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Crítica | De Palma

Um dia de filmagem foi suficiente para os diretores Noah Baumbach (Frances Ha, Enquanto Somos Jovens) e Jake Paltrow extraírem de Brian De Palma os sucos vitais mais saborosos de sua longa carreira. A sequência de abertura, com letras garrafais vermelhas deslizando sobre um fundo preto, como uma abertura remodelada de …E o Vento Levou, desbanca qualquer expectativa de um tom que se assemelhe a um extra de DVD. Em seguida, ainda não se vê De Palma. Prefere-se iniciar com uma ponta das comparações a Hitchcock que virão, com cenas de Um Corpo que Cai. Os comentários do diretor entram em seguida, para enfim começar a declarar o que sobreviveu em sua mente sobre sua vida e obra.

Baumbach já havia feito uma série de entrevistas com De Palma que saíram como extras de alguns filmes do diretor que saíram pela Criterion (aqui no Brasil, alguns pela Versátil). Nelas, o entrevistador compartilhava um campo-contracampo com o cineasta. Agora, nem campo-contrampo, nem o campo dividido: De Palma está sentado no centro da tela. O discurso direto, com interferências inaudíveis e imperceptíveis dos entrevistadores, característica que garante um vigor ininterrupto ao entrevistado, alternado com arquivo fotográfico e fílmico complementam-se e ilustram os méritos e as falhas das obras. A edição simples, sem tentativas de inserir homenagens ao diretor em seu próprio formato – seriam previsíveis e descartáveis cenas em split screen, de um lado a entrevista, do outro algum filme. O diretor não se envergonha de reconhecer algumas péssimas decisões, da mesma maneira como enxerga claramente seus momentos grandiosos. E, afinal, pela opção de se gravar uma única e longa entrevista, a fala evidencia o que está mais vivo na memória do diretor. Seria um artifício problemático se a intenção fosse destrinchar igualitariamente a carreira de De Palma, algo impossível com apenas seu ponto de vista. No caso, quem ‘dirige’ os caminhos do filme é o próprio De Palma, que ordena sua história em ordem cronológica e tece um panorama personalizado, com narrativas reguladas de maneira diferente dependo do assunto e da época em questão. A cadência da oralidade é um dos pilares que sustentam as quase duas horas de duração.

Os riscos são diferentes, então, de um comum documentário burocrático post mortem – cenotáfios vergonhosos. Ou, às vezes, nem post mortem precisa ser para bajular tanto um nome e, no final das contas, não entender seu objeto de pesquisa, vide Woody Allen: Um Documentário. Aqui, a (auto)reverência é diferente. Não há o olhar limitado que tenta empurrar goela abaixo a grandeza de um nome, mas sim de mostrá-la efetivamente. O documentário funciona como uma revigoração da ‘teoria dos autores’ ao ir além do que já é tão evidente em toda a obra do diretor. Baumbach & Paltrow conseguiram captar, de maneira menos extensa e pretensiosa, sem perder o teor excitante das boas conversas sobre cinema, interessantes para cinéfilos e leigos, o espírito de Hitchcock/Truffaut. Depois de declarar ser um dos poucos reais seguidores que reflete as ideias do mestre em seu cinema, De Palma assume a posição do cineasta britânico, sem a presença física e incisiva de seu Truffaut ou da intérprete. No caso, uma vez que De Palma fez de Hitchcock, desde o começo, a tela de suas projeções, seus filmes acabam cumprindo esse lado da interlocução. Só mais um dos duplos de sua obra.

Felizmente, há muito a ser discutido para além do que os filmes já mostram. É fascinante ver e ouvir sobre as diversas preferências, referências, inspirações políticas (a que se deve o título de ‘Renascença’ hollywoodiana senão, sobretudo, a sua capacidade de conjugação do sistema?), o porquê de determinadas opções, e até como suas experiências pessoais se encaixam nas tramas. Um exemplo incrível são as fotografias em série de Vestida para Matar, inspiradas nas vezes em que De Palma seguia seu pai e tirava fotos dele com amantes.

Para os já devotos desse importante nome, interessados em questões mais profundas, ou uma defesa furiosa de Missão: Marte vinda da boca do seu próprio criador,  o filme é insuficiente. É mais interessante aos neófitos e admiradores casuais, satisfeitos em prolongar as experiências dos filmes por alguns minutos a mais. De Palma destaca também na sua carreira o papel que teve a crítica de cinema no seu desenvolvimento. Já os que não aceitam uma espécie de misoginia nos roteiros de De Palma pouco serão interlocutores da discussão, à parte uma ou outra satisfação, se assim posso definir os trechos de respostas à alguns posicionamentos. Parece, na verdade, que a fotografia que encerra o documentário é mais uma de suas provocações.

Conservando as glórias onde elas estão – e onde provavelmente ficarão por mais algumas décadas –, essa extensa entrevista realizada e editada com precisão pela dupla Baumbach & Paltrow inspira rêveries tanto do já caro ‘duplo’ ao priorizar a singularidade de De Palma sem ser unívoca. Um tipo de documentação pouco usual e que deve inspirar outras do gênero no futuro próximo.

Redação Bastidores

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