Quem gostou do primeiro filme, dificilmente irá se incomodar com O Auto da Compadecida 2, que chega agora aos cinemas brasileiros. A fórmula de sucesso é mantida e, de certa forma, revigorada com uma direção de arte caprichada, boas canções e personagens novos que se somam àqueles já queridos do público. Quem, entretanto, incomoda-se com a lógica televisiva da encenação pode se aborrecer um pouco de estar diante de um programa que mais parece especial da Globo para o qual não precisaria pagar um (caro) ingresso de cinema.

Filme retoma o legado iniciado 24 anos atrás

Lançado em 2000, O Auto da Compadecida original era adaptação da obra homônima de Ariano Suassuna. Dirigido por Guel Arraes, o filme misturava comédia e crítica social ao retratar as aventuras de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois nordestinos enfrentando situações cômicas e desafiadoras em uma pequena cidade do sertão brasileiro. A narrativa explorava temas como fé, desigualdade social e moralidade, envolvendo personagens como o bispo, o cangaceiro e a Compadecida do título (Fernanda Montenegro).

A produção foi originalmente concebida como uma minissérie para a TV Globo antes de ser editada e lançada nos cinemas. Este formato contribuiu para seu sucesso, alcançando um público diverso e se consolidando como uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro na época. A obra destacava-se pela combinação de elementos do cordel com um humor acessível e universal, ao mesmo tempo em que preservava a crítica social, um traço marcante do texto original de Suassuna.

Além disso, o filme foi elogiado por sua direção criativa e pelas atuações. Matheus Nachtergaele e Selton Mello trouxeram vida aos personagens com carisma, tornando-os ícones da cultura pop nacional. 

Continuação acentua sensação de que você já viu algo parecido – e não foi no cinema

Na nova trama, a dupla de simpáticos trapaceiros está às voltas com a complicada relação mídia, política e religiosidade popular: há uma eleição e, inadvertidamente, João Grilo acaba assumindo papel determinante. Enquanto isso, novos personagens como o empresário Arlindo (Eduardo Sterblitch) e Antonio do Amor (Luis Miranda) complicam o enredo com intervenções cômicas realmente divertidas.

A maior limitação da continuação é herdada do primeiro filme; a lógica do espetáculo é bastante “televisiva”. Os diálogos que não têm respiro e se concatenam uns aos outros, sem parar, os cenários teatrais, o tom geral da encenação – nada é muito cinematográfico, lembrando o universo do humor da TV brasileira, que muda de fantasia mas acaba se repetindo na caricatura, na exploração de “tipos”, no regionalismo quase cartunesco. O ritmo não dá um respiro, não há uma só pausa para construir tensão ou expectativa, numa sucessão algo circense em que cada cena tem de gerar uma atração no mesmo nível da anterior. Além disso, a opção pela edição de diálogos e a dublagem acentuam um certo artificialismo do espetáculo como um todo.

O ponto alto do filme está em seu elenco. Mello e Fabiula Nascimento se destacam, mas Natchtergaele (um ator de talento excepcional, capaz de modular seu desempenho dentro de uma mesma cena, variando do emocional ao cômico num piscar de olhos) é o verdadeiro astro do filme. Por sua vez, Miranda e Sterblitch (embora encarnem tipos e não propriamente “personagens”) contribuem para o tom cômico geral, e arrancam risadas autênticas da plateia.

Como um típico produto da indústria audiovisual brasileira (que tenta se firmar como espetáculo de tela grande mas traz uma dívida permanente com a TV e a lógica do espetáculo de estúdio e o teatro de revista), O Auto da Compadecida 2 é uma divertida comédia com ritmo e estética que remetem aos caprichados “especiais” da Globo, mas vale especialmente pela qualidade e carisma do elenco e uma criativa direção de arte.

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Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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