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Crítica | Cães Selvagens

Às vezes, é importante que existam filmes ruins e que estes estejam gerando debates. Cães Selvagens é um exemplo disso: por trás de seu estilo estético fabulosamente instigante, o novo trabalho de Paul Schrader (que roteirizou obras-primas dirigidas por Martin Scorsese, como Taxi Driver, Touro Indomável e A Última Tentação de Cristo) apresenta problemas graves no roteiro e na maneira como retrata a violência cometida pelos personagens, se julgando original e competente quando, na verdade, está sendo apenas sádico e incômodo. Em contrapartida, é bom que uma discussão possa ser originada a partir desta interpretação – e gosto de acreditar que a Arte (mesmo quando exercida de modo irregular) é fundamental para promover reflexões.

Escrito por Matthew Wilder com base no livro que Edward Bunker escreveu em 1996, Cães Selvagens tem início nos introduzindo a Mad Dog, um maluco que se diverte cheirando cocaína, falando um “fuck” em cada frase, transando com mulheres que conheceu há pouco tempo, revelando um estilo de vida nojento e assassinando pessoas sem pensar muito. Depois disso, somos apresentados a Diesel, um homem cuja grandeza de seu tamanho se reflete na amargura que há em suas memórias, e Troy, um sujeito que tenta esconder sua personalidade agressiva e imunda dentro de uma personalidade que se inspira no charme de Humphrey Bogart. Juntos, os amigos que se uniram na prisão arranjam alguns crimes que rendem centenas de milhares de dólares ao trio; o que culmina numa proposta que pode servir como o êxito definitivo para eles.

Do ponto de vista estético, Cães Selvagens é um deslumbre desde o começo, onde vemos Mad Dog no meio de uma sala completamente dominada por rosa até que uma porta se abre introduzindo um azul igualmente vibrante – o que não deixa de ser curioso, já que ambas as cores denotam uma pureza que se contrasta diretamente com a truculência do que vem a seguir. Além disso, Paul Schrader acerta ao rodar cenas em preto e branco que criam uma caricatura do estilo noir, inverter o posicionamento da câmera a fim de brincar com a gravidade numa sequência multicolorida que envolve o efeito de drogas e compor uma câmera subjetiva que ilustra o ponto de vista de um projétil do momento em que é disparado até o instante onde acerta uma pessoa. Por sua vez, o uso de substâncias ilícitas remete à overdose sensorial que Danny Boyle apresentou em Trainspotting e traz uma série de planos-detalhe que, aliados à montagem frenética de Benjamin Rodriguez Jr., estabelecem um ritmo surtado que funciona bem.

Já o trio de atores principais é relativamente bem-sucedido dentro do possível: se Nicolas Cage (que vem escolhendo pessimamente seus trabalhos há anos) é hábil ao compor Troy como um pseudo-Humphrey Bogart repleto de nicolascagismos, Christopher Matthew Cook faz o que pode ao viver Diesel como um brutamontes complexado. O que é uma pena, no entanto, é que o roteiro tenta conferir dimensão dramática aos personagens a partir do segundo ato, pecando especialmente ao transformar a fixação que Troy tem por Bogart em algo mais significativo do que o necessário e nunca definir se o comportamento de Diesel deve ser divertido ou melancólico. Enquanto isso, Willem Dafoe vive uma versão live-action de Trevor Phillips, que co-protagonizava o game Grand Theft Auto V e que, assim como Mad Dog, elevava ao extremo o conceito de um psicopata viciado em drogas, sexo e sujeira.

Por outro lado, é aí que começam os impasses de Cães Selvagens: ao contrário dos desenvolvedores de jogos da Rockstar e de diretores como Paul Verhoeven e Quentin Tarantino, Paul Schrader acredita ser capaz de retratar a violência como algo risível quando, na realidade, sua maneira de retratá-la é muito mais perturbadora e desagradável do que imagina. Quando Trevor pisoteava o rosto de um motoqueiro até matá-lo em GTA V, aquilo soava mais como uma situação engraçada do que como um evento chocante; quando um homem era corroído por materiais tóxicos antes de ser explodido num atropelamento em RoboCop, aquela brutalidade era hilária em vez de trágica; quando Django dava um tiro que arremessava uma mulher para outro cômodo da mansão de Django Livre, o espectador gargalha diante de algo que era claramente uma piada; quando inocentes são executados após experimentarem momentos de pura tensão em Cães Selvagens, nos preocupamos com o impacto que aquela morte vai gerar nos familiares da vítima em vez de seguirmos concentrados na jornada de Troy. Aliás, acho que nenhuma cena vai me agoniar tanto em 2017 quanto a que abre a projeção e traz uma mulher sendo esfaqueada uma mulher e uma menina que implora por misericórdia ao ser perseguida até seu quarto (uma sequência que, inclusive, é dirigida com uma comicidade asquerosa).

De todo modo, o projeto poderia até ser bem-sucedido – apesar dos pesares – caso soubesse contornar o problema utilizando a violência de forma eficaz; o que, infelizmente, não é o caso, já que o roteiro (que é o calcanhar de Aquiles da produção) parece não fazer a menor ideia do que pretende realizar. O plano que abre o filme revela uma entrevista com um indivíduo claramente favorável ao porte de armas para civis, mas este detalhe soa gratuito já que a obra simplesmente não sabe se deseja discutir o assunto. Assim, existem vários momentos onde Cães Selvagens poderia estar servindo como discurso contra ou a favor de certos temas, mas que se perdem em razão do roteiro tremendamente disperso em suas ambições – outro exemplo disso é a sequência onde Troy, Mad Dog e Diesel se disfarçam de policiais, rendem uma pessoa e conduzem esta a um destino específico: a cena remete imediatamente à truculência adotada por autoridades quando interagem com negros, mas isso não se define como piada (sem graça) ou denúncia social (rasa). Para concluir, é triste que o roteirista Matthew Wilder crie situações intensas sem se dar ao trabalho de desenlaçá-las (para perceber isso, basta notar como o conflito encontrado na penúltima cena não é concluído antes que saltemos para o final da projeção).

Constrangedor na maioria de suas piadinhas, que se acham subversivas e insanas (há um instante onde Troy pergunta o nome “daquela coisa que você põe na boca de um bebê” e Mad Dog questiona “Um pinto?”. Acho que nem Trevor Phillips diria algo assim.), Cães Selvagens é um filme terrivelmente incômodo e que gera essa sensação sem sequer saber se isto foi proposital ou não. Sim, é um longa visualmente belíssimo, mas isso não é o suficiente para ocultar o sadismo, a falta de foco e a imaturidade da obra. Talvez Paul Schrader não devesse ter se contentado apenas com o cargo de diretor, pois um roteirista talentoso como ele poderia ter transformado Cães Selvagens num clássico instantâneo.

Direção: Paul Schrader
Roteiro: Matthew Wilder
Elenco: Nicolas Cage, Willem Dafoe, Christopher Matthew Cook, Omar Dorsey e Paul Schrader
Gênero: Comédia, ação
Duração: 93 min

Redação Bastidores

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