Finalmente chegou aquela época no qual anos atrás teria fãs de Tolkien e Senhor dos Anéis juntos em comemoração por permitir um dos eventos mais únicos da cultura pop ser trazido de volta à vida para saciar a fome voraz por uma história de fantasia que não mais seguisse os trades modernos de ter que se equiparar ao cinismo brutal da política medieval de Game of Thrones – ironicamente tendo ambas novas versões sendo lançados na mesma época atual – e se ater novamente a algo mais puro em sua forma. De contar histórias cujo mito, o mundo e as relações de seus personagens predominam um embate do bem VS o mal que habita no mundo em que vivem e dentro de si mesmos.

Tudo poderia ser belo se não fosse pela intervenção do caos causada pelo velho inimigo chamado “deturpação”, ou melhor, o sentido que diferentes lados tem da mesma. Pois no momento em que os fãs detectaram poucas coisas sequer relacionadas aos livros de Tolkien nos materiais promocionais, os defensores cegos foram movendo céu e mundo em notas de repudio puxando a velha cartilha de acusações para rebater as críticas envolvendo questões de fidelidade e adaptações como sendo puramente preconceituosas.

Enquanto o nome e legado de Tolkien era posto na fogueira da discórdia, e porventura talvez comprovando o quanto sua obra continua tão relevante hoje quanto há quase um século quando foi lançada, é difícil chegar e criticar algo de deturpar a obra no qual se baseia quando os mesmos só possuem os direitos dos Apêndices da trilogia original do Senhor dos Anéis para ser usada como seu ponto de inspiração..

O termo fanfic fora muito usado para resumir os eventos da oitava temporada de Game of Thrones, mas ali você ainda conseguia distinguir uma ou duas coisas que poderiam ter sim uma idéia original do Martin em mente. Enquanto que aqui, acredite, quando você é um leitor e fã assíduo do autor. é muito fácil validar o termo para o que se é construído aqui. Onde meros elementos são adaptados e que soam familiaridade e ora são postos de maneira que podem ser lidos como “adaptações” que leitores mais ávidos do Silmarillion vão captar, mas nunca se aprofundar, e que claramente buscam ter sua livre e própria criação em cima do material.

Nada melhor representado do que se não pelo promissor prólogo do primeiro episódio que faz todo um auê em querer se equiparar ao icônico prólogo de A Sociedade do Anel de Peter Jackson – que também fora algo bem resumido, mas com muito mais contextos essenciais bem trabalhados dentro de poucos minutos para montar sua própria narrativa ecoando com respeito o original.

Já aqui, mais se parece um resumo do resumo em si, comprimindo o que são literalmente SÉCULOS de narrativa em explicações rápidas que perdem muito do valor original que elas realmente possuíam – a verdadeira razão da saída dos Elfos de Valinor, a sua travessia para Terra Média, as guerras que se sucederam (que foram para além de Morgoth) – tudo que poderia encaixar uma temporada inteira de história.

É um tanto frustrante que uma história tão avassaladora tenha que começar com um inicio tendo que colocar meninos fazendo bullying com uma Galadriel criança para construir sua protagonista empoderada que virá ser construída mais tarde – que não faz nenhum sentido visto que, desde que se é lembrado, Galadriel já veio a Valinor adulta e foi desde sempre respeitada como uma figura de imponência, mas isso só são detalhes extras do que se perde no quesito adaptação

Mas quanto a validade moral e intelectual de se fazer uma adaptação de algo que em si é incompleto e vago, mais um material de apoio de leitura contextual oferecida pelo aturo – e mais tarde elaborada em obras isoladas como O Silmarillion e contos isolados; do que uma narrativa sustentada por si só, não é o propósito dessa critica. Deixe a ganância megalomaníaca de dominar o mercado de streaming com alguma franquia lucrativa para outra hora. Como a série é por si só? Até o momento de dois episódios, meramente ok.

O talentoso J. Bayona faz um trabalho formidável nesses dois primeiros episódios ao tentar emular a aura de fantasia épica dos filmes de Jackson – o tom quase espiritual nas cenas dos Elfos, o calor humano nas cenas dos Pés-Peludos, a sensação de espetáculo ao ver as minas de Khazad-dûm pela primeira vez, embora ele mostre uns vícios chatos de direção com puxada de foco em profundidade de campo, e as cenas de ação dos elfos como Galadriel dando um supersalto finalizador no troll da neve mais se assemelha aos malabarismos super-heróicos banhados em computadorização digital da trilogia Hobbit, sem peso algum além de seres borrachudos fazendo piruetas querendo se equiparar ao que os fãs conhecem como o Legolas de Orlando Bloom.

Deve-se admitir que os showrunners John D. Payne e Patrick McKay (e sua equipe de roteiristas) fazem um trabalho quase que formidável de sustentar sua narrativa como se fosse uma adaptação à par com o que você veria numa produção HBO, e na inevitável comparação com Game of Thrones – diálogos bem compassados, núcleos narrativos bem definidos; quase te fazendo acreditar que o que você está vendo é uma adaptação legitima palavra por palavra. Mas não, é uma fanfic florida que brinca com homenagens ao lore real aqui e ali, mas está basicamente criando algo próprio com nome e personagens de outrem.

Poderia até ser tudo bem até aí, pois tirando isso, dizer que o orçamento está refletido na tela vai se tornar um refrão óbvio mas é o mais adequado para refletir o claro investimento ambicioso que Jeff Bezos e a Amazon depositaram aqui. Os efeitos visuais são imperceptíveis, o design artístico é puro luxo que chega a marejar os olhos com seu nível detalhe gráfico, Bear McCreary traz uma trilha formidável que faz jus aos ajustes de Howard Shore em sua pomposidade operática que te acalenta os ouvidos;

A série tem um ritmo cinematográfico bem legitimo, não se demora demais entre as cenas e os eventos se movem com devida fluidez, mas oras parece um pouco apressado demais e tudo parece movido à diálogos que configuram alguns estopins de clichês e frases de efeito.

Sem citar na obsessão de Galadriel com Sauron é repetida umas trinta vezes só no primeiro episódio tanto que dá pra fazer um drinking game bacana com os amigos a cada vez que ela cita o nome do desgraçado, embora não recomendemos para o bem de sua saúde – a própria Morfydd Clark parece ainda lutar num papel onde a atriz mais parece seguir ordens de suas falas do que realmente criar uma personagem propriamente sua, que até agora mais parece uma adulta emburrada com o patriarcado élfico.

Mas que talvez, tendo em vista o breve diálogo bonito no qual ela tem com seu irmão Finrod no inicio do primeiro episódio, possam indicar uma jornada de uma personagem que ao sucumbir pelo caminho de vingança, ela sempre vai escapar da luz de seu real valor como a bela cena da sua ida a Valinor bem representa – o que em si é uma interessante leitura da refusa que Galadriel sim teve de retornar à Valinor ainda na Primeira Era, mas mais motivado por culpa do que um sentimento de vingança contra Sauron, ser que ela só teria conhecimento muito mais tarde na Segunda Era nos livros. Não vamos nem perguntar onde se encontra seu marido Celeborn (companheiro seu desde a Primeira Era), pois só vai trazer mais lenha para a fogueira de discordância;

A narrativa no geral nunca busca aparar uma reflexão interessante como essa e mais sim foca em dar indícios de leitura de caráter sociológico nesse mundo: Galadriel sendo desacreditada entre seus aliados por ser….bom você sabe; o fato da vila guardada pela trupe dos elfos de Arondir ser uma configuração de semi-colonização feudal e qual é afinal o ponto moral legitimo nesse meio; a suposta pandemia envolvendo as vacas leitando um liquido negro e afetando a vila como uma praga mais parece um elemento de, como alguns dos atores da série disseram em seu ativismo social obrigatório: “refletir o mundo de hoje”

O bastante o suficiente para fazer alguns revirarem os olhos, e os elementos disso estão sem sombra de dúvidas espalhados por aqui (os momentos Girl Power são nada sutis em ambos episódios), mas até agora  não recebendo  o total foco de atenção (o que é um alívio).

O que causa um estranhamento de fato não pelo seu contexto filológico, mas mais pelo fato de que a maior parte dos personagens ora possuem penteados muito arrumadinhos platinados e carregando uma dialética de personagens moderninhos para uma fantasia medieval épica, e algumas vestimentas que fazem jus à novela da Record. Onde todos mais parecem atores fantasiados e maquiados do que aqueles seres que estão interpretando.

Talvez seja o mal costume que temos pelo fato de que Ian McKellen incorporava Gandalf de cabo a rabo e desaparecia no papel, e os Hobbits realmente pareciam aquele povo pequenino, e não os hipsters new age que são os Pés-Peludos, embora eles sejam meramente interessantes pelo fato de serem um pequeno grupo eremita que parece ter acabado de nascer nesse mundo e perambulam para sobreviver.

Com a personagem Nori sendo uma aventurareira faminta por novidade dando sinais de ser uma ancestral de Bilbo e Frodo, mas que só tomam alguma relevância quando um milagre cai do céu, e isso não foi uma piada!

De longe a coisas mais interessantes da série até agora vem sendo o núcleo dos anões introduzidos no segundo episódio, que são os que mais parecem com algo realmente de fato Tolkien por assim dizer, desde seu design ao mito que carregam incorporado nas vistas soberbas de Moria, mas ainda mais quando toca no assunto amizade – tema sempre recorrente no cerne de sua literatura – envolvendo uma relação de estranhamento entre Elrond e Durin IV, que sim é absolutamente inventada, mas Owain Arthur está tão bem no papel que você realmente compra o seu descontentamento quase cômico e sinceramente tocante.

Até mesmo Sophia Nomvete como a princesa Disa, que muitos fãs vinham revirado os olhos para seu casting, mostra ser uma presença bem carismática em cena, e de longe são os diálogos mais orgânicos da série até o momento. E diga-se de passagem é o único núcleo onde eles tem alguma liberdade pois toda a história dos Anões sempre foi nebulosa de contexto fora O Hobbit e citações no Silmarillion.

Já o resto da série, quando não é uma chatice que não consegue te comprar a atenção, você também chega a sentir a desenrolação quase que desesperada para rearranjar lore para encaixar nessa nova narrativa que eles tão criando que segue todas as cartilhas mystery box da trupe do J.J. Abrams, te fazendo questionar as perguntas usuais:

Quem é esse personagem e porque ele caiu de um meteoro? Porque Orcs estão capturando pessoas dessa vila? Quem é esse homem que Galadriel encontra meio ao mar? Qual a relação desses dois trará frutos mais tarde? De onde virão os supostos anéis do poder? Onde está ou quem é Sauron nessa época? Quem é essa mulher Bronwyn e porque seu filho Theo possuí uma estranha relação com a espada de Sauron, faz levantar teorias suspeitas (e não, não quer dizer que ele será o Sauron, temos outra suspeita menos óbvia para esse papel).

Plantando pistas e sementinhas que serão mais tarde desenvolvidas em respostas ou reviravoltas que vão ou agradar o público ou deixar-los enfurecidos, e essa é a única certeza de fato do que podemos tirar da série até agora em sua nebulosa mediocridade bem vestida.

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