspeitos. Há até mesmo elementos de Janela Indiscreta e o uso do voyeurismo, além de alguns acenos ao clássico moderno Super 8, filme por si próprio muito similar na proposta de Stranger Things.
Na narrativa, acompanhamos um quarteto de amigos na pré-adolescência. Mike, Lucas, Dustin e Will sempre se reúnem para jogar Dungeons and Dragons. Após uma das casuais partidas de apenas dez horas, Lucas, Dustin e Will partem para suas casas durante a calada da noite tranquila da cidadezinha de Hawkins. Tomando o caminho próximo à densa floresta, Will sente que alguém o persegue. Já desesperado e tendo confrontado seu perseguidor, o garoto corre para sua casa. Porém seus esforços são inúteis já que ele resiste a algo muito mais poderoso, algo que não pertence a esse mundo. Sem saída, Will é sequestrado pela estranha criatura.
Com o sumiço do garoto, sua mãe, Joyce, une forças com o delegado degenerado e cético para tentar encontrar Will. Porém, notando que não se trata de um sumiço como qualquer outro, Joyce trilha um caminho cada vez mais perigoso e surreal. Já o trio de amigos acaba encontrando uma estranha garotinha chama Onze. Ainda desconhecendo os poderes telecinéticos na menina, o trio parte em busca de seu amigo desaparecido enquanto tentam descobrir o misterioso passado de Onze.
Como já dito, os irmãos Duffer realmente comportam seu roteiro como se fosse um enorme liquidificador de referências adicionando elementos de inúmeras obras. Logo, reclamar que o seriado é cliché é o mesmo que condenar a água por ela ser molhada. Isso também não quer dizer que a qualidade do trabalho é inferior por não ser original. Na verdade, é esse o ponto crucial de Stranger Things: fazer algo de qualidade trabalhando com conceitos vastamente conhecidos para seu público alvo.
Nisso, os Duffer acertam em cheio: tanto como capturar o sentimento nostálgico que essas histórias trazem assim como trabalhar com firmeza em uma narrativa rápida, sem delongas e bastante concisa em seus personagens. Os cinco arcos se desenvolvem com clareza e muita lucidez por um simples motivo: mesmo clichés, os roteiristas não insistem necessariamente em dramas já muito batidos. Por exemplo: a dúvida sobre o desaparecimento de Will ter sido causado por fatores sobrenaturais é rapidamente sanada em um episódio. Logo temos focos separados, crentes na existência do monstro, trabalhando para encontrar o menino caminhando até a união completa no clímax. Aliás, rapidez certamente é o lema dos Duffer, pois usam e abusam de diversas conveniências narrativas para fazer a trama avançar avidamente.
O melhor núcleo, evidentemente, é o que acompanha as crianças e Onze onde reúne toda a esfera ingênua, escolar, dos laços de amizade e do primeiro amor – muita coisa vem de E.T. e Os Goonies. Graças aos diálogos deliciosos e piadas que tornam a atmosfera da série mais light, o quarteto consegue segurar todas as cenas aliada à excelente performance do elenco-mirim. Em particular, a atuação de Millie Bobby Brown, a Onze, é a mais envolvente por conta da limitação de fala da personagem. Ou seja, tudo o que a garota sente tem que ser bem enfatizado pela linguagem corporal adequada e expressões faciais cuidadosas.
Graças a performance monstruosa de Winona Ryder, todo o arco envolvendo os esforços de Joyce é extremamente interessante. Os Duffer acertam por fugir um pouco do convencional. Inserem diversos elementos sobrenaturais no drama intenso vivido pela personagem injetando todas as referências possíveis à Poltergeist. Dele, abre-se as narrativas que acompanham o detetive da cidade e de todo o conflito entre os adolescentes.
No caso do detetive Jim Hopper, muito de sua narrativa é segurada pela investigação e através da interessante relação com Joyce. Custa bastante para o personagem crescer em termos de substância, porém tudo ocorre dentro dos parâmetros clichês da série. Diversas pistas são oferecidas para mostrar que o passado do detetive é pouco agradável escondendo algum trauma. Aliás, tanto com ele quanto com Onze, o uso de flashbacks é bastante intenso.
Os de Onze são os mais interessantes, apesar de bastante vazios. Como boa parte do mistério da relação do monstro com a menina é previsível, as revelações dificilmente oferecem grande impacto. Aliás, a mitologia envolvendo o monstro toma bastante a referência de Enigma de Outro Mundo, pois o uso do ponto de vista do mundo invertido é pouco utilizado.
Nessa troca de personagens, entra o núcleo dos adolescentes encabeçado pela irmã de Mike, Nancy, e com o irmão de Will, Jonathan. Os Duffer tentam fazer uma espécie de trabalho de desconstrução dos estereótipos muito similar com o trabalho de John Hughes em O Clube dos Cinco. Certamente se trata de uma das subtramas mais fracas, porém o romance aliado ao bullying ajudam a sustentar seu interesse até os personagens unirem forças para encontrar o garoto desaparecido. E é justamente nele que há o pior desfecho de toda a série.
Além de Will, outros personagens desaparecem, levados pelo monstro para o mundo invertido. Durante o epílogo, a repercussão do fim de uma personagem com alguma importância para Nancy é totalmente pífia e fora da realidade proposta pelos roteiristas que insistem em inserir a preocupação paterna sobre os filhos ao longo do seriado. Destoa demais, é surreal, além de ser um tratamento bastante porco para as horas de jornada que o espectador encarou. Nem mesmo com Nancy, o elemento se ajeita de modo mais apropriado. O relacionamento amoroso da personagem também é encerrado de modo apressado.
Então, enfim, temos a última concentração narrativa de relevância. Esta que se relaciona diretamente com Onze. Se trata de uma organização secreta que a persegue após sua fuga nunca esclarecida para o espectador. Este, claramente é o pior núcleo do seriado. Cumpre o papel de antagonistas filler que sempre ajudam a atrasar o desenvolvimento da narrativa. O uso deles é tão pouco inspirado que praticamente não há diálogos envolvendo suas cenas. Não há nem mesmo um payoff final de relevância. É pura e simples perda de tempo que só serve para responder uma questão. Além disso, a explicação fornecida para a origem dos poderes de Onze é uma das mais insatisfatórias que já tive a tristeza de conhecer.
Como podem perceber, o texto de Stranger Things é sim ótimo. A história te mantém sempre interessado com o ritmo sadio de reviravoltas, mas nada faria ela brilhar tanto caso não fosse o excelente design de produção, além da direção praticamente impecável dos Duffer e de Shawn Levy – apenas no último episódio que há típicas trapalhadas de diretores entusiasmados demais com a obra.
A começar, é bem óbvio que os cuidados com direção de arte são realmente impressionantes. Eles capturam o espírito oitentista cheio de adornos afetados com neons, pôsteres de filmes clássicos contemporâneos para a época, papeis de parede, carros, equipamentos eletrônicos, jogos de tabuleiro, telefones, mobília, tecido, vestuário, absolutamente tudo é crível e encaixado com muitíssimo cuidado fazendo as distinções necessárias entre os estilos de um personagem e outro.
Até mesmo há, graças aos bons senhores do audiovisual, metáforas visuais que casam com o o drama dos personagens. Claro que o principal trabalho é com Joyce. Não só o design de produção que lentamente deteriora a casa conforme o desespero da mãe se torna mais agudo, assim como a fotografia absolutamente excelente – vejam esse seriado em 4K se possível - de Tom Ives.
O cinematografista também acompanha os rumos tenebrosos que a personagem toma conforme cresce a latência de seu horror. A casa antes pouco iluminada, fica cada vez mais sombria, adquirindo somente luz, cor e vida quando o menino se comunica com ela através das lâmpadas de Natal. Já em outros termos de concepção visual, os Duffer se apropriam muito do trabalho de Sob a Pele e E.T.
Porém, para quem tenta mimetizar tanto a técnica de Spielberg na forma cinematográfica, eles falham muito em dois pontos: o uso raríssimo de planos sequência e de reaction shots. De resto, a linguagem visual é bem competente. O preparo de cena é sempre muito adequado conseguindo tirar todas as emoções que a encenação busca afetar.
Fora o trabalho muito elegante com o elenco, incluindo as crianças, os Duffer brilham num ponto que poucos diretores andam arriscando ultimamente: na infame e perigosa montagem paralela. Na série, são várias, mas duas delas atingem o ápice do brilhantismo. Uma por unir situações similares por contrastes dispares e linhas temporais diferentes – oferecendo até mesmo o momento de catarse – e outra, a melhor, envolvendo um contraste de situações discrepantes entre o horror e o conforto.
Mesmo assim, com tantas jogadas ótimas de encenação e montagem, outro ponto muito a ser elogiado é no uso da trilha musical. Seja com a excelente metáfora com Should I Stay or Should I Go para representar todo o dilema que envolve a família de Will ou com tantas outras músicas épicas dos anos 1980 como Elegia de New Order. Os gêneros musicais passeiam através da deliciosa jornada trazida no seriado.
O único escorregão técnico do seriado fica mesmo por conta da realização de animação e textura gráfica para o monstro. Enquanto é mostrado em relances ou através da escuridão, os efeitos funcionam e bicho realmente assusta. Porém, no ápice, toda a sutileza vai embora para escancarar um ser que não chega perto das realizações atemporais dos animatrônicos de John Carpenter em Enigma de Outro Mundo.
Sei que hoje em dia investir tempo para um seriado é algo muito custoso. Eu mesmo me encontro em diversos desses dilemas e até admito que arrisquei ver a Stranger Things por conta da sua duração relativamente curta – oito episódios que raramente chegam aos 50 minutos. Grata surpresa que foi, pois não sabia de nada que envolvia a narrativa ou o longo tributo ao gênero de ficção científica e de diversos filmes dos anos 1980. Se é fã do gênero e dos saudosos longas com elencos juvenis fantásticos, não há obra melhor para se ver agora. Melodrama, suspense, diversão não faltam aqui.
Com toda certeza, os irmãos Duffer pavimentaram seu caminho saído da escuridão rumo ao sucesso imediato. Agora só resta aguardar para ver se o talento se sustenta na segunda temporada. Particularmente, eu aposto muito que sim.
Stranger Things - 1ª Temporada (EUA, 2016)
Criado por: Matt Duffer e Ross Duffer
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Andrew Stanton, Rebecca Thomas
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, Justin Doble, Jessie Nickson-Lopez, Paul Dichter, Jessica Mecklenburg, Alison Tatlock, Kate Trefry
Emissora: Netflix
Episódios: 8
Gênero: Aventura, Suspense, Ficção Científica
Duração: 55 min aprox
Crítica | Guerra Civil 2 #3
Aviso: Esta crítica contém spoilers
Um quadrinho que começou com muitas promessas finalmente começa a ganhar tração. A edição 3 tem início em um julgamento. Os participantes mostrados são Tony Stark, Carol Danvers e Matt Murdock, como advogado de um outro membro não revelado. A sessão se refere aos acontecimentos que levarão os heróis de encontro com Bruce Banner, em seu laboratório secreto.
Maior austeridade
Esta mudança de tom e linearidade são bem vindas para o quadrinho, que tinha até então seus heróis em uma escalada de decisões precipitadas. Brian Michael Bendis tem muita capacidade em diálogos quando o assunto diz respeito a tribunais de justiça. No entanto, não sobra espaço para os costumeiros diálogos inteligentes e rápidos. Temos mais austeridade e um clima sério que permeia todo o quadrinho.
Acompanhando o desfecho da edição número 2, onde Ulysses têm uma visão onde todos os heróis são mortos pelo Hulk, Carol Danvers e o resto da equipe fazem uma visita supresa a Bruce Banner. Eles estão preocupados com o tipo de pesquisa que ele está desenvolvendo e seu potencial para lhe transformar em Hulk. Novamente, temos uma linda splash plage mostrando todos os heróis envolvidos na história até agora, juntamente com uma força de operações da SHIELD.
Apesar de ser uma bela imagem composta por David Marquez e Justin Ponsor, é difícil encontrar qualquer sentido ou motivo para o Deadpool ou o Velho Logan estarem ali. Algo que começa a incomodar na arte do quadrinho é a forma que Marquez e Ponsor parecem "beatificar" seus personagens. Explico: em muitos quadros, heróis são retratados com um rosto quase que angelical. Tanto em pose quanto em olhar, com a desnecessária adição de uma iluminação ao fundo que se assemelha a uma auréola.
O objetivo com essas luzes e desenhos é gerar empatia no leitor. É uma imagem que nos faz pensar que ele é inocente, ou pelo menos, agiu na melhor das intenções. Esta mesma tática estava sendo utilizada com Ulysses nas edições 1 e 2. É difícil julgar a necessidade desse "truque". De certa forma, as conclusões a respeito da integridade dos personagens são mastigadas, sem deixar em aberto para julgamento. Essa forma de enquadramento se repete ainda por outras vezes na edição, o que parece exagerado.
Vingador versus Vingador
A história continua seu desenvolvimento alternando os acontecimentos entre a área externa ao laboratório de Bruce e o julgamento. Este último, um prenúncio de que algo muito errado aconteceu.
Quando confrontado sobre os experimentos que está fazendo em si mesmo com células gama, Bruce discute com os heróis. Em um momento onde ele se irrita com as acusações, uma flecha o atinge em sua cabeça. Bruce Banner, o incrível Hulk, cai morto no chão. Da floresta, surge o assassino: Clint Barton, o Gavião Arqueiro.
Os motivos
Voltamos à cena do julgamento, onde então nos é revelado que o réu é Clint Barton. Ele admite ter recebido a flecha do próprio Bruce Banner com um pedido: em caso dele estar prestes a se transformar, Clint deve disparar o tiro de misericórdia para evitar mortes. Clint é imbuído dessa tarefa porque ele seria o único com a visão capaz de detectar a pequena transformação na íris do olho de Bruce instantes antes dele virar o Hulk.
Nesse ponto, é importante ressaltar que Brian Michael Bendis toma muitas liberdades com relação aos heróis. Uma delas, por exemplo, é que o Hulk já estava controlado pelo Bruce, nas histórias de "Totally Awesome Hulk". A radiação gama havia sido absorvida por Amadeus Cho, que se transformou no mais novo gigante esmeralda.
Um outro problema é a relação um pouco conveniente entre Bruce e Clint Barton. A desculpa que Banner dá para explicar porque ele escolhe o Gavião Arqueiro é, no mínimo, um insulto ao personagem. Mesmo que Clint reconheça o insulto e demonstre surpresa com o pedido, ficou um pouco fora de seu personagem. Clint se divorciou de sua esposa porque ela matou, sem necessidade, o homem que a havia estuprado.
Apesar de que esta já seja a segunda morte na saga (Jeniffer Walters não foi dada como morta oficialmente) e que fique a impressão no leitor que ela seja barata, a morte de Bruce Banner pelas mãos do Gavião Arqueiro é o que coloca Guerra Civil 2 e seu tema em relevância (finalmente).
Recentemente, os Estados Unidos têm encarado instabilidade social no que diz respeito à policiais utilizando excesso de força em situações tensas envolvendo pessoas negras. Alton Sterling, de 37 anos, sendo a mais recente dessas polêmicas, na cidade de Baton Rouge em Louisiana. A nacão se divide sobre questões de raça, treinamento dos policiais, testemunhas do que realmente houve, câmeras, etc... Discussões em torno do acontecido tomam jornais e integrantes de movimentos como o Black Lives Matter inundam as ruas em diversas cidades do país em manifestações.
Conclusão
Em se tratando de um tema como este, a comparação é simples mas pertinente. Em caso de uma situação extrema, em quem confiar? Era necessária a morte de Bruce Banner ou existiam outros meios para deter o Hulk? O quadrinho conclui com o juíz prestes a dar o veredito de Clint e com Friday, a inteligência artificial de Tony Stark que cuida do sistema operacional de sua armadura. Esta última, informando ao Tony que descobriu como funcionam os poderes de clarividência do inumano Ulysses. Esse gancho no fim da história consegue gerar antecipação pela próxima edição, ao mesmo tempo em que promete um tremor no status moral do conflito.
Bendis consegue, finalmente, colocar a história não só sob espectro político, como também cria finalmente o desastre que divide os Vingadores e ainda insere o governo com o julgamento de Clint. Todos estes três itens até então faziam uma falta tremenda para a história. Guerra Civil 2 passa a ser relevante.
Crítica | A Lenda de Tarzan
O célebre historiador inglês Paul Johnson descreve o Congo belga – em sua monumental trajetória do século XX, Tempos Modernos – como uma “vasta, valiosa e primitiva” região em pleno impulso econômico pouco antes da independência (1960), com um índice de leitos de hospital por habitantes maior que o da própria Bélgica e altas taxas de alfabetização – em momento imediatamente anterior à onda de populismo de políticos profissionais como Patrice Lumumba, o qual tão bem caracterizaria o caos africano pós-colonial.
Nada disso interessa a David Yates e seu A Lenda de Tarzan, uma superprodução de 180 milhões de dólares com jeito de franquia, mas pretensão de discurso ideológico tendo por objeto os conflitos ocasionados pelo colonialismo, mais de meio século antes. Yates é um experiente diretor de fantasias da saga Harry Potter e sofre para dar nova roupagem ao velho enredo de aventuras do casal Tarzan e Jane, do escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs, especialmente tentando encaixar uma linha paralela composta pelos flashbacks que explicam as origens da lenda e do caso de amor entre uma criança criada pelos gorilas e uma garota “empoderada” do final do século XIX. É inclusive esse “acréscimo” de explicações que torna a metragem do filme ligeiramente exagerada, com quase duas horas que poderiam ser diminuídas sem prejuízo do espetáculo ou mesmo da compreensão da trama, desnecessariamente confusa em seu início.
Para levar adiante o interesse de representantes traiçoeiros da Bélgica na África, Leon Rom (Christoph Waltz) consegue atrair dissimuladamente John Clayton (o Tarzan, Alexander Skarsgård), sua esposa Jane (Margot Robbie) e o mercenário veterano George Washington Wlliams (Samuel L.Jackson) para uma expedição ao Congo que se revela uma armadilha motivada pelo desejo de vingança do Chefe Mbonga (Djimon Hounsou), decorrência esta de um incidente ocorrido há anos, quando Tarzan ainda vivia no continente.
O maior problema de um filme como “A Lenda de Tarzan” reside numa contradição fundamental: sua aversão mórbida à “civilização” (ocidental, burguesa, cristã) está em permanente contradição com o fato de ser o cinema, possivelmente, a mais “civilizada” das linguagens artísticas, dificilmente replicável em sociedades primitivas. Sem civilização, não temos cinema (ou especialmente “indústria de cinema”, da qual o próprio filme é um representante óbvio e grandiloquente). A hipocrisia da abordagem fica escancarada ainda quando, por exemplo, a produção opta por vestir o Tarzan com pouca roupa, mas manter a Jane sempre bem coberta (escolha esta que nada tem de “selvagem”, na falta de melhor definição).
Sutileza não costuma ser o forte de um filme que não suporta ser simplesmente um passatempo milionário, mas quer também ser “político”: a trama praticamente é aberta com o close de um simulacro de crucifixo, que mais tarde terá importância prática (e reveladora). Enquanto repete mais uma vez o papel de vilão sarcástico que o projetou em “Bastardos Inglórios”, Christoph Waltz simboliza o típico canalha imperialista, ladrão de riquezas e falso religioso. Símbolos da liturgia católica, aliás, são hoje um dos segredos de Polichinelo de uma Hollywood varrida por agnosticismo: nos filmes, são invariavelmente falsos, truques para ludibriar e trapacear. Há espaço em blockbusters como este para todo tipo de crença (em governos, na imprensa, na utopia revolucionária, na empatia natural entre tribos selvagens), exceto a cristã, que surge sempre como uma simulação vazia de significado.
Waltz não é o único ator que se repete no filme, nem tampouco o que reproduz uma espécie de caricatura moldada anteriormente por Quentin Tarantino. O personagem de Samuel L. Jackson (um veterano da Guerra Civil norte-americana em improvável crise de consciência) é também uma repetição confortável do que ele fez anteriormente (em “Os Oito Odiados”, por exemplo), aparentemente inútil para o desenrolar da trama propriamente dita, mas justificada pelo discurso que o filme pretende apresentar.
Num mundo do entretenimento sufocado pela tirania do discurso politicamente correto, onde mobilizações em redes sociais podem comprometer um investimento de centenas de milhões de dólares após um tolo descuido de criação, seria perigoso tornar este novo Tarzan num mero conflito racial entre brancos e negros, por exemplo. Para deixar claro que não é esta a motivação política do filme (mas outra, ligeiramente diferente), o personagem de Jackson representa consciência atormentada diversa (não a do branco, mas a do explorador atemporal civilizado diante da selvagem natureza que explora).
O roteiro de “A Lenda de Tarzan” teria diversas opções para dramatizar o colonialismo, podendo falar da escravidão, do tráfico de marfim, da tirania contra os nativos ou do roubo de pedras preciosas. Na dúvida, ele opta por falar de tudo, o que não deixa ao espectador a menor oportunidade de respirar (e pensar por conta própria). Waltz é branco, é europeu, é vilão. Ele é, especialmente, “civilizado”, e a cena em que arruma os talheres usados sobre o prato sublinha este elemento até exauri-lo. Católicos por sua vez aparecem como falsos e, eventualmente, pedófilos (conforme insinua um diálogo entre o personagem de Waltz e Jane, interpretada discretamente por Robbie).
Contra a civilização (que é, no filme, irremediavelmente má), há o “bom selvagem humano” (em anódina presença de Alexander Skarsgård), o mero “selvagem humano” (nem bom, nem mau, representado pela tribo desonrada e que faz um acordo com os brancos invasores) e o simplesmente “selvagem” (os animais, um espetáculo particular de animação e material para as encantadoras cenas da selva). Não existe o “mau selvagem” no universo proposto pelo filme, ou ao menos tal questão não é problematizada.
É curioso, contudo, como o que predomina na ação é o amor romântico em sua versão bastante civilizada (e burguesa) entre Tarzan e Jane, em momentos quando o discurso ideológico relativamente barato (porque simplificador) dá espaço aos personagens em sua dimensão mais humana e menos “social”.
Visualmente, o filme oscila no hoje habitual conflito formal das grandes produções de Hollywood: cenas com vasta composição digital por vezes “brigam” com cenas com atores e cenários reais. Os piores momentos desse conflito são, contudo, reduzidos, como no PV de “videogame” em que a animação simula movimentos virtualmente impossíveis para uma câmera de cinema, realçando seu artificialismo. Os planos gerais funcionam muito melhor, ademais, que os closes onde o efeito revela-se facilmente – na mão de Tarzan que lembra a do personagem Hulk em outra franquia e quebra o realismo que, por outro lado, seria mais facilmente mantido confiando-se em recursos cinematográficos óbvios.
Da mesma forma, o recurso do 3D é, aqui, pouco eficiente, ficando em muitos momentos esquecido a ponto de passar despercebido. Os realizadores acabam confiando pouco em suas ferramentas cinematográficas mais elementares – fotografia e edição (as quais, quando bem usadas pela direção, resultam em momentos de preciosa composição, como na cena de abertura ou nos detalhes de “iluminação natural” nas externas) para colocar muitas fichas em C.G.I. e 3D quando estes seriam até mesmo dispensáveis. Nunca é demais chamar atenção para o extraordinário trabalho dos editores de som na indústria, desenvolvendo e exercitando sua mágica arte de criar ambientação e estimular sensações em elaborada mixagem.
Um filme como “A Lenda de Tarzan” inevitavelmente comunica-se, na história do cinema e no imaginário do espectador, com clássicos recentes como “O Rei Leão” (1994), “King Kong” (2005) e “Avatar” (2009), realimentando o folclore do “bom selvagem”, usurpado pelo “homem civilizado”, ganancioso e violento. Nesse sentido, o filme é mais tolo que um delírio voluntariamente leviano como o “Canibais” (2013) de Eli Roth, que zomba desse autoengano – vejam só, que ironia – também típico do mundo civilizado: buscar na natureza uma inocência perdida.
Enquanto “A Lenda de Tarzan” e seus congêneres optam pela fantasia para supostamente discutir política e história, títulos aparentemente vulgares como o Green Inferno de Roth dão um choque de realidade no espectador, tornando o que seria uma sessão de cinema banal num exercício incômodo de autorreflexão (o que o filme de Tarzan impede através da música sempre presente e do histrionismo de sua “mensagem”).
Se você quer uma sessão de cinema pautada pelo deslumbramento tecnológico e oferecida com o máximo de profissionalismo que a produção de ponta dos estúdios pode atingir, “A Lenda de Tarzan” pode ser uma boa pedida. Mas cuidado: cineastas muito satisfeitos com seus próprios recursos (proporcionados pela civilização ocidental) costumam ser péssimos conselheiros quando o assunto é política e história.
Crítica | Batman: A Piada Mortal
Deixe-me propor um desafio para você, leitor. Tente, por mais de 1 minuto, olhar para a capa da graphic novel da qual aqui escrevo, seja a do seu exemplar ou da imagem acima bem renderizada e ampliada no Google, observando todos os detalhes e cores enquanto pensa a respeito de tudo o que sabe sobre o vilão e fique indiferente. Não conseguiu, certo? Isso é porque Alan Moore e Brian Bolland são gênios e vamos descobrir o motivo abaixo.
A HQ se inicia com quadros de poças d'água formadas pela chuva, com o Batmóvel se aproximando passando por cima delas, interrompendo seu ciclo natural de acumulação de gotas e a ordem ali estabelecida, vemos que o Batman foi para um asilo fazer uma visita a um dos internos. Interessante notar uma plaquinha na mesa da administração com os dizeres "você não precisa ser louco para trabalhar aqui - mas isso ajuda!". Temos um vislumbre de Harvey Dent com a devida placa de identificação em sua cela e partimos para outra cela de um personagem que todos conhecem mas que não sabem de seu verdadeiro nome, o Coringa. Na mesma placa consta-se "identidade desconhecida".
Batman entra nessa cela escura e encontra alguém jogando com as cartas. Ele diz que veio conversar a respeito de sua relação com ele, sobre o que vai acontecer com os dois no fim. Vão matar um ao outro? Batman alega que apenas gostaria de estar certo de ter tentado realmente mudar as coisas entre eles, só uma vez. A primeira decepção do Morcego nessa história, acontece. Não é o Coringa presente ali, é um farsante, o Coringa fugiu. A tentativa de diálogo foi inútil. As sombras que ocultavam o rosto de ambos os personagens não se encontram mais presentes.
Desde o início já somos levados a crer que a ordem será interrompida e ninguém melhor do que o Coringa para isso. O fato do herói ir procurar o vilão demonstra o cansaço do Morcego após todos esses anos de embate e revela um lado mais humano do personagem que busca um fiapo de nuance de que o vilão poderia vir a melhorar. Em todos esses anos de história que li do herói, algo ficou bem claro para mim em relação a esses dois: ambos se admiram. Um tenta puxar o outro para o seu lado. Aqui, isso é comprovado. O Batman reconhece a inteligência e o potencial do Coringa e tenta convertê-lo, ele se enxerga nele com o reflexo invertido, por isso a decepção comentada acima é tão forte e determinante para o que virá.
Na página seguinte, o jogo de sombras desaparece para dar lugar a cores mais vivas e vibrantes. É mostrado o Coringa feliz numa negociação de um parque abandonado. É de conhecimento geral que um parque é um local alegre, festivo, colorido, com shows e eventos, uma receita para a diversão e exercício do lazer. Um parque abandonado espalhafatoso, feio e com brinquedos que poderiam facilmente machucar uma criança é essa imagem invertida.
Surpreendentemente, a próxima página nos mostra pela primeira vez na história dos quadrinhos, flashbacks da vida pregressa do famoso vilão. Com cores mortas, um homem chega em casa decepcionado com sua performance numa exibição teste de piadas e desabafa com sua mulher, está extremamente amorosa e atenciosa, logo mais tendo um ataque de raiva. Nesses quadros descobrimos algumas coisas: já podemos identificar ali um homem volúvel, porém religioso e de valores que se preocupa com sua esposa e com seu vindouro filho, e que nega com todas as forças que esses preceitos são uma grande piada. As únicas cores não mortas na página são o vermelho (da comida na mesa, camarão ou qualquer outro fruto do mar?) e o laranja da luz que não cumpre a sua função para o leitor visto que os feixos desta não fazem efeito nos objetos apáticos do quadro.
Próxima página e vemos o protagonista continuar a se lamentar enquanto percebemos o grande afeto que sua mulher sente por ele (independentemente de estar ou não empregado). A sra. Burkis aparece colorida quando a esposa faz um comentário esperançoso a respeito de sua pessoa. Terminamos essa passagem do flashback com ela comentando que seu marido sabe fazê-la rir. Nesse quadro em específico o homem aparece sorrindo e percebemos isso através do reflexo no espelho enquanto aproxima sua mão a sua mulher, no quadro seguinte percebemos o reflexo do Coringa com a expressão inversa aproximando sua mão de um brinquedo quebrado de um palhaço sorridente. Genial, não? Em seguida, vemos o vilão fritar o negociante com seu velho truque do “aperta aqui” em dos brinquedos deixando-o branco, com os olhos esbugalhados e um sorriso.
Aqui, Moore nos faz criar expectativas para o que está por vir em ambos os lapsos temporais. Porque Coringa comprou um parque? Como o homem irá se transformar no Coringa? É incrível como o flashback é inserido no momento exato de contraste. Prestes a dar início a um plano nefasto, temos um vislumbre de como tudo começou, de quem era aquele indivíduo despertando imediatamente a extrema curiosidade do leitor que já se encontra imerso.
Acompanhamos uma investigação do Batman na Batcaverna a respeito do Coringa e um interessante diálogo com Alfred sobre como ser possível duas pessoas desconhecidas se odiarem tanto. Ainda mais depois de terem se encontrado várias vezes.
Mas nada poderia preparar o leitor para os quadros seguintes, que não somente marcariam para sempre a história da trajetória do Batman nos quadrinhos como toda a história do ramo. Gordon e sua filha Barbara (com as cores mais fortes da página) estão conversando enquanto se mostra enfezado por todas as vezes que o Coringa escapa tendo sido preso. Ele, como homem religioso, pede a Deus que nada de ruim aconteça. A campainha toca. Gordon revive as memórias da primeira vez que o Batman e o homem que viria a se tornar o Coringa se encontraram.
Barbara complementa dizendo que ficou com medo quando era criança após o pai o descrevê-lo, gerando pesadelos. Atendendo a porta, o Coringa, com um sorriso, uma vestimenta despojada, uma arma apontada, aparece. Um quadro é dedicado ao rosto horrorizado de Barbara. Após um tiro na espinha, Barbara cai na mesa de vidro. Gordon não sabe como reagir e o Coringa sabe exatamente como, achando graça da situação contando suas infames piadas. Ela, agonizando, pergunta o motivo do palhaço estar fazendo aquilo e obtém como resposta um simples “para provar uma coisa”, “saúde ao crime”.
Voltamos aos flashbacks e vemos o quão o homem foi fraco ao planejar em companhia de mais dois sujeitos, um assalto frente a situação lamentável da qual se encontrava. Descobrimos também que o homem era assistente de laboratório, trabalho do qual ele mesmo descreve como “muito bom”, julgando como errada a decisão de tentar ser comediante vulgo a falta de talento que lhe rendeu fracasso, este que o levou a decisão de topar fazer parte de um ato criminoso. Os valores do personagem ainda são visíveis. Os dois sujeitos necessitam da ajuda do homem para visitarem a fábrica de baralhos através da indústria química em que ele trabalhou como assistente e lhes dão um capuz vermelho para ser usado como disfarce durante o ato.
Se algo desse errado, o notório criminoso Red Hood seria culpado. O homem parece receoso, mas os sujeitos o pressionam ainda mais fazendo-o ceder de vez enquanto profere palavras otimistas sobre seu futuro. Fora o capuz, a única coisa que aparece colorida nessas duas páginas de flashbacks é a comida na mesa dos três, certamente camarão (a mesma presente no flashback anterior?), que fecha a página por sinal ao tempo que o personagem conclui que “nada será como antes... nunca mais! ”, olhando fixamente para a comida. Simbólico.
Certamente quem leu a graphic sem saber que isto iria acontecer, tomou um choque. E não é para menos. O tiro foi tão marcante e decisivo que, mesmo sendo uma obra isolada da cronologia oficial, o evento foi incorporado à ela permitindo a atuação da Oráculo no Universo DC. Virou canônico. O game Batman Arkham Knight já se aproveitou dessa situação para recriar a icônica cena em uma das passagens da campanha e há fortes indícios do evento ser adaptado no Universo Cinematográfico da DC também, a começar pelo Coringa fortemente inspirado na versão aqui presente.
Batman, no hospital, ouve do doutor que as pernas de Barbara foram inutilizadas e que ela passará o resto da vida numa cadeira de rodas, por seguinte, descobre que ela fora encontrada despida pela amiga e tem ciência de umas fotos tiradas pelo vilão. Em sua segunda decepção, amassa uma carta de baralho (um coringa) e pede para ficar a sós com Barbara. Ela acorda em pânico insinuando que fora estuprada (isso realmente fica implícito na história) ao afirmar que o palhaço passou dos limites dessa vez.
Gordon, que havia sido capturado, é despido no parque do Coringa por pequenos homens fantasiados que o tratam como animal na coleira e o levam até o vilão. No trajeto, ele comenta estar vivendo um pesadelo (a última coisa que Barbara disse ter tido antes de abrir a porta para o vilão). “O que estou fazendo aqui? ” diz Gordon, “está ficando louco” responde o Coringa. Um excelente diálogo sobre o passado e a memória acontece após Gordon dizer que se recorda do ocorrido a pouco com Barbara, com o palhaço afirmando ser perigoso se lembrar das coisas, que o passado é um lugar cheio de ansiedade, o pretérito imperfeito, que memórias são traiçoeiras, vis, repulsivas e brutais e podem revelar tanto coisas boas como sombrias, escuras e frias (trazendo a tona coisas que melhor seriam se fossem esquecidas) e conclui dizendo que não podemos viver sem elas visto que a razão se sustenta nelas.
Sendo a negação do passado, também a negação da razão. Porém, ele também diz que ninguém nos obriga a ser racionais, afirmando que não existe cláusula de sanidade. Se referindo ao brinquedo que Gordon está prestes a entrar, o vilão pede que quando ele estiver dentro de um desagradável trem de recordações, seguindo para lugares do seu passado onde o riso é insuportável, para se lembrar da loucura, que ela é a saída de emergência (assim como foi para ele), que ela o libertaria do passado sombrio que ficaria preso dentro das portas do brinquedo, para sempre.
Em outro flashback, dois policiais entram no estabelecimento que se encontra o homem, que por sua vez diz aos parceiros de crime que mentiu para sua esposa. Os policiais se aproximam e o chamam para fora dando a notícia do falecimento de sua esposa por um acidente doméstico por curto-circuito testando um aquecedor de mamadeiras (será que se o homem estivesse em casa isso teria acontecido?). Ele, arrasado e com a memória de mentir como último ato para ela, conta a notícia aos parceiros que alegam sentir muito, mas não aceitam sua desistência do esquema planejado para aquela noite, obrigando-o a ceder novamente. Nada nessas duas páginas de flashback recebe a coloração mais viva (fora o letreiro do estabelecimento), ou seja, nada de luz, nada da comida vermelha, nada é como um dia foi.
Interessante notar que logo após Gordon entrar no brinquedo, ato que supostamente iria ser o ponto de virada do personagem, somos brindados com o flashback do ponto de virada do vilão que perde toda sua motivação quando descobre que não há nada mais para pelo que lutar ao receber a notícia de sua esposa. Moore constrói um personagem carregado de tragédias mostrando como futuramente a criação delas seria seu maior objetivo enquanto Bolland sintetiza tudo em um dos melhores jogos de cores em uma HQ do Morcego.
Voltamos para Gordon no brinquedo. Enquanto Coringa canta uma canção sobre rir diante da tragédia, algo que ele não fez ao receber a notícia de sua esposa, Gordon observa imagens de sua filha (aqui novamente é insinuado o estupro) nua em um telão agonizando forçando o comissário a gritar seu nome enquanto se desespera. O vilão finaliza a canção com os dizeres "como é bom ser louco”, indicando seu prazer em sentir graça do caos ao contrário dos sãos.
Batman, furioso, investiga o paradeiro do Coringa até tomar ciência do parque, partindo para o local. Gordon atravessa as portas ao final do passeio do brinquedo, estas que supostamente trancariam o passado, enquanto Coringa espera que ele saia libertado, louco. Decepcionado ao ver o comissário calado ele manda seus capangas o colocarem na jaula para refletir sobre a vida e toda sua injustiça, para dar tempo a loucura.
Retornamos aos últimos flashbacks. O homem se lamenta por sua esposa mas veste o capuz e a capa vermelhos dados por seus parceiros para iniciar o ato criminoso. Um segurança observa os invasores e chama reforços causando a morte dos dois sujeitos durante um tiroteio. O homem tenta fugir, mas Batman chega (ainda iniciante pela reação dos policiais) e fica frente a frente pensando ser o Capuz verdadeiro. Em desespero, ele fala consigo e questiona o que fez para merecer tal punição da vida e avisa ao Batman que se ele se aproximar, iria pular do local alto de onde estava.
Dito e feito, cai num local de despejamento de ácido causando coceiras e ardência e observa o efeito na nova coloração branca de sua pele (que também modificou a cor de sua vestimenta e de seu cabelo) e simplesmente enlouquece começando a rir incansavelmente, algo que não havíamos visto ele fazer antes. Ali, o homem se torna o Coringa e pela primeira vez podemos observar a totalidade de expressões no último quadro do flashback que foca em seu rosto. Não há mais somente a cor vermelha do capuz nos quadros, e sim a cor verde, roxa e o vermelho de seus lábios e olhos. O homem não está mais morto, já que para ele, a loucura o fez se sentir vivo como as cores.
Pronto, o dano está feito e o vilão existe. A personificação do caos em uma arte de risada. E como esse último flashback acontece logo após Gordon sair do brinquedo, nada melhor do que encerrar o arco do passado mostrando que as somas de todas as tragédias não se anulam, criam o caos. Mas não para o comissário, que sai tão são quanto entrou. Notaram a circularidade?
Voltamos ao parque em mais um diálogo simbólico. Coringa encena uma apresentação aos seus capangas de Gordon enjaulado como um animal de atração o descrevendo como um raro e trágico mistério da natureza, o homem comum fisicamente ridículo, com valores deturpados, repugnante senso de humanidade, disforme consciência social e asqueroso otimismo, com frágeis e inúteis noções de ordem e sanidade e que submetido a muita pressão, ele quebra. O vilão, aqui, também se refere ao seu antigo “eu”, insultando sua versão normal mostrando que ainda está preso ao passado e sente raiva disso. Note como cada característica vem acompanhada de um adjetivo depreciativo. Ele quebrou por ser submetido a pressão e quer ver o mesmo acontecer com Gordon. Batman chega, repetindo o diálogo do início da graphic novel no asilo, obrigando o palhaço a fugir para dentro de um brinquedo.
O comissário, liberto por seu amigo, conta que o vilão o tentou deixar louco mostrando as fotos e pede para que ele vá atrás dele e o prenda, pela lei, mostrando a ele que o jeito deles funciona. Lembram que Gordon antes de Barbara ser alvejada com a bala se irrita ao dizer que toda as vezes que o Coringa é preso, ele escapa? Pois é, aqui vale um interessante estudo de personagem para Gordon que mostra que além de não ter perdido sua sanidade, quer ver o vilão preso mais uma vez e não morto. Batman persegue o palhaço que revela que plantou a pista para sua localização no parque e queria que o morcego estivesse presente para ver sua teoria sendo provada, que não há diferença entre ele e outro qualquer, que só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático.
Um dia é a distância. Coringa comenta que Batman também teve um dia ruim (o dia da morte de seus pais), afirmando que este dia também o deixou louco (o que não deixa de ser verdade), e ele não quer admitir. Concluindo que foi por causa de um dia assim (que também causou a loucura do Duas Caras, o criminoso com nome do início) que ele sucumbiu a loucura quando viu que o mundo era uma piada de mau gosto. Vale salientar que ele negou isso durante o primeiro flashback. Trazendo também uma interessante colocação a respeito do início da Última Grande Guerra e pergunta por que o morcego não vê o lado engraçado de toda essa piada da vida e ri?
Batman surge quebrando um vidro por trás e responde dizendo que já ouviu isso antes e não fora engraçado na primeira vez, empurrando o vilão e revelando que o comissário continua são apesar das brincadeiras doentias escancarando que a fraqueza foi do vilão ao afirmar que pessoas comuns não se quebram à toa e que não precisamos ficar caídos no chão só porque levamos um tombo. Uma luta física acontece e termina com o Morcego jogando o palhaço para fora do brinquedo. Vimos que voltou a chover e no chão, o vilão aponta a mesma arma que havia sido usada para atirar em Barbara e observamos um quadro focando na reação de Batman (assim como houve com ela). Ao ver que a arma está sem balas, o palhaço indaga porque Batman não o leva para o inferno de uma vez por todas após seus feitos. O Morcego responde que porque não é isso que ele quer e está cumprindo a lei (como pediu Gordon) e não deseja machucá-lo e nem que um mate o outro no fim, alertando que as alternativas estão se esgotando e que a noite é decisiva, oferecendo ajuda e dizendo compreender o dia ruim que o palhaço teve, prometendo reabilitação, companhia e até um trabalho em equipe. Concluindo, ele pergunta o que o palhaço acha da ideia.
Coringa começa a rir dizendo ser tarde demais e conta uma piada a respeito da fuga de dois loucos e um facho de luz (ótima, por sinal), começando a rir incansavelmente. Batman, tendo tido sua terceira decepção com o vilão mostrando que todo seu diálogo fora inútil, também começa a rir em um quadro, aumentando em escala no próximo e agarrando seu pescoço. Os risos vão parando, até terminarem em dois quadros parecidíssimos com os dois iniciais da HQ, em que são observadas poças d'água, com o penúltimo iluminado pelos faróis de viaturas se aproximando e o último com poças sem iluminação, dando a entender que o corpo do palhaço caiu se posicionando na frente dos fachos. Batman matou o Coringa. Ele cedeu à pressão e não foi tão forte quanto Gordon. Não vejo outra interpretação ao fim da história se não esta. Do contrário todo peso da mensagem ao final se esvai.
Batman, aqui nesta HQ, não surge como o símbolo de heroísmo ou conversão. O comissário continuava são, mas não o Coringa. Após a tentativa de diálogo fracassar, o Morcego mostra que nem todos podem ser salvos, inclusive ele que se rende ao jogo da risada e do assassinato, provando de uma vez por todas que as tragédias afetam heróis a ponto de quebrarem suas próprias linhas impostas por si. Moore entende não somente os heróis em geral, mas a humanidade por trás deles, de seus nêmesis e de seus coadjuvantes. Bolland complementando a grande circularidade da arte fecha a história da melhor maneira possível com as luzes nas poças mais escuras do que as azuladas no início.
Fiquei pensando em como encerrar esse texto após essa crítica-estudo da HQ e concluí que não posso de outra maneira se não circular como fora o início e o fim da história aqui analisada. Alan Moore se mostrou um gênio pelo excepcional estudo de personagens e pela invejável elaboração de diálogos reflexivos e Brian Bolland o mesmo pelo uso correto das cores mortas e vivas que exaltam profundos significados nas entrelinhas (juntamente com o colorista John Higgins na versão original – na de luxo, a autoria também é de Bolland). A montagem é digna de aplausos, visto que os flashbacks de maneira alguma atropelam a narrativa ou passam a impressão de terem sido inseridos no momento errado, sempre fortemente complementando com a história do presente, que também possui uma fluida alteração de focos entre Batman-Coringa até a convergência dos arcos ao final. “A Piada Mortal” é a piada e a HQ definitiva do maior vilão da história do entretenimento.
Uma obra-prima que merece ser lida, estudada e cultuada. E lembre-se: não é o mundo que é uma piada, então se tombar, se levante. Caso contrário, the joke's on you.