Crítica | Ainda Estou Aqui é aposta mais acertada do Brasil para o Oscar depois de muitos anos

Descubra o sensível drama ‘Ainda Estou Aqui’ que retrata a ditadura militar brasileira através dos olhos de uma família carioca.
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Sony

Em mais uma tentativa esperançosa de conquistar o prêmio de Melhor Filme Internacional concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, a comunidade nacional do setor aposta suas fichas em Ainda Estou Aqui, o drama sensível que tem por pano de fundo o período da ditadura militar brasileira e seus reflexos numa família carioca de classe média alta. De cara, é preciso reconhecer que o filme está bem acima de todos os últimos indicados do Brasil, mas também é salutar conter o ufanismo – ironicamente, uma das marcas do regime autoritário que o filme dolorosamente denuncia.

Conforme se sabe, a busca pela estatueta brasileira no Oscar tem sido quase uma obsessão e tratada muitas vezes como uma proeza esportiva, o que não só é uma maneira infantilizada de enxergar o fenômeno artístico, como uma incoerência em relação ao próprio discurso predominante na indústria de cinema nacional: ao mesmo tempo que se critica a hegemonia de Hollywood no circuito exibidor (e esta é uma preocupação que sempre retorna ao debate), espera-se uma aprovação da indústria norte-americana, como se tal aprovação fosse determinante para a mera existência de uma indústria brasileira (e ela não é, nem poderia ser). Houve momentos em que a premiação pareceu relativamente próxima, com O Quatrilho, Central do Brasil (do próprio Salles) e Cidade de Deus (este envolvido numa gigantesca operação por parte da distribuidora Miramax, que na época apostou no filme nas categorias tradicionais, sem sucesso). Mas o fato é que provavelmente vencer o Oscar de filme internacional é a empreitada mais difícil de todas as categorias em disputa, visto que se trata da seleção de todos os títulos mais representativos em um ano inteiro de produções fora dos Estados Unidos, de modo que você pode eventualmente ter que enfrentar – dependendo da safra e da sorte – ao mesmo tempo um Almodóvar, um von Trier, um Joon-ho, um Koreeda e assim por diante.

Walter Salles (herdeiro do banqueiro Walther Moreira Salles e um dos principais acionistas do Itaú) é dono de uma bem-sucedida carreira como diretor e produtor de cinema. Embora seja mais reconhecido pelos filmes cujas trajetórias remetem ao circuito de cinema independente, “art house”, Salles começou no cinema publicitário e seu primeiro longa-metragem para as salas de exibição, A Grande Arte, é uma tentativa de reproduzir o cinema de gênero hollywoodiano em versão abrasileirada (com resultados bastante interessantes, diga-se de passagem). A despeito de seu trabalho mais reconhecido ainda ser Central do Brasil (que marcou época e suscitou intermináveis discussões no país ao final do século), sua filmografia é muito consistente, tanto internamente (e seria uma falha não se lembrar dos belíssimos Terra Estrangeira e Abril Despedaçado) quanto lá fora (Diários de Motocicleta, Na Estrada, entre outros). Não seria portanto um exagero dizer que Salles é o maior cineasta brasileiro em atividade.

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Trama parte de assustador relato de abuso e injustiça em Ainda Estou Aqui

O roteiro de Ainda Estou Aqui leva às telas o livro de Marcelo Rubens Paiva protagonizado por sua mãe, Eunice Paiva (vivida por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro). Como nem todo espectador está familiarizado com a vida do escritor e o filme (foco de atenção de toda a mídia especializada) tem pretensões legítimas de atingir o grande público, não convém supor que todo mundo que irá assistir sabe exatamente o que houve. Então, vamos nos ater ao mínimo de informações possíveis sobre a trama e os acontecimentos reais narrados pelo filme.

O enredo é dividido quase precisamente e tanto a direção quanto a fotografia sustentam essa divisão: o primeiro ato tem uma atmosfera idílica, e reforça a tendência de enxergar o período imediatamente anterior ao da ditadura militar como um contexto de paz social extrema – o que de resto é uma idealização, bastando recordar que houve uma ditadura igualmente assassina anterior àquela iniciada em 1964, no período Vargas terminado apenas duas décadas antes. Uma crônica familiar que, longe de representar com fidelidade um “modo de vida brasileiro” da época, diz respeito muito particularmente a um estrato da classe média alta, carioca, da zona sul, de formação universitária em humanidades – e há uma tendência no cinema brasileiro de confundir esse grupo com a sociedade toda (tendência essa que não se reduz ao cinema de inspiração histórica ou “política”, mas a ele quase como um todo).

Então, o que vemos na tela é a preparação de algo que não se sabe ao certo o que será: há uma família feliz, um cotidiano agitado pela presença de muitos adolescentes e crianças, um mar imenso na porta de casa e certa movimentação dissimulada nas lacunas da vida familiar. Haverá uma vítima entre os personagens e o roteiro segura o suspense (que existe, embora seja conduzido modestamente) até que a apresentação se encerra, e o núcleo familiar todo mergulha num buraco escuro e desconhecido.

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O primeiro ato termina e a atmosfera do filme se modifica totalmente: os agentes do regime invadem sorrateiramente a casa, a iluminação do filme torna-se escura e somos conduzidos ao pesadelo de um rapto criminoso e as torturas e abusos imperdoáveis cometidos em nome da “segurança nacional” (quando uma ditadura é instaurada sob a pretensa desculpa de evitar outra ditadura, o que não faz muito sentido). É o melhor momento cinematográfico do filme e a direção de Salles é eficiente, mostrando o pesadelo silencioso da família sem contudo apelar ao sentimentalismo ou ao discurso ideológico.

É onde provavelmente reside a grande vantagem de Ainda Estou Aqui para outros entre os infindáveis filmes nacionais sobre a ditadura militar: o ponto de vista escolhido é o de uma pessoa comum, e não de um ativista ou guerrilheiro. Isso confere humanidade ao drama e faz com que ele supere a dicotomia ingênua que costuma predominar no cinema brasileiro de caráter político: embora esteja claro na tela quem são os culpados e quem são as vítimas, o filme é cauteloso em transformar isso em discurso ideológico (e, quando o faz, é na figura da “filha engajada”, o que impede o tom do filme converter-se em mero proselitismo, que certamente rebaixaria a tragédia profundamente humana na qual ele aposta suas fichas – curiosamente, também, o retorno da personagem ao Brasil marca uma queda expressiva do filme).

A segunda metade alonga-se, especialmente no terceiro ato, quando salta no tempo e precisa (precisava mesmo?) “contextualizar” o que foi assistido até então. Se a partir daí ele se confirma como documento vivo de um período sombrio, ele funciona menos como obra de arte, especialmente se considerarmos que alguns pontos que podem parecer interessantes ou autoexplicativos para a maior parte da audiência nacional (notadamente, o autor do livro que aparece numa cadeira de rodas, sem que o próprio enredo forneça qualquer pista sobre o que aconteceu, e a troca de atriz para o papel de Eunice, de filha para mãe) serão ignorados pelo espectador desavisado ou de outros países, para quem só restará um certo didatismo que até então não havia dado as caras.

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Saldo do filme é positivo e se sustenta além da discussão histórica

Talvez a maior limitação do filme seja o tom ligeiramente monocórdico que se mantém quase a projeção inteira e a atuação contida, bastante discreta, de Fernanda Torres, se faz jus à personagem real e reafirma sua dignidade diante de tamanha adversidade, priva por outro lado o público de momentos com maior elaboração cinematográfica – e não é demais lembrar que estamos diante de um filme, e não de uma tese ou registro histórico propriamente dito. Nada, entretanto, que comprometa a justeza da realização, nem o testemunho que, embora possa ser considerado repetitivo dentro da cinematografia nacional, continua ressoando dolorosamente, não importando (ou ao menos não devendo importar) as implicações políticas e ideológicas que uma análise fria do período possa suscitar. E, nesse sentido, aparece também como (provavelmente) involuntária ironia o fato de que o quarto dos filhos adolescentes exiba na parede o retrato de Che Guevara (um dos símbolos da também terrível ditadura cubana, responsável equivalente por um sem número de raptos, prisões injustas e desaparecimentos de dissidentes) e o cartaz de A Chinesa, o filme de Jean-Luc Godard em sua fase radicalmente maoísta – ou seja, radicalmente autoritária e trágica do ponto de vista dos direitos humanos. 

A despeito de ser cinematograficamente menos emocionante ou estimulante que seus similares sul-americanos (como O Segredo dos Seus Olhos e No, respectivamente tendo como pano de fundo as ditaduras argentina e chilena), Ainda Estou Aqui é, de longe, a melhor aposta brasileira para o Oscar de Filme Internacional em anos e, deixando de lado as implicações (e as implicâncias) de natureza política que possa trazer à tona, ele existe como filme e resiste a uma avaliação fria, estando sua força simbolizada e resumida na resiliência da protagonista, que em determinado recusa a vitimização e responde com um sorriso no rosto – mesmo diante dos abusos, da injustiça e de uma violência inenarrável falsamente justificada pelo contexto da Guerra Fria na época.

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