No início dos créditos iniciais, somos lembrados que o filme em questão comemora os 70 anos de Godzilla como personagem e franquia cinematográfica, e tudo que consegui pensar foi: 70º? Jesus, o velho lagarto nuclear conseguiu chegar até aqui?! O que mais ele pode preparar em uma vastidão de quase 40 filmes… Bem, que tal um de seus melhores filmes, se não o melhor?!
Eu sei, eu sei, a 50ª pessoa a afirmar isso no trem do hype em volta de outro lançamento ‘estrangeiro’ não relacionado a Hollywood, fazendo os críticos e o público casual explodirem a cabeça com algo que é tão atrativo dentro do que é um blockbuster voltado para o espetáculo sensorial, mas acertando em cheio um coração pulsante em seu centro que faz você se envolver com os personagens humanos e seus dramas pessoais (EM UM FILME DO GODZILLA); e na mesma medida completamente satisfeito com o tempo de tela devotado à destruição em massa do monstrengo, com o gosto agridoce adicionado ao que é um espetáculo de tragédia humana.
No mesmo filme que oferece uma jornada de herói tão simplista em seus elementos e execução, e embasbacantemente bem feito que te faz pensar o quão o público de hoje realmente está desesperado por um pouco do toque ‘antiquado’ do passado em suas histórias. Bom, deixe que Godzilla Minus One encarregado disso para ser o outro blockbuster não tradicional desse ano a satisfazer a necessidade que uma morta e avacalhada Hollywood moderna se tornou quase que por completo incapaz de entregar!
Atuando tanto como um remake – com enredo e pontos temáticos bastante semelhantes ao clássico original de Ishirô Honda; e uma re-imaginação do ‘personagem’ título do zero, Minus One não perde tempo em fazer introduções à lore e apenas apresenta a fera em sua forma completa de terror folclórico: um dinossauro gigante causando estragos na devastação física e deixando cicatrizes enterradas profundamente na alma daqueles que o testemunham. Se o ‘Gojira’ foi criado como o terror encarnado da era nuclear, sentimos isso imediatamente ao vê-lo agindo em sua natureza destrutível e o que ela reflete naqueles que sobreviveram para contar a história.
Situado no Japão pós-guerra, ainda sofrendo o trauma deixado por Hiroshima e Nagasaki e o impacto existencial que isso teve na sociedade, o cenário de volta ao básico em que o roteirista/diretor Takashi Yamazaki coloca o grande rei kaiju, vê seus personagens envolvidos em um trauma psicológico e emocional do pós-guerra em escala nacional. Desde o macro da culpa geracional deixada no legado aterrador manchado em sua história; ao micro no indivíduo em estado vivo de “culpa de sobrevivente”, carregado por nosso protagonista Koichi (Ryunosuke Kamiki).
Tendo que suportar a mentalidade de época onde dar uma (ou mais) vidas para o abate no fronte de guerra é um feito do bem maior e o ato mais honroso a se fazer. O que o faz ser considerado um covarde e para sempre se envergonhar por ter querido viver. Julgado por aqueles que não conseguiram salvar o que tinham, habitando a ideia do ‘sacrifício honroso’ como algo que poderia dar uma razão para tudo o que perderam, ao custo de inúmeras vidas sendo jogadas em um desperdício sem propósito em meio aos destroços de tudo que eles são ou um dia foram.
Isso facilmente pode ser lido como fala da paisagem política e social do Japão moderno e da sua baixa taxa de natalidade, mas o desespero existencial estabelecido pela narrativa atua acima de tudo, autenticamente histórico para o período retratado, bem como cria a atmosfera desoladora de onde Koichi e o conjunto de outros (ótimos) personagens estão tentando reconstruir sua própria existência, cujo único desafio se apresenta na ameaça do surgimento de um dinossauro nuclear gigante; e se o resultado final parece tão bem mesclado e transmitido, então o filme realizou algo absolutamente certo!
Não diria que se iguala com a sátira política afiada, ou mesmo com os efeitos de terror TENEBROSO de Shin Godzilla, o outro recente e tristemente esquecido do filme Godzilla, que o filme de Yamazaki disputa fortemente o posto de milagre e orgulho da franquia sendo traduzida para o século XXI. No entanto, Mins One mostra o que o ‘cinema Godzilla / kaiju’ tem de melhor: se leva a sério quanto o original de Ishirô Honda, e é tão antiquado como um clássico literário. É um melodrama anti-guerra e uma aventura clássica com o espírito que ecoa o escopo escapista de Star Wars e a ousadia criativa dos blockbusters dos anos 2000, mas transformado em algo totalmente novo e ainda fortemente dentro da mitologia Godzilla!
O filme basicamente faz tudo certo que os dois últimos filmes solo de Godzilla do Monsterverse da Warner não foram capazes de fazer. Não apenas em fazer o que é um drama de personagem tangível, mas também em combinar isso ao espetáculo blockbuster de qualidade, sem ter que exagerar em uma poluição visual vazia nem sacrificar nada na ação de monstro gigante! É ainda mais irônico quando você lembra que a abordagem de Gareth Edwards no seu Godzilla de 2014 foi capturar o evento natural do surgimento de Godzilla fortemente inspirado nessa veia do ‘milagre’ impressionante que ecoa Jurassic Park, testemunhando o despertar dos deuses da natureza.
Irônico porque Yamazaki também aposta direto na veia Spielbergiana quando faz a sequência do barco que marca o primeiro encontro de Gojira em sua forma final sendo descaradamente inspirada em Tubarão, incluindo um tiro de estraçalhar bocas, literalmente! Com a tensão de combate naval com uma forte senso de tensão palpável que ele pega emprestado de Dunkirk; algo duplamente replicado no clímax que é o clímax original de Godzilla e o espetáculo de tensão da batalha naval de Dunkirk casados em um só. E é de ficar impressionado o notável senso geográfico de Yamazaki, capaz de envergonhar os atuais diretores de blockbuster americanos.
A decupagem e o escopo das sequências são quase perfeitos; o ritmo é milimetricamente enquadrado em um manejo perfeccionista. Faz parecer quase um jovem James Cameron ao saber exatamente dar o que o público espera nos momentos certos economicamente calibrados. Visto especialmente na forma como ele salva o tema icônico de Akira Ifukube para um momento pontual no clímax que deixou o público em polvorosa, solidificando Minus One como um blockbuster ‘crowd-pleaser’, dirigido com verdadeira maestria!
Menos de 15 milhões de orçamento e o resultado na tela continua impecável. O bonecão em CGI não só é digitalmente e visualmente otimamente elaborado como está explicitamente querendo reter um pouco daquele brilho dos clássicos de Honda e ao bom e velho método: um cara num traje. Criado por mutação nuclear como resultado direto da verídica Operação Crossroad, envolvendo testes nucleares pelos americanos; adiciona um tom de ‘fim do mundo’ para o desenrolar da ação e um peso à presença do monstrão título. Não importando se ele está menos na tela do que os personagens humanos, suas aparições s são suficientes e ele se faz sempre presente assombrando a mente dos personagens.
Fazer esse tipo de comparação parece esdrúxula, ainda mais dentro de uma franquia tão multifacetada e que já passou por diversas encarnações / interpretações diferentes de seu legado na telona; mas se você toma por exemplo como Godzilla vs Kong trata de forma tão arbitrariamente sádica a destruição e mortes de civis, em Minus One cada pedaço de destruição deixado por onde os passos pesados e destrutivos que Gojira passa, carregam o seu peso mortal que nos faz sentir o horror do caos que ele instaura, e claro, também representa.
Seus passos são mini destruições massivas e seu bafo atômico é uma literal explosão nuclear; ele caminha devagar como Jason e tem um olhar psicopata o tempo todo, sua fome é de morte! Deixando cada alma atormentada pela sua simples presença, porque ele é a memória de todo o sofrimento e de tudo o que perderam; a maldição viva e crescente que ainda destrói sua única esperança de viver novamente, e onde a luta final se transforma em enterrar o horror que assombra sua existência!
No que é o aspecto do filme que provavelmente está gerando a maior parte dos elogios do público, é encontrado em como a narrativa se baseia fortemente nos arquétipos tradicionais da jornada do herói e cria uma simplista, mas eficaz história sobre retornar às cinzas de uma vida anterior, carregando a vergonha de não ser o herói que seu país e sua nação exigiam que ele fosse por sua morte honrosa como piloto kamikaze.
Alguém pode estar se perguntando como um filme que apenas faz o básico do desenvolvimento do personagem está deixando tantas pessoas fascinadas. Ponha isso na conta da ótima atuação de Kamiki, ou um resultado direto do pesado antro de cinismo que vem cercando diversas histórias atuais que o público consome como conteúdo ao invés de se divertir e se ver investido em personagens envolventes carismáticos e multifacetados, mesmo interpretando claros arquétipos, como se é feito em Minus One.
Parece bater em cavalo morto, mas o fato de que esse filme custou menos que um episódio de She Hulk e tem mais carisma e desenvolvimento dramático que o elenco inteiro de Ashoka é realmente para te fazer repensar o que raios você anda consumindo atualmente e se satisfazendo com tão pouco. Minus One parece pouco pelo basicão que faz, mas é como comer um delicioso arroz e feijão bem feito da quentinha da tia Cremilda. Não vai ser tão saboroso quanto da mamãe, mas vai matar a fome com bom gosto!
Ah, ok, entendo que o drama familiar aqui pode parecer muito… ‘conservador’ para as sensibilidades modernas. Mas os conflitos emocionais que se pode achar aqui, sobre o que é ser um homem de verdade e ter dignidade; a pressão em atuar com coragem e também de ser um provedor de família, ou o relacionamento crescente com a Noriko de Minami Hamabe; sendo diretamente contrastado com a gigantesca encarnação do trauma do pós-guerra que ameaça destruir tudo que ele construiu para si, forma o cenário íntimo encapsulado de ansiedades prementes, o impulso suicida, a impossibilidade de alcançar o conforto da paz, o complexo peso emocional deixado pelo trauma.
Minus One então se apresenta como uma história moderna. De alguém descobrindo a vontade de viver além da culpa; escolhendo o amor em vez de correr atrás do fim. O perdão não é algo a ser exigido ou ganho; é conquistado através do nosso crescimento, como indivíduo, como nação. É tudo tão bem desenvolvido que a concepção sinérgica em torno da situação, formando forte num tangente senso de coletividade e comunidade que se é despertado. Desde um pequeno grupo de personagens formando uma família, até uma comunidade inteira de um país, se unindo para lutar contra a ameaça de suas vidas. O filme inteiro está incorporado neste forte senso humano e um tom sincero de esperança que o torna simplesmente irresistível!
Talvez o final aludindo aos efeitos da radiação pós-bomba nuclear, evoluindo para algo muito pior, pode manchar um pouco o que estava sendo construído até então, mas dada a qualidade do material, acaba deixando você ansioso para ver onde isso pode ser levado no futuro. Parte do drama pode ficar piegas e formulaico, mas a sensibilidade emocional por trás de tudo é sincera e as atuações são excelentes; então, quando você vir alguém elogiando isso como ‘muito acima da média’, considere isso um triunfo absoluto, exatamente o que Minus One é!