Sempre que eu assisto a uma grande produção, repleta de cenas elaboradas, a primeira coisa que eu faço depois de terminada a sessão é tentar descobrir o quanto do que se vê na tela foi feito “na unha” (como quando o Tom Cruise realmente pula do avião em movimento) e quanto se deve a efeitos digitais na pós-produção. No caso de F1: O Filme, pela primeira vez eu não me preocupei em fazer isso. O motivo é bastante simples de compreender: algumas cenas são tão impressionantes que, se foram feitas com atores e veículos reais, são realmente espetaculares – mas, se tais cenas precisaram ser resolvidas prioritariamente no computador, a integração entre os atores e cenários é tão precisa e discreta que a façanha parece ainda maior.
O novo filme dirigido por Joseph Kosinski (de Top Gun: Maverick) se insere numa longa tradição de produções sobre corridas de automóveis. A lista de títulos célebres é extensa e respeitável: desde Grand Prix (1966), dirigido por John Frankenheimer, e As 24 Horas de Le Mans (1971); passando por Dias de Trovão (1990), com Tom Cruise e Alta Velocidade (2001), com Sylvester Stallone; até chegar aos mais recentes Rush (2013), Ford Vs. Ferrari (2019), Gran Turismo: De Jogador a Corredor (2023) e Ferrari (2023).
O novo filme estrelado por Brad Pitt ocupa um lugar de destaque em tal lista e, se não for decididamente o melhor deles, está bem posicionado. Além de se tratar de uma produção grandiosa em iMax, envolvendo os gigantes Warner e Apple, F1: O Filme tem uma marca muito particular que parece se sobrepor às outras influências e ser responsável pelo resultado: a assinatura de Jerry Bruckheimer, o lendário produtor dos anos 1980 que moldou toda uma mitologia cinematográfica em sucessos como Top Gun, Armageddon, a franquia Piratas do Caribe e tantos outros.
Enredo é bem amarrado e não se perde em subtramas dispnesáveis
O roteiro de Ehren Kruger (autor de outros enredos excelentes, entre eles o brilhante O Suspeito da Rua Arlington) apresenta muito rapidamente suas credenciais, fisgando o público nos primeiros 10 minutos. Pitt (esbanjando carisma, como de costume) é um piloto quarentão e mal sucedido que ganha a vida aceitando pilotar em diferentes categorias como freelancer, sem estabelecer raízes em lugar algum (o roteiro irá esclarecer isso no momento necessário, sem digressões dispensáveis). Ao ser abordado por um antigo colega de corridas (Javier Barden, ótimo), Sonny (Pitt) tem a oportunidade tardia de retornar à Fórmula 1, onde terá numa equipe azarenta a companhia do novato talentoso Joshua Pearce (Damson Idris), que enxerga no corredor mais velho ao mesmo tempo um rival e professor.
Chama atenção o tom do filme – e aí provavelmente está o peso da influência de Bruckheimer, a atmosfera anos 1990 que contrasta bastante com a que estamos acostumados em outros blokcbusters contemporâneos. Diferente destes, a mania incontrolável de “piscar para a plateia”, de avalizar os absurdos da trama com sorrisinhos irônicos, uma tendência permanente à autocondescendência de rede social, aqui é substituída por rebeldia crua e cinismo sem indulgência: Sonny Hayes é um ferrado pela vida que não tem pena de si mesmo, tampouco se dobra à autoridade ou grupo, fazendo suas próprias regras sem pedir desculpa a cada 10 minutos (como num filme da Marvel, por exemplo). É competitivo, brutal, autêntico e leal ao grupo, um homem fora do seu tempo (e possivelmente fora de um “tempo do cinema” também).
Visualmente, o filme reflete a crueza de Hayes e impressiona, também, pela diferença do que estamos acostumados a ver. Tudo é orgânico e imprevisível – diferente, por exemplo, de produções hiper “anabolizadas” de CGI e visual artificial, como Pecadores e Extermínio: A Evolução, onde algumas cenas parecem tão “preparadas”, tao previamente “simuladas”, que temos a sensação de que a qualquer momento o “arquivo do filme” vai travar bem na nossa frente por falta de memória.
Aqui, entretanto, a sensação é oposta: a ação é vívida a ponto de transbordar pelas bordas da tela. É possível sentir o drama físico dos pilotos levados ao limite. Nada de iPhone girando 360 graus ao redor do ator (apesar de o filme ser da Apple…). Como em Top Gun: Maverick, Kosinski opta por um realismo que sugere descontrole e aleatoriedade, fazendo do espetáculo cinematográfico um evento que só se realiza plenamente em uma tela grande. E Bruckheimer empresta a verve inconfundível do cinema dos anos 1990, quando os heróis não eram cientistas bilionários ou seres híbridos com habilidades extrassensoriais, mas homens comuns com coragem e teimosia para ir até o limite.
A experiência de ver este filme é incomparável numa tela grande
O vigor meio incontrolado e talvez “masculino” demais de F1: O Filme pode assustar uma parte da audiência, acostumada a um estilo mais anódino e autocomplacente dos herois de histórias em quadrinhos. De toda forma, a produção merece ser assistida (e preferencialmente no cinema), pois é um exemplo quase perfeito de seu subgênero, sofrendo apenas com um desfecho alongado e com falsos epílogos (uma praga do roteiro contemporâneo). Nada que atrapalhe o prazer de apreciar um cinema tão realista, tecnicamente minucioso e espiritualmente inconformado quanto este.
Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.