Lançado com o selo A24 de qualidade (Lady Bird: A Hora de Voar, Hereditário, Projeto Flórida, Joias Brutas e tantos outros sucessos de público e crítica) e partindo de uma premissa provocativa, Herege esbarra em suas próprias limitações ao propor um intrincado labirinto que mistura suspense, filosofia, cultura pop, sanguinolência e a habitual confusão física de terceiro ato que se repete no gênero com irritante constância, como se toda história tivesse que necessariamente botar os atores para correr (literalmente). 

Na trama, as missionárias Barnes (Sophie Thatcher) e Paxton (Chloe East) chegam à casa do recluso e inicialmente simpático Mr Reed (Hugh Grant). Recebidas com hospitalidade, as duas garotas percebem aos poucos que não só estão trancafiadas, como também terão de participar de algum tipo de jogo macabro, cujas regras são definidas de maneira traiçoeira pelo anfitrião e envolvem reflexões que vão desde religião comparada até a indústria do entretenimento.

Embora valha a pena assistir Herege porque se trata, de fato, de uma premissa que chama atenção, o saldo final é algo confuso, e a simplicidade que tanto encanta no grande cinema passa longe aqui. A impressão é de que seus autores estavam tão interessados em dizer tanta coisa, e montar um quebra-cabeça tão multifacetado, que acabaram perdendo algumas peças e o final resultou numa imagem incompleta, imperfeita.

Roteiro começa com uma aposta alta que se revela um blefe

Se até a metade da projeção, o filme mantém o suspense e coloca suas fichas num jogo de cena elaborado, com diálogos intrigantes e um clima bem construído de tensão, ele se sente depois compelido a achar “respostas” para as perguntas propostas – e é aí que a fórmula começa a falhar. Tais respostas geram inevitavelmente novas perguntas, e o roteiro patina, tem que se autoexplicar e exigir dos personagens uma eloquência que pouco justifica quando estes estão debilitados física e mentalmente, num resultado algo artificial também.

De fato, é muito mais fácil e simples propor um enigma que abre o enredo do que efetivamente fechar esse enredo com conclusões razoáveis que sejam ao mesmo tempo conectadas ao universo de ideias que o filme propôs, como tenham verossimilhança mínima para manter o espectador crente no conflito na tela.

Herege, por sua vez, falha em ambos os desafios porque sobe tão alto que depois não consegue manter o conflito lá em cima (o que começa como um jogo mental de gato e rato inevitavelmente vira uma história mais vulgar de “aparições” e “passagens secretas”), além de precisar de muita “compreensão” do espectador para que este dê crédito ao reloginho suíço que precisa funcionar no roteiro para que todas as inúmeras peças encaixem-se cronometricamente no final.

Hugh Grant é um grande ator mas não precisava deste filme para provar isto

O ator inglês tem que carregar o tabuleiro desse jogo nas costas até o final, que no entanto depende de lances de extraordinária probabilidade para parecem críveis. Thatcher lembra a jovem Anya Taylor-Joy e, junto com East, levam adiante um belo confronto com o vilão, sendo possivelmente o ponto alto do filme.

O desfecho de Herege lembra o de um clássico terror do cinema francês, mas dizer aqui qual filme é certamente revelaria informações em demasia (é um filme de 2008…). Comparado, entretanto, com o outro título (aquele, sim, uma obra-prima, e ao mesmo tempo um conceito muito simples – embora engenhoso, exatamente o tipo de engenho de simplicidade que falta ao roteiro dos também diretores Scott Beck e Bryan Woods). Aliás, talvez seja esta a grande deficiência de Herege: pensado como um jogo, mas cujas regras são tão intrincadas e necessitam de tanta explicação, que é impossível vencer – ou ao menos sentir satisfação real quando ele termina.

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Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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