Se nenhum filme produzido por Marvel e DC até o final dos tempos permanecer ativamente na memória cinematográfica, ao menos um “mérito” ambos selos farão jus: a criação de um verdadeiro novo gênero, o de filmes de super-heroi, ultrapassando as denominações tradicionais dos gêneros de “fantasia”, “ação” ou “ficção científica”.
Enquanto para a maior parte dos cinéfilos tradicionais, tal novo gênero repete-se em fórmulas já conhecidas e cansativamente exploradas, para os aficionados o filme de super-herói parece trazer novidades insuspeitas a cada novo (bombástico) lançamento. Parece uma distorção (quando não, um verdadeiro erro) analisar tais filmes à luz da arte cinematográfica reconhecida; trata-se, de fato, de um gênero realmente novo, com regras próprias que vão se criando a cada novo título, e que se comunicam muito mais com elementos “extracinematográficos” (quadrinhos, desenhos de TV e toda uma mitologia que chega ao mundo dos videogames) que com o cinema propriamente dito.
Tudo isso posto, a pergunta para o espectador neste momento é: você está interessado em ver a pobre Nova York ser parcialmente arrasada pela milésima vez, com os mesmos prédios sendo destruídos como se fossem papeis sendo amassados em direção à lixeira, para que no dia seguinte todo mundo reaja como se nada houvesse acontecido? Se isso não parece cansativo, tolo ou entediante, bem, então Quarteto Fantástico: Primeiros Passos é uma boa alternativa de sessão, porque este novo lançamento representa um bom espécime do “novo gênero” descrito acima.
Espetáculo do filme não amassa os conflitos humanos do roteiro
Diferente de Superman, o “produto” concorrente da temporada da DC, o filme da Marvel se sustenta muito mais facilmente como filme em separado, não precisando de justificativas ou conexões para fora de sua duração para (tentar) fazer sentido. Se o filme de James Gunn se parece muito mais com uma declaração de intenções, ou mesmo o mais caro PowerPoint já elaborado sobre como um filme “deveria ser”, a produção dirigida por Matt Shakman (de WandaVision) consegue ser mais “humanizado” (além do mero discurso) porque sua forma é mais orgânica e a integração entre efeitos e encenação, bem mais natural que no outro.
A trama é bastante conhecida porque o fio narrativo que sustenta o quarteto já foi bem explorado em outros filmes e em toda a sua mitologia própria: após retornarem do espaço com poderes especiais, os quatro integrantes precisam defender a Terra da ameaça do poderoso Galactus, que por sua vez é precedido pelo(a) fascinante Surfista Prateado, o porta-voz do devorador de mundos. É a vez de a Terra ser engolida (conforme acontecera anteriormente com outros planetas) e apenas uma barganha diabólica (não revelarei aqui) pode poupar a civilização. O enredo propõe um dilema interessante que, embora não seja exaustivamente explorado, funciona como uma reversão relativamente surpreendente de expectativas num roteiro que, de resto – como se disse – é amplamente conhecido pelos fãs do universo desses heróis.
Conforme o filme de super-herói transita numa região dramatúrgica bastante limitada, e seus conflitos sejam bem reconhecidos pela audiência, o desafio de todo filme do gênero é explorar os elementos de uma forma suficientemente interessante (“nova” seria exagero) de modo a não irritar quem conhece e renovar a plateia por mais uma geração. O caminho escolhido por Quarteto Fantástico: Primeiros Passos é o da nostalgia, compondo um ambiente que não se limita à localização puramente temporal da década de 1960, mas também à forma vintage com que a história começa a ser contada.
Se ao longo da projeção, a direção deixa de lado essa referência formal e passa a se apoiar numa narrativa mais corriqueira, “atualizada”, não se torna um problema porque também quando precisa lidar com a correria e as cenas de ação e efeitos normais ao gênero, se sai bem, com um desenho de produção muito bem pensado e a opção por um visual mais escurecido e contrastado, um velho truque que, além de remeter às histórias em quadrinhos impressas, torna a composição bem menos artificial que, por exemplo, no ultrailuminado (e, talvez por isso também, ultra-artificial) Superman de James Gunn.
Elenco tem as atrizes como maior atração
Como os efeitos visuais não transbordam da tela, há mais espaço para que as duas atrizes do elenco principal destaquem-se: Vanessa Kirby tem os melhores momentos mas Julia Garner, apesar de poucas linhas de diálogo, prova que é uma atriz carismática até coberta por 10 terabytes de CGI.
Uma das limitações do filme é explorar pouco as relações internas do quarteto, especialmente com relação ao Tocha Humana e à Coisa, que têm funções bastante esmaecidas no conjunto.
De toda forma, ao não escolher “abraçar o mundo”, o filme poupa minutagem, concentra no que realmente importa para o enredo e acaba antes de cansar a plateia. Uma opção inteligente, num filme delicado (apesar da destruição corriqueira de NYC), de brilho suavemente antiquado, e que traz duas cenas pós-créditos (uma é reveladora, a outra decorativa). Não se pode pedir muito mais que isso.