Um dos (muitos) motivos para que Stanley Kubrick seja, até hoje, considerado talvez o maior diretor de cinema que já existiu é a forma criteriosa ao limite da obsessão pela qual ele selecionava seus projetos, de tal modo que sua filmografia acabou sendo mais curta que seu prestígio e talento certamente teriam permitido. Por ser rigoroso demais em escolher qual filme valia a pena ser feito, Kubrick deixou poucos títulos mas manteve um padrão de qualidade quase insuperável.
Cineastas do mesmo nível que ele (Martin Scorsese, por exemplo) têm nos legado um número muito maior de produções, mas o preço a ser pago é a irregularidade. Quantos filmes realmente bons um diretor de cinema é capaz de dirigir ao longo de quatro, cinco décadas de carreira? A indústria do cinema é uma roda gigante trabalhando em escala de sete dias, 24 horas por dia, e como se sabe não pode parar. Mas até por uma questão de probabilidade, apenas uma parcela reduzida de tudo que é produzido parece fazer sentido além daquele de manter o “mercado aquecido” com novos lançamentos.
Darren Aronofsky é um diretor cuja filmografia já teria filmes bons o suficiente para que ele fosse posicionado entre os grandes de sua geração: quais outros diretores podem incluir em seu repertório produções de excepcional qualidade como Réquiem para um Sonho, O Lutador, Cisne Negro (três títulos quase unânimes) e outros polêmicos mas provocativos como Noé e Mãe!?
Porém, tal qual outros diretores respeitados como Richard Linklater (com o horroroso Assassino por Acaso) e Ethan Coen (com o constrangedor Garotas em Fuga), Aronofsky parece disposto a ceder um pouco de seu prestígio como autor e, na contramão de Kubrick, filmar qualquer coisa que aparecer para acenar à indústria e permanecer “dentro do jogo” (ainda que ao preço de fazer sua filmografia descer de nível). Já havia sido de certa forma o caso com A Baleia, mas lá, havia a excepcionalidade da atuação de Brendan Fraser, fazendo com que um drama banal ganhasse algum ar de sofisticação. Longe do que acontece com seu novo filme.
A forte impressão de que você já viu este filme antes
Ladrões é uma comédia policial (ou qualquer coisa parecida com isso) cujos elementos você já viu reunidos muitas vezes antes – senão com algum tempero especial, ao menos mais frescos na tela. Estamos lidando com criminosos sociopatas, policiais desbocadas, toda sorte de excentricidades étnicas que não ofendem ninguém (mas ainda assim, não deixam de ser irritantes), a violência vista pela lente da comicidade, um excesso de “ambientação” (que acaba soando artificial), num todo que lembra muito o cinema caricatural de Guy Ritchie e Martin McDonagh (aqui, o Shih Tzu dá lugar a um gato), todos descendentes do estilo provocativo notabilizado por Quentin Tarantino a partir da década de 1990.
Se Tarantino é um diretor ainda mais respeitado que Aronofsky, não é o caso do fanfarrão Ritchie, e é dele que este último se aproxima com Ladrões. Na trama, Hank Thompson (Austin Butler) é um ex-jogador de beisebol apaixonado pelos San Francisco Giants que tenta reconstruir sua vida após um acidente que lesionou seu joelho. Ele trabalha num bar em NYC, namora Yvonne (Zoë Kravitz) e tem a má sorte de ser vizinho de um punk maluco, a porta de entrada para Thompson se ver envolvido numa trama banal de tráfico de drogas, capangas sádicos e corrupção policial. Um pastiche de cinema noir revisitado pela enésima vez, naquele habitual tom paródico onde o cineasta parece não querer se comprometer e pode a qualquer momento piscar para a plateia, como se dissesse: “Não leve nada a sério, estou apenas fazendo seu tempo passar aqui”.
Entre tantos projetos possíveis, por que este?
O roteiro de Ladrões segue uma lógica interna tipicamente hollywoodiana: a da “perfeita amarração”, em que nada pode ficar solto, todas as perguntas precisam ser respondidas, todo gancho oferecido ao espectador não se desperdiça sem ser plenamente recompensado ao final. Essa artesania relojoeira funciona melhor quando o enredo em si guarda alguma surpresa, algum elemento novo, visto que o desfecho será mais ou menos reconhecido antes de a projeção acabar. Está longe de ser o caso aqui.
A pergunta que um filme como Ladrões provoca é: por que um diretor tão talentoso se envolveria em um projeto tão genérico, filmando um roteiro corriqueiro que não é dele, numa produção que fatalmente será esquecida em questão de meses? A resposta é possivelmente muito simples: cinema é “show business” e, como diria Woody Allen, se fosse só “show”, se chamaria “show show”. Não é todo dia que nasce um novo Stanley Kubrick, não é mesmo?
Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.