Crítica | Kick-Ass 2
Kick-Ass 2 é o tipo de filme que eu não consigo acreditar que realmente existe. Sou fanático confesso pelo primeiro de 2010, e a ideia de uma continuação para uma adaptação de quadrinhos – pouco conhecida – que quase ninguém viu no cinema era utópica. Eis que entra Jeff Wadlow (quem?) e resolve tocar o projeto ao assumir tanto o roteiro quanto a direção. Em comparação com o filme de Matthew Vaughn, é decepcionante em termos de narrativa e estilo, mas ainda assim compensa a visita.
A trama é ambientada algum tempo depois do primeiro filme, trazendo Dave Lizewski (Aaron-Taylor Johnson) entediado com sua vida pacata e aposentada dos tempos de Kick-Ass. Convencido a voltar à ativa após um treinamento pesado com a colega Mindy Macready/Hit-Girl (Chloë Grace Moretz), agora no ensino médio, e acaba por juntar-se a uma organização amadora de super-heróis comandada pelo carismático Coronel Estrelas e Listras (Jim Carrey). Enquanto tudo isso acontece, o jovem Chris D’Amico (Christopher Mintz-Plasse) planeja uma vingança mortal contra Kick-Ass, agora sob a identidade do Motherfucker.
Já adianto uma coisa muito estranha que me chamou a atenção logo no período de divulgação: Dave estava no último ano do ensino médio no primeiro filme (certo?) e Mindy tinha 11 anos de idade. Como é possível que a menina tenha 15 anos, no primeiro ano do ensino médio, e Dave ainda esteja no colégio? Esse tipo de distração é um dos fatores que me perturba em Kick-Ass 2 (sem nem mencionar como a namorada vivida por Lyndsy Fonseca é dispensada da história…), mas são menores em questão de roteiro – no mais, a trama é bem feita, redonda e até fiel aos quadrinhos de Mark Millar. O problema é mesmo a direção de Wadlow, que insiste em uma câmera inquieta e coreografias pouco imaginativas na maioria das cenas de ação e tem a estranha noção de que todos os – intrusivos – momentos de reflexão/drama podem ser resolvidos com um zoom suave no rosto dos atores. Sem falar que Wadlow opta por uma velocidade absurda em seu primeiro ato, tornando quase impossível o desenvolvimento de seus personagens e ações – uma direção quase que descontrolada.
Mas de qualquer forma, é uma filme muito divertido. Além das sensacionais frases de efeito (“Bem que o Robin queria ser eu”, “Eu vou ser tipo um Jesus do mal”) que despertam ânimo em qualquer amante de HQs, o elenco permanece tão carismático quanto no primeiro filme. Aaron Taylor Johnson segura as pontas como protagonista e Christopher Mintz-Plasse surge insano como um vilão que é mau simplesmente por “achar isso legal”, mas é (de novo) a Hit-Girl de Chloë Grace Moretz que chama mais a atenção. Mesmo que não seja a mesma coisa vê-la destroçando bandidos e soltando palavrões sem a estatura de criança, o filme acerta ao explorar a entrada da personagem no mundo adolescente (com exceção de uma piada de vômito/diarréia que seria rejeitada até mesmo pelos roteiristas de Todo Mundo em Pânico) e Moretz consegue equilibrar a força de Mindy com uma inesperada fragilidade. Pra fechar, Jim Carrey surge divertidíssimo como o Coronel Estrelas e Listras, mas é pouco aproveitado pela trama agitada.
É realmente uma pena que Matthew Vaughn tenha limitado-se à produção de Kick-Ass 2. O projeto merecia alguém mais talentoso do que Jeff Wadlow, mas ainda é possível encontrar material aqui para ser entretido por 108 minutos, ainda mais se você for fã do personagem. E eu realmente espero reencontrá-los em um hipotético Kick-Ass 3, mas sob melhor direção.
Obs: Há uma cena após os créditos. E essa importa, mesmo.
Obs II: “Mãe Rússia”. Daria um abraço no Mark Millar por essa ideia.
Crítica | De Olhos Bem Fechados
A expectativa é um veneno mortal. Ainda pior quando tem os olhos voltados para o estágio final da carreira de um grande cineasta, culminando na subestimação de uma obra competente (e, por vezes, excepcional) simplesmente por esta entregar-nos ao traiçoeiro vício de esperar demais pelo resultado. De Olhos bem Fechados, último filme de Stanley Kubrick, é vítima do cenário descrito e ao redescobrir a obra na tela grande hoje, encontramos um filme impressionante que faz jus ao currículo de seu diretor.
A trama é ambientada em uma Nova York repleta de decorações natalinas e clima de festa, tendo em foco o casal composto por Bill (Tom Cruise) e Alice Harford (Nicole Kidman). Quando a esposa revela que um dia já pensara em traí-lo e abandonar o casamento, Bill sai pelas ruas na madrugada e acaba embarcando em uma odisseia que o coloca de frente com uma misteriosa sociedade secreta de culto ao sexo.
O filme de 1999 traz uma história muito simples, mas que espanta pelo desenrolar bizarro e repleto de situações inesperadas. Ajuda o fato de que o roteiro assinado por Kubrick e Frederic Raphael (com base em um livro de Arthur Schnitzler) aposte em uma narrativa que abranja um curto período de tempo, o que facilita para que o espectador esteja praticamente ao lado do personagem de Tom Cruise.
Pela longa madrugada, encontramos diversos eventos que não necessariamente precisam estar lá (como as cenas que envolvem a filha do vendedor de fantasia com dois chineses), mas que contribuem para a criação de um universo sujo e pervertido, escondido no coração de uma grande cidade. Nesse quesito, não existe melhor representante do que a orgia mascarada (uma mais sinistra do que a outra) descoberta por Bill, que rende uma das mais hipnotizantes cenas da carreira de Kubrick, ao trazer figurantes envoltos em atos sexuais explícitos ao som das provocantes composições de Jocelyn Pook – além das supostas referências Iluminatti que sempre rendem controvérsias e artigos muito interessantes a respeito da imensa simbologia presente no filme.
Assim como em todo filme do diretor, há um excepcional cuidado técnico na produção. A começar pela magistral fotografia de Larry Smith, que constantemente fotografa ambientes com uma coloração quente, contrastando com os tons azuis vindos de janelas; vide a espetacular discussão do casal formado por Kidman e Cruise (ambos ótimos, diga-se de passagem), onde a sobreposição das personagens banhadas por luzes alaranjadas sobre o tom azul do banheiro é belíssima, além de exacerbar o calor da situação. E com exceção de O Iluminado (que, afinal, é uma obra feita para assustar), Kubrick nunca foi tão eficiente ao construir o suspense quanto aqui, mérito de seus longos planos e da minimalista composição “Musica Ricercata II”, de György Ligeti, que invade a projeção em seus momentos mais inquietantes.
Alguns dizem que Kubrick ficou insatisfeito com o resultado final de De Olhos bem Fechados, outros dizem que ele considerou esta sua maior contribuição para o cinema. Não acho que seja nenhum nem outro, mas o filme certamente merece muito mais louvor do que o recebido durante sua época de estreia, já que permanece uma obra madura, intrigante e digna de encerrar a carreira de um dos melhores diretores da História.
Obs: Além de uma ponta do diretor, há diversos easter eggs referentes à carreira do próprio. O mais divertido? A máscara usada por Tom Cruise é um molde do ator Ryan O’Neal, de Barry Lyndon. Nice.
Crítica | Barry Lyndon
Antes de assistir a Barry Lyndon pela primeira vez (cerca de quatro meses atrás), eu me perguntava – receioso – o que Stanley Kubrick seria capaz de fazer numa produção de época, como usaria seu estilo marcante numa história ambientada no século XVIII. Quem acompanha o blog, sabe da minha teimosa resistência ao gênero, mas se todas as obras que se dedicassem a eventos históricos fossem como este longa de Kubrick, eu não haveria do que reclamar.
A trama é baseada no livro de William Makepeace Thackeray, que romantiza de forma irônica a história real de um irlandês oportunista. No filme, ele assume a forma de Redmond Barry (Ryan O’Neal, sensacional com sua cara de coitado), um jovem pobre que deixa sua terra natal da Irlanda para atingir sua meta de pertencer à alta sociedade inglesa em meio à Guerra dos Sete Anos. Com um talento para convencer todo o tipo de indivíduo com suas histórias mentirosas e se livrar de situações arriscadas com muita peripécia, acompanhamos diversas das aventuras de Barry até sua inevitável e trágica queda.
Terminada a exibição do filme na edição deste ano da Mostra Internacional de Cinema (que traz uma retrospectiva imperdível sobre o cineasta, além da incrível exposição no Museu de Imagem e Som), eu reforçava minha teoria pessoal de que Kubrick mantinha uma máquina do tempo escondida da população. Barry Lyndon é um dos longas-metragem mais lindos já vistos, tendo a equipe técnica merecedora de algo muito maior que um Oscar (a produção levou 4 merecidas estatuetas em 1976) ao retratar com perfeição o século XVIII. Seja na direção de fotografia de John Alcott – cujo equilíbrio de cores, predominância de luz natural e o uso de lentes especiais providenciadas pela NASA aproximam as imagens de uma pintura em movimento – ou no excepcional trabalho de pesquisa e confecção dos diversos tipos de figurinos (militares, burgueses, camponeses), o filme é um feito estético sem precedentes; possivelmente a maior obra de Kubrick em termos visuais, algo que nem efeitos CG (e não estou sendo saudosista) são capazes de simular.
O que nos leva a seu controverso (e genial) diretor. Antes de ser um filme histórico, um filme de época ou um filme de romance ambientado num palácio arcaico, Barry Lyndon é essencialmente um filme de Stanley Kubrick. Sua simetria visual é predominante como sempre (ganhando destaque em uma sequência de batalha que diminui o ritmo, mas impressiona justamente pelas opções de câmera do diretor), assim como a calculada posição (e os movimentos) de seus personagens – que aqui reproduzem diversas cenas vistas em diferentes obras de arte do período – e seu apurado ouvido para as mais belas músicas instrumentais. Seu narrador irônico também contribui para o sucesso do longa, especialmente por encurtar eventos mais longos e tecer sutis comentários sarcásticos (“Seria preciso um grande historiador, ou talvez um grande filósofo, para tentar explicar as causas da Guerra dos Sete Anos”) que abordem o período e as questões sociais envolvidas.
O único problema de Barry Lyndon é sua extensa duração (184 minutos), que gera uma leve quebra de ritmo durante a Parte II da grandiosa obra. Perfeito em sua ambientação e comando de história, arrisco-me a dizer que este é um dos filmes definitivos do gênero. Meu preferido, ao menos.
Crítica | Carrie, A Estranha (2013)
É sempre bom repetir aqui algo que comento com frequência: remakes podem ser bons, é meramente uma questão de readaptar com inteligência a mesma história. Já é a terceira vez que o romance de Stephen King ganha uma versão em carne e osso (além do clássico de Brian De Palma em 1976, há uma minissérie da MGM com Angela Battis, de 2002), e Kimberly Peirce realmente prometia agradar com sua Carrie, A Estranha. Mas não. Infelizmente a produção acaba prejudicada por escolhas infelizes de casting e adaptação.
A trama repete praticamente toda a estrutura já estabelecida nas adaptações anteriores, com Roberto Aguirre-Sacasa (roteirista de séries como Amor Imenso e Glee) e Lawrence D. Cohen (responsável pelo roteiro do filme de De Palma) apresentando-nos à jovem e insegura Carrie White (Chloë Grace Moretz), cujo bullying e intimidação por parte de suas colegas de escola se intensifica quando essa experiencia sua primeira menstruação. Atormentada também por sua mãe, uma religiosa assustadoramente fundamentalista vivida por Julianne Moore, Carrie acaba por descobrir poderes telecinéticos.
O desfecho da história todo mundo conhece, basta olhar para qualquer um dos cartazes de qualquer adaptação de Carrie. É apenas uma questão de chegar lá de forma eficiente e garantir um desenvolvimento a suas personagens principais – o que é essencial para o funcionamento de qualquer narrativa, mas a de Carrie White, principalmente. O roteiro até acerta ao trazer elementos do século XXI para o desenrolar dos eventos, como registrar (e depois viralizar) um dos atos de humilhação da protagonista registrados com um celular ou ao mostrar Carrie acessando a internet para se deparar com videos a respeito da natureza de suas habilidades sobrenaturais. E só, de restante o texto não acrescenta nada e ainda suaviza diversos elementos da história (nada de nudez no vestiário ou professoras estapeando alunas rebeldes) – com exceção da violência, que aqui ganha retoques em CGI que de tão absurdos, soam artificiais. E que coisa medonha (no mal sentido) ver a protagonista usando sua telecinesia para flutuar ou causar uma cratera com uma pisadela no melhor estilo Incrível Hulk…
A diretora Kimberly Peirce (de Stoploss – A Lei da Guerra e o elogiado Meninos não Choram) até oferece boas imagens, movimentos de câmera interessantes e rimas visuais admiráveis; vide o plano em que Carrie observa suas mãos ensanguentadas após sua menstruação e que se repete quando esta encontra-se coberta de sangue no icônico massacre no baile de formatura. Mas até as construções visuais mais elaboradas são arruinadas por sua protagonista problemática: a talentosa e bonita Chloë Grace Moretz, que surge aqui completamente fora do “padrão Carrie”. Não que isso fosse um problema grave (afinal, Daniel Craig de James Bond não tinha nada, e o resultado todo mundo sabe), mas Moretz se entrega ao caricato e a vergonhosas expressões orgásticas durante o uso de seus poderes – sem falar que o sadismo/prazer que a jovem demonstra ao assassinar jovens inocentes é algo que destrói completamente a essência da personagem, tornando difícil que uma conexão seja criada com o público. Aliado a isso está o fato de que nós mal conhecemos Carrie, já que boa parte dos 90 minutos são mais dedicados à seus poderes do que seu “eu”.
Felizmente, Julianne Moore surge inspirada como Margaret White, a verdadeira responsável por rotular a trama como um terror. Com uma caracterização de visual e figurino acertadíssima – créditos ao diretor de fotografia Steve Yedlin por sempre evidenciar de forma assombrosa as sardas da personagem – me atrevo a dizer que Moore tenha alcançado a performance definitiva da mãe de Carrie, que já fora interpretada brilhantemente por Piper Laurie e com eficiência por Patricia Clarkson.
Me segurei ao máximo para evitar comparações com o filme de De Palma, mas será inevitável agora. Sentíamos pena da Carrie White vivida pela incrível Sissy Spacek, mas com esse novo Carrie, A Estranha eu tenho pena é dos envolvidos.
Carrie, A Estranha (Carrie, EUA - 2013)
Direção: Kimberly Pierce
Roteiro: Roberto Aguirre-Sacasa e Lawrence D. Cohen, baseado na obra de Stephen King
Elenco: Chloë Grace Moretz, Julianne Moore, Ansel Elgort, Portia Doubleday, Gabriella Wilde, Judy Greer, Alex Russell
Gênero: Suspense
Duração: 100 min
Crítica | Em Transe
Sou fascinado pela complexidade da mente humana e as incríveis funções do cérebro. Também nunca recusei um bom filme de heist (assalto). Então, após o diretor Christopher Nolan juntar os dois temas com maestria em A Origem, fiquei empolgado com a imersão de Danny Boyle em Em Transe, longa que compartilha de uma premissa similar mas que falha por ultrapassar a linha entre o “absurdamente bom” e o “absurdamente… absurdo”.
A trama gira em torno de um roubo a uma casa de leilões londrina. O bando liderado por Franck (Vincent Cassel) consegue com êxito roubar uma preciosa pintura, mas encontra um desafio ainda maior quando Simon (James McAvoy), o leiloeiro responsável pelo trabalho interno, recebe uma pancada na cabeça e esquece o paradeiro do quadro. Certo de que o sujeito não faz jogo duplo, Franck contrata a terapeuta Elizabeth (Rosario Dawson) para submeter Simon a sessões de hipnose, visando ajudá-lo a se lembrar de tudo.
É uma premissa sedutora para qualquer cineasta. Dono de um estilo autoral invejável, Danny Boyle fornece ao longa um visual arrebatador, dando ao diretor de fotografia Anthony Dod Mantle a possibilidade de “brincar” e experimentar diversas paletas de cores e iluminações distintas – dentre as quais destaca-se a contra-luz, utilizada com frequência. Boyle também é criativo ao oferecer diversos enquadramentos que capturam a estranheza de situações e ambientes, seja pela posição da câmera (que constantemente opta pelo “ângulo holandês, inclinado) ou pelas diferentes lentes escolhidas, alcançando um resultado onírico que se assemelha muito com seu trabalho em Trainspotting.
Mas se Em Transe é visualmente estimulante, também revela-se uma narrativa desequilibrada e cheia de furos. O roteiro de Joe Ahearne e John Hodge (que já havia sido adaptado em 2001 para a televisão) é hábil em fornecer enigmas e questionamentos para o espectador – especialmente por iniciar o longa na “metade” da história – e preencher seus personagens com atitudes capciosas. No entanto, é decepcionante ao buscar explicações absurdas para os mistérios do longa, principalmente pelo implausível arco da Elizabeth de Rosario Dawson (que exibe corajosamente seu corpo em momentos-chave) e das demais reviravoltas que não fazem sentido dentro da trama. É difícil falar sobre suas falhas sem entregar spoilers, mas basta dizer que o longa se perde na tentativa de gerar ambiguidade.
Com uma trilha sonora agitadíssima assinada por Rick Smith, Em Transe é cativante em sua premissa e trabalho visual, mas são elementos desperdiçados por uma narrativa bagunçada e desestruturada. É daqueles filmes pra se ver com muita atenção, pois dessa forma será possível enxergar todos os furos de seu roteiro.
Crítica | Terapia de Risco
Steven Soderbergh é um artista multifacetado. Não assisti a todos os seus filmes, mas uma rápida olhada em sua página do IMDB comprova sua admirável versatilidade em gêneros (golpistas, traficantes, agentes secretas e até o Che Guevara já foram capturados por suas lentes) e funções cinematográficas, atuando – além da direção – nos departamentos de fotografia e montagem. Tido como sua última produção para o cinema, Terapia de Risco reúne com eficiência diversos de seus traços autorais, mas falha ao oferecer uma bizarra combinação temática.
Roteirizada por Scott Z. Burns (que assinou o ótimo Contágio, também de Soderbergh), a trama tem início quando Emily (Rooney Mara, a nova garota do dragão tatuado) recebe seu marido (Channing Tatum) recém-libertado da prisão. Sofrendo com uma repentina depressão após sua chegada, a jovem é aconselhada pelo dr. Jonathan Burns (Jude Law) a experimentar um novo tipo de medicamento a fim de reverter sua situação – que é exacerbada com frequentes tentativas de suicídio. Daí vêm os “side effects” do título original, mas há muito mais do que parece.
Da mesma forma como abrangeu com maestria os estágios e desdobramentos de uma epidemia global em Contágio, o roteiro de Burns é hábil ao nos situar no mundo da psicofarmacologia. O texto é repleto de termos médicos, rápidas “curiosidades” sobre a área e ainda oferece uma curta (e eficaz) reflexão a respeito do papel midiático na venda de remédios (“Deveria funcionar, as pessoas sempre estão felizes nos anúncios”, constata uma das personagens ao se deparar com a falta de resultados de seu tratamento) e suas diversas consequências aos pacientes e médicos. Características que Soderbergh retrata brilhantemente através de planos criativos, lentes de desfoque e uma fotografia predominantemente fria e obscura; alternando também a intensidade de seus movimentos de câmera, que são mais “câmera-na-mão” quando a trama alcança territórios inesperados.
E é nesse ponto que encontramos os problemas de Terapia de Risco. Após uma surpreendente reviravolta (que não irei revelar a fim de preservar as surpresas), o longa começa a evoluir para algo completamente diferente e, quando equiparado com a progressão do primeiro ato, incompatível. Mesmo que as escandalosas descobertas feitas pelo personagem de Jude Law sejam intrigantes, quem se beneficia dessa brusca mudança de ritmo imposta pela narrativa é Rooney Mara. Frágil como uma boneca de vidro em suas primeiras cenas, a atriz evidencia novamente seu imenso talento ao apresentar um caráter inesperado a sua Emily; mesmo que traga uma estranhíssima relação com a terapeuta vivida por Catherine Zeta-Jones.
Como a carreira de seu diretor, Terapia de Risco é um longa repleto de fases e surpresas. Mesmo que as várias camadas de sua trama percam-se na implausibilidade, é uma conclusão (será?) eficaz para uma carreira tão variada.
Obs: “Terapia de Risco”, sério?
Crítica | Indomável Sonhadora
No Brasil, muitas áreas de risco sofrem com a incidência das chuvas, que cobrem seus territórios com água e acabam por destruir centenas de lares e vidas humanas nesse processo. Sensação de crítica no festival de Sundance, Indomável Sonhadora me fez lembrar muito das imagens que dominam nossos televisores quase que em verão atrás do outro, e carrega consigo uma bela mensagem sobre preservação ambiental – e o papel que até o menor dos elementos desempenha neste.
Adaptada da peça Juicy and Delicious de Lucy Alibar, a trama gira em torno da garotinha Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), habitante de uma região pobre conhecida como “a Banheira” (apelidada assim por sofrer constantemente com as tempestades de chuva, que acabam por transformar suas casas em embarcações flutuantes). Em meio a desastres naturais e o avanço de uma doença grave de seu pai (Dwight Henry), ela busca entender seu significado no mundo.
Filme de estreia do diretor Benh Zeitlin, Indomável Sonhadora causou fervor em diversos festivais de cinema pelo mundo e ainda garantiu seu lugar nas principais categorias do Oscar deste ano (incluindo melhor filme, diretor e roteiro adaptado). E ainda que não considere uma obra digna de tanto prestígio (devido a alguns problemas que o longa apresente em sua peculiar execução), respeito a direção segura de Zeitilin e a forma com que este retrata a precariedade do cenário principal.
Isso porque o diretor – que surge sempre adotando uma câmera incessante e rodeada de tomadas “essencialmente indies” – não é sensacionalista como o telejornalista do noticiário das seis. Mesmo que seja de partir o coração observar um pai e sua filha navegando em uma jangada improvisada com peças de carro e eletrodomésticos, Zeitlin não conduz a cena a fim de encontrar a melancolia (não há uma música pesada e dramática em tais momentos, por exemplo) e consegue tirar situações mais interessantes graças ao roteiro que co-assina com Lucy Alibar. E os protagonistas, para nosso deleite, se beneficiam destas.
Acompanhar a complexa relação de Hushpuppy com seu pai Wink é o ponto alto do filme. Não só porque tanto Wallis (que tinha 8 anos durante as filmagens, vejam só) quanto Henry são intérpretes excepcionais, mas também pela admiração que a figura paterna gera ao se esforçar para garantir a sua filha bons momentos. Mesmo diante dos cenários mais extremos, Wink tenta tirar uma lição para ensinar a Hushpuppy de forma que não a degrade (a menção a ela como “man” é eficiente nesse quesito) e lutar contra a doença que lhe ameaça tirar a vida.
Com diversas passagens protagonizadas por criaturas pré-históricas que marcam presença simbólica (creio eu), Indomável Sonhadora explora de forma criativa e apropriada a relação de “causa e efeito” dentro de um ecossistema, enfatizando como cada pequeno elemento pode gerar consequências devastadoras, e também como as relações familiares podem ser comparadas com tal. É o grande indie da temporada de prêmios.
Crítica | O Grande Gatsby (2013)
Considerado por muitos um dos “grande romances americanos”, O Grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald é uma obra requintada que se desenrola com uma sutileza ímpar. Baz Luhrmann, diretor desta glamourosa nova versão, jamais foi conhecido por sua sutileza (afinal, estamos falando do responsável por Romeu + Julieta e Austrália). Pode se dizer que o australiano é uma das pessoas menos indicadas para comandar a história, mas seu estilo grandiloquente – ainda que seja prejudicial em certos momentos – encontra espaço aqui.
A trama é ambientada na Nova York dos anos 2o (período popularmente conhecido como “Era do Jazz”, ou “Geração Perdida” para os menos saudosistas), centrando-se no aspirante a escritor Nick Carraway (Tobey Maguire). Enquanto recupera-se em um sanatório, Carraway compartilha por escrito suas experiências em meio a alta classe social e o mistério em torno do milionário Jay Gatsby (Leonardo DiCaprio), sujeito que esconde uma indestrutível paixão pela casada Daisy Buchanan (Carey Mulligan).
Década de 20 e, ainda assim, temos Jay-Z e Beyoncé na trilha sonora. Muitos críticos estrangeiros apontaram o dedo para a abordagem pop de Luhrmann à história, mas ao meu ver ela pontua com eficiência o clima de exaltação e festa da época – basta lembrar do Gatsby de 1974, com Robert Redford, que era silencioso demais para simbolizar algo como a Era do Jazz. É certo que a obra de Fitzgerald não é tão “aberta” quanto a direção de Luhrmann, que mais de uma vez pára para explicar detalhes que funcionavam por si só de forma sutil (três vezes, e por três personagens diferentes, é explicado o motivo pelas festas grandiosas do protagonista) e momentos mais agitados – ainda que um certo atropelamento seja tão memorável justamente por sua execução escandalosa e a escolha musical.
Também elogio Luhrmann por compreender a importância da luz verde na trama, transformando-a em um poderoso elemento visual e eficiente instrumento narrativo. O cais de Gatsby surge como abertura e encerramento do longa, como se o espectador realmente tivesse entrado e saído daquele universo. É interessante observar que, mesmo tendo sua amada Daisy em seus braços, o personagem continua a contemplar a luz esverdeada irradiando do outro lado da costa. Uma observação sutil que revela uma camada ainda mais complexa de Gatsby, que Leonardo DiCaprio consegue incorporar bem em uma performance multifacetada: seu Gatsby é ambicioso, mas vulnerável; otimista, mas impaciente.
Impossível não falar sobre o impecável trabalho da figurinista e designer de produção Catherine Martin (que além de tudo isso, ainda é produtora e esposa do diretor). Vencedora de 2 Oscars por suas colaborações com Luhrmann, deve retornar à premiação por recriar fielmente locações e vestimentas da época e ainda oferecer-lhes um toque moderno: o vermelho burlesco predomina na caracterização da Myrtle Wilson de Isla Fisher, o que a torna uma figura assustadoramente contrastante com o cinza escuro e sujo de seu marido e a região onde habitam. A fotografia de Simon Duggan também se adequa com obediência às demandas narrativas, além da facilitar o elegante 3D do filme – que, curiosamente, fica mais profundo graças à artificialidade do greenscreen.
Mas se a artificialidade é um acerto nesse sentido, é o que o filme traz de pior quando analisamos seu roteiro e execução. Em diversos momentos, o filme assume uma postura maniqueísta diante de alguns personagens (o mecânico vivido por Jason Clarke ganha aqui um tratamento de monstro, e o ator nada pode fazer para torná-lo tridimensional) e faz uso. Apostando em velocidade, os montadores insistem em picotar até os mais simples diálogos com uma série de cortes que dificulta a fluência da cena e o desenvolvimento das ações; vide a conversa entre Nick e Gatsby no Rolls Royce amarelo, que surge como uma “metralhadora” de informações e ainda tornam evidentes algumas falhas na mixagem sonora daquele momento – e o que dizer da cena que tenta equilibrar uma conversa silenciosa com uma festa gigantesca?
Filme que certamente merece maior reconhecimento do que a de 1974,O Grande Gatsby impressiona pela produção e os experimentos visuais de Baz Luhrmann (com exceção dos embaraçosos textos sobre a tela). Mesmo que essa exuberância seja também um de seus deméritos, é uma adaptação que ao menos se arrisca a ser algo mais do que o básico. Afinal, de que adianta ser convencional em sua sexta adaptação para o cinema?
Obs: Mesmo que não tragam nada de significante, os créditos finais merecem ser vistos graças ao uso da canção “Together”, do The XX, que oferece um impacto maior após a conclusão do filme. Acredite, vale a pena.
Crítica | Além da Escuridão: Star Trek - A força de um antagonista
Eu só me interessei por Jornada nas Estrelas após o reboot de J.J. Abrams. Com surpreendente inovação (e, de acordo com os fãs da criação de Gene Roddenberry, homenagem), Star Trek foi uma das mais genuínas aventuras que tive o prazer de assistir desde o final de Star Wars, uma experiência divertida e que funcionava brilhantemente como recomeço ou continuação. Seguindo essa bela proposta, Além da Escuridão: Star Trek eleva a escala e os desafios, mas preserva as características responsáveis pelo sucesso do anterior.
Novamente roteirizada por Roberto Orci e Alex Kurtzman (e adicionando o homem dos mistérios Damon Lindelof à equação), a trama acompanha a tripulação da Enterprise trabalhando a todo vapor na exploração/observação de mundos alienígenas. Ao mesmo tempo em que o capitão Kirk (Chris Pine) é repreendido por sua tendência autodestrutiva, o misterioso John Harrison (Benedict Cumberbatch) surge ameaçando a Frota Estelar. Após vidas serem perdidas, a Enterprise recebe a missão de neutralizar o criminoso e descobrir suas reais intenções.
Como é de costume em franquias blockbuster, as continuações tendem a elevar a escala da produção. De fato, as cenas de ação são mais grandiosas do que a do longa de 2009 e visualmente inventivas (vide o efeito provocado pela floresta avermelhada na sequência de abertura ou o senso de monstruosidade ao observarmos o confronto com a USS Vengeance, que reduz a Enterprise a uma miniatura), ainda que o diretor J.J. Abrams insista em poluir a tela com as irritantes luzes em flare, recurso que não acrescenta nada além de um traço estilístico fraudulento – que ainda prejudica o bom trabalho de conversão em 3D da fita. Ainda em quesitos visuais, o design de produção e os efeitos visuais se completam a fim de criar mundos alienígenas e futuristas – que traz até uma “sala de guerra” moderna para a Frota Estelar – com admirável imaginação, assim como o eficaz trabalho de maquiagem ao trazer de volta velhos conhecidos da franquia…
Mas o que realmente agrada nesse novo filme é a relação e os conflitos entre os personagens, que aqui ganham mais maturidade. De um lado temos Kirk sofrendo inesperadas consequências sobre seu comportamento que, mesmo sucedendo na salvação de toda uma civilização, é considerado perigoso por arriscar a segurança da tripulação e a secretividade da corporação. Do outro, o Spock de Zachary Quinto tem novas facetas reveladas quando o roteiro explora com delicadeza seu bloqueio emocional, e como este influencia aqueles a seu redor; dando a oportunidade de Quinto protagonizar momentos dramáticos. Com tantas subtramas emocionais, é de se espantar que o longa se saia tão bem ao equilibrá-las com divertidas doses de humor (um dos principais prós do antecessor), especialmente pelo Scotty do ótimo Simon Pegg.
O ponto alto, no entanto, é a performance de Benedict Cumberbatch. Dono de uma voz grave que inutiliza qualquer modificador digital de pós-produção, o ator britânico (da excelente minissérie Sherlock) se beneficia do mistério e ambiguidade de seu John Harrison para criar um antagonista complexo, mas que traz uma causa surpreendentemente viável; ainda que esta não justifique a crueldade de suas ações terroristas. É certo que Harrison é visto como um vilão desde o início, o que torna completamente descartável o fato de este ser tratado como aliado e só torna previsível sua inevitável traição – e também o uso de um elemento que será vital para o destino de um dos personagens.
Além da Escuridão: Star Trek é uma continuação digna do filme de 2009, ainda que fique aquém deste. Traz uma trama mais sombria e um trabalho competente no desenvolvimento de seus personagens, mas quem rouba a cena é mesmo o vilão de Benedict Cumberbatch. Ainda há fôlego para esta competente franquia, e surpresas de sobra para agradar aos trekkers.
Obs: Depois de Loki em Os Vingadores e Silva em Skyfall, John Harrison populariza o uso de prisões translúcidas.
Além da Escuridão: Star Trek (Star Trek Into Darkness, EUA - 2013)
Direção: J.J. Abrams
Roteiro: Alex Kurtzman, Roberto Orci e Damon Lindelof, baseado na obra de Gene Roddenberry
Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Zoe Saldana, Karl Urban, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Benedict Cumberbatch, Alice Eve, Peter Weller, Bruce Springswood
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 132 min
https://www.youtube.com/watch?v=nAx5i0W-Ar8
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Crítica | A Hora Mais Escura
Quando Osama Bin Laden foi declarado morto pelo governo dos EUA em 1 de Maio de 2011, eu estava na escola. Envolto em programas de informática e embebido pelo sono provocado pela aula das 7, foi um dos poucos momentos em minha vida que senti estar presenciando a História sendo feita – para bem, ou para mal. E mesmo condenando diversas práticas adotadas em parte dos EUA nessa questão, o ataque da Al-Qaeda em 11 de Setembro é um dos mais abomináveis e cruéis dos últimos tempos.
Mas deixando de lado minha visão política, A Hora Mais Escura faz um ótimo trabalho ao abordar esse tema tão controverso de forma corajosa e que não surja como uma propaganda pró EUA. Isso porque a diretora Kathryn Bigelow não é Michael Bay. A única mulher oscarizada no cargo (vitória adquirida com Guerra ao Terror, em 2010) oferece um tratamento quase documental, certamente fruto da experiência do roteirista Mark Boal como jornalista, e traz uma narrativa repleta de eventos e nomes; tendo início em 2003 e culminando na operação de 2011. E Bigelow felizmente não cai na alternativa de glorificar os soldados americanos e colocá-los caminhando em câmera lenta ao som de uma melodia patriota.
A primeira metade do filme é centrada na tortura. Práticas hediondas que a diretora retrata na mera função de comprovar sua existência na busca pelo terrorista – ao contrário das críticas que o filme sofreu, que o acusaram de glamourizá-la inapropriadamente – a diretora claramente as taxa como um “mal necessário” (ainda mais se levarmos em conta os minutos iniciais que trazem gravações do 11 de Setembro, em uma forma de aplicar o pensamento de que “os fins justificam os meios”) e de forma alguma as julga como positivas. Sua câmera é sempre inquieta e constante, causando um senso de tensão ao longo da projeção – mesmo que tenha escritórios da CIA e salas de reuniões como ambientes principais. E ainda que a montagem de William Goldenberg e Dylan Tichenor seja eficiente ao organizar todas as informações que levarão ao terrorista, é Jessica Chastain que carrega nas costas esse bloco inicial.
Interpretando a versão fictícia de uma agente real (mas cuja identidade é mantida em sigilo, já que esta ainda encontra-se em atividade), Chastain impressiona e provoca grande admiração por sua indestrutível persistência. Durona e não deixando sua beleza ficar à frente de sua integridade (“Eu sou a ‘motherfucker’ que achou a casa”, diz ela a seus superiores), a atriz demonstra bem o cansaço através dos olhos pesados e os cabelos bagunçados de Maya; mas que também jamais perde seu foco em completar sua tarefa (e sua insistência ao marcar um certo número de dias diariamente na janela de seu chefe é uma bela evidência de sua insatisfação).
E quando chega a “hora mais escura” que todos estavam esperando para ver, o filme se transforma. Tendo o roteiro modificado durante as filmagens (já que a produção começara em um período anterior à morte de Bin Laden), a mudança de ritmo é notável e gera uma melhora significativa ao filme. Mesmo que já saibamos o desfecho, a cena da invasão é de um nível cinematográfico excepcional graças à forte condução de Bigelow (que aposta na ausência de música e em momentos de violência gráfica e duvidosa) e a fotografia de Greig Fraser; cujo uso da escuridão e de visões noturnas chega a causar arrepios.
Não tenho dúvidas de que há muita ficção em A Hora Mais Escura. Mas mesmo que alguns fatos apresentados tragam uma veracidade questionável, funcionam eficientemente bem como peça de entretenimento e não do tipo que vangloria uma nação. Ao invés de comemorar euforicamente a morte de Osama Bin Laden, o filme traz de volta a questão Maquiavélica e ainda deixa no ar uma ainda mais complexa: ” e agora?” A reação ambígua de Maya, que com olhos lacrimejados e a noção de que havia concluído uma tarefa que lhe custara 12 anos de sua vida, é a prova de que o filme vai além de sua proposta.