A partir dos primórdios do cinema ficcional, se fizermos uma divisão bastante genérica entre filmes “ordinários” (um cinema de imitação da realidade) e “extraordinários” (um cinema da imaginação), os melhores exemplares do segundo grupo sempre se caracterizaram por uma abordagem focada e precisa de seu material.

Em maior ou menor grau, os filmes notáveis do gênero fantástico, horror, mistério ou mesmo ficção científica, estabelecem suas premissas dramáticas em torno de uma pergunta facilmente compreensível: “E se?”. Desde “A Sétima Vítima” (e se uma mulher comum fosse raptada por uma seita de satanistas disfarçados de membros da alta sociedade?), passando por “O Iluminado” (e se um escritor em crise criativa se voltasse violentamente contra sua própria família num hotel isolado?), até os mais recentes como “O Albergue” (e se turistas estrangeiros fossem negociados como presas para assassinos de fim de semana num país pobre da Europa central?) e “Noites Brutais” (e se um imóvel para locação em aplicativo escondesse um perigo subterrâneo inacessível até para seus proprietários?).

Este parece ser o segredo por trás do sucesso (seja artístico ou comercial) de todos esses filmes.
“Os Observadores”, por sua vez, opta por um caminho radicalmente oposto. Em vez de concentrar esforços dramatúrgicos num “E se?” convincente e que fosse capaz de manter a plateia identificada com o percurso da protagonista, o roteiro (adaptação do romance do irlandês A.M.Shine) decide seguir todas as trilhas possíveis numa floresta onde literalmente qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento – seja ela de natureza “folclórica”, “sobrenatural”, “pseudocientífica”, “tecnológica”, “criptozoológica”, etc.

O resultado direto de tal abordagem é que dificilmente a maior parte da audiência sentirá medo ou terá alguma reação humana além de se preparar monotonamente para a próxima cena de correria ou susto fabricado em CGI.

O que faz dos filmes citados acima serem experiências cinematográficas tão intensas (muitos deles sobrevivendo à evolução do espectador de cinema durante décadas) é exatamente a ponte que eles mantêm com a realidade: embora suas premissas muitas vezes sejam “extraordinárias” (ou seja, além do ordinário da vida), todos despertam na audiência a sensação vívida de que, em circunstâncias muito particulares (e infelizes), tudo de assustador e terrível que acomete seus personagens poderia, de fato, tornar-se real – bastando suspender um grau de nossa descrença.

Em um filme como “Os Observadores”, por outro lado – mas nem só nele, sendo esta uma falha de conceito de boa parte da produção de gênero contemporânea – há quase nenhuma relação entre o que os personagens eventualmente enfrentam na tela e a realidade como o público conhece fora dela. O filme se converte então em mais um híbrido entre cinema e videogame – incômodo este que é reforçado pela pavorosa concepção visual da produção, que apela a todo momento para soluções visivelmente artificiais mesmo em cenas que poderiam facilmente terem sido resolvidas com câmera, tripé e atores de carne e osso.

Os personagens estão lá, mas eles pouco remetem a pessoas reais: são meras peças de um algoritmo em forma de roteiro cinematográfico, reagindo de maneira puramente mecânica às situações. Um exemplo disso é quando a protagonista, muito antes de sequer cogitar qualquer outro tipo de escape para a armadilha na qual se encontra, decide entrar num espaço proibido (o que qualquer espectador atento já entendeu ser a atitude mais impensada que se poderia tomar), como se tivesse de vencer uma “fase” de jogo de computador.

No enredo, Mina (interpretada por uma Dakota Fanning petrificada na persona cinematográfica adquirida depois que cresceu, ou seja, da adulta que parece sempre fazer um favor de estar onde está) é uma suposta desenhista (uma vez que o roteiro pouco explora sobre isso) dona de um passado traumático que é obrigada a fazer uma viagem para entregar um pássaro exótico e acaba perdida numa floresta assustadora do interior da Irlanda, quando finalmente se torna prisioneira de algum tipo de “armadilha” de natureza desconhecida na companhia de outros três estranhos.

Não há muito que se possa revelar além disso sem enfileirar spoilers – e eles seriam muitos porque, conforme já se entendeu, há ingredientes de sobra na maionese que é este roteiro. O saldo é que, diante de uma miríade tão confusa de “elementos”, “terrores” e “ameaças”, de variadas origens e naturezas, possibilitando o confortável jogo de aparências para o roteirista onde tudo pode ser qualquer coisa, quase ninguém sentirá identificação com nada que acontece na tela porque, decididamente, nada daquilo (ou ao menos tudo aquilo em conjunto) poderia acontecer no mundo real. Como sentir medo ou apreensão por algo que sabemos de antemão ser totalmente falso e irrealista?

Não é demais lembrar que, ironicamente, a diretora Ishana Night Shyamalan é filha de um cineasta bastante “orgânico”, narrativamente econômico e pouco propenso a mirabolâncias dramatúrgicas (mesmo dentro do gênero fantástico), que compreendeu muito rapidamente em sua carreira a necessidade de estabelecer um “E se?” convincente e decisivo para envolver, entreter e emocionar sua plateia diante de premissas extraordinárias. A experiência de Ishana na direção parece não ser das maiores, limitando-se anteriormente a ter trabalhado em “Tempo”, do próprio M. Night Shyamalan. De agora em diante, talvez pai e filha devessem conversar mais.

Os Observadores (The Watchers, EUA – 2024)
Direção: Ishana Night Shyamalan
Roteiro: Ishana Night Shyamalan
Elenco: Dakota Fanning, Georgina Campbell, Olwen Fouéré
Gênero: Horror, Mistério
Duração: 102 min

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