A melhor palavra que caracteriza o cinema de M. Night Shyamalan é “invulgar”: é fácil amar ou odiar seus filmes, mas dificilmente eles provocarão indiferença. E com “Armadilha”, seu lançamento de 2024, não poderia ser diferente.

Na trama, Cooper (Josh Hartnett, brilhante) e sua filha adolescente (Ariel Donoghue) vão a um show de uma estrela da música pop (Saleka, filha do diretor) quando ele percebe uma presença excessiva de policiais ao redor. Rapidamente, Cooper se dá conta de que ambos estão no epicentro de uma armadilha montada para capturar um serial killer da Filadélfia apelidado de “The Butcher” (“O Açougueiro”).

Revelar mais do que isso traria spoilers inevitáveis, mas exporia também a grande deficiência do filme: para que a trama mova-se adiante como um relógio suíço, é preciso que a audiência aceite uma sucessão de eventos nem sempre críveis em conjunto. Tudo se encaixa perfeitamente para levar o filme aonde o diretor pretende. Vilões e mocinhos comportam-se de maneira irrealista, num balé de plots twists que tende à artificialidade.

Se o roteirista Shyamalan está disposto a comprometer totalmente a verossimilhança em nome do entretenimento, o diretor Shyamalan por outro lado exercita seu ofício de maneira singular. Poucos diretores na indústria ainda hoje se dispõem ao seu esforço formal e raríssimos usam o quadro tão bem. Acostumado à vulgarização contemporânea dos “planos fechados”, o espectador atento irá perceber como, aqui, o close desempenha um papel dramático fundamental, servindo para intensificar os conflitos entre os personagens, por exemplo (e para que tal recurso funcione, o close não pode aparecer o tempo todo).

Mas nem só isso: Shyamalan sabe a importância de posicionar bem a câmera (outra raridade na indústria que acaba soando até como excentricidade) e é um dos poucos dispostos a filmar os atores olhando diretamente para a lente, num efeito arrebatador que é uma de suas marcas registradas. O resultado dessa decisão que, embora pareça banal, é bastante incomum, é permitir aos atores momentos de concentração e emoção crescente que normalmente perde-se em edições muitos entrecortadas (outro cacoete que Shyamalan sabiamente evita). Tal qual Jonathan Demme com o rosto de Jodie Foster em “O Silêncio dos Inocentes” e o próprio Shyamalan com o de Anya Taylor-Joy em “Fragmentado”, os momentos em que a montagem se detém na expressividade comovente de Saleka Shyamalan correspondem a um ponto alto não só deste filme, mas como certamente de toda a safra de filmes de 2024. Filmar rostos é uma arte para poucos e Shyamalan é um deles.

Quem aprecia o trabalho do cineasta encontrará em “Armadilha” os elementos de sempre que parecem contribuir para  seu prestígio duradouro dentro da indústria: roteiro elaborado e original, vilões marcantes e mocinhos(as) que provocam identificação imediata, sua generosidade com o trabalhos dos atores, além da direção elegante e do excepcional trabalho de câmera. Quem, por outro lado, irrita-se com seu estilo, com a confiança demasiada nas tramas, as reviravoltas vertiginosas e o imaginário cartunesco, quase infantilizado, também encontrará motivos para reclamar. A impressão que fica é que seu talento é também uma armadilha da qual ele talvez sequer esteja interessado em escapar, mas se optasse por uma narrativa menos rocambolesca – quem sabe – seus filmes seriam ainda melhores. Ou ao menos mais verossímeis e – portanto – mais adultos.

Armadillha (EUA, 2024)

Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan
Gênero:  Mistério, Crime, Suspense, Horror
Duração: 105 min

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Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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