“Sinto ciúmes”, Russell Crowe admitiu em entrevista de 2023 sobre ter sido deixado de lado na produção da continuação Gladiador II, que chega agora aos cinemas de todo o mundo, mais de 20 anos depois de o original ter conquistado as plateias com uma narrativa elegante e vigorosa. E, embora a continuação seja fruto de evidente esforço e capricho por parte dos realizadores, o protagonista do primeiro Gladiador pode acompanhar o lançamento de casa com um sorriso cínico nos lábios: não só ele faz falta como o novo filme não se compara ao outro.

Uma continuação de um sucesso estrondoso como aqui e realizada após tanto tempo, abrindo mão de seu ator principal, é um desafio arriscado, que no entanto parece bem entregue às mãos de Ridley Scott, um desses “tycoons” da indústria, capaz de transitar por décadas, tendências e modas sempre se reinventando e pescando um ou outro sucesso em diferentes gêneros (ficção científica, drama, épico) como se o cinema fosse uma ciência plenamente dominada por si mesmo. Sua direção é um dos pontos acertados do novo filme: Scott consegue atingir um balanço quase perfeito entre ação física, ambientação e efeitos. Não faltam sequências espetaculares, mas ele entende que a suspensão de descrença exige alguma “fisicalidade”, além das mirabolâncias constantemente propostas pela pós-produção contemporânea. Mesmo os cenários e a generosa figuração não são camadas mortas na tela, e a poeira e o sangue (que felizmente não jorra em exagero) emergem da tela com veracidade e (alguma) verossimilhança (mas voltaremos a isso mais adiante). É preciso louvar ainda o fôlego do cineasta para dirigir um filme gigantesco como este com quase 90 anos de idade, o que só aumenta nossa admiração e comprova sua fidelidade ao ofício cinematográfico.

Roteiro tem que decidir entre dois caminhos e não opta totalmente por nenhum deles

Na trama, o “bárbaro” Lucius (Paul Mescal) é feito prisioneiro e convertido em gladiador, jogado de volta à Roma, enquanto uma intriga de poder e bastidores decorre ao seu redor e irá eventualmente envolvê-lo e colocá-lo no centro do drama. Ele deve fazer o jogo imposto por seu senhor, Macrinus (Denzel Washington), enquanto descobre qual sua relação passada com Lucilia (Connie Nielsen, discreta), que por sua vez é casada agora com Marcus Acacius (Pedro Pascal), uma general vitorioso que rejeita participar do teatro de demagogia política proposto por Geta (Joseph Quinn) e Caracalla (Fred Hechinger), a dupla de imperadores gêmeos e degenerados. Acacius é ainda o alvo da vingança de Lucius pela morte de sua amada Arishat (Yuval Gonen) durante o combate contra os invasores romanos.

Já assistimos diversas vezes a situações semelhantes e Hollywood tem títulos notáveis em seu passado transitando no mundo antigo (notadamente Roma, Egito e Grécia). Gladiador II não traz nenhuma grande novidade nesse sentido, mas a comparação mais direta é com o primeiro filme e aí que a continuação se vê em desvantagem. O roteiro começa numa velocidade muito alta, que ele mantém quase num ritmo único até a metade da projeção, quando aparentemente seus autores “lembram” que é preciso remeter mais diretamente ao legado do Gladiador original – afinal, a nova história só existe por causa do prestígio e do sucesso da anterior. A partir daí, a trama política, de bastidores, ganha corpo, ao mesmo tempo que o ritmo do filme sofre uma desaceleração violenta, para se alongar depois num terceiro ato pouco climático e até mesmo decepcionante.

Se o enredo se mantivesse concentrado na ação – que funciona tão bem, especialmente na espetacular abertura – até o final, o filme não teria o tom trágico e levemente etéreo que encanta no Gladiador original, mas seria um filme de ação de excepcional eficiência. Porém, quando ele muda um pouco de rumo (especialmente a partir do meio do segundo ato) para fazer jus ao legado, é quando a comparação com o original trai o novo filme, e suas fraquezas vêm à tona.

Tubarões são um problema menor diante da fraqueza dos personagens

Muita gente vai torcer o nariz diante de algumas licenças poéticas exageradas que o filme se concede: os macacos que parecem mutantes, os tubarões na arena (como chegaram até ali? e como serão retirados depois?), o “jornal” na “cafeteria”, mas tudo isso seria mais facilmente perdoado se os personagens principais tivessem o relevo ou mesmo o carisma perverso do Gladiador original – e eles não têm, nem de longe. 

Paul Mescal esforça-se para parecer comovente o suficiente, mas há uma distância bastante significativa entre ele e o Russell Crowe do primeiro filme – que parece mais trágico e dotado de profundidade, enquanto Mescal entrega um herói genérico que é comum ao gênero e remete mais ao que Gerard Butler fez em 300.

Denzel Washington replica mais uma de suas atuações competentes, mas aqui totalmente deslocada, uma vez que ele parece estar numa delegacia norte-americana dos anos 1990 (e não na Roma antiga), repetindo trejeitos e entonação que nada combinam com a ambientação ou a época – o estranhamento é parecido com o provocado pela “cafeteria”.

E, finalmente, a dupla de vilões é fraquíssima, tanto em termos de atuação como profundidade do drama e das cenas, e qualquer comparação com o que Joaquin Phoenix fizera antes com seu inesquecível Commodus chega a ser constrangedora para a continuação.

Scott imprime qualidade, mas a grande arte de Gladiador dependeria de um roteiro mais bem resolvido

O primeiro Gladiador é um daqueles filmes que a indústria entrega eventualmente que transcende o sucesso comercial e produz referência para o imaginário popular porque o equilíbrio entre drama a imagens poderosas foi perfeitamente atingido. A direção tem papel fundamental na criação desse tipo de “mitologia” cinematográfica e popular, mas atingir esse nível de realização também depende, no final das contas, de um roteiro realmente bom de ponta a ponta, o que não se vê nesta continuação. A despeito de ser, sim, uma bela produção e um bom filme, é o Gladiador original que permanecerá no imaginário popular por mais algum tempo – até que o incansável Ridley Scott arrisque-se a mais uma proeza (quem sabe?) digna dos guerreiros a quem deu vida em ambos os filmes.

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Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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