Crítica | Sting: Aranha Assassina explora a fórmula de criatura contra seres humanos em espaço fechado

Crítica | Sting: Aranha Assassina explora a fórmula de criatura contra seres humanos em espaço fechado

Diferente do que talvez leve a crer tanto o trailer, quanto o material de divulgação, Sting - Aranha Assassina não é exatamente um filme sobre “aranhas” - ao menos não no sentido que vimos, por exemplo, no clássico de 1990, Aracnofobia, em que todo o espetáculo é pensado para ativar a fobia do público em relação aos artrópodes assustadores.

“Isto não é uma aranha”, diz um dos personagens em determinado momento, e ele tem razão. A criatura Sting da produção australiana que é ambientada, entretanto, na cidade de Nova York, é muito mais um filme de terror de “monstro” - no caso, algum tipo de espécie alienígena que chega à Terra na aparente queda de material espacial e passa a se desenvolver sem parar enquanto é alimentada por uma garotinha talentosa mas rebelde.

Um filme sobre medo de aranhas em que as aranhas pouco aparecem - eis Sting

A trama é relativamente simples e lança mão de ao menos duas fórmulas ao mesmo tempo: o filme de espaço fechado e o filme de criatura, como se disse. Charlotte (Alyla Browne) é uma pré-adolescente que gosta de desenhar e criar personagens de histórias em quadrinhos, uma imaginação fértil que é aproveitada pelo padrasto, Ethan (Ryan Corr), que tenta suprir a ausência do pai biológico enquanto se equilibra na carreira de desenhista e de zelador do velho prédio onde a família (completada por duas idosas, a mãe de Charlotte e um bebê) vive. 

Durante uma nevasca, Charlotte encontra uma pequena aranha que logo adota como bicho de estimação. Ao perceber que a aranha tem um apetite voraz, a garotinha não para de fornecer alimentos (insetos), o que leva a um crescimento inesperado e que terá as consequências previsíveis.

Até que a Sting do título se transforme naquilo que realmente é, o filme não esgota as possibilidades de explorar a aracnofobia que assola ao menos uma parte da audiência (como seria de se esperar em um filme sobre “aranhas assassinas”), preferindo concentrar sua atenção no suspense e nos dramas familiares. Ethan faz o que pode para conquistar a confiança da filha adotiva, mas tem dificuldades em equilibrar a própria carreira e as obrigações como zelador. Além disso, a avó de Charlotte sofre de demência, o que confere ao drama um alívio cômico e também complicações para a o desenrolar do enredo.

Criatura que aprisiona as vítimas lembra outros filmes de sucesso

Algumas soluções escolhidas pelo roteiro funcionam melhor que outras. A construção do suspense é bem trabalhada; a percepção de que se está preso no prédio, no entanto, funciona bem menos (é só um exagero de neve do lado de fora). A partir de determinado ponto, o “filme de aranhas” vira o que realmente é: um filme com criatura que deve mais à ideia original da franquia Aliens, por exemplo: os personagens estão subjugados por uma força natural maior que a deles e não conseguem sair do lugar onde estão. A criatura, por sua vez, aparece sem exageros (talvez na medida certa) e conta com bons efeitos práticos para suas aparições.

Não há nada de exatamente novo em Sting - Aranha Assassina mas, ao mesmo tempo, o filme se sai relativamente bem naquilo que pretende. É inteligente porque sabe que a história que tem em mãos não sustentaria um filme de duas horas, então ele finaliza no momento certo, sem sobras e sem redundâncias em seu clímax. A fotografia trabalha com lucidez a escuridão, o que também contribui para o suspense. 

Sting - Aranha Assassina pode não satisfazer quem está procurando um “filme de aranhas” no sentido dos anos 1980 ou 1990, sendo mais um jogo de gato e rato entre humanos e um monstrengo que sobe pelas paredes. Mas diverte sem compromisso e pode render um ou outro susto numa noite chuvosa.

https://www.youtube.com/watch?v=B73g786Izg0


Crítica | Herege é jogo mental impossível de ser vencido

Crítica | Herege é jogo mental impossível de ser vencido

Lançado com o selo A24 de qualidade (Lady Bird: A Hora de Voar, Hereditário, Projeto Flórida, Joias Brutas e tantos outros sucessos de público e crítica) e partindo de uma premissa provocativa, Herege esbarra em suas próprias limitações ao propor um intrincado labirinto que mistura suspense, filosofia, cultura pop, sanguinolência e a habitual confusão física de terceiro ato que se repete no gênero com irritante constância, como se toda história tivesse que necessariamente botar os atores para correr (literalmente). 

Na trama, as missionárias Barnes (Sophie Thatcher) e Paxton (Chloe East) chegam à casa do recluso e inicialmente simpático Mr Reed (Hugh Grant). Recebidas com hospitalidade, as duas garotas percebem aos poucos que não só estão trancafiadas, como também terão de participar de algum tipo de jogo macabro, cujas regras são definidas de maneira traiçoeira pelo anfitrião e envolvem reflexões que vão desde religião comparada até a indústria do entretenimento.

Embora valha a pena assistir Herege porque se trata, de fato, de uma premissa que chama atenção, o saldo final é algo confuso, e a simplicidade que tanto encanta no grande cinema passa longe aqui. A impressão é de que seus autores estavam tão interessados em dizer tanta coisa, e montar um quebra-cabeça tão multifacetado, que acabaram perdendo algumas peças e o final resultou numa imagem incompleta, imperfeita.

Roteiro começa com uma aposta alta que se revela um blefe

Se até a metade da projeção, o filme mantém o suspense e coloca suas fichas num jogo de cena elaborado, com diálogos intrigantes e um clima bem construído de tensão, ele se sente depois compelido a achar “respostas” para as perguntas propostas - e é aí que a fórmula começa a falhar. Tais respostas geram inevitavelmente novas perguntas, e o roteiro patina, tem que se autoexplicar e exigir dos personagens uma eloquência que pouco justifica quando estes estão debilitados física e mentalmente, num resultado algo artificial também.

De fato, é muito mais fácil e simples propor um enigma que abre o enredo do que efetivamente fechar esse enredo com conclusões razoáveis que sejam ao mesmo tempo conectadas ao universo de ideias que o filme propôs, como tenham verossimilhança mínima para manter o espectador crente no conflito na tela.

Herege, por sua vez, falha em ambos os desafios porque sobe tão alto que depois não consegue manter o conflito lá em cima (o que começa como um jogo mental de gato e rato inevitavelmente vira uma história mais vulgar de “aparições” e “passagens secretas”), além de precisar de muita “compreensão” do espectador para que este dê crédito ao reloginho suíço que precisa funcionar no roteiro para que todas as inúmeras peças encaixem-se cronometricamente no final.

Hugh Grant é um grande ator mas não precisava deste filme para provar isto

O ator inglês tem que carregar o tabuleiro desse jogo nas costas até o final, que no entanto depende de lances de extraordinária probabilidade para parecem críveis. Thatcher lembra a jovem Anya Taylor-Joy e, junto com East, levam adiante um belo confronto com o vilão, sendo possivelmente o ponto alto do filme.

O desfecho de Herege lembra o de um clássico terror do cinema francês, mas dizer aqui qual filme é certamente revelaria informações em demasia (é um filme de 2008…). Comparado, entretanto, com o outro título (aquele, sim, uma obra-prima, e ao mesmo tempo um conceito muito simples - embora engenhoso, exatamente o tipo de engenho de simplicidade que falta ao roteiro dos também diretores Scott Beck e Bryan Woods). Aliás, talvez seja esta a grande deficiência de Herege: pensado como um jogo, mas cujas regras são tão intrincadas e necessitam de tanta explicação, que é impossível vencer - ou ao menos sentir satisfação real quando ele termina.

https://www.youtube.com/watch?v=O9i2vmFhSSY


Crítica | Aterrorizante 3 - Um verdadeiro banho de sangue

A franquia Terrifier é, atualmente, uma das mais amadas pelos fãs de slashers que buscam produções repletas de gore. O responsável por isso é o diretor Damien Leone, que alcançou tal feito com três filmes que apresentam o palhaço Art como o antagonista desse apavorante circo do horror.

Assim como nos dois filmes anteriores, o roteiro é mal escrito e cheio de buracos. Em Aterrorizante 3, a história não muda muito: Sienna (Lauren LaVera) e seu irmão Jonathan (Elliott Fullam) tentam dar continuidade às suas vidas após o massacre ocorrido durante o Halloween no longa de 2022.

Damien Leone parece gostar de datas comemorativas, e desta vez faz com que a matança de Art aconteça durante o Natal. O retorno de Art é tão mal apresentado assim quanto sua motivação para matar. Leone mostra que o palhaço é um ser das trevas com um espírito assassino, mas, ainda assim, não há um motivo claro para suas ações.

Após assistir aos três longas da franquia, fica evidente que Leone não tem uma direção definida para a história. Tanto que, apenas neste terceiro capítulo, ele resolve mencionar que Art é um demônio, mas sem aprofundar essa informação. Entre a falta de explicações e respostas, sobram questionamentos ainda sem solução, como quem é Art e qual sua relação com Sienna.

O conteúdo de Terrifier 3 é focado na matança desenfreada do vilão, com Art protagonizando um verdadeiro banho de sangue que faz o massacre de Michael Myers em Halloween Kills (2021) parecer brincadeira de criança.

Art mata usando uma serra elétrica, utilizando suas próprias mãos e outras formas brutalmente explícitas. Embora a violência seja comum em filmes de terror, surge a pergunta: essa crueldade é realmente necessária?

Necessária não é, mas que isso vem surtindo efeito, com a produção arrecadando mais de US$ 50 milhões na bilheteria mundial, tornando-se a maior bilheteria de um filme sem classificação indicativa.

O roteiro tenta, de forma rasa e nada inovadora, criticar o consumismo promovido pelo Natal e a figura do Papai Noel, como na cena em que Art realiza um atentado terrorista em um shopping. Um ponto positivo, no entanto, é o fato de Art ser irônico e brega ao tentar ser engraçado enquanto tortura suas vítimas.

O sucesso de Terrifier está intimamente ligado ao impacto cultural que a franquia alcançou, com o palhaço Art se tornando um novo ícone da cultura pop, viralizando nas redes sociais, especialmente no TikTok.

Aterrorizante 3 é um filme ruim, mas, com sua popularidade, dificilmente deixará de receber continuações. É uma pena, pois evidencia como produções vazias podem ir longe no cinema.

Aterrorizante 3 (Terrifier 3, EUA – 2024)
Direção: Damien Leone
Roteiro: Damien Leone
Elenco: Lauren LaVera, David Howard Thornton, Antonella Rose, Elliott Fullam, Samantha Scaffidi, Krsy Fox, Mason Mecartea
Gênero: Horror
Duração: 125 min.

https://www.youtube.com/watch?v=jnq7qvG4Q_Y&ab_channel=DiamondFilmsBrasil

Crítica | Wicked é excelente produto de uma Hollywood em permanente renovação

Crítica | Wicked é excelente produto de uma Hollywood em permanente renovação

A cada duas gerações pelo menos, uma pergunta assola os amantes do cinema: terá Hollywood a capacidade de se reinventar diante das crescentes mudanças não apenas tecnológicas e de mercado, como também de costumes e das preferências do público? Tem sido assim desde a regulação federal (que obrigou os grandes estúdios a se desfazerem de suas cadeias de exibição, nos anos 1940), passando pelo advento da televisão, do home-vídeo, da internet e - mais recentemente - dos novos formatos e da inteligência artificial. Isso sem contar uma infinidade de “microcrises”, revoluções contraculturais, greves e quedas de faturamento.

A cada nova reviravolta social, o temor de que o cinemão narrativo seja finalmente engolido por renovadas formas de expressão ou simplesmente atropelado, sem deixar de existir (como o rádio), porém ocupando um lugar muito mais particular e diminuindo sua capacidade de exercer influência cultural sobre a sociedade. A crise provocada pelo “isolamento social”, poucos anos atrás, foi o mais recente golpe, atingindo particularmente a exibição em salas de cinema e levantando a dúvida: terá sido este o definitivo?

O que essa discussão toda tem a ver com Wicked, o lançamento da Universal para o Natal de 2024, que por sua vez é baseado num show da Broadway, que por sua vez é baseado num romance de 1995, que por sua vez é baseado no original de L. Frank Braum e no clássico cinematográfico de 1939, O Mágico de Oz? Superficialmente, não muita coisa, mas tem sim se você realmente prestar atenção no filme e no contexto onde ele é apresentado.

Wicked é um bem acabado exemplo de como Hollywood, ou a grande indústria do cinema norte-americano, herdeira direta (embora eventualmente órfã, ou bastarda) dos estúdios da Era de Ouro, não cansa de se reinventar, assimilar as transformações e demandas de uma audiência que, ao mesmo tempo que parece em constante transformação, está também permanentemente disposta a abraçar o encanto da exibição coletiva e da tela grande na sala escura.

Filme de 2024 está distante do original de 1939 nos olhos, mas perto no coração

Existe quase um século de distância entre o filme dirigido por Victor Fleming e que apresentou o universo do embusteiro Oz ao grande público e a versão também musical, lançada agora em 2024. Tal distância não é apenas temporal, mas também representa uma lacuna significativa dentro da História do Cinema em termos de universo imaginário do público - que, hoje, tem demandas com as quais o espectador da década de 1930 sequer sonhava. Entre elas, notadamente, a relevância da “diversidade” em tela e a problemática da “aceitação”, dois temas recorrentes para a audiência contemporânea e que, não raro, acabam sofrendo de excessivo didatismo quando transpostas para os filmes, com resultados bastante irregulares.

Confirmando a hipótese de que a grande indústria consegue se adaptar à transformação do gosto popular, assimilando as preocupações e tensões sociais sem, entretanto, abrir mão de sua essência, Wicked aparece como um produto extremamente equilibrado entre espetáculo e mensagem - quase perfeito, para sermos mais precisos, se levarmos em conta que seu único real descuido é (mais uma vez, porque isso é tendência hoje na maior parte das cinematografias) alongar demais sua duração, quando ele parece ter atingido um ponto ideal, a história está (bem) contada, o clímax emocional foi alcançado, tudo isso uns 20 minutos antes de efetivamente terminar. Terminar? Bem, não exatamente, conforme o espectador verá…

Trama de Wicked consegue ser atual sem soar enfadonha ao mesmo tempo que preserva o encanto do universo original

Um dos maiores acertos de Wicked - o que também o distancia da moralidade algo enfadonha normalmente presente no gênero de fantasia - é subverter as noções de heroísmo e vilania, dotando os personagens principais de uma multidimensionalidade bastante incomum, especialmente num filme deste tamanho e que mira boa parte do público jovem. Ao contrário do que apregoam aqueles que enxergam na arte um mero instrumento de “educação para a vida”, é mais fácil tirar lições a respeito da realidade quando vemos nos personagens na tela qualidades humanas reconhecíveis, e não meras representações de modelos de comportamento a serem imitados.

Seria fácil - e provavelmente tentador - para o roteiro, por outro lado, ceder ao jogo fácil da esquematização politicamente correta, levando-se em conta que um dos temas que ele aborda é o da aceitação do que é diferente. O roteiro não se vende barato, e consegue passar sua mensagem sem que para isso tenha de recorrer à caricatura em excesso. Uma das maiores evidências disso é que os eventuais “vilões” permanecem latentes até o terceiro ato, e mesmo em seu desfecho a ambiguidade em relação a outros personagens se mantém (jogando as tensões para uma segunda parte futura).

O enredo segue os passos de Elphaba (Cynthia Erivo), uma garota de pele verde que acompanha acidentalmente a irmã com necessidade especial, Nessarose (Marissa Bode), à Universidade de Shiz, na Terra de Oz. Lá, ela logo desperta atenção da Madame Morrible (Michelle Yeoh) por seus talentos inexplorados, enquanto oscila entre a rivalidade e a amizade com a mimada Glinda (Ariana Grande).

Enquanto Glinda é obcecada em chamar atenção e se tornar popular, Elphaba enfrenta silenciosamente a zombaria dos outros alunos por causa de sua aparência, até que o desenrolar das atividades dá a ela um papel de destaque - o qual o filme explora de maneira esperta até levar ao desfecho que deixa a porta aberta para a continuação.

Se a ideia de uma estudante que foge do padrão na escola não tem nada de muito novo (bem como a de uma “universidade de magia”, que lembra automaticamente o universo Harry Potter), tanto enredo quanto a direção conseguem levar adiante os conflitos ocasionados pela trama ligeiramente banal com notável elegância. O momento da dança silenciosa, que finalmente une as duas rivais e acontece precisamente no meio da projeção, é puro cinema, uma cena belíssima que vale o ingresso e já tiraria Wicked do meio-termo da produção, elevando o filme a uma categoria acima.

Certamente Cynthia Erivo será mais lembrada pela sua atuação aqui - e ela está muito bem, de fato, embora sua personagem não seja exatamente simpática nem quando vítima dos abusos coletivos - mas seria injusto ignorar o brilho de Ariana Grande, que além de ser excelente cantora, demonstra talento natural para comédia, num pacote encantador.

Wicked surge como um encontro muito feliz entre forma e mensagem, apoiado numa direção segura e sutil (de Jon M. Chu, do também divertido Podres de Ricos), num enredo que consegue ser ácido (por exemplo, quando elabora o tema do autoritarismo na escola, remetendo a perseguições cometidas durante o século XX contra variados grupos sociais, aqui simbolizados pelos animais falantes) e, ao mesmo tempo, encantador. A parte musical tem o padrão de qualidade da Broadway e, embora - como se disse - o filme pudesse durar 20 minutos a menos, as canções não chegam a ser cansativas, contribuindo para a diversão. 

Sim, Hollywood consegue se reinventar, responder a mudança constante das plateias e persistir entregando fantasia numa embalagem caprichada, atenta à vibração do público atual sem perder a essência do espetáculo que é sua marca registrada. O que mais podemos exigir, em 2024, além de uma continuação à altura de um clássico de 1939?

https://www.youtube.com/watch?v=6COmYeLsz4c


Review | Dragon Quest III HD-2D Remake é reinvenção praticamente perfeita

Review | Dragon Quest III HD-2D Remake é reinvenção praticamente perfeita

Dragon Quest III HD-2D Remake: O retorno de um clássico que marcou época

Quando Dragon Quest III foi lançado em 1988, não apenas marcou a história dos jogos, mas também fez história no Japão, onde o fenômeno se espalhou como fogo. A popularidade do título foi tamanha que impactou a rotina do país de forma inusitada: centenas de pessoas faltaram à escola e ao trabalho para se dedicarem ao jogo. Considerado uma obra-prima dos RPGs da época, ele se estabeleceu como um dos pilares da franquia Dragon Quest, uma série que, desde então, se tornaria um dos maiores sucessos do mundo dos videogames até mesmo hoje com a antecipação enorme para Dragon Quest XII.

Agora, mais de três décadas depois, Dragon Quest III recebe uma reinterpretação visual com o HD-2D Remake, que vem trazendo o charme de sua história atemporal com um novo fôlego, melhorando gráficos, sons e até mesmo a jogabilidade. Mas será que este remake é realmente capaz de capturar a essência do original e ao mesmo tempo trazer algo de novo para os jogadores modernos? A resposta parece ser um retumbante sim.

https://www.youtube.com/watch?v=Bd8bBGZWCCM

O Legado de Dragon Quest III: O Herói de Ortega e a luta contra o Mal

A trama de Dragon Quest III gira em torno de um jovem herói, filho de Ortega, um guerreiro lendário que falhou na missão de derrotar o malévolo Baramos, responsável por colocar o mundo em caos. Com a responsabilidade de completar o que seu pai não conseguiu, o protagonista embarca em uma jornada épica que moldaria o futuro da série, introduzindo elementos que se tornariam símbolos de Dragon Quest. Destaco apenas que se trata de uma história concebida nos anos 1980 então é notório que não se trata de uma narrativa complexa e repleta de ritmo e reviravoltas como as atuais.

O remake preserva com maestria a essência da narrativa, mantendo a história centrada na busca por justiça e na redenção do legado de Ortega. A diferenciação da história está em como a aventura é contada, com uma abordagem moderna, mas sem perder a simplicidade que caracterizou os RPGs clássicos. A introdução de dublagens de alta qualidade, com uma opção que leva os jogadores ao Japão, também contribui para criar uma experiência mais imersiva e emocionante, como se estivéssemos vendo a história pela primeira vez. Recomendo ao máximo a dublagem japonesa do que a inglesa que, apesar de não ser ruim, não traz a mesma intensidade dos atores nipônicos nos diálogos efusivos do jogo. Uma pena, porém, que os parceiros seguem totalmente genéricos, apenas servindo mecanicamente.

A grande atração visual deste remake é, sem dúvida, a sua apresentação em HD-2D, uma técnica que já foi usada com sucesso em títulos como Octopath Traveler e Live A Live. Dragon Quest III HD-2D Remake não apenas moderniza a estética do jogo, mas também respeita suas raízes aprimorando detalhes incríveis e animações fluidas.

Cada personagem e monstro desenhado por Akira Toriyama, o criador de Dragon Ball, ganha uma nova vida, agora mais detalhado e expressivo, o que só enriquece a experiência de exploração do mundo medieval. A transição entre diferentes biomas, cidades e masmorras é suavizada por gráficos de tirar o fôlego, onde o pixel art se mistura de maneira primorosa com o design tridimensional, criando uma sensação de imersão única para o jogador. Há todo um charme na estética da obra que é inegável e, por algum motivo, só me animou ainda mais para ver como será a apresentação do aguardado remake de Final Fantasy IX.

Os efeitos de luz e sombra, por exemplo, são notáveis. Em áreas escuras ou em masmorras, os personagens carregam lanternas cujas lâmpadas brilham com realismo projetando sombras tremeluzentes, aumentando a sensação de que estamos realmente vivenciando aquele mundo fantástico. Cada elemento visual tem um peso narrativo que reforça a imersão no universo de Dragon Quest, e a riqueza de detalhes só torna o jogo mais cativante, principalmente nas suas cidades e mapas mais detalhados - o mundo maior também é retrabalhado, mas é menos detalhado que os hubs repletos de lojas, hospedarias, guildas e igrejas.

Review | Dragon Quest III HD-2D Remake é reinvenção praticamente perfeita
Square Enix

Tradição J-RPG

O sistema de batalha de Dragon Quest III HD-2D Remake mantém as bases do jogo original: turnos e decisões estratégicas. No entanto, o jogo faz ajustes importantes para garantir uma experiência moderna sem perder a essência clássica. Para quem estava acostumado com os RPGs dos anos 80, onde as batalhas eram longas e demoradas, a introdução de um sistema de combate mais dinâmico é uma verdadeira bênção - é possível setar a velocidade ultra-rápida que ajuda a tirar a monotonia dos combates entre sprites - fora que boa parte da luta é conduzida em primeira pessoa, como no original. Outra ótima novidade é a adição do mapa que te impede de ficar muito perdido para encontrar os objetivos, além do recurso de salvamento automático. Uma pena, porém, que ainda não há legendas e interface em português, o que pode ser uma falha estrutural para muitos gamers brasileiros.

A opção de pré-programar as ações dos aliados, por exemplo, facilita o gerenciamento da equipe durante as batalhas, evitando que o jogador precise perder tempo tomando decisões repetitivas durante lutas simples. Isso permite que o foco se mantenha na estratégia e na exploração, sem perder a alma do clássico sistema por turnos. É bem mais rápido. São diversas opções como a de cautela, equilibrada, centrada em dano e mais. Alguns designs permanecem antiquados, obviamente, por se tratar de um remake, então pode ter certeza que os encontros aleatórios vão irritar bastante, mas isso é mitigado caso coloque um Ladrão na sua equipe que confere mais evasão e menos desses encontros irritantes - deixar um companheiro morrer também é uma experiência tão irritante como sempre na saga, então tome cuidado.

Mas a verdadeira inovação vem no sistema de monstros. Agora, o jogador pode recrutar monstros ao longo da jornada, criando um exército de aliados que não apenas ajudam nas batalhas, mas também competem em arenas. Esse sistema de Monster Wrangler adiciona uma camada de profundidade ao gameplay, permitindo que você construa uma equipe única de monstros e explore novas dinâmicas de combate.

Embora o enredo de Dragon Quest III tenha uma linha reta e não mude radicalmente de uma jogada para outra, o sistema de classes é uma das grandes atrações do remake. A cada nova rodada, o jogador pode explorar diferentes combinações de personagens e vocações, criando uma nova experiência a cada replay. Isso não só aumenta o tempo de jogo, mas também incentiva a experimentação e o desafio. Fica o aviso que o game vai te punir caso tente rushar até a conclusão da história. Jogadores que exploram e descobrem os segredos dos mapas, das histórias das diferentes culturas e sociedades, são recompensados com bastante experiência e não irão sofrer no terço final da obra.

Em cada novo jogo, as escolhas de vocação podem mudar completamente a forma como os personagens se comportam nas batalhas. Desde guerreiros que causam dano pesado até artistas marciais que podem ser devastadores, a possibilidade de recrutar novos heróis e testar diferentes estratégias é uma das qualidades que fazem o jogo se destacar. Além disso, o sistema de mudança de classes, que pode ser feito na Alltrades Abbey, garante flexibilidade e promove uma jogabilidade muito mais profunda e satisfatória, embora isso resete o nível do jogador ou dos companheiros novamente para o Nível 1.

Nada em Dragon Quest III HD-2D Remake seria completo sem sua trilha sonora, e é aqui que o jogo realmente brilha. Composta por Koichi Sugiyama, a música de Dragon Quest sempre foi um dos grandes marcos da franquia. No remake, as melodias clássicas são reinterpretadas com a adição de uma orquestração impecável, que dá nova vida às músicas e as torna ainda mais emocionantes. Cada tema, desde a icônica música de batalha até as faixas que tocam enquanto o herói viaja pelo vasto mundo, é executada com uma perfeição que faz o coração bater mais forte e devem emocionar muito os fãs de longa data que nunca escutaram os temas em arranjos clássicos. O mix de sons clássicos com arranjos orquestrais é um acerto que eleva a experiência, trazendo nostalgia sem cair no clichê. A combinação de gráficos impressionantes com essa trilha sonora refinada cria uma atmosfera envolvente e memorável.

Dragon Quest III HD-2D Remake é essencial para os fãs e curiosos

A questão final que todos se fazem é se o remake de Dragon Quest III vale a pena. A resposta é um sonoro sim. Este jogo é uma obra-prima que não só homenageia o legado do original, mas também traz uma série de melhorias e inovações que fazem a experiência de jogar Dragon Quest III mais acessível, profunda e imersiva do que nunca. O único problema que se pode apontar é o clássico grinding de fim de jogo, para upar os personagens e conseguir derrotar os últimos desafios. É bem moroso e pode levar horas.

A história épica, a beleza visual e a jogabilidade refinada são apenas a ponta do iceberg. O remake oferece uma experiência rica que irá agradar tanto aos fãs veteranos quanto aos novatos. Se você é fã de RPGs clássicos, Dragon Quest III HD-2D Remake é uma jornada obrigatória que deve figurar na sua lista de jogos essenciais até o final de 2024. Por mais que a franquia Dragon Quest já tenha produzido muitos títulos brilhantes, este remake da terceira parcela é, sem dúvida, um marco na evolução dos remakes de jogos clássicos. Que mais estúdios se inspirem no ótimo exemplo deste daqui.

Agradecemos a Square Enix pela cópia gentilmente cedida para a realização desta análise.


Review | LEGO Horizon Adventures é uma aventura ideal para crianças (muito) pequenas

Review | LEGO Horizon Adventures é uma aventura ideal para crianças (muito) pequenas

Há anos que os jogos LEGO são uma verdadeira sensação. Se na minha época de infância eu gastava horas com Star Wars e Indiana Jones, nada mais natural que mais franquias apareçam e sejam adaptadas para os famosos blocos de montar. 

Enquanto fazia um tempo desde o último game da saga LEGO, muita gente foi pega de surpresa com o anúncio inesperado de Horizon Adventures que chega agora no meio de novembro. 

Com a Sony e a Guerrilla ajudando no projeto multiplataforma do Studio Gobo, marcando também a primeira vez que um jogo PlayStation chega ao Nintendo Switch, o game certamente é interessante, mas não chega perto de ameaçar outros títulos LEGO que já estão disponíveis no mercado. 

https://www.youtube.com/watch?v=fNAdje1kPxA

Overdose de Horizon

2024 foi um ano carregado de títulos Horizon. A saga de Aloy viu Forbidden West chegar ao PC e a remasterização da primeira aventura ser lançada há poucos dias. Com o LEGO, é a terceira vez que Aloy se torna destaque dos lançamentos mensais. Com certeza uma aposta ousada da Sony que parece cada vez mais confiante em uma saga que vende bem, mas que falha em conquistar corações e mentes como God of War ou The Last of Us, por exemplo. 

Aqui, mais uma vez a história de origem de Aloy é contada, trazendo Rost, Sylens, Varl, Erend e Teersa na busca de compreender quem é a heroína, qual a sua origem enquanto lidam com as ameaças de corrupção e máquinas ensandecidas de Hades com a ajuda do fanático Helis. A diferença é que tudo é mais resumido, infantilizado e repleto de piadinhas ao estilo LEGO. 

Como a comédia é sempre difícil e não se trata de um humor genial como visto no filme original de Uma Aventura LEGO, é bem claro que as piadas funcionam para crianças pequenas, enfatizando slapstick e escrita millennial cringe com diálogos do tipo ‘Caras, sério?!’ ou ‘Ele está bem atrás de mim, não é?’. Acho que crianças até dez anos devem se divertir sendo uma boa porta de entrada para Horizon com este LEGO Horizon Adventures.

Algumas piadas funcionam para adultos, mas é capaz de tanta verborragia acabar irritando, principalmente porque os personagens não se calam nunca enquanto exploram os níveis do jogo (aproximadamente 25, creio). 

Acho que os únicos diferenciais que realmente achei interessantes foram as maiores presenças de Rost, que funciona como o narrador da história, e de Elisabet através de um holograma. O final da narrativa tem uma conclusão bastante fofa para Aloy e Elisabet que é bem mais satisfatória. 

Me surpreende também o caráter experimental da coisa. Apesar do jogo ser totalmente dublado em diversos idiomas, é evidente que se trata de um projeto de orçamento mais limitado, ainda mais levando em conta que o jogo só adapta a primeira parte da história, ignorando Forbidden West por completo. Algo que é bem atípico para os jogos LEGO que costumam superar as dez horas de duração. Aqui, é o jogo beira as oito horas de entretenimento, podendo durar mais caso se interesse em completar desafios ou caçar animais alfa em níveis já explorados. 

Review | LEGO Horizon Adventures é uma aventura ideal para crianças (muito) pequenas
SIE

Simples, eficaz e bonito: LEGO Horizon Adventures

Arrisco um palpite um tanto ousado, mas parece que LEGO Horizon Adventures foi pensado primeiramente para o Switch e depende para o PlayStation 5 e PC (aliás, a ausência do PS4 é bem estranha). Todo o game design da obra remete algo da geração passada, repleto de telas de loading dentro das fases, um hub de interação e exploração para encarar os níveis extremamente lineares. 

Os visuais, como não podiam deixar de ser, são bastante bonitos, com a direção de arte se aprofundando ao máximo em trazer todos os elementos do jogo na caracterização dos blocos de montar. Água, fogo, pequenas chamas, espuma, raios e mais efeitos são feitos com diversas pecinhas animadas. Piso e vegetação também. Talvez seja um dos primeiros títulos da saga que realmente seja “renderizado” 100% em peças LEGO. 

As fases, que são separadas por biomas, abrangem biomas de tundra, nevados, de florestas tropicais e desérticos, com alguns níveis quebrando a norma ao apresentar os divertidos caldeirões que trazem o game design mais inventivo com seções de plataforma e puzzles fáceis, menos focados no combate. 

Com quatro personagens jogáveis sendo Aloy, Teersa, Varl e Erend, há relativa diversidade para o jogador encarar as fases o combate à inimigos humanos e às máquinas perigosas de Horizon (um dos pontos altos do jogo é o design intrincado de cada criatura em versão LEGO). 

Aloy possui suas tradicionais flechas, Teersa atira projéteis explosivos, Varl arremessa lanças e Erend marreta tudo com seu martelo sendo o único que o combate não é realizado a distância. O jogador pode e é encorajado a usar os elementos das fases como poças de água, fogueiras, plantas espinhosas e penhascos a seu favor no combate. 

Além disso, todos podem encontrar upgrades raros das armas, adicionando dano elemental elétrico, de fogo e congelante, além de outras versões menos poderosas. Há também aparatos para auxiliar no combate, de usos limitados assim como os upgrades. Entretanto, o elemento absurdo é quem domina com aparatos engraçados como o Tio do Dogão que arremessa hot-dogs às alturas para cair como meteoritos, ou bombas de gravidade.

Cada personagem tem sua própria progressão em vinte níveis, destravando mais saúde, dano normal e dano localizado nos pontos fracos dos robôs (que são destacados pelo Foco, assim como no jogo original). Todos os personagens são divertidos de jogar - embora eu tenha achado Erend o mais eficaz no combate, e o co-op local é ideal para horas de diversão. Uma pena que as fases sejam tão curtas, mal durando dez minutos cada uma. 

Os níveis escondem alguns segredos nada secretos ao guiar o jogador com pinos LEGO para descobrir baús que oferecem habilidades ou mais pinos para trocar por aprimoramentos universais de habilidades. Estes são progressivamente desbloqueados através dos clássicos blocos dourados e são essenciais para oferecer mais velocidade de progressão de nível, além de outros atributos bem vindos que fazem a diferença no gameplay. 

Uma pena, porém, que a câmera tenha voltado a ser isométrica como em títulos anteriores a Skywalker Saga. Ao mesmo tempo que traz uma das melhores direções de arte da franquia, a imersão é sacrificada pela câmera fixa que, embora funcional, não ajuda a tornar esse belo mundo ainda mais bonito. 

Há valor de produção também nas diversas cinemáticas, além das conversas com os personagens dialogando entre si nos cantos da tela. O único ponto do gameplay que grita “oportunidade perdida” é o fato de não permitir a conversão dos robôs como aliados em combate. 

Nem mesmo há skins para encarnar uma das criaturas. Os quatro personagens são tudo o que o jogo oferece, algo também pouco condizente com o DNA dos jogos LEGO. Felizmente, no hub central que é a cidade Coração da Mãe, o jogador pode visitar a loja de Teb e explorar as muitas skins oferecidas, incluindo de propriedades intelectuais da LEGO como City e Ninjago. 

Aliás, a customização de Coração da Mãe é uma das prioridades do jogo, permitindo trocar edificações, decorar como quiser e até mudar o estilo artístico de segmentos inteiros. Um bom incentivo para os jogadores complecionistas que vão aproveitar 100% da obra. 

Estreia boa para um futuro promissor 

Apesar de não ser o melhor game LEGO já criado, LEGO Horizon Adventures pode dialogar muito bem com seu público alvo: o infantil. Se você já tem filhos e não sabe o que escolher de Natal, esse presente é ideal para as crianças, trazendo um bom divertimento, além de ser uma porta de entrada para a família PlayStation. 

Há limitações técnicas e de orçamento aqui, mas o jogo é bem realizado e cumpre seu propósito, ainda que falhe em atingir todo o potencial que merece. Agora, o que é interessante mesmo é a perspectiva para um futuro promissor caso a empreitada seja um sucesso.

Afinal, ter versões LEGO de outras grandes franquias como The Last of Us, Uncharted e God of War pode ser uma verdadeira mina de ouro a ser explorada com potencial de trazer jogos muito melhores e ousados. Fico na torcida. 

Agradecemos a PlayStation pela cópia gentilmente cedida para a análise.


Crítica | Gladiador II é continuação que reafirma as qualidades do filme original

Crítica | Gladiador II é continuação que reafirma as qualidades do filme original

“Sinto ciúmes”, Russell Crowe admitiu em entrevista de 2023 sobre ter sido deixado de lado na produção da continuação Gladiador II, que chega agora aos cinemas de todo o mundo, mais de 20 anos depois de o original ter conquistado as plateias com uma narrativa elegante e vigorosa. E, embora a continuação seja fruto de evidente esforço e capricho por parte dos realizadores, o protagonista do primeiro Gladiador pode acompanhar o lançamento de casa com um sorriso cínico nos lábios: não só ele faz falta como o novo filme não se compara ao outro.

Uma continuação de um sucesso estrondoso como aqui e realizada após tanto tempo, abrindo mão de seu ator principal, é um desafio arriscado, que no entanto parece bem entregue às mãos de Ridley Scott, um desses “tycoons” da indústria, capaz de transitar por décadas, tendências e modas sempre se reinventando e pescando um ou outro sucesso em diferentes gêneros (ficção científica, drama, épico) como se o cinema fosse uma ciência plenamente dominada por si mesmo. Sua direção é um dos pontos acertados do novo filme: Scott consegue atingir um balanço quase perfeito entre ação física, ambientação e efeitos. Não faltam sequências espetaculares, mas ele entende que a suspensão de descrença exige alguma “fisicalidade”, além das mirabolâncias constantemente propostas pela pós-produção contemporânea. Mesmo os cenários e a generosa figuração não são camadas mortas na tela, e a poeira e o sangue (que felizmente não jorra em exagero) emergem da tela com veracidade e (alguma) verossimilhança (mas voltaremos a isso mais adiante). É preciso louvar ainda o fôlego do cineasta para dirigir um filme gigantesco como este com quase 90 anos de idade, o que só aumenta nossa admiração e comprova sua fidelidade ao ofício cinematográfico.

Roteiro tem que decidir entre dois caminhos e não opta totalmente por nenhum deles

Na trama, o “bárbaro” Lucius (Paul Mescal) é feito prisioneiro e convertido em gladiador, jogado de volta à Roma, enquanto uma intriga de poder e bastidores decorre ao seu redor e irá eventualmente envolvê-lo e colocá-lo no centro do drama. Ele deve fazer o jogo imposto por seu senhor, Macrinus (Denzel Washington), enquanto descobre qual sua relação passada com Lucilia (Connie Nielsen, discreta), que por sua vez é casada agora com Marcus Acacius (Pedro Pascal), uma general vitorioso que rejeita participar do teatro de demagogia política proposto por Geta (Joseph Quinn) e Caracalla (Fred Hechinger), a dupla de imperadores gêmeos e degenerados. Acacius é ainda o alvo da vingança de Lucius pela morte de sua amada Arishat (Yuval Gonen) durante o combate contra os invasores romanos.

Já assistimos diversas vezes a situações semelhantes e Hollywood tem títulos notáveis em seu passado transitando no mundo antigo (notadamente Roma, Egito e Grécia). Gladiador II não traz nenhuma grande novidade nesse sentido, mas a comparação mais direta é com o primeiro filme e aí que a continuação se vê em desvantagem. O roteiro começa numa velocidade muito alta, que ele mantém quase num ritmo único até a metade da projeção, quando aparentemente seus autores “lembram” que é preciso remeter mais diretamente ao legado do Gladiador original - afinal, a nova história só existe por causa do prestígio e do sucesso da anterior. A partir daí, a trama política, de bastidores, ganha corpo, ao mesmo tempo que o ritmo do filme sofre uma desaceleração violenta, para se alongar depois num terceiro ato pouco climático e até mesmo decepcionante.

Se o enredo se mantivesse concentrado na ação - que funciona tão bem, especialmente na espetacular abertura - até o final, o filme não teria o tom trágico e levemente etéreo que encanta no Gladiador original, mas seria um filme de ação de excepcional eficiência. Porém, quando ele muda um pouco de rumo (especialmente a partir do meio do segundo ato) para fazer jus ao legado, é quando a comparação com o original trai o novo filme, e suas fraquezas vêm à tona.

Tubarões são um problema menor diante da fraqueza dos personagens

Muita gente vai torcer o nariz diante de algumas licenças poéticas exageradas que o filme se concede: os macacos que parecem mutantes, os tubarões na arena (como chegaram até ali? e como serão retirados depois?), o “jornal” na “cafeteria”, mas tudo isso seria mais facilmente perdoado se os personagens principais tivessem o relevo ou mesmo o carisma perverso do Gladiador original - e eles não têm, nem de longe. 

Paul Mescal esforça-se para parecer comovente o suficiente, mas há uma distância bastante significativa entre ele e o Russell Crowe do primeiro filme - que parece mais trágico e dotado de profundidade, enquanto Mescal entrega um herói genérico que é comum ao gênero e remete mais ao que Gerard Butler fez em 300.

Denzel Washington replica mais uma de suas atuações competentes, mas aqui totalmente deslocada, uma vez que ele parece estar numa delegacia norte-americana dos anos 1990 (e não na Roma antiga), repetindo trejeitos e entonação que nada combinam com a ambientação ou a época - o estranhamento é parecido com o provocado pela “cafeteria”.

E, finalmente, a dupla de vilões é fraquíssima, tanto em termos de atuação como profundidade do drama e das cenas, e qualquer comparação com o que Joaquin Phoenix fizera antes com seu inesquecível Commodus chega a ser constrangedora para a continuação.

Scott imprime qualidade, mas a grande arte de Gladiador dependeria de um roteiro mais bem resolvido

O primeiro Gladiador é um daqueles filmes que a indústria entrega eventualmente que transcende o sucesso comercial e produz referência para o imaginário popular porque o equilíbrio entre drama a imagens poderosas foi perfeitamente atingido. A direção tem papel fundamental na criação desse tipo de “mitologia” cinematográfica e popular, mas atingir esse nível de realização também depende, no final das contas, de um roteiro realmente bom de ponta a ponta, o que não se vê nesta continuação. A despeito de ser, sim, uma bela produção e um bom filme, é o Gladiador original que permanecerá no imaginário popular por mais algum tempo - até que o incansável Ridley Scott arrisque-se a mais uma proeza (quem sabe?) digna dos guerreiros a quem deu vida em ambos os filmes.

https://www.youtube.com/watch?v=Ts0N8swyWFI&t=1s


Crítica | Ainda Estou Aqui é aposta mais acertada do Brasil para o Oscar depois de muitos anos

Crítica | Ainda Estou Aqui é aposta mais acertada do Brasil para o Oscar depois de muitos anos

Em mais uma tentativa esperançosa de conquistar o prêmio de Melhor Filme Internacional concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, a comunidade nacional do setor aposta suas fichas em Ainda Estou Aqui, o drama sensível que tem por pano de fundo o período da ditadura militar brasileira e seus reflexos numa família carioca de classe média alta. De cara, é preciso reconhecer que o filme está bem acima de todos os últimos indicados do Brasil, mas também é salutar conter o ufanismo - ironicamente, uma das marcas do regime autoritário que o filme dolorosamente denuncia.

Conforme se sabe, a busca pela estatueta brasileira no Oscar tem sido quase uma obsessão e tratada muitas vezes como uma proeza esportiva, o que não só é uma maneira infantilizada de enxergar o fenômeno artístico, como uma incoerência em relação ao próprio discurso predominante na indústria de cinema nacional: ao mesmo tempo que se critica a hegemonia de Hollywood no circuito exibidor (e esta é uma preocupação que sempre retorna ao debate), espera-se uma aprovação da indústria norte-americana, como se tal aprovação fosse determinante para a mera existência de uma indústria brasileira (e ela não é, nem poderia ser). Houve momentos em que a premiação pareceu relativamente próxima, com O Quatrilho, Central do Brasil (do próprio Salles) e Cidade de Deus (este envolvido numa gigantesca operação por parte da distribuidora Miramax, que na época apostou no filme nas categorias tradicionais, sem sucesso). Mas o fato é que provavelmente vencer o Oscar de filme internacional é a empreitada mais difícil de todas as categorias em disputa, visto que se trata da seleção de todos os títulos mais representativos em um ano inteiro de produções fora dos Estados Unidos, de modo que você pode eventualmente ter que enfrentar - dependendo da safra e da sorte - ao mesmo tempo um Almodóvar, um von Trier, um Joon-ho, um Koreeda e assim por diante.

Walter Salles (herdeiro do banqueiro Walther Moreira Salles e um dos principais acionistas do Itaú) é dono de uma bem-sucedida carreira como diretor e produtor de cinema. Embora seja mais reconhecido pelos filmes cujas trajetórias remetem ao circuito de cinema independente, “art house”, Salles começou no cinema publicitário e seu primeiro longa-metragem para as salas de exibição, A Grande Arte, é uma tentativa de reproduzir o cinema de gênero hollywoodiano em versão abrasileirada (com resultados bastante interessantes, diga-se de passagem). A despeito de seu trabalho mais reconhecido ainda ser Central do Brasil (que marcou época e suscitou intermináveis discussões no país ao final do século), sua filmografia é muito consistente, tanto internamente (e seria uma falha não se lembrar dos belíssimos Terra Estrangeira e Abril Despedaçado) quanto lá fora (Diários de Motocicleta, Na Estrada, entre outros). Não seria portanto um exagero dizer que Salles é o maior cineasta brasileiro em atividade.

Trama parte de assustador relato de abuso e injustiça em Ainda Estou Aqui

O roteiro de Ainda Estou Aqui leva às telas o livro de Marcelo Rubens Paiva protagonizado por sua mãe, Eunice Paiva (vivida por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro). Como nem todo espectador está familiarizado com a vida do escritor e o filme (foco de atenção de toda a mídia especializada) tem pretensões legítimas de atingir o grande público, não convém supor que todo mundo que irá assistir sabe exatamente o que houve. Então, vamos nos ater ao mínimo de informações possíveis sobre a trama e os acontecimentos reais narrados pelo filme.

O enredo é dividido quase precisamente e tanto a direção quanto a fotografia sustentam essa divisão: o primeiro ato tem uma atmosfera idílica, e reforça a tendência de enxergar o período imediatamente anterior ao da ditadura militar como um contexto de paz social extrema - o que de resto é uma idealização, bastando recordar que houve uma ditadura igualmente assassina anterior àquela iniciada em 1964, no período Vargas terminado apenas duas décadas antes. Uma crônica familiar que, longe de representar com fidelidade um “modo de vida brasileiro” da época, diz respeito muito particularmente a um estrato da classe média alta, carioca, da zona sul, de formação universitária em humanidades - e há uma tendência no cinema brasileiro de confundir esse grupo com a sociedade toda (tendência essa que não se reduz ao cinema de inspiração histórica ou “política”, mas a ele quase como um todo).

Então, o que vemos na tela é a preparação de algo que não se sabe ao certo o que será: há uma família feliz, um cotidiano agitado pela presença de muitos adolescentes e crianças, um mar imenso na porta de casa e certa movimentação dissimulada nas lacunas da vida familiar. Haverá uma vítima entre os personagens e o roteiro segura o suspense (que existe, embora seja conduzido modestamente) até que a apresentação se encerra, e o núcleo familiar todo mergulha num buraco escuro e desconhecido.

O primeiro ato termina e a atmosfera do filme se modifica totalmente: os agentes do regime invadem sorrateiramente a casa, a iluminação do filme torna-se escura e somos conduzidos ao pesadelo de um rapto criminoso e as torturas e abusos imperdoáveis cometidos em nome da “segurança nacional” (quando uma ditadura é instaurada sob a pretensa desculpa de evitar outra ditadura, o que não faz muito sentido). É o melhor momento cinematográfico do filme e a direção de Salles é eficiente, mostrando o pesadelo silencioso da família sem contudo apelar ao sentimentalismo ou ao discurso ideológico.

É onde provavelmente reside a grande vantagem de Ainda Estou Aqui para outros entre os infindáveis filmes nacionais sobre a ditadura militar: o ponto de vista escolhido é o de uma pessoa comum, e não de um ativista ou guerrilheiro. Isso confere humanidade ao drama e faz com que ele supere a dicotomia ingênua que costuma predominar no cinema brasileiro de caráter político: embora esteja claro na tela quem são os culpados e quem são as vítimas, o filme é cauteloso em transformar isso em discurso ideológico (e, quando o faz, é na figura da “filha engajada”, o que impede o tom do filme converter-se em mero proselitismo, que certamente rebaixaria a tragédia profundamente humana na qual ele aposta suas fichas - curiosamente, também, o retorno da personagem ao Brasil marca uma queda expressiva do filme).

A segunda metade alonga-se, especialmente no terceiro ato, quando salta no tempo e precisa (precisava mesmo?) “contextualizar” o que foi assistido até então. Se a partir daí ele se confirma como documento vivo de um período sombrio, ele funciona menos como obra de arte, especialmente se considerarmos que alguns pontos que podem parecer interessantes ou autoexplicativos para a maior parte da audiência nacional (notadamente, o autor do livro que aparece numa cadeira de rodas, sem que o próprio enredo forneça qualquer pista sobre o que aconteceu, e a troca de atriz para o papel de Eunice, de filha para mãe) serão ignorados pelo espectador desavisado ou de outros países, para quem só restará um certo didatismo que até então não havia dado as caras.

Saldo do filme é positivo e se sustenta além da discussão histórica

Talvez a maior limitação do filme seja o tom ligeiramente monocórdico que se mantém quase a projeção inteira e a atuação contida, bastante discreta, de Fernanda Torres, se faz jus à personagem real e reafirma sua dignidade diante de tamanha adversidade, priva por outro lado o público de momentos com maior elaboração cinematográfica - e não é demais lembrar que estamos diante de um filme, e não de uma tese ou registro histórico propriamente dito. Nada, entretanto, que comprometa a justeza da realização, nem o testemunho que, embora possa ser considerado repetitivo dentro da cinematografia nacional, continua ressoando dolorosamente, não importando (ou ao menos não devendo importar) as implicações políticas e ideológicas que uma análise fria do período possa suscitar. E, nesse sentido, aparece também como (provavelmente) involuntária ironia o fato de que o quarto dos filhos adolescentes exiba na parede o retrato de Che Guevara (um dos símbolos da também terrível ditadura cubana, responsável equivalente por um sem número de raptos, prisões injustas e desaparecimentos de dissidentes) e o cartaz de A Chinesa, o filme de Jean-Luc Godard em sua fase radicalmente maoísta - ou seja, radicalmente autoritária e trágica do ponto de vista dos direitos humanos. 

A despeito de ser cinematograficamente menos emocionante ou estimulante que seus similares sul-americanos (como O Segredo dos Seus Olhos e No, respectivamente tendo como pano de fundo as ditaduras argentina e chilena), Ainda Estou Aqui é, de longe, a melhor aposta brasileira para o Oscar de Filme Internacional em anos e, deixando de lado as implicações (e as implicâncias) de natureza política que possa trazer à tona, ele existe como filme e resiste a uma avaliação fria, estando sua força simbolizada e resumida na resiliência da protagonista, que em determinado recusa a vitimização e responde com um sorriso no rosto - mesmo diante dos abusos, da injustiça e de uma violência inenarrável falsamente justificada pelo contexto da Guerra Fria na época.

https://www.youtube.com/watch?v=_NzqP0jmk3o


Crítica | Operação Natal é divertimento ideal para um programa familiar neste final de ano

Crítica | Operação Natal é divertimento ideal para um programa familiar neste final de ano

Filmes com temática natalina costumam ser uma repetição de temas e situações com as quais o público está bastante familiarizado. Então, quando a temporada oferece seus títulos para esta época do ano, a pergunta é se é possível ainda apresentar alguma novidade que satisfaça a expectativa tradicional mas ao mesmo tempo chame atenção o suficiente para além da “sessão da tarde” reprisada corriqueiramente na TV aberta. E Operação Natal atinge esse objetivo com folga.

O filme dirigido por Jake Kasdan (de uma robusta listade comédias, como A Vida é Dura: A História de Dewey Cox, Professora sem Classe e Jumanji: Bem-Vindo à Selva) é a diversão familiar quase perfeita: engraçada, ligeira, com personagens carismáticos e um balanço sensível entre ação, piadas e emotividade.

Dwayne Johnson: maior cachê já pago e boatos sobre mau comportamento

De acordo com o reportado pelo site IMDB, o valor pago a The Rock seria possivelmente o maior de um ator em todos os tempos (50 milhões de dólares, superando Robert Downey Jr. e Will Smith) e, ainda assim, sua atitude durante as filmagens teriam atrasado o cronograma da produção, com constantes faltas e descompromisso em relação ao resto da equipe. 

Se os problemas causados pelo astro atrasaram a produção e possivelmente aumentaram seus custos totais, essa falta de sintonia não é percebida na tela: embora discreto, Dwayne está bem na parceria insuspeita com Chris Evans - este sim um ator de carisma contagiante e que dificilmente erra o tom em sua atuação.

Roteiro bem amarrado segura produção com ação consistente em Operação Natal

O filme se sustenta facilmente no enredo, que é bem construído e parte de uma situação razoavelmente original: com o rapto do Papai Noel (J.K.Simmons), uma Força Tarefa comandada por Callum Drift (Dwayne Johnson) tem de recorrer aos serviços do hacker trapaceiro Jack O’Malley (Chris Evans) para encontrar seu paradeiro e eventualmente confrontar figuras mitológicas e a mini supervilã vivida por Kiernan Shipka (do seriado Mad Men e que sempre foi boa atriz desde pequena). 

Tanto a apresentação dos personagens como as passagens de uma situação a outra são elaboradas com capricho, sem depender apenas da habitual edição atordoante que serve como disfarce para o trabalho fraco de escrita. Embora a ação e os efeitos visuais sejam bastante competentes, o filme não depende deles para se manter de pé, oferecendo conflitos e uma boa progressão da trama por quase duas horas.

Para não dizer que o filme é o entretenimento familiar perfeito, ele sofre do mal crônico da maioria dos filmes atuais: um desenvolvimento e um desfecho ligeiramente alongados, e que ganhariam em agilidade se abrissem mão de 10 minutos. Nada, entretanto, que comprometa um programa de qualidade para levar a garotada neste final de ano. Pode ver sem medo: o presente de Natal não terá devolução.

https://www.youtube.com/watch?v=U8XH3W0cMss