GOAT, o terror produzido por Jordan Peele, é a mais nova vítima do que poderíamos chamar de “resenhas emocionadas” que, hoje, contaminam a recepção e debate sobre lançamentos cinematográficos (especialmente aqueles dos grandes estúdios). Cada novo título precisa ser recebido com alguma sentença radical, ”definitiva”, e que seja facilmente convertida e replicada em termos de títulos de posts em redes sociais.

Evidentemente, reduzir todo filme a uma entre duas categorias fixas – ou se trata de “o melhor filme do ano” ou de “a pior coisa que eu já vi”, e não me pergunte como alguém pode seguidamente ter “melhores filmes que já viu” ou “piores bombas do ano” em intervalos de semanas… – praticamente elimina qualquer análise mais madura, sintetizando lançamentos numa batalha de torcidas entre os que eventualmente idolatram um filme e aqueles que farão tudo para “provar” que o filme na verdade é uma porcaria.

Conforme GOAT é um filme “comum”, ele não é o “melhor filme de todos os tempos da última semana” (como se poderia referir banalmente a Pecadores, A Hora do Mal, Uma Batalha Após a Outra, etc.), tampouco é um filme horrível ou algo parecido.

É uma sátira violenta, exagerada e levemente caótica, colorida em luxuoso desenho de produção (que remete ao trabalho do diretor indiano Tarsem Singh) e que parte da mitologia tipicamente observada no universo do futebol americano para explorar temas abrangentes que dizem respeito à fratura racial na América, à obsessão por meritocracia e ao imaginário de sucesso e consumo que hoje ecoa especialmente no ambiente digital.

O diretor apresenta seu Um Domingo Qualquer em versão Geração Z

Na trama, Cam (Tyriq Withers) é um badalado jogador de futebol americano universitário que, próximo de ser “draftado” (ou seja, escolhido por uma das grandes franquias para jogar profissionalmente), sofre um ataque violento de um mascote de identidade desconhecida que o faz perder a temporada e ficar em dúvida se poderá atuar num time da liga como era o sonho de seu falecido pai. Seu agente lhe consegue então uma espécie de “semana de estágio” com um quarterback veterano (Marlon Wayans), que o recebe em sua mansão no deserto para um imersivo período de testes, que vão desde exames clínicos até situações inusitadas de assédio emocional (e outras barbaridades que se sucedem).

Enquanto Cam parece ceder em termos psicológicos, realidade e delírio misturam-se no cotidiano de exploração física e abuso psicológico que envolvem o ambiente em torno de Isaiah (Wayans), o que inclui lidar com uma aparente seita de fãs fanáticos (entre os quais uma caricatura psicótica e hilária de Lady Gaga).

Para entender e se relacionar com os temas e o universo imaginário proposto pelo filme, o espectador precisa também compreender minimamente os símbolos, valores e todo um conjunto de referências que remetem ao futebol americano (especialmente da NFL, embora aqui a liga seja substituída por uma genérica equivalente). Sem esse passaporte, a audiência pode reagir a algumas bizarrices como delírios, quando na verdade uma boa parte delas retrata fielmente o ambiente do esporte profissional de altíssimo desempenho.

O maior mérito do filme é, possivelmente, pintar tal retrato em cores vivas, sem que para isso precise ultrapassar os limites da verossimilhança. A família de Cam, por exemplo, é referência direta à família fictícia de Cuba Gooding Jr., o Rod Tidwell no clássico Jerry Maguire, e reforça a neurose que se sobressai na rotina de atletas jovens que precisam se provar a cada dia para se manter nos holofotes.

O roteiro se perde, por outro lado, quando precisa solucionar a trama e escolhe um desfecho catártico na forma de uma carnificina. É naquele ponto em que ele se desliga da realidade, optando por uma solução cinematográfica que elimina qualquer possibilidade de maior sutileza ou nuances na leitura, e o filme se converte em um slasher algo paródico, relegando o sentido de sua crítica social a um segundo plano tímido, embaixo de uma camada generosa de sangue na tela.

Como não se alonga, o enredo não perde o interesse até seu desfecho duvidoso

Apesar disso, a leitura que o filme faz do dilema racial nos Estados Unidos, e de como ele é “revertido” de forma ora trágica, ora grandiloquente, por meio da ascensão social, seja na indústria do entretenimento (indústria da música, do hip hop e R&B), seja no esporte (notadamente, no basquete e no futebol, sendo o beisebol percebido antes como um esporte de brancos ou hispânicos, mas não necessariamente de afrodescendentes) é superior, por exemplo, àquela enxergada em Luta de Classes, a refilmagem de Spike Lee para o clássico de Kurosawa, em que o excessivo didatismo, a ambientação e a caracterização que chamam o tempo todo atenção para si mesmas, atrapalham o conjunto e acabam por prejudicar o resultado final.

O sucesso reclama seu preço – conforme em O Advogado do Diabo, de 1997, outra referência de GOAT, embora aqui a sexualidade esteja latente e tímida (ao contrário do outro filme, um produto tipicamente provocativo da década de 1990). Trabalhando num montagem vigorosa, bem como na criativa trilha musical (de Bobby Krlic, o mesmo de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite), a direção se esmera em fazer um retrato virulento do universo sobre o qual se debruça – sem, no entanto, abrir mão da fidelidade a toda uma “cultura”, a um sentimento coletivo diante de tradições, competitividade e protagonismo (muitas vezes, suicida) no esporte profissional.

Negócios como este podem muitas vezes parecer com verdadeiras religiões, e quanto a isso o título original (HIM) não dá margem a dúvidas. Embora falhe como filme quando se enrosca em sua curta metragem com todos os elementos que precisa equilibrar (é sátira, mas também é terror, e é crônica social, e é um espetáculo visualmente excitante, mas precisa ser “esperto” e engraçado, etc.), GOAT está longe de ser desinteressante e, acima de tudo, funciona como registro vívido das preocupações, ambições e pecados de todo um estrato social de uma época. Convenhamos: em 2025, não é pouco para um filme de Hollywood.

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Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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