Há algumas maneiras de diferenciar “suspense”, “mistério” e “horror” dentro do cinema e não há consenso quanto a elas. Hitchcock brincava que suspense é quando o espectador sabe mais que os personagens e mistério quando ele sabe menos. Podemos jogar com o mestre da Hollywood clássica e ampliar seu conceito: suspense é uma “bomba” debaixo da mesa, horror é uma bomba em cima da mesa e mistério é não saber se aquilo é realmente uma bomba, quem colocou a bomba ali, etc.
Osgood Perkins (filho do lendário ator Anthony Perkins, do “Psicose” de Hitchcock, por acaso), diretor e roteirista de “Longlegs: Vínculo Mortal”, um dos títulos mais esperados do ano, conhece um pouco de cada conceito e parece acima de tudo um estudante aplicado. Em seu filme anterior, “Maria e João: O Conto das Bruxas” (2020), exercitou sobretudo suas proezas visuais (a ponto de servir de clara inspiração para Alex Garland em seu “Men: Faces do Medo” (2022), ambos contos de fadas perversos e que possibilitam leituras contemporâneas com o pano de fundo da “floresta encantada” das histórias infantis).
Em “Vínculo Mortal’, Perkins procura dar equilíbrio a um material que vai oscilar durante a metragem entre o suspense (que ele trabalha bem), o horror (que é sutil, presente sem apelar ao histrionismo que tanto contamina o gênero atualmente) e o mistério – e é aqui onde ele encontrar’as maiores dificuldades.
Na trama, a agente do FBI Lee Harker (interpretada por uma Maika Monroe que passa o filme inteiro atônita) é uma recruta com poderes aparentemente sensitivos designada para investigar um caso não resolvido de um serial killer que assina seus crimes como “Longlegs” – isso em algum lugar do noroeste dos Estados Unidos durante o governo de Bill Clinton. À medida que ela segue as pistas, descobre conexões com práticas ocultas e se vê pessoalmente envolvida na caçada ao assassino.
Perkins assina também o roteiro, o que lhe possibilita prestar verdadeiro tributo a ao menos três clássicos definitivos do subgênero de “serial killers”: a referência mais evidente e que ele explorá à exaustão (na protagonista que tem traumas infantis, na sua relação com um mentor no FBI, em sua sexualidade amorfa, etc.) é a de “O Silêncio dos Inocentes” (1991). Mas estão ali também “Zodíaco” (2007), presente nas cartas codificadas pelo assassino e “Se7en – Os Sete Crimes Capitais” (1995), especialmente em um ponto específico e culminante do enredo que não se pode revelar aqui.
É certo que “fazer referências” tornou-se de 20 anos para cá um tiro meio certeiro que os cineastas podem disparar e também um mecanismo de proteção diante da cinefilia militante – como se a cada nova referência a um filme famoso do passado, o diretor do novo filme dissesse “Veja, eu também sou cinéfilo, eu também reverencio os mesmos filmes que você!”.
Perkins, entretanto, filma com rara consistência e o tributo que presta é de um admirador estudioso e aplicado. Ao usar diversas vezes o recurso de centralizar a protagonista no quadro, por exemplo (uma característica que remete diretamente a Jodie Foster filmada por Jonathan Demme), ele demonstra compreender e dominar os recursos de narração que a linguagem cinematográfica possibilita, no jogo de olhares e ponto de vista, na imersão espacial do espectador nas cenas, nas rimas internas (que ele faz, por exemplo, ao repetir o padrão de quadro com alguns personagens e dispensar outros, e mais não se pode revelar porque se entregaria aqui informação da trama…). Há um cineasta de verdade por trás de “Vínculo Mortal”, e não um cabotino implorando por atenção.
O esmero formal é certamente um dos maiores acertos aqui: o trabalho de câmera é excepcional, a iluminação é elaborada e extremamente sugestiva, a edição de som é um elemento vivo dentro do espetáculo, a música é perturbadora e ajuda a carregar as cores da jornada infernal de Lee Harker.
A partir de então, as qualidades do filme sofrem uma reviravolta e precisamos entender o que aconteceu para que o filme chegasse aonde chegou.
Longlegs quer ser um hit cult
É curioso notar como “Vínculo Mortal” tem pretensões de se equiparar ao nível dos melhores filmes de serial killer já feitos e o realizador não faz questão de esconder tal objetivo. A pretensão em si não é exatamente um problema, mas a dificuldade de entregar aquilo a que se propõe talvez seja. E uma das explicações para que este objetivo não seja atingido pode estar exatamente em suas fontes de referência.
Há uma diferença aparentemente banal, mas fundamental, entre o filme de Perkins e suas três maiores referências. “O Silêncio dos Inocentes” parte do best-seller de Thomas Harris na poderosa adaptação do roteirista Ted Tally e, embora Demme tenha feito cortes sutis na versão final, sua participação termina por aí. “Zodíaco” por sua vez é a versão cinematográfica de uma célebre história real, também parte de um best-seller de não-ficção (de Robert Graysmith) e foi roteirizado por James Vanderbilt. Finalmente, “Se7en” é um roteiro original de Andrew Kevin WAlker e até hoje de longe seu melhor trabalho.
Ou seja: o material dramático com que os três diretores trabalharam para criar suas obras-primas (e não é exagero usar tal expressão em nenhum dos três casos) tem de longe muito mais consistência que o roteiro próprio que o diretor filmou em “Vínculo Mortal”. A história do cinema tem notáveis casos de gênios diretores que nunca foram exatamente roteiristas (pode-se citar Kubrick, Spielberg e Hitchcock para encurtar a conversa aqui). Há também brilhantes diretores-roteiristas (como Woody Allen, Tarantino, Fellini, Godard…), muito à vontade para levar às telas seu próprio texto. Mas não parece ser este último o caso de Osgood Perkins porque a grande fraqueza e a impossibilidade pela qual seu filme não atinge o mesmo nível das obras que o inspiraram é o roteiro, exatamente onde residem suas maiores fraquezas.
Não se pode aqui dar muitos detalhes a respeito da trama, uma vez que o “mistério” é parte importante de “Vínculo Mortal”. Mas é sua parte mais fraca. A contrário do filme de Jonathan Demme, por exemplo, que quando observado em retrospectiva, tem uma trama muito simples, embora sofisticada na condução e nos temas, o roteiro de Perkins funciona como um quebra-cabeça complexo, excessivamente “enigmático”, que quando completado revela uma imagem não exatamente “surpreendente”, mas antes disso deslocada do conjunto.
O que se descobre finalmente – e tal descoberta envolve atabalhoadamente o “vilão ocultado”, interpretado por um Nicolas Cage que parece o Bufallo Bill antagonista de Jodie Foster se este fosse interpretado por Mickey Rourke – de alguma maneira não encaixa com o que se assistiu antes com apreensão e curiosidade. No final, o espectador é conduzido por Perkins a um pesadelo que se inicia no grande cinema praticado nos anos 1990 (e está lá sua fonte de inspiração), mas despertado na banalidade solene, algo “litúrgica”, dos mais repetitivos exemplares atuais do gênero.
Não é preciso muito esforço para se dar conta de que Perkins parece ser muito melhor diretor do que é roteirista (ou ao menos do roteirista que nos apresenta o decepcionante vilão Longlegs). Vamos esperar ansiosamente que seus próximos filmes encontrem um equilíbrio mais feliz entre drama e forma, sendo que esta última o cineasta já parece dominar como os mestres que admira e referencia.
Longlegs: Vínculo Mortal (Longlegs, EUA, 2024)
Direção: Osgood Perkins
Roteiro: Osgood Perkins
Elenco: Maika Monroe, Nicolas Cage, Blair Underwood
Gênero: Horror, Thriller, Crime, Mistério
Duração: 101 min
Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.