A nova minissérie documental da Netflix, Abdução em Manhattan, sofre do mesmo mal costumeiro que ataca a produção das grandes plataformas e que tem origem no conceito ao estilo History Channel: a abordagem de temas da realidade tem que ser tão ”fantástica”, “interessante” ou “misteriosa” que o espectador acaba com mais dúvidas do que antes de começar a assistir, de modo que a coisa toda realimenta a cultura de crendice e falsa ciência que se espalha pelas redes sociais.
Ainda assim, se o espectador assistir atentamente aos três episódios que compõem a atração, irá perceber (quase por conta própria, uma vez que a direção investe na fantasia acima da realidade) a fragilidade geral do caso, a pobreza de suas alegadas evidências e o espírito sectário que predomina no meio ufológico.
Linda Napolitano: a testemunha de sua própria abdução
Estamos em 1989, ou seja, o auge da cultura ufológica no século XX. Filmes sobre alienígenas e discos voadores são uma rotina e qualquer pessoa que acompanhe minimamente o noticiário e a produção de cinema está bastante familiarizada com os temas que povoam a mente dos aficionados.
É nesse contexto que Linda Napolitano, uma mulher na casa dos 40 anos, alega publicamente ter sido abduzida de seu apartamento em Nova York, num evento supostamente presenciado por duas dezenas de testemunhas durante um blecaute na Ilha de Manhattan.
Como acontece em praticamente todos os relatos de contato alienígena, as primeiras impressões são atordoantes e é nelas que se resume o noticiário: informações superficiais fornecidas por ufólogos diretamente envolvidos com as testemunhas e que filtram criteriosamente o tipo de revelação que acaba sendo disseminada. Sempre que, entretanto, as perguntas se aprofundam e as evidências são analisadas com minúcia, os casos revelam-se diferentes do que pareciam ser inicialmente, e quase todos caem também por terra nessa etapa.
Com o caso de Linda Napolitano, não é muito diferente: as principais evidências que sustentam sua história são precárias. Suas “testemunhas” são confusas ou simplesmente anônimas, não podendo ser checadas. Algumas provas foram deliberadamente forjadas, como a minissérie mostra em relação a uma carta com assinatura falsificada. E mesmo a radiografia apresentada por Linda é facilmente adulterável, conforme a cineasta Carol Rainey (autointitulada “cética” no documentário) demonstra.
E, como não poderia deixar de ser, não há nenhuma imagem que sustente as afirmações de Linda sobre o evento: ninguém filmou, gravou ou tirou foto. Tudo que se tem, em resumo, são testemunhos duvidosos ou apócrifos, algumas evidências fortíssimas de manipulação e uma radiografia que não prova nada.
Documentário se confunde entre realidade e fantasia – em prejuízo da primeira
Embora Abdução em Manhattan liste todas essas inconsistências, sua opção por tornar “espetacular” o relato – com elaboradas reconstituições, fotografia de filme noir, efeitos especiais de Hollywood e o tom “misterioso” de Alienígenas do Passado – acaba por resultar que o espectador desatento sairá ainda mais confuso do que entrou. E isso concorre para que a lenda não só persista, como até progrida depois do documentário. É mais fácil se lembrar da imagem produzida impactante de uma mulher levitando sobre a cidade que do momento em que a caligrafia de Linda aparece em duas cartas de supostos testemunhas diferentes.
O meio ufológico se vale da carência da plateia por mistério e pelo crescente ambiente de dúvida em relação à ciência estabelecida e às versões oficiais fornecidas por governos. Dúvidas são saudáveis e necessárias: ocorre, entretanto, que quando elas recaem sobre as versões apresentadas pelos próprios ufólogos, são repudiadas rapidamente e há uma recusa em analisar o que de fato foi apresentado como “evidências”. Algumas passagens da minissérie demonstram isso no comportamento pouco criterioso do ufólogo Budd Hopkins.
O espectador atento sabe que deve duvidar de tudo a princípio e construir sua impressão recolhendo evidências sólidas e deixando de lado ou em segundo plano aquelas que se fragilizam no processo. Mas a abordagem ufológica, que mistura fantasia e realidade e predomina em filmes e documentários de TV, prefere dobrar a aposta na incerteza – mesmo quando uma assinatura falsa, por exemplo, coloca a história toda abaixo, como neste caso.
O saldo de Abdução em Manhattan é tornar conhecida uma história impactante, mas provavelmente falsa (na íntegra ou em sua maior parte). É uma vitória amarga, de todo modo, porque a minissérie não se aprofunda na fragilidade das evidências defendidas por Linda e pelo ufólogo Budd Hopkins (de quem um sujeito cauteloso provavelmente jamais compraria um carro usado) e mantém no final a atmosfera “misteriosa”, o que acaba favorecendo o sectarismo ufológico (o qual o próprio Budd admite assemelhar-se a uma religião). Com menos efeitos e mais perguntas diretas (“Esta voz de uma suposta testemunha não é a sua própria voz, Linda Napolitano?”), a minissérie seria talvez menos “espetacular” mas certamente muito mais verdadeira – e, portanto, mais “documental”.