Crítica | Dois Caras Legais
Shane Black é um nome que parece sempre prestes a explodir. Em seu roteiro de estreia, nos presenteou com uma das melhores franquias policiais de todos os tempos ao nos apresentar a Martin Riggs e Roger Murtaugh com o primeiro Máquina Mortífera. Anos depois, foi um dos responsáveis por trazer Robert Downey Jr do limbo com a divertida comédia Beijos e Tiros, e, curiosamente, retomou a parceria com o ator para entregar a aventura mais fraca do Homem de Ferro em 2013.
Mas o problema de Homem de Ferro 3 era simplesmente ser uma obra que não pertencia a Black, e sim à Marvel Studios, que não tem um histórico de colaborações criativas muito inspirador. Agora, Black retorna à sua zona de conforto do buddy cop com Dois Caras Legais, levando toda sua invejável verbarrogia e estilo para os anos 70.
A trama se inicia aos moldes de um bom noir, até lembrando a abertura do primeiro Máquina Mortífera. Uma famosa estrela pornô é encontrada assassinada em seu carro, com uma frase misteriosa ecoando por seus lábios antes de seu suspiro derradeiro. Então partimos para o detetive particular Holland March (Ryan Gosling), que explora clientes com casos fáceis que possam ser manipulados por si próprio. Do outro lado, temos o investigador Jackson Healy (Russell Crowe), que também atua de forma privada para resolver pequenos delitos de vizinhança. A improvável dupla se une quando o desaparecimento de uma jovem envolve o trabalho dos dois, levando a uma investigação que envolve o misterioso homicídio e uma rede que envolve toda a indústria de entretenimento adulto.
É uma história intrincada e que parece uma cria bizarra entre Chinatown e Boogie Nights, mas que se move com engenhosa habilidade. Black move as peças com eficiência e inteligência, tal como um bom thriller do gênero, mas sem nunca complicar demais para o espectador. Todas as reviravoltas que se desenrolam são instigantes e envolventes, ainda mais quando a personagem de Kim Basinger entra na jogada. Aliás, é pela simplicidade da resolução que todo o mistério agrada tanto, e também pelo gigantesco sarcasmo provocado ali.
Afinal, o grande atrativo da fita reside no carisma de seus dois protagonistas; convenhamos, nunca lembramos da história de Máquina Mortífera, mas sim de seus personagens. E Black acertou novamente com sua nova criação. Ryan Gosling faz de seu Holland March um policial completamente atrapalhado e fanfarrão, do tipo que grita como uma garotinha ao ver um corpo e consegue e audácia de se cortar e ir parar no hospital ao quebrar a janela do local onde invade - o fato de March ficar o resto da projeção inteira engessado é sensacional. Mas Black não transforma March em um mero estereótipo, oferecendo bons momentos em que o sujeito é capaz de um raciocínio lógico revelador e o sutil arco dramático que é bem representado por uma tatuagem em seu punho.
Já Russell Crowe oferece uma bússola mais estável à Jackson Healy, definitivamente atuando como o cérebro da operação, e também como a força bruta que é capaz de chutar alguns traseiros quando a situação lhe exige. Crowe se sai muito bem nessa performance mais sóbria, oferecendo um perfeito contraponto ao caráter mais estabanado de Gosling.
E muito se deve a Black, que parece ser um mestre em criar tiques para seus personagens. Por exemplo, notamos como os calçados de Healy se destacam dentre seu figurino mais imponente, quase como se o conforto fosse a preocupação número 1 de Healy, ao mesmo tempo em que é divertido apresentá-lo em seu apartamento com um calendário que traz uma "palavra nova" diariamente e sua curiosidade instantânea em apanhar o dicionário e conferir o significado - em uma cena que, de recompensa, nos oferece um rápido insight sobre seu passado.
Mas ainda que os dois protagonistas sejam incríveis, quem rouba absolutamente todas as cenas é a jovem Angourie Rice, que interpreta a filha de 13 anos de March. É mais um daqueles casos em que temos uma criança madura e que se sai incrivelmente melhor do que os adultos, mas Rice o faz com tanto carisma e ironia que é impossível não se divertir; a mera imagem de Rice mal enxergando o painel do carro enquanto dirige um Gosling acabado no banco de passageiros já é de um simbolismo incrível quanto à inversão de papéis dos dois. A maneira como a personagem afeta o arco de Healy é outra surpresa agradável, em mais um exemplo da habilidade de Black em amarrar toda as pontas de roteiro.
Como diretor, Black surge muito mais à vontade do que em Homem de Ferro 3. Sua mise en scene é elegante, os movimentos de câmera são eficientes e a paleta de cores que adota com o diretor de fotografia Philippe Rousselot abraça o aspecto vibrante dos anos 70 e valoriza o riquíssimo design de produção do longa. Minha única ressalva para a condução de Black fica em algumas sequências de tiroteio, que acabam se perdendo em uma montagem um tanto confusa e um ritmo que acaba se esgotando graças à extensa duração destas.
Dois Caras Legais é uma grata surpresa em um ano perdido em blockbusters falhos, reboots, continuações e uma enxurrada de filmes de super-heróis. Tal como acontecia no primeiro Máquina Mortífera, é o carisma divertidíssimo de seus protagonistas que garante uma obra memorável e com potencial de tornar-se algo especial.
Dois Caras Legais (The Nice Guys, EUA - 2016)
Direção: Shane Black
Roteiro: Shane Black, Anthony Bagarozzi
Elenco: Ryan Gosling, Russell Crowe, Angourie Rice, Kim Basinger, Matt Bomer, Margaret Qualley
Gênero: Comédia, Aventura
Duração: 116 min
https://www.youtube.com/watch?v=GQR5zsLHbYw
Crítica | Velho Logan
Aviso: Esta crítica analisará aspectos do quadrinho e da história, portanto, contém spoilers
Ao saber da notícia que a dupla Mark Millar e Steve McNiven estavam se juntando para escrever um arco de histórias para a série regular de Wolverine, é normal criar um pouco de expectativa. Estamos falando da dupla responsável pela excelente Guerra Civil e do autor de Superman: Entre a Foice e o Martelo, afinal. Mark Millar já criou para si a linha Millarworld, onde ele está atualmente publicando alguns projetos, como Huck e Chrononauts, através de editoras como a Image Comics.
Millar cria seus quadrinhos como storyboards para o cinema. O enquadramento e a própria diagramação é muito semelhante ao que se esperaria de um filme. Seus ângulos e estrutura narrativa favorecem essa comparação. Outras obras de Millar já foram adaptadas recentemente para a tela grande, como O Procurado, Kick-Ass e Kingsmen. Seu talento e nome já lhe permitem vender direitos para o cinema de projetos antes dele sequer lançar a primeira edição, como Chrononauts.
Steve McNiven é um desenhista consagrado da Marvel. Já trabalhou em títulos como Capitão América, Guardiões da Galáxia e Homem Aranha. Também foi o responsável de capas para incontáveis obras dentro da Casa das Ideias. Seu desenho é feito com linhas fortes e muitos detalhes para cenas, mostrando especial talento para quadros mais violentos e as famosas splash pages.
Espere algumas cenas deste tipoTendo dito isso, temos em mãos Velho Logan. Uma história que ocupou 8 edições da série mensal de Wolverine entre Junho de 2008 e Setembro de 2009 e que nos agraciou com uma versão interessante do personagem em um mundo alternativo bem rico.
Uma História já Conhecida
Essa história serve como um Cavaleiro das Trevas para Wolverine. Somos apresentados ao personagem título como um homem velho e pacifista, cuidando de sua esposa e filhos em uma pequena fazenda no deserto da Califórnia. Ele hoje não usa mais suas garras desde um misterioso evento em seu passado. Os Estados Unidos foram divididos por distritos, cada um governado por vilões famosos dos quadrinhos, que venceram todos os heróis de uma vez só em uma trágica noite. O ambiente, então, é um caos digno de cenários pós apocalípticos como Mad Max, com muitos ambientes áridos e perigos em cada esquina.
Wolverine se encontra em problemas de pagamento do aluguel do terreno à gangue dos Hulks. Gangue esta formada por descendentes do Hulk, dotados de grande força bruta e que dominam sobre o distrito. A casa de Logan será destruída junto com sua família caso ele não consiga o dinheiro em um determinado prazo. Eis que somos apresentados ao Gavião Arqueiro Clint Barton deste universo. O único vingador a sobreviver ao ataque dos vilões por não ser considerado um risco surge com uma proposta financeira que exigirá justamente que Logan aja como Wolverine.
A obra inicia como uma homenagem aos antigos clássicos de faroeste de Clint Eastwood. Este tema é antigo em Hollywood e já foi abordado extensivamente. É revigorante ver uma história do Wolverine nesta jornada mas a história em si não chega a ser nenhuma novidade. Logicamente é natural ver a influência dos cinemas nos quadrinhos. Quando se trata de Mark Millar, porém, a barra de expectativa é um pouco mais alta.
De Tudo um Pouco
Após este encontro e o aceite da proposta com o velho clichê de "somente se eu não precisar usar minhas garras" (que todos sabemos que ele acabará usando) acompanhamos a aventura da dupla por este mundo hostil, recheado de personagens e referências à história de Wolverine e dos X-Men. No entanto, muitas aparições são extremamente gratuitas, como por exemplo o Tiranossauro Rex Venom:
Uma bela cena e sóO personagem ocupa uma página final inteira somente para ser facilmente destruído no início da outra edição. Isso ilustra o maior problema dessa saga. Belas e incríveis cenas com personagens de potencial imenso para desenvolvimento que servem somente de cliffhangers. Meros obstáculos a serem superados ao longo do caminho. Quase uma Odisséia Marvel pelo catálogo de personagens famosos da editora.
McNiven entrega um trabalho consistente e marcante, aliado à decupagem cinematográfica e à grande equipe de coloristas formada por nomes como Justin Ponsor, Christina Strain e Morry Hollowell. E essa composição de talentos e um ou outro detalhe da história acabam sendo o grande destaque e o que faz esse quadrinho ser famoso. É um pouco triste que não seja nada mais além disso.
Um Final Constrangedor
Logan abandona sua zona de conforto ao se lançar em mais uma aventura com Gavião Arqueiro, que o guia por este ambiente selvagem. É interessante o conceito de Clint estar cego e também ser ele o motorista. Nas primeiras páginas da segunda edição ele já lança o veículo barranco abaixo, evocando a passagem bíblica de Lucas "Pode um cego guiar outro? Não cairão ambos no barranco?". É dessa forma que os dois são jogados (e posteriormente entregues) à selvageria deste inóspito lugar. Acrescento também que a cegueira de Clint é um aceno à obra de Frank Miller. Em Cavaleiro das Trevas o maior arqueiro da DC também possuía uma incapacidade que o impedia de exercer sua função; o braço direito amputado.
Em sua volta pra casa, Logan descobre que sua família foi morta pela gangue dos Hulks. Com mais este traumático momento, ele decide acertar as contas de uma vez por todas com a gangue inteira. Wolverine então descobre que o líder da gangue dos Hulks é uma versão insana e demente de Bruce Banner, que enlouqueceu devido à radiação gama e teve filhos com sua prima, a Mulher Hulk. Após esta revelação de incesto, Wolverine é devorado pelo vilão ressurgindo poucos quadros depois, matando Bruce em uma cena reminiscente à Alien:
Ao fim, Wolverine então resolve seguir pelo mundo como um herói de faroeste, cuidando do último bebê Hulk sobrevivente.
Conclusão
E é este final que faz todo o resto do quadrinho ser meio desnecessário. Ora, se a morte de sua família era o que precisava para ele se entregar totalmente ao seu lado selvagem e aceitar o Wolverine novamente, Logan não precisava se lançar ao deserto por 8 edições. O final deveria ser melhor desenvolvido sem necessidade dessa revelação que gerou grande polêmica ao lançamento.
Para fechar, temos sim uma obra de Millar e McNiven. Ótimos enquadramentos, desenhos e arte, com um personagem que hoje faz parte do universo regular da Marvel. Também um mundo vasto e rico em referências e interessantes versões distorcidas de personagens. No entanto, é apenas uma história que garante divertimento na leitura. Não sobra muita coisa para ser digerida. Com excessão do choque gráfico da última edição que pode lhe fazer evitar o jantar.
Essa dupla pode entregar mais.
Crítica | True Detective - 2ª Temporada
A HBO havia conseguido novamente. Sob a alcunha do relativamente desconhecido Nic Pizzolatto, a estreia de True Detective no começo de 2014 conquistou uma nova legião de fãs e fez a festa com os críticos, sendo rapidamente considerada uma das melhores séries de televisão dos últimos anos, principalmente pelas performances centrais de Matthew McConaughey e Woody Harrelson e a direção afiada de Cary Fukunaga.
Quando a emissora obviamente renovou a série para uma segunda temporada, muitos esperávamos um retorno de Marty e Rust, mas Pizzolatto surpreendeu ao anunciar que True Detective seria uma antologia, com casos e personagens sendo alterados a cada nova temporada. A ideia foi bem recebida, mas muitos começaram a torcer o nariz com as contratações de Justin Lin para comandar os primeiros episódios e Colin Farrell e Vince Vaughn para protagonizar a série, nomes que - convenhamos - não são do calibre de McConaughey e Harrelson, ao passo em que muitos esperavam mais do que o diretor de Velozes & Furiosos para assumir a brincadeira. Porém o otimismo foi se reerguendo quando Rachel McAdams, Taylor Kitsch e Kelly Reilly se juntaram ao projeto.
Sai o interior decadente da Louisiana da primeira temporada, entra o labirinto urbano e complexo de Vinci, uma cidade fictícia localizada na Califórnia. Somos apresentados a Ray Velcoro (Farrell), um desequilibrado detetive da polícia local que trava uma batalha judicial com sua ex-esposa para manter a custódia de seu filho, que pode ou não ser de outro pai. Do outro lado da lei, o gângster Frank Seymon (Vaughn) planeja uma mudança de carreira ao iniciar uma parceria de negócios com o administrador municipal de Vinci, Ben Caspere, que envolve um investimento milionário na construção de uma nova ferrovia
E tem mais. No Condado de Ventura, a oficial Ani Bezzerides (McAdams) trabalha fervorosamente para fechar operações de pornografia ilegal ao mesmo tempo em que resolve os complicados problemas com seu pai e sua irmã. Por fim, o patrulheiro de estrada Paul Woodrugh (Kitsch) recebe uma injusta suspensão depois de ser falsamente acusado de assédio sexual após se recusar a aceitar suborno de uma atriz que violava os limites de velocidade.
É uma intrincada rede de personagens e subtramas que se conecta graças à Caspere. Quando o administrador desaparece repentinamente, os negócios de Frank vão por água abaixo e grande parte de sua fortuna é perdida. Secretamente um informante de Frank, Velcoro é enviado pelo departamento para localizar o desaparecido Caspere, que é enfim encontrado morto pelo patrulheiro Woodrugh em uma rodovia que cruza Ventura, atraindo a presença de Bezzerides.
Inicia-se a partir daí uma complexa trama que une esses três detetives extremamente diferentes entre si, mas igualmente problemáticos, e a investigação paralela de Frank Seymon, que vai aos poucos retomando contato com sua persona criminosa. É uma premissa radicalmente diferente da primeira temporada, que apostava em flashbacks e um serial killer com elementos sobrenaturais, ao passo em que esta nova temporada é essencialmente um thriller noir. E como a maioria dos noirs, a trama não faz muito sentido. O próprio ícone da literatura policial Raymond Chandler uma vez disse que não entendia por completo os elementos de uma história que ele mesmo havia criado, e que a chave para o sucesso desse estilo de narrativa estava na construção do mistério.
Este novo True Detective de certa forma acerta nisso. Toda a complexa investigação que envolve diversos personagens, locais e nomes complicados não é a coisa mais empolgante do mundo, e nem de longe provoca a angústia e ansiedade do sombrio caso abordado por Marty e Rust na temporada anterior. Ao longo dos quatro primeiros episódios, a trama chega a ser sonolenta e confusa, ao passo em que expande o nível ao envolver a corrupção na prefeitura de Vinci, as relações policiais e até uma bizarra rede de sexo secreta que deixa a desejar; assim como a resolução do caso Caspere.
O que torna esta temporada tão agradável, porém, são seus excelentes personagens e o elenco que lhes dá vida. Colin Farrell tem um dos melhores papéis de sua carreira na pele de Velcoro, sempre com uma garrafa de bebida na mão e uma expressão triste e depressiva no rosto. Os arcos do personagem acabam por cativar muito mais do que a investigação central, desde o dilema sobre a paternidade incerta de seu filho e a complicada relação que isso provoca nos dois até a parceria dúbia com Frank, o que rende alguns dos diálogos mais memoráveis da série e coloca Velcoro no centro de situações muito questionáveis. O fato de Velcoro sempre estar documentando seus pensamentos em um gravador também é muito revelador, especialmente pelo desfecho dramático desta subtrama no episódio final.
Rachel McAdams oferece à série a protagonista feminina forte que os fãs teorizavam desde o final da primeira temporada. Bezzerides é durona e violenta, e é justamente esse comportamento que acaba gerando alguns problemas pessoais da personagem. Bezzerides é viciada em sexo e pornografia, tendo dificuldade de se relacionar com aqueles próximos a ela, características que McAdams desempenha muito bem em uma performance crível e convincente. Fica mais interessante quando temos pistas de seu passado abusivo através de alguns flashbacks perturbadores durante uma cena que detalharemos mais à frente.
Depois de tantos fracassos e oportunidades perdidas, essa parecia a chance de Taylor Kitsch mostrar do que era capaz. Woodrugh revela-se uma figura muito contida e com sentimentos repreendidos, aliado ao fato de uma passagem traumática pelo Iraque e de uma antiga paixão homossexual que sempre tentou manter escondida voltar à tona, para seu desespero. Kitsch se sai bem e sua voz grave e o olhar arregalado sempre parecem dar a impressão de que o personagem está prestes a explodir. Mesmo que seja o detetive que menos cativa, Woodrugh ainda garante bons momentos e seu desfecho em tela rende um dos melhores momentos da temporada.
Mas a grande surpresa fica à cargo de Vince Vaughn. É sempre interessante quando vemos um comediante se aventurar no drama (esqueçamos por um momento a vergonhosa performance de Vaughn no vergonhoso remake de Psicose), e o ator mergulha de cabeça em Frank Seymon. Seus monólogos sobre a infância - causado por uma mancha na parede - e as explosões de violência que o personagem vai revelando são impressionantes, e Vaughn consegue fazer de Seymon uma figura ameaçadora sem apelar para gritaria ou elementos expressivos que o tornassem caricato. A força de Vaughn está no olhar e no discurso suave. Sua relação com a esposa (a ótima Kelly Reilly) também é muito interessante, ainda mais quando começamos a perceber como as relações de poder variam entre os dois.
Em termos de direção, True Detective sofre um pouco pela ausência de um diretor único para todos os 8 episódios, como fez Fukunaga no ano anterior. Justin Lin ficou a cargo dos dois primeiros episódios, com o restante sendo dividido entre Janus Metz, Jeremy Podeswa, John Crowley, Miguel Sapochnik e Daniel Attias. Isso gera uma falta de personalidade própria da temporada, que experimenta uma série de coisas diferentes e o resultado pode ou não funcionar.
Justin Lin surpreende pela direção contida e que captura bem o estilo de Fukunaga, acertando ao trazer uma paleta de cor mais vibrante e alaranjada para as cenas noturnas, um padrão que seria seguido pelo resto da temporada. Miguel Sapochnik tem seu momento de brilho no sexto episódio, A Church in Ruins, durante uma sequência memorável que envolve Bezzerides infiltrada em uma festa sexual que traz leves ares de De Olhos Bem Fechados, mesmo que não seja chocante como deveria, fornece um momento de desespero no momento em que a personagem é drogada e acompanhamos seu ponto de vista retorcido.
Janus Metz merece menção pela abertura completamente inesperada e surreal do terceiro episódio, Maybe Tomorrow, que traz Velcoro em uma alucinação bizarra que parece saída de Twin Peaks, enquanto John Crowley retoma esse aspecto de sonho durante o longuíssimo season finale Omega Station, que traz uma bela tomada de Frank caminhando em um deserto enquanto tem visões de todos os demais personagens lhe provocando. A cena em que Velcoro prepara um encontro decisivo em um terminal rodoviário também é outro ponto alto, sendo beneficiado pela ótima canção de Lera Lynn - que empresta sua voz sombria para diversas músicas memoráveis ao longo dos episódios.
Mas é mesmo o quarto episódio que traz o ponto alto absoluto da temporada. Em Down Will Come, Jeremy Podeswa surpreende na condução de um tiroteio altamente visceral que envolve os três detetives e uma batida policial, que acabam em um furioso confronto com traficantes em pleno centro da cidade. Temos reféns, sangue e mortes descontroladas que levam a um total fracasso da operação, culminando em um excelente plano final no qual os protagonistas contemplam em desespero o horror da violência que os levou até ali.
A segunda temporada de True Detective não atinge o mesmo nível de qualidade estabelecido pela primeira, apresentando uma trama confusa que acaba se perdendo dentro de suas subtramas e complexidades como as próprias rodovias californianas. Porém, faz valer a visita pela força e as multi camadas de seus ótimos personagens.
True Detective - 2ª Temporada (EUA, 2015)
Criado por: Nic Pizzolatto
Direção: Justin Lin, Janus Metz, Jeremy Podeswa, John Crowley, Miguel Sapochnik, Daniel Attias
Roteiro: Nic Pizzolatto, Scott Lasser, Amanda Overton
Elenco: Colin Farrell, Vince Vaughn, Rachel McAdams, Taylor Kitsch, Kelly Reilly
Emissora: HBO
Episódios: 8
Gênero: Suspense, Crime
Duração: 60 min aprox
https://www.youtube.com/watch?v=4OfU7CGY5DQ
Crítica | Caça-Fantasmas
Um dos últimos casos de histeria coletiva que acometeu o mundo pop aconteceu com o novo Caça-Fantasmas. O reboot conseguiu angariar o ódio generalizado de muitos ditos “fãs” da franquia original de 1984. Nas sucessivas ondas de desprezo, o primeiro trailer do longa conseguiu a marca recorde de ser o vídeo mais negativado da história do YouTube. Já com a polêmica, o longa se tornou histórico.
Agora, trinta e dois anos depois que o mundo conheceu os Caça-Fantasmas originais, temos uma nova geração de caçadoras chegando aos cinemas. Mas será que se trata de uma obra tão péssimo como tantos acreditam? Não, na verdade é uma excelente comédia.
A história tem início com a demissão de Erin Gilbert, uma renomada cientista candidata à cátedra da universidade, após uma sucessão de eventos que levam sua reputação como teórica ao lixo. Tudo por conta das atrapalhadas aventuras empreendedoras de sua amiga de infância, Abby, que abriu um negócio nada convencional: uma empresa que pretende capturar e exterminar fantasmas.
Sem uma oportunidade melhor de trabalho, Erin parte com Abby e sua assistente maluca, Jillian, para a aventura desse jogo de negócios nada convencional. Para a sorte do grupo, uma suspeita infestação de espíritos malignos assola a cidade de Manhattan. Ao sinal do perigo surreal, elas atendem ao chamado.
Qualquer um que tenha o longa de 1984 fresco na cabeça, conseguirá notar alguma semelhança com essa breve sinopse. E de fato, o roteiro de Paul Feig e Katie Dippold possui uma estrutura narrativa muito similar ao clássico. Apesar de se comportar muito como uma versão vinda diretamente do universo paralelo graças as trocas de sexo nos papéis principais: a equipe de caça-fantasmas e o novo recepcionista, o hilário Kevin, os roteiristas escolhem caminhos bastante seguros enquanto encaixam toneladas de referências e homenagens ao filme original e outros longas clássicos dos anos 1970 e 80.
Portanto, a história é bastante telegrafada e previsível, mas agrada em seu formato graças a semelhança nostálgica. Na verdade, após dois filmes com mesma estrutura, a vinda de um terceiro que conta a mesma história com elementos diferentes pode ser bastante decepcionante para alguns fãs. Tudo depende do modo que irá encarar a proposta desse reboot.
A liberdade criativa reside mesmo com o fantástico trabalho – o melhor até então em sua carreira, que Feig insere no humor de seus diálogos e encenações criativas na sua direção. Não há como negar, é impressionante como esse Caça-Fantasmas é engraçado. A maioria das piadas funcionam espetacularmente bem.
Aliás, arrisco dizer que este é o filme mais engraçado da franquia, já que os primeiros nunca foram comédias de rolar de rir, além do timing cômico de Ivan Reitman já ter envelhecido ao longo de três décadas. Feig também acerta em modernizar a diegese do longa. Ao contrário do clássico, temos alguma motivação para o antagonista, o surgimento dos fantasmas tem uma correlação direta com o vilão, algumas personagens têm certa complexidade e boas motivações, a relação com o prefeito é diferente e mais interessante, além do fato delas permanecerem desacreditas pela mídia e população ao longo da cruzada espiritual.
Além desses retoques necessários – e básicos, ao tratamento do roteiro, Feig e seu ótimo elenco se esforçam em criar personagens novas e originais. O novo quarteto nada tem a ver com Venkman, Stantz, Spengler e Winston. Apesar de todas elas se basearem em estereótipos clássicos de esquetes cômicas curtas – temos “a certinha tresloucada”, “a gordinha barra pesada”, “a esquisitona dos gadgets” e a “negra histérica”, as atrizes se esforçam em criar características carismáticas únicas. Quem rouba a cena, sempre, é Kate McKinnon que encarna Jillian.
Como o texto não favorece seu humor, McKinnon incorpora o tipo da esquisitona com louvar a partir de inúmeras expressões visuais contrastantes ou com os muitos reaction shots que Feig encaixa na decupagem com timing ímpar. O diretor também tem a sagacidade de usá-la muitas vezes na profundidade de campo maquinando reações mais sutis e igualmente esquisitas. Aliás, com as inconveniências inerentes à personagem, é difícil não lembrar da performance de Zach Galifianakis e seu Alan de Se Beber, Não Case. São personagens semelhantes e muito funcionais.
Outro ator que se destaca no meio dos demais é Chris Hemsworth vivendo o personagem mais burro e estúpido do cinema contemporâneo, o recepcionista Kevin. Absolutamente todas as piadas envolvendo o ator são sensacionais. A linha de humor que ele adota é bastante física apostando no nonsense. Logo, pelas idiotices totalmente imprevisíveis do personagem, o ator prova uma verve cômica inesperada.
Porém nem tudo é um mar de rosas para esse reboot. Fora Hemsworth e McKinnon, pouquíssimos atores protagonistas conseguem surpreender ou superar performances anteriores. Isso é explicito com Melissa McCarthy que já nem se preocupa mais em quebrar a personagem que criou anos atrás. Então, caso goste do humor dela, não sairá desapontado, porém é uma zona de conforto que incomoda depois de tanto tempo.
Aliás, é justamente com ela e Kristen Wiig onde o diretor Paul Feig mais erra no tom. Tentando emplacar muito improviso e na insistência de algumas piadas, o trio só consegue arrancar constrangimento do espectador. Nada de risadas. Esses momentos são recorrentes durante o filme. Fora isso, o diretor derrapa na construção da sequência da primeira captura de espíritos que o grupo faz. Há um corte muito estranho e nada orgânico. Ao menos, o uso do silêncio e de planos distantes, rende uma boa piada.
Fora os improvisos ruins como um diálogo envolvendo coelhos e cartolas, absolutamente todas piadas que envolvem proselitismo político não funcionam. Até mesmo a atmosfera leve do longa se altera quando uma dessas aberrações “cômicas” surgem na tela. Também é particularmente interessante notar como o roteiro desse longa trata todas as figuras masculinas com representações negativas. Repare, temos o idiota, o vilão recalcado, o prefeito que se esconde por trás de sua assessora, dois investigadores bobocas, etc.
Tirando isso, Feig tem seus ótimos momentos dirigindo, enfim, um verdadeiro blockbuster. Até mesmo arrisca na linguagem de gêneros que transitam entre o horror e a ficção científica. Acredite, é possível ficar apreensivo durante algumas cenas mais focadas nos fantasmas. Toda a linguagem visual é correta para o suspense, porém a trilha musical mais infantil sempre quebra a tensão poucos momentos antes da revelação de um espectro.
Não somente na boa encenação, no jogo de câmera adequado e no ritmo certo que Feig trabalha bem. Uma das características mais interessantes do seu comando é justamente na valorização do design de produção e da fotografia bastante colorida de seu filme. Vemos diversos dispositivos novos, a rabeca clássica com a placa ECTO-1, os detalhes dos uniformes e da mochila de prótons em enquadramentos que se assemelham bastante com os de Ivan Reitman no filme de 1984. São homenagens singelas, fan service bem alocado dentro da narrativa. Isso inclui também as diversas participações especiais do elenco original.
Até mesmo na questão tecnológica, o diretor acerta justamente com um dos elementos mais polêmicos do cinema atual: o uso do 3D. Em resumo, é excelente! Feig brinca com os elementos dos fantásticos efeitos visuais ultrapassando as bordas do cinemascope gerando um efeito único de projeção de elementos da tela para o público. É um trabalho que tínhamos visto brevemente em 2012 com As Aventuras de Pi. Aqui, o diretor usa e abusa do recurso. Chega a brincar com a razão de aspecto do longa que se altera durante uma rápida cena em formato IMAX.
Além dos outros problemas já citados cometidos pelo diretor, o mais grave deles ocorre no terceiro ato espalhafatoso. Feig realmente peca pelo exagero, mesmo que a ação seja bem divertida, o visual dos fantasmas coloridos seja muito interessante e pela beleza visual das pirotecnias, os acontecimentos do clímax se estendem demais oferecendo muito pouco para o espectador em termos de substância. Logo, é fácil ficar cansado já que a narrativa estaciona e não avança até a resolução final do conflito.
Agradando bastante com o humor inteligente, ótimas atuações, boa história e visual surpreendente, o novo Caça-Fantasmas certamente é a dica certa para uma visita aos cinemas. O longa é extremamente divertido e não chega a se comprometer com os poucos erros apresentados. Realmente teremos de aguardar uma sequência para que a Sony apresente uma história que fuja um pouco da fórmula feita por Dan Aykroyd e Harold Ramis.
Enfim, até mesmo o fã mais fervoroso e irritadiço, nutrido de bom senso, terá que admitir que essas mulheres realmente são ótimas em caçar fantasmas. Querendo ou não, o fazem em um filme bem-humorado de muita qualidade.
Caça-Fantasmas (Ghostbusters, EUA - 2016)
Direção: Paul Feig
Roteiro: Paul Feig e Katie Dippold
Elenco: Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Kate McKinnon, Leslie James, Chris Hemsworth, Ed Begley Jr, Neil Case, Andy Garcia, Charles Dance
Gênero: Comédia, Aventura
Duração: 116 min
Crítica | Orphan Black - 4ª Temporada
Depois de três temporadas repletas de reviravoltas e informações desconexas, Orphan Black chega à sua quarta temporada de maneira simples, linear e fácil de seguir.
Embora a temporada anterior tenha começado com um estrondo, a introdução de clones do sexo masculino – e um enredo repetitivo para Helena – resultaram diretamente em uma série decrescente, cheia de perguntas e poucas respostas.
Demorou, porém os showrunners, Graeme Manson e John Fawcett, conseguiram fechar vários pontos abertos deixados nos outros anos, como as ligações entre os Projetos LEDA e CASTOR e as instituições Dyad e Topside, além da Neolution – que mesmo depois de esquecida, mostrou-se como crucial para o andamento da série após mudarem o conceito de simples organização para ideais de modificações corporais, experimentos científicos e diversas coisas inimagináveis como a Brightborn de Evie Cho (Jessalyn Wanlim).
Optar pela recolocação da Neolution como antagonista e descartar os Proletheans e os remanescentes do CASTOR foi uma atitude coerente, já que diminuiu os riscos de confusão em quem assiste e acrescentou a ideia de que a organização pode ser várias coisas diferentes, mantendo o inimigo tão intrigante quanto necessário.
Foram usados flashbacks, de forma rápida e inteligente, para unir os acontecimentos da atualidade com o período “pré-Sarah”. A temporada se inicia focando nos tempos de Beth e introduzem uma nova personagem, Mika, MK. Por ter presenciado a Helsink de 2006 e ser uma hacker, é a chave que ajudou Beth a tomar consciência de sua jornada em relação a si mesma e aos outros clones. No momento atual também é uma aquisição extremamente útil para Sarah, que precisa sempre estar um passo à frente da Neolution, sendo através de informações ou evitando intercepções de sinais. Além de unir as duas pontas da série, os flashbacks também foram úteis para atender aos pedidos dos espectadores em rever Paul (Dylan Bruce) – no qual sabíamos que deixaria saudades após ser morto na terceira temporada – e ajudaram a entender mais sobre a personalidade de Beth.
Tornam-se claras as semelhanças entre Elizabeth Childs e Sarah Manning – ambas se mostram determinadas, facilmente irritáveis, ferozes, com alto espírito de liderança e extremamente protetoras sobre si mesmas e suas irmãs clones – assim, o papel principal de Sarah acaba se auto justificando. A ligação entre as duas vai além da “clone que roubou o cadáver na estação”, pois Sarah começa a se perder mentalmente e, com as mesmas reações de Beth, busca auxílio nas drogas, no sexo e na ideia de suicídio. Ou seja, as fases de declínio e válvulas de escape de ambas as personagens se conectam de maneira sutil e desafiadora, traçando um paralelo interessante entre o passado e o presente. No entanto, Manning se mostra mais forte que sua antecessora no momento em que escuta Felix e não se suicida, provando, então, que é o clone mais controlado.
A entrada de MK e as aparições de Beth e Krystall – que começa a fazer parte do Clube dos Clones, porém de maneira indireta e divertida, acompanhando apersonalidade da personagem – prova, novamente, o incrível poder de atuação de Tatiana Maslany. A atriz criou uma química específica com cada personagem e parceiros de cena; a expressão de Helena e Doonie (Kristian Brunn) é totalmente diferente do que com Allison, mesmo quando Helena precisa se passar por Allison. O mesmo ocorre com Sarah e Felix (Jordan Gavaris), Allison e Felix, Cosima e Delphine (Evelyne Brochu) e muitos outros exemplos.
Depois de usar Helena excessivamente na temporada anterior, Graeme e John minimizaram o espaço da personagem e a inseriram sabiamente em pontos de tensão, relembrando o quão sangue frio nossa clone assassina pode ter quando suas “sestras” precisam de ajuda.
A quarta temporada também abriu espaço para dramas em torno de alguns personagens secundários com grande potencial, como Felix e Scott. Felix começa a ter sentimentos de abandono depois da revelação de que Sarah é realmente relacionada com Siobhan (Maria Doyle Kennedy), tornando-o o único filho adotado. Futuramente essa abertura poderia ser mais explorada, já que Maslany e Gavaris apresentam uma ótima relação em cena, gerando um enredo muito mais interessante do que Felix encontrando sua irmã biológica, totalmente desconexa a série, e despachando-a depois de alguns episódios.
Scott (Josh Vokey) teve poucas aparições, mas foram essenciais em despertar curiosidade sobre o que devemos aguardar de sua relação com Cosima, depois que ela claramente o ofende ao demonstrar que não o considera como parceiro de laboratório. John e Graeme jogaram com as expectativas dos fãs e esperaram o momento certo para confirmar e reviver a Dra. Cormier – o que certamente agradou aos admiradores do casal – e chamaram a atenção para esses sutis atritos de Scott e Cosima, abrindo a possibilidade dos três trabalharem em conjunto ou surtir mais brechas para dramas.
Como a quinta temporada será a última, talvez não dê tempo para a solução de tantos enredos abertos, pois além de Felix e Scott, ainda faltam explicações sobre as estranhas habilidades de Kira (Skyler Wexler) – como estar ligada a todos os outros clones –; a real identidade do mensageiro e quem são os outros habitantes da ilha de Dr. Moreau; como e o que Delphine fez em todo este tempo; Rachel fazendo parte da Neolution; o sumiço repentino de Cal (Michiel Huisman) e muitas outras questões. Levando em consideração que só restam dez episódios, os showrunners precisarão tomar decisões certeiras para amarrar a trama ou há a possibilidade de pontos serem pouco explorados e deixados em aberto novamente.
Pondo as suposições de lado, podemos nos contentar com os acertos e consertos da quarta temporada, que não só fez sentido com o que foi visto até agora – e onde paramos com os personagens – mas se preocupou com o espectador e o satisfez com alguns de seus anseios.
Crítica | Os Suspeitos (2013)
Lá pela metade de Os Suspeitos (que não, não tem nada a ver com o filme de Bryan Singer), eu percebi que estava me sentindo mal. Angustiado, tenso e extremamente ansioso pelo desfecho da história e os dilemas torturantes enfrentados pelas figuras problemáticas e envolventes criadas pelo texto de Aaron Guzikowski, também me toquei de que estava diante de um genuíno thriller, um que claramente compreendia os elementos que tornam o gênero tão fascinante – e perturbador.
A trama é ambientada numa pequena região da Pensilvânia, tendo início quando as filhas de dois casais diferentes (um formado por Hugh Jackman e Maria Bello, e o outro, por Terrence Howard e Viola Davis) repentinamente desaparecem. O detetive Loki (Jake Gyllenhaal) é convocado para tocar a investigação, que acaba levando-o até o misterioso Alex Jones (Paul Dano). Mas à medida em que o caso começa a revelar-se cada vez mais complexo, Loki ainda precisa lidar com o perigoso desejo de justiça de um dos pais.
Sob o comando do canadense Denis Villeneuve (responsável pelo premiado Incêndios), Os Suspeitos pega o espectador pela garganta e não solta até o momento em que os créditos começam a subir, mesmo que a projeção se extenda por 2h30. Parte disso se deve ao eficiente trabalho do diretor, ao lado do diretor de fotografia Roger Deakins (ainda sem Oscar, como, como?), em criar uma atmosfera pesada e sombria; daí a constante presença de chuvas, neve e um céu predominantemente nublado que esbanja melancolia graças às frias paletas de cor usadas por Deakins.
É o cenário perfeito para que Villeneuve desenvolva uma perfeita história de detetive concebida pelo roteirista, que contém reviravoltas impactantes e planta diversas pistas (que podem passar despercebidas para o espectador menos observador) importantes e, à primeira vista, irrelevantes ao longo da projeção. O clímax é o resultado de uma minuciosa construção que havia sido feita desde o primeiro ato, rendendo importantes consequências para todo os personagens - daí o "prisioneiros" do título original faz muito mais sentido em termos metafóricos.
Além da angustiante e detalhista investigação, é interessante observar a tragédia humana que se manifesta nas famílias enquanto esperam pelo reencontro com suas filhas desaparecidas. Em uma performance intensa e explosiva, Hugh Jackman continua impressionando com sua carga dramática ao interpretar o impulsivo Keller, que acaba por “fazer justiça” com as próprias mãos ao perseguir o personagem de Paul Dano (outro grande ator que ainda carece de um papel que lhe permita explorar seu potencial). Mas quem realmente se destaca é Jake Gyllenhaal e seu detetive Loki (nenhuma ligação com o irmão do Thor, só pra constar), que ganha um retrato cuidadoso do ator – reparem no tique do piscar de olhos que Gyllenhaal manifesta com frequência -, contrastando radicalmente com a persona selvagem de Keller ao optar por uma voz predominantemente calma.
Os Suspeitos não vai mudar a história do gênero, tampouco se destacará como um marco nele, mas segue as regras com competência e extrai o melhor de sua proposta, sendo capaz de mandar o espectador para casa ainda brincando com as peças do quebra-cabeças. E convenhamos, não é esse o tipo de thriller de investigação que vale o nosso dinheiro?
Os Suspeitos (Prisoners, EUA – 2013)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Aaron Guzikowski
Elenco: Hugh Jackman, Jake Gyllenhaal, Viola Davis, Maria Bello, Terrence Howard, Melissa Leo, Paul Dano, Dylan Minnette, Erin Gerasimovich, Kyla Drew Simmons
Duração: 153 min.
Crítica | É o Fim
Não faz sentido que É o Fim seja lançado nos cinemas nacionais. Além de ter perdido completamente o timing da piada central (algo que também aconteceu nos EUA, o filme deveria ter sido lançado em dezembro do ano passado), o filme traz uma série de comentários e referências que o público brasileiro certamente não vai entender, já que a maioria dos trabalhos do elenco principal foi lançada diretamente para o home video. Isso sem falar que o resultado é bem mediano.
A trama é ambientada na Los Angeles “do mundo real”, trazendo todo o elenco interpretando a si mesmo. Jay Baruchel se encontra com o amigo Seth Rogen para que ambos compareçam a uma festa na casa de James Franco. Lá, se juntam a celebridades como Jonah Hill, Craig Robinson, Emma Watson e Danny McBride. No meio da diversão, a cidade é dominada por uma série de terremotos e incêndios que logo se revela como o Apocalipse.
Sinceramente, eu fiquei muito empolgado com a ideia desse filme. Lembro de ver os primeiros trailers em dezembro do ano passado (e, novamente, fazia muito mais sentido graças ao contexto) e pensar que esta seria uma das comédias mais geniais dos últimos anos; cometi o erro de extrapolar as expectativas. É o Fim se beneficia das cenas em que claramente há muita piada interna (como o fato de Jay Baruchel e Jonah Hill não se suportarem) e das invenções que acabam com a imagem de alguns atores (sem comentários para o hilário Michael Cera que surge aqui como um pervertido viciado em cocaína), proporcionando diversos momentos de improviso. É até difícil dizer o que é atuação e o que é espotaniedade dos atores: Seth Rogen, por exemplo, surge exatamente da mesma forma que o vemos em outros filmes (uma observação divertida apontada por Danny McBride) e também em suas entrevistas fora do set.
O problema começa quando o roteiro de Rogen e do amigo Evan Goldenberg (a mesma dupla responsável por Superbad e Segurando as Pontas) se entrega de corpo e alma ao ridículo, procurando explorar os motivos e elementos por trás da catástrofe que assola Los Angeles. Apostando no Apocalipse mais “tradicional” possível, é de se espantar com a presença de criaturas cartunescas e demônios colossais com membros enormes (sério, me lembrou Sua Alteza, e o próprio James Franco diz aqui para nunca repetir esse filme) que dominam o último ato com a ajuda de efeitos visuais medíocres. A qualidade técnica nem prejudicaria se o resultado fosse realmente engraçado, mas não passa do ridículo – e não em sua forma positiva.
Dá pra se divertir e dar risadas em É o Fim, mas o grande trunfo da produção está nas piadas menores e em suas auto-referências (eu pagaria pra ver aquela ideia pra Segurando as Pontas 2, mesmo, mesmo!). Levando em conta o potencial gigantesco aqui, é uma triste decepção.
Obs: Há diversas participações especiais aqui, mas nenhuma delas é tão engraçada quanto a de Channing Tatum.
É o Fim (This is the End, EUA, 2013)
Direção: Evan Goldberg, Seth Rogen
Roteiro: Evan Goldberg, Seth Rogen, Jason Stone
Elenco: James Franco, Jonah Hill, Seth Rogen, Jay Baruchel, Danny McBride, Craig Robinson, Michael Cera, Emma Watson, Mindy Kaling, David Krumholtz, Christopher Mintz-Plasse, Rihanna, Channing Tatum
Duração: 107 min.
Crítica | Elysium
Em 2009, o diretor sul-africano Neil Blomkamp surpreendeu o mundo com seu Distrito 9. Bem pensada e repleta de comentários sociais, a ficção científica de orçamento modesto foi indicada ao Oscar de Melhor Filme e garantiu ao diretor a oportunidade de nos impressionar novamente com suas ideias; agora com muito mais dinheiro. O problema com Elysium certamente não é a falta de ideias, mas a abundância delas.
A trama é ambientada na Los Angeles de 2154, onde os humanos estão divididos em duas classes: os menos afortunados vivem em uma desolada e moribunda Terra, já os ricos e poderosos habitam a estação espacial que dá nome ao filme. Nesse cenário, o pacato Max (Matt Damon, sempre carismático) é forçado a invadir o local para encontrar a salvação, após ser exposto a uma radiação mortal que lhe tirará a vida em 5 dias.
É sempre bom quando um blockbuster resolve trazer um pouco de conteúdo em meio a explosões e efeitos visuais. Da mesma forma como elaborou uma criativa alegoria com o Apartheid em seu longa anterior, Blomkamp acerta ao trazer a questão sócio-econômica para um contexto de ficção científica que lhe permite brincar com diferentes situações e visuais: o design de produção acerta ao diferenciar a tecnologia clean e “estilo Apple” dos armamentos, próteses e aparelhos quase orgânicos que encontramos nas favelas terrestres. Os efeitos visuais também são de uma qualidade ímpar e que funcionam muitíssimo bem para gerar paisagens (a vista da Terra em Elysium é linda) ou para dar vida aos ciborgues que funcionam como uma espécie de polícia do planeta.
O problema é o excesso. O primeiro ato do filme é intrigante por nos apresentar a diversos elementos narrativos e, após tantos cortes e flashbacks intrusivos, o espectador se pergunta qual será o tratamento para lidar com essas histórias tão diferentes. Temos lá o dilema de Max, as intrigas internas dentro da administração de Elysium (onde sua chefe militar ganha um retrato impecável de Jodie Foster e de seu trabalhado sotaque francês), um clichê completamente descartável que envolve uma mãe (Alice Braga, cada vez mais habituada ao idioma e o gênero) lutando para salvar a filha doente e um vilão homicida com segundas intenções no meio. Quando vai chegando o fim, tudo se colide de forma absurda e cansativa – e a montagem de Julian Clarke e Lee Smith até tenta, mas não impede que o filme tenha a sensação de ser muito mais longo do que realmente é (quase não acreditei quando olhei no relógio e percebi que haviam se passado apenas 110 minutos).
Tamanhos esses problemas que fico triste ao ver as coisas excelentes do filme e desejar que o projeto tivesse um destino melhor. Os brasileiros certamente estão curiosos quanto ao desempenho de Wagner Moura e basta dizer que o intérprete do Capitão Nascimento está completamente surtado na pele do contrabandista Spider (cujo andar manco e perna robótica quase o tornam um “pirata espacial”). Mas quem rouba o filme todo é o Kruger de Sharlto Copley, um dos antagonistas mais fascinantes dos últimos anos: robô, espada samurai, metralhadora, armadura, pode falar que ele tem… A cada piração do personagem em cena, a vontade é de abraçar Blomkamp e Copley por essa criação maleficamente inspirada. O único problema é que suas cenas de luta com Max são prejudicadas pela câmera incompreensível e os cortes excessivos.
É triste ver Elysium alcançando um resultado mediano. Com ideias excelentes, elenco de primeira e uma produção impecável, o filme de Neil Blomkamp tinha potencial para se tornar um grande filme. Vamos torcer para que o diretor mude o quadro em seu próximo projeto.
Crítica | Sicario: Terra de Ninguém
Dennis Villeneuve pode muito bem ter sido um dos primeiros diretores estrangeiros a experimentar a receptividade de Hollywood para os cineastas independentes da vanguarda atual que demonstraram talento e potencial econômico. Dessa lista, também temos Gareth Edwards que ficou com Godzilla e Colin Trevorrow com Jurassic World. E claro, Josh Trank que afundou sua carreira com Quarteto Fantástico.
Porém, ao contrário desses diretores da nova leva, Villeneuve já demonstra mais tino cinematográfico, uma alta dose de trabalho autoral – este, concentrado no suspense com requintes estilísticos visuais e sonoros. Com apenas quatro longas nessa fase hollywoodiana, o canadense já pode aparecer do lado de nomes como Hitchcock e David Fincher em algumas listinhas como um verdadeiro mestre do gênero.
Aqui em Sicario: Terra de Ningúem, Villeneuve trabalha em cima do roteiro do estreante Taylor Sheridan – ator do seriado Sons of Anarchy, que traz uma história normal sobre um tema que já foi amplamente explorado por filmes e seriados: os cartéis mexicanos que comandam o tráfico de drogas.
O filme apresenta a história de Kate Mancer, uma agente do FBI que trabalha em conjunto ao esquadrão antissequestro da SWAT. Graças à sua competência e ao resultado inesperado de uma missão, a agente é chamada para trabalhar em uma divisão nova da CIA que está concentrada em derrubar o mais temido e violento chefão do narcotráfico do cartel da cidade de Juárez, próxima à fronteira México-EUA. Nessa divisão, ela terá que aprender a trabalhar com os agentes Alejandro e Matt que utilizam métodos nada ortodoxos
Apesar do setting ser sempre interessante e generoso para novas ideias – exemplo disso é Breaking Bad, Sheridan, seja por inexperiência – é seu primeiro roteiro, ou por quaisquer outros motivos, é um roteirista falho. A forma que ele opta por contar a história é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que a trama cresce em sua cabeça, aumentando sua expectativa, ela vai se tornando mais frágil em sua lógica e sacrifica muito de seu desenvolvimento para dar lugar a uma conclusão média, uma reviravolta padrão e nada impactante. Ou seja, ao meu ver, a texto mais perde do que ganha.
Isso acontece por uma escolha muito simples: o espectador só tem ciência dos fatos na medida que a personagem de Emily Blunt vai mendigando informações para Josh Brolin e Benicio Del Toro. E, acredite, isso acontece durante o filme todo. Aqui não temos a revelação pelo visual, mas sempre pela exposição que é jogada para Kate em meio a um diálogo morno que acaba não surpreendendo ninguém – bom, fora a protagonista. Além disso, seu parceiro do FBI, Reggie é tão mal elaborado quanto sendo que nem chega a ter um desfecho satisfatório.
Com essa escolha, ela vira uma personagem de uma nota só. Existem diversas cenas para exibir o descontentamento de Kate com os rumos duvidosos que a operação vai tomando. Isso é constante, porém o arco da personagem é estruturado corretamente. Há a catarse, de modo contido, mas já vimos casos semelhantes com diversos tipos de personagens em inúmeros outros filmes que passam pela mesmíssima fórmula de roteiro realizadas de maneiras muito superiores. Aqui, simplesmente não há o impacto esperado – é manjado demais. Está mais para um tapinha nas costas.
Infelizmente, não é somente a personagem de Blunt que sofre na mão do texto. Esse formato conseguiu detonar a complexidade de praticamente todos os personagens que carecem muito de desenvolvimento. Se não fossem as atuações excelentes de Emily Blunt, Josh Brolin e Benicio Del Toro, eles mal conseguiriam cativar, não haveria empatia e você pouco se lixaria para o destino deles.
Felizmente, Blunt adiciona camadas para Kate, apesar do texto terrorista. Blunt demonstra coragem e medo. Força e fragilidade. Segurança e vulnerabilidade. É uma atuação que reforça a luta interna e a desconstrução da crença da personagem. Pena que o desfecho de seu arco seja fraquíssimo.
Já Josh Brolin acaba funcionando mais como um alívio cômico classe A. O ator é refinadíssimo na canalhice de Matt. Extremamente funcional, Brolin consegue distrair a tal ponto que nem percebemos como diversos dos diálogos entre ele e Blunt são parecidos – Blunt pede informações sobre a missão, Brolin faz piada e desconversa, Blunt fica irritada e faz uma ameaça, Brolin mente com outra piada, pede para ela aprender e a deixa falando sozinha.
O destaque mesmo fica por conta de Benicio Del Toro que reforça a imagem do ator formidável que ele é. Seu personagem, o mais desenvolvido, é um enigma. Fala pouco, tem olhar cansado, pavio curto, extremamente ameaçador e genial. Arrisco-me a dizer que ele pode tirar uma indicação ao Oscar como ator coadjuvante. O trabalho é muito rico e a trama que envolve ele te mantém acordado, mas também não espere algo grandioso. Mesmo com ele, o texto é clichê, mas a reviravolta agrada e faz alusão direta ao título do filme.
Além dos personagens razoáveis, poucos plot twists e a previsibilidade aguda que o texto sofre, Sheridan ainda investe tempo em uma subtrama paralela completamente inútil. Ela acompanha um policial mexicano e sua família. A mensagem que ele tenta transmitir aqui também é fraca, mal alocada e clichê – lembrando que não acho resoluções clichês um demérito desde que sejam bem desenvolvidas e tenham um bom propósito. Esse arco é tão fraco que pode ser facilmente esquecido após o termino da sessão. É simplesmente ineficaz porque, novamente, não criamos vínculo algum com estes personagens.
Com uma história fraca dessas, já daria para imaginar que se trata de apenas um filme razoável sobre tráfico de drogas e do fracasso das instituições. Entretanto, temos o fator X que vira o jogo e torna esse texto um filme muito bom. Esse fator é Dennis Villeneuve, o diretor mais promissor da nova leva.
Após sair de dois excelentes longas, Incêndios e Os Suspeitos – filme que considero o melhor de 2013, Villeneuve consolida de vez sua posição autoral na direção cinematográfica de Sicario. Para quem não conhece, o canadense adora trabalhar com thrillers de suspensa, com tramas densas e complexas. Mesmo que esse filme falhe no texto, o diretor lhe conferiu uma estética elegante e aprimorou ainda mais a sua impecável construção de atmosfera.
Como autor, Villeneuve opta por alguns planos gerais abertos distantes dos personagens, algo que já havia trabalhado em Os Suspeitos. Como de costume, suas composições são ricas, visualmente simétricas e equilibradas. Oras, em termos plásticos, Villeneuve é tão bom quanto David Fincher. Assistir à um filme deles é se deliciar com planos fantásticos do início ao fim.
Não somente por sua indubitável competência e apuro estético, Villeneuve trabalha novamente com um dos maiores diretores de fotografia da atualidade – Roger Deakins. Infelizmente, conferi o filme em uma projeção bem aquém da média o que prejudicou com toda a certeza a análise da cinematografia. Porém, conferindo clipes e trailer com a união do que julguei adequado pela projeção, é possível afirmar que novamente Deakins surpreende e que deve ganhar sua 13 indicação – e, provavelmente perder, de novo, para Lubezki por O Regresso.
Aparentemente, o DF diminuiu a intensidade da correção cromática que ele tanto se dedicava na pós-produção de seus trabalhos. Aqui, Deakins trabalha intensamente com um estilo naturalista que predomina nas cenas externas. Ele aproveita de tudo: pôr do Sol, lusco-fusco, Sol a pino e o sol menos agressivo da tarde. A locação colabora muito – o filme se passa no Arizona e sua zona árida, mas lembro que fotografar em local de deserto, seja areia ou neve, é sempre sinônimo de dor de cabeça. Mas estamos falando de Deakins aqui. O domínio sobre a câmera é avassalador e o resultado, espetacular. Não temos imagens estouradas de céu ou deserto. Tudo sempre na exposição correta sem prejudicar um pingo da key light para os atores. Existem momentos que, mesmo na contraluz, Deakins ajusta o diafragma da câmera de tal modo, que a luz principal para os atores não é comprometida.
Falando em contraluzes, novamente, assim como em Skyfall, Bravura Indômita e Os Suspeitos, Deakins refina ainda mais sua principal técnica autoral. As silhuetas moldadas por ele, seja no por do Sol ou no lusco-fusco, são extremamente belas. Aqui, em um dos diversos momentos que ele utiliza a técnica, transmite o negro que preenche os soldados antes da operação final. Sombrio, poético, maravilhoso.
Nas internas, Deakins trata a luz com ainda mais delicadeza. A predominância é sempre da soft light, difusa, clean. Assim como em Os Suspeitos, o cinematografista dá preferência para um posicionamento único da key light para gerar um tom sombrio no rosto dos atores. Há uma sutil queda proposital da luz de preenchimento para isso. Somente para iluminar o ator Daniel Kaluuya que Deakins não agrada tanto – seja proposital ou não. Falta luz de preenchimento para o rosto do ator que muitas vezes acaba quase com um dos olhos totalmente ocultados pelas sombras.
Villeneuve também usa Deakins para algumas novidades, umas bem-vindas, outras nem tanto. Uma das boas novidades é o uso constante de diversos planos aéreos que mostram a vastidão dos subúrbios e das paisagens naturais. Alguns, azimutais, que não ficam chapados apesar da inclinação total da câmera em noventa graus – quase um estudo da topografia do Arizona e do Texas. As outras duas novidades, por mais justificadas que sejam, considero falhas, pois sacrificam um ótimo trabalho de silhuetas que poderia ser gerado nessas cenas. No caso, Villeneuve faz Deakins utilizar câmeras de visão térmica e noturna. O resultado é interessante, mas no caso da noturna, resulta em uma imagem com ruído alto detonando a foto belíssima construída até aqui.
Para criar a tensão crescente característica de seus filmes, Villeneuve sempre movimenta a câmera com notável cuidado – travellings laterais e panorâmicas lentas, sucintas e suaves, enquanto sustenta o plano por um bom tempo – o corte, na teoria, alivia a tensão para o espectador. Outra marca autoral presente é a decupagem sempre muito equilibrada para as muitas cenas que acontecem em interiores de veículos. Acredite, Villeneuve domina o ritmo e a linguagem como ninguém durante essas cenas. Isso chega ao ápice quando nos deparamos com a melhor sequência do filme todo: a extração de um prisioneiro na cidade de Juárez.
O diretor cria uma atmosfera tão aterradora que a cidade infernal vira um personagem vivo. Só que não é apenas pelo visual estonteante do caos, da decupagem bem planejada e do ritmo perfeito da cena, mas sim pelo âmbito sonoro. Villeneuve é um verdadeiro diretor de cinema no sentido mais clássico do termo. Ele se preocupa muito além da plasticidade visual.
O som é um dos instrumentos pensados com cuidado tanto que assim como Os Suspeitos, Sicario termina com o ótimo uso do som para agregar à linguagem. Um final tão agridoce quanto. Em outras cenas, é possível perceber como ele utiliza para resolver algumas deficiências do roteiro – isso acontece na cena do jatinho enquanto Alejandro tirar uma soneca, repare.
Além da edição de som quebrar a mesmice, Villeneuve tem o auxílio da trilha musical esplendida de Jóhann Jóhannsson para fortalecer a atmosfera e lhe deixar na poltrona da cadeira. A música aqui tem base em ritmos constantes de percussão, no caso, no uso do som abafado e onipotente dos surdos. Obviamente, Jóhannsson não se limita apenas com surdos. As composições são constituídas de ritmos cíclicos, viciosos e padronizados que crescem e crescem e crescem e crescem até não poder mais. É como se o espectador se defrontasse com uma ameaça perigosíssima, cruel, sanguinária e gigantesca. Não é por menos que a música reflete o temor que há com a figura emblemática dos cartéis mexicanos.
Para realizar esse efeito, Jóhannsson usa com muita racionalidade seus ritmos certeiros na percussão, no choro melancólico dos violinos que lutam para existir na música enquanto são interrompidos pela violência súbita dos violoncelos que por sua vez são engolidos pelo sopro grave dos sousafones e das tubas. A estrutura de sua partitura é fantástica. Digamos que é possível notar a matemática por trás dos temas aterrorizantes.
Sicario: Terra de Ninguém é um filme muito acima da média e certamente um dos melhores do ano. Taylor Sheridan teve uma sorte enorme ao ter Denis Villeneuve para dirigir logo seu primeiro roteiro. Com tamanho domínio da técnica e do senso artístico, é difícil reparar na fragilidade do texto decepcionante. Não somente a direção salva, mas também o elenco afiadíssimo contando com o excepcional Benicio Del Toro, além da cinematografia sempre espetacular de Roger Deakins e da trilha musical perfeita de Jóhann Jóhannsson. O que te recomendo, é que vá sem grandes expectativas para a história de Sicario. Na verdade, nem ligue para ela, pois se não fosse os atores, você pouco se importaria pelos personagens – isso também é discutível, pois mesmo com as atuações, eu não senti empatia por nenhum deles.
Apenas faça como Matt diversas vezes diz para Kate: “Olhe e aprenda. ”. De fato, Sicario é uma das melhores aulas de cinema que se pode conseguir hoje em dia.
Sicario: Terra de Ninguém (Sicario, EUA - 2015)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Taylor Sheridan
Elenco: Emily Blunt, Benicio Del Toro, Josh Brolin, Daniel Kaluuya, Jon Bernthal, Victor Garber, Jeffrey Donovan
Gênero: Suspense, Crime
Duração: 121 min
https://www.youtube.com/watch?v=5PwwJ-18Y9g
Crítica | Mogli: O Menino Lobo (2016)
A Disney, sem a menor sombra da dúvida, é o estúdio mais arraigado dentro de sua estrutura inabalável do studio system desse novo século. A razão é simples, basta observar o calendário de lançamentos já anunciados até 2019 – uma lista, aliás, que tem potencial de expansão. Só nesse ano, temos lançamentos em quase todos os meses. Seu modelo de negócios raramente foi ameaçado ao longo das décadas, mas agora, nesses anos 2010, o estúdio ri à toa. Os filmes de super-herói modelaram a tendência para o modelo de negócios com margem de lucro de baixo risco. A Disney entende disso como ninguém com suas adaptações Marvel. Entretanto, o estúdio não se limitou a isso. A companhia é megalomaníaca e voraz: expande em diversas áreas.
Além de seus super-heróis, temos suas tradicionais animações e também de trabalhos, agora em frequência industrial, dos filmes Pixar. Não só isso, o modelo de negócios, esse studio system disfarçado, exige os famigerados season movies, sejam eles de Verão ou Inverno. Nessa leva já vimos diversas obras de recepção mista como John Carter, Tomorrowland, Tron Legacy, Príncipe da Pérsia, O Cavaleiro Solitário, Piratas do Caribe, Oz: Mágico e Poderoso ou até mesmo Horas Decisivas. Dentro desse segmento, entram os filmes de releitura de animações clássicas, um movimento iniciado pela Disney e que acabou guiando esse mercado também explorado pela Universal Pictures.
Esse “revisionismo” de suas obras clássicas, seja contos de fadas ou não, é algo próprio dessa década. Seis anos depois, é possível declarar que o longa responsável por engrenar essa fatia de mercado foi o remake de Alice no País das Maravilhas. Com o bilhão de bilheteria gerado pelo sucesso do filme de Tim Burton, os empresários da Disney notaram que a ideia deu certo. O público consumiu e o filme de sucesso virou fenômeno: estava na boca do povo. A construção dessa rede de segurança orçamentária levou tempo. O dinheiro da renda vinda da Marvel permitiu transformar o fenômeno em tendência. Eis que em 2014 surge Malévola, releitura de A Bela Adormecida – além de ser outro longa que chegou muito perto de atingir o bilhão.
O segundo acerto consolidou de vez e dissipou todas as dúvidas que a Disney poderia ter. Pouco tempo depois, uma compilação surge com Caminhos da Floresta. Em 2015, também gerando renda assustadora, Cinderela chega aos cinemas. É exatamente nessa linha que chega esse novo Mogli, porém, contando o enorme diferencial do espetáculo visual que essa história comporta.
Nessa versão, o roteirista Justin Marks trabalha um pouco mais inspirado na obra clássica de Rudyard Kipling, mas mantém, em boa parte, a estrutura feita por Walt Disney no filme de 1967. Um novo filme para novos tempos que clamam por ação, porém mantendo a essência da história com algumas alterações. Marks pretende, de início, elaborar um estudo de personagem mais aprofundado para Mogli que nunca foi desenvolvido com muito peso dramático em outras obras cinematográficas do estúdio.
Mogli é encontrado por Baguera, uma pantera negra. Acometido de simpatia pela criança, ele o leva até uma alcateia de lobos onde passa a ser criado por Raksha, uma das lobas dominantes. Aceito como um igual entre os animais da selva, Mogli vê sua vida mudar totalmente após uma longa estiagem. Com apenas uma única fonte de água na selva, presas e predadores são forçados a declamarem trégua para que todos possam beber água em paz. Porém, Shere Khan, um tigre de bengala, o animal mais cruel, perverso e assassino da selva confronta o jovem humano. Por conta de um trauma do passado, Khan detesta humanos e não admite a permanência de Mogli na selva. Sem saída e jurado de morte, o garoto parte em uma jornada fantástica com Baguera na tentativa de chegar na vila dos homens.
Bebendo muito da fonte vinda do filme original, Marks consegue criar elementos interessantes, investir onde era preciso mais dedicação e elaborar releituras de personagens. Marks acerta em explorar mais a alcateia que criou Mogli. Apresenta alguma boa relação do menino lobo com sua mãe e seus irmãos filhotes sugerindo até mesmo um vínculo mais profundo com um deles, um cerne que logo é deixado de lado. Na verdade, essa introdução serve apenas para mostrar unidade dentro da alcateia, sua hierarquia e suas leis.
Em pouco tempo, o roteirista já mostra qual será o conflito principal para Mogli. A crise de “espécie” que o garoto tinha na animação é descartada para apresentar um desenvolvimento da descoberta e aceitação de Mogli como homem. Isso se dá pelo uso de instrumentos, algo que nenhum dos animais sabe manipular nesse universo, já deixando clara a distinção entre Mogli e os bichos. Entretanto, a alcateia não admite que a natureza humana – representada pelos instrumentos, do garoto desperte. É um conflito muito interessante que é satisfatoriamente desenvolvido ao longo do filme com a participação de Balu ser vital para a evolução dele nesse sentido.
Ao contrário do filme original, é Mogli quem é plenamente trabalhado – Balu é explorado em menor escopo. Dessa vez, boa parte dos personagens clássicos tem um propósito narrativo melhor exposto seja com Kaa, Rei Louie e Shere Khan. Porém, graças a isso, paradoxalmente, o protagonista se comporta como uma bolinha de pinball. É jogado a diversos cantos a cada cena com pouquíssimo poder de escolha como se ele não pensasse muito por si só.
Nisso, entram os equívocos de Marks, tanto na história como na releitura de um personagem muito querido: Balu. Apesar de manter a filosofia de vida despojada do urso, o roteirista altera a essência da relação da amizade com Mogli. Uma das amizades mais puras que o Cinema já nos trouxe é repleta de segundas intenções e manipulação. Obviamente, isso acaba afetando a experiência do espectador que já viu ao filme original. Nisso, complica-se a transformação de Balu em um ser responsável, paternal. Com Baguera, nada muda, o personagem ainda segue como um exemplo de responsabilidade, mas Marks pouco se importa em agregar um conflito ou mais complexidade à pantera. Os elefantes de Coronel Hathi são imbuídos de significado religioso servindo apenas como muleta de conflito à Mogli, nada de muito especial ou criativo.
Entretanto, novas características foram bem-vindas para Kaa e Rei Louie, ambos funcionam como antagonistas ameaçadores e cheios de malícia. O discurso genocida e desejo em manipular o fogo – elemento, este, que é citado incessantemente durante o longa, de Louie é intocado, mas muito melhor argumentado, além de receber um tratamento muito interessante de máfia italiana misturada com um déspota repleto de tesouros inúteis.
Esse cuidado com os personagens também atinge Shere Khan que absolutamente rouba a cena a cada sequência dedicada a ele. Um backstory é criado, sua motivação é mais genuína, seu ódio, mais evidente. Uma pena que as escolhas de Marks para desenvolver a caçada à Mogli tomem rumos inesperados e incoerentes com o discurso do vilão que faz uma aposta muito alta para cumprir seu objetivo. Seus diálogos são bem construídos, em particular, ainda que um deles aposte já na velha metáfora cliché sobre o ninho dos cucos. Já o desfecho do filme também peca por destruir parte do trabalho do protagonista, além do já tradicional embate final em cliffhanger assim como com Mulan ou Tarzan.
A proposta de Jon Favreau é audaciosa: adaptar uma fábula repleta de animais fantásticos em live action. Porém, esse sonho torna-se realidade graça ao poderio monstruosa da tecnologia de computação gráfica que diversas companhias apresentaram em comunhão com a Disney. Em técnica, o filme é estupendo, praticamente impecável.
Em grande parte, o longa é construído via computação gráfica – desde os modelos para os animais, da vegetação, topografia, efeitos climáticos como vento e chuva até boa parte da iluminação. Nisso o cinematografista Bill Pope erra pouco apostando no tratamento convencional de luz suave e delicada para iluminar o único ator presente em carne e osso: Neel Sethi. Além disso, há espaço para a luz dura retratando o sol intenso que castiga a selva em algumas cenas. Pope e o departamento de VFX apenas erram ao falhar na simulação da projeção das sombras de árvores virtuais quando Sethi caminha embaixo de suas copas.
É difícil notar isso, pois Favreau se inspira bastante nos enquadramentos de Reitherman na animação de 1967. Ou seja, seus planos são sempre bastante abertos que além de funcionarem como objeto para contemplação, auxiliam na liberdade da construção dos efeitos e na atuação do pouco carismático ator protagonista graças a quantidade bem limitada de closes.
Como Sethi falha bastante em expressões faciais e com suas interações com os outros bichos criados virtualmente –algo que acredito ser realmente muito difícil, ainda mais para um ator estreante. Porém sua similaridade física com o personagem é notável, além de Favreau ter dado grande orientação visando aproveitar ao máximo das expressões corporais do garoto que remetem às animações do clássico até certo ponto.
Favreau realmente demonstrou um grande amadurecimento criativo em Mogli. Ele trabalha a ação de forma realista em grande maioria, não tem medo de caminhar sua atmosfera para tons bastante sombrios, coloca elementos pesados nas entrelinhas, além de tratar, esteticamente, Mogli como um verdadeiro menino da selva. Ele é marcado por arranhões, sujeira, cortes, cicatrizes e até mesmo sangra em algumas cenas. Favreau sabe construir bem a tensão ao colocar o garoto em risco em diversos momentos o que torna todo esse universo mais crível.
Além disso há toda a criação visual de extrema exuberância e cuidado com detalhes. Todo o cenário é vivo, pulsante, vibrante, repleto de cores. Sua decupagem e movimentação de câmera aproveitam isso tudo. Acaba sendo muito mais plural que As Aventuras de Pi, outro filme de proposta similar, graças as constantes trocas de cenários. É fácil se encantar pela imponência da floresta, do templo abandonado de Rei Louie ou da selva sombria de Kaa. Há até mesmo um belíssimo time lapse que remete às construções visuais de Darren Aranofsky em Noé. Fora isso, seu tratamento para com Mogli é muito mais direcionado para a interpretação de Rousseau do “bom selvagem”.
Já sobre os animais, não há o que dizer. Toda a modelagem, textura e animação tornam as feras críveis e cheias de vida, cada uma com suas particularidades. Porém, acredito que justamente com Balu, a proposta fotorrealista acabou prejudicando muito a variedade de suas expressões. Se o espectador não dedicar boa parcela, não perceberá quase alguma mudança notória em sua face.
Os poucos deslizes que Favreau comete são graves ao tentar prestar homenagens ao filme original. Isso se dá na inclusão das duas únicas canções que retornam: Bare Necessities e I Wanna Be Like You. O encaixe não funciona de forma alguma, além de serem sequencias muito limitadas, nada criativas, por conta até da fisiologia dos personagens, agora “realistas”. Acaba deixando toda a atmosfera estranha e fora de lugar. Era melhor deixar as canções restritas aos créditos finais que prestam uma homenagem mais inteligente à animação. Aliás, Favreau e John Debney, compositor da trilha musical, acertam ao puxar um pouco dos arranjos clássicos de George Bruns – ainda que os novos temas sejam muito mais voltados para o típico blockbuster contemporâneo.
O outro tropeço do diretor é uma falha de construção de montagem, próxima ao final, que praticamente arruína a geografia da selva e a distância estabelecida ao longo do filme com o conflito Shere Khan vs. Mogli.
Entretanto, a pior característica é restrita à nossa versão nacional da película: a dublagem brasileira. Ao escolher atores famosos ante os profissionais que redublaram há pouco tempo o filme de 1967, a Disney acabou prejudicando muito dois dos personagens: Balu e Mogli. Já com uma performance fraca, por vezes caricata, de Neel Sethi, o garoto consegue sair prejudicado pelo talento nacional de sua voz muito alheia ao drama que se passa em tela, artificial ao extremo da performance de Arthur Valadares. A dublagem de Mogli só não é a pior do filme por conta de Marcos Palmeira que passa a impressão de um Balu lesado por conta de sua fala arrastada, monótona que não colore ao menos uma mísera variação relevante em seus tons de voz. É difícil ter empatia por um urso tão alheio de tudo ao seu redor.
Ao menos o restante do elenco nacional não é tão ruim limitando-se na maioria com trabalhos medíocres. Quem se destaca é Julia Lemmertz e Thiago Lacerda dublando Raksha e Shere Khan, respectivamente. Como não vi a versão legendada, não sou capaz de oferecer uma análise competente.
Este novo Mogli: O Menino Lobo é um marco para o nosso cinema de hoje, pois deixa bem claro para onde a indústria caminha. Filmes repletos de efeitos visuais estonteantes que chegam a limar a presença física do ator em set e de adereços físicos de design de produção. Explorando coisas novas, trazendo um conflito diferente para o protagonista com bom espirito de aventura sem medo de exibir cenas mais sombrias, além da inevitável mensagem ambientalista, o remake peca pouco com erros triviais e por preguiça de investir mais em seus personagens coadjuvantes, principalmente Baguera. O grande espetáculo aguarda uma nova geração que provavelmente sairá encantada com essa história atemporal de Kipling e Disney, porém creio que não substituirá tão facilmente a memória afetiva daqueles que cresceram com o belíssimo clássico de 1967.