Por mais que tenha salvo mais de mil judeus do Holocausto, a história de Oskar Schindler não se tornou de conhecimento geral de imediato – natural, é claro, considerando os milhares de relatos existentes dos horrores sofridos pelos judeus e todos que não eram considerados da “raça superior” pelos nazistas. Na intenção de contar tal história, Poldek Pfefferberg, um dos “Schindlerjuden” – judeus de Schindler, em tradução livre – tomou como missão contar a história do homem que salvara a sua vida. De fato, ele conseguiu: primeiro através do livro de Thomas Keneally, A Arca de Schindler; segundo através de A Lista de Schindler, adaptação desse mesmo livro por Steven Spielberg.
Ao ler o livro, o diretor rapidamente demonstrou seu interesse e a Universal comprou os direitos de sua adaptação. Spielberg, no entanto, não sabia se contava com a necessária maturidade para fazer um filme sobre o Holocausto e acabou tentando passar o projeto para outros diretores, incluindo Roman Polanski e Martin Scorsese. No fim, contudo, ele acabou abraçando esse que seria um dos maiores desafios de sua carreira, em razão, claro, da gigantesca carga dramática, inevitavelmente ligada a essa sombria temática.
Nesse seu retrato de um dos maiores horrores cometidos pelo homem, Spielberg claramente busca criar uma linguagem documental – o preto e branco que toma conta da fotografia serve, primariamente, esse propósito, aproximando a narrativa dos documentários de guerra da época. Essa intenção do diretor, aliás, o motivou a não utilizar storyboards, a fim de manter a espontaneidade da obra. Com grande parte do longa tendo sido filmado com a câmera na mão, sem auxílio de steadycams, o realizador, de fato, consegue criar a linguagem documental almejada. Não por mero acaso o próprio Spielberg comentou que se sentia mais como repórter que cineasta durante as filmagens.
Tal escolha permite que sejamos mergulhados, de imediato, em um mundo sem vida, como se toda a esperança fosse deixada de fora, enquanto acompanhamos os milhões de judeus sendo tirados de suas casas, levados primeiro aos guetos e, posteriormente, aos campos de concentração. Imersão essa que é aprofundada pelos diálogos em alemão e polonês, que nos fazem, diversas vezes, esquecer que estamos diante de uma obra de ficção baseada em fatos.
Terror
A morte paira sobre essa história a todo e qualquer momento, jamais permitindo que esqueçamos que, em qualquer instante, alguém pode perder a vida por nenhuma razão aparente. O diretor, dessa forma, recria esse cenário, que parece ter saído de um filme de terror e, por ser realidade, se torna muito pior que qualquer obra do gênero, nos fazendo indagar como foi possível que tudo isso acontecesse. Questionamos a mente daqueles que “transformaram” os judeus de seres humanos em monstros, vermes, negando a eles não somente o direito de ir e vir, como o direito de ser humano. Mesmo a imobilidade do resto do mundo, especialmente dos Estados Unidos, é colocada em xeque, representada sob a forma de uma garotinha de vermelho (uma das poucas cores que vemos no filme) correndo de um lado para o outro, no gueto, enquanto aqueles à sua volta têm suas vidas destruídas, seja através das indignidades sofridas, ou da própria morte.
De fato, Spielberg não nos poupa da realidade a qualquer momento – sua intenção é claramente a de trazer o desconforto, de nos levar para esse período negro de nossa História – pois, sim, ela é a de todos nós, afinal, como raça, somos uma só, as únicas diferenças são culturais e regionais. Toda a longa sequência do massacre no gueto mais do que prova isso, de maneira arrebatadora o diretor destrói a esperança de todos aqueles personagens e figurantes – tão reais – quebrando, por conseguinte, a nossa própria e, por mais que saibamos qual o desfecho final, impossível sequer conceber que haverá algo minimamente feliz (se é que podemos usar tal palavra nesse contexto) ao término da projeção.
Esperança
Essa, contudo, não é uma história sobre a morte e sim sobre a vida, sobre a luta contra toda a tragédia ocorrida no fim da primeira metade do século XX – dessa forma, a tão escassa, quase inexistente, esperança aparece através da figura de Oskar Schindler (Liam Neeson), apresentado como um homem de negócios preocupado unicamente em lucrar com a guerra, mas que acaba enxergando todas as barbaridades cometidas pelos nazistas, decidindo, assim, utilizar toda a sua fortuna arrecadada durante esse período para salvar o máximo de judeus que for possível do Holocausto. Schindler é o retrato da falsa realidade despedaçada, é o despertar das ilusões criadas pela propaganda nazista, é, por fim, o recobrar da humanidade, tão ausente naqueles que ali detinham o poder.
De imediato apresentado como um homem de lábia, que utiliza as pessoas e as situações ao seu favor, o protagonista passa por uma lenta e bela transformação, do egoísmo ao altruísmo – metamorfose, essa, que dura todo o filme praticamente, demonstrando claramente a preocupação do roteiro de Steven Zaillian e, claro, do próprio Spielberg, de nos fazer acreditar no personagem. Não por acaso mais da metade da obra é dedicada ao que leva à criação da lista que garante o título do longa. Dessa maneira, o que é criado aqui é uma ode à solidariedade, à paz, tão bem resumido pelas lágrimas finais do protagonista, que desaba frente à noção de que poderia ter salvado mais pessoas.
Toda a trajetória desse personagem, brilhantemente vivido por Liam Neeson, que empresta o necessário carisma e personalidade conflituosa, nos permite enxergar seus dilemas internos, nos permite entender sua linha de raciocínio e a tomada de consciência em relação aos horrores ao seu redor. Neeson exprime a repulsa, o terror sentido pelo seu personagem sem ser necessária uma palavra sequer, em determinado ponto da obra sentimos como se ele estivesse utilizando todas as suas forças para não interromper as ações cruéis dos nazistas – o que, invariavelmente, faria com que ele fosse preso, ou pior. Claro, como bom planejador e manipulador, ele acaba descobrindo a maneira ideal de fazer o que quer e salva todas aquelas pessoas sem esperar qualquer recompensa ou reconhecimento, exatamente o contrário do homem que encontramos se divertindo ao lado de oficiais nos minutos iniciais do longa-metragem.
Não há como, claro, esquecer de Itzhak Stern (Ben Kingsley), que atua claramente como a consciência de Schindler, abrindo os olhos do protagonista para o que ocorre ao seu redor. Uma a uma ele salva pessoas, desde o início do filme, que seriam enviadas para a morte certa, tudo enquanto convive com Schindler, ajudando esse a fazer alguma coisa, a ir de encontro com o medo de ser punido pelos nazistas. Stern é essencial para a construção de Schindler e, claro, para toda a narrativa do filme, já que, também, ele atua como o olhar dentro dos campos de concentração, aproximando o homem de negócios alemão à centenas de judeus.
Também de forma silenciosa, Kingsley se entrega plenamente ao papel, retratando perfeitamente a figura do homem que entende o grande risco que corre a todo momento. É através de seu olhar que percebemos a aproximação dele com Schindler – de início evita o contato visual direto, algo que vai sendo substituído, aos poucos, enquanto passamos a enxergá-los como amigos, fazendo desaparecer toda a hierarquia forçada sobre ele.
Morte
A perfeita oposição à essas duas figuras, claro, é o oficial Amon Göth, vivido de maneira assustadora por Ralph Fiennes. O que mais incomoda em relação a Göth não chega a ser suas atitudes cruéis diretamente e sim a casualidade com a qual comete tais ações, perfeitamente simbolizando toda a maldade do ser humano e, naturalmente, do próprio regime nazista. A maneira como encara os judeus é verdadeiramente desconfortante, nos fazendo enxergar plenamente que ele os vê como vermes, seres desprezíveis. Trata-se do retrato perfeito do psicopata, que se importa única e exclusivamente consigo mesmo, um monstro que chega a ser inacreditável que alguém assim possa, de fato, ter existido.
Fiennes desempenha tal papel com brilhantismo, demonstrando claramente, através de sua linguagem corporal, o quanto ele despreza todos aqueles à sua volta. Há uma notável infantilidade e malícia em todas as suas ações, que fazem parecer como se o personagem fosse uma criança torturando pequenos animais à sua volta. De fato, a fragilidade das vítimas em comparação à sua figura, a impossibilidade dessas em reagir, ajuda a construir sua persona, mas é Fiennes que traz tamanha realidade à sua interpretação, que nos faz enxergá-lo como a manifestação física de todo o terror ali presente, algo especialmente realçado pelas suas impetuosas e inesperadas ações.
Essas suas atitudes se tornam ainda mais aterradores através dos pontuais focos em personagens secundários ao longo da narrativa. Somos levados ao interior dos guetos e dos campos de concentração e presenciamos toda a tragédia dali, sentimos o medo de cada um, enquanto simplesmente andam de um lugar a outro, sem saber se voltarão com vida para seus dormitórios. É um assustador relato, mas extremamente necessário para que nos coloquemos na posição dos outros, para que a solidariedade, notavelmente um dos fins dessa obra, possa nascer em cada um de nós.
Preenchendo todo esse trágico e extremamente real dramatização de fatos que gostaríamos, mas jamais devemos, esquecer há a trilha sonora de John Williams, em mais uma colaboração com o diretor. Williams captura perfeitamente o drama dessa história, elevando cada sequência ao seu auge, permitindo que, do início ao fim, estejamos sujeitos à arrepios ou lágrimas. O maestro entendeu plenamente o peso do que é mostrado em tela, provando que, mesmo com seus iniciais receios sobre trabalhar com tal temática, foi a escolha perfeita para compor as melodias da obra.
Vida
Toda essa humanidade, esse discurso a favor da paz, contra qualquer tipo de violência, que faz de A Lista de Schindler um longa-metragem tão impactante. Ao término da projeção, somos deixados inertes, incapazes de dizer ou fazer qualquer coisa, enquanto emergimos desse mundo para as cores novamente, enquanto vemos os sobreviventes, os judeus de Schindler agradecendo àquele que salvou suas vidas, homenagem essa que não deixa de ser a do próprio realizador a esse admirável ser humano.
A esperança é recobrada ao mesmo tempo que qualquer tipo de violência se torna um ato inimaginável, tamanho o choque perante os horrores apresentados no filme, que, sem dúvidas, é a obra-prima de Steven Spielberg.
A Lista de Schindler (Schindler’s List – EUA, 1993)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Steven Zaillian (baseado no livro de Thomas Keneally)
Elenco: Liam Neeson, Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Caroline Goodall, Jonathan Sagall, Embeth Davidtz, Malgorzata Gebel, Shmuel Levy, Mark Ivanir, Béatrice Macola
Gênero: Drama
Duração: 195 min.