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Crítica | Sieranevada

Não sabemos o que é ou onde é ‘Sieranevada’ (o lugar onde se passa a história, o destino dos personagens?), no entanto, o filme de Puiu, ao não mencionar o termo ao longo do roteiro, senão no título, revela muito mais do que qualquer descrição ou imagem. O filme é Sieranevada. Após as 2h50min de projeção o espectador terá sua própria construção confiável, mesmo que imprecisa, de Sieranevada. Logo na primeira sequência – uma introdução bem duradoura, sem cortes, ocupando por volta de sete ou oito minutos – a estrutura da misé en scene, estrela da obra, é firmada. Acompanhamos a ação através de uma visão distante, posicionada do outro lado da rua.

O teto dos carros estacionados e o trânsito separam a câmera dos possíveis protagonistas do filme. Apesar da montagem ser comunicativa, expandindo o tempo para o mais próximo do registro ao vivo, as informações são praticamente nulas. É a mesma experiência, por parte do enquadramento quase espontâneo, de alguém que para no meio de uma rua para assistir à eventos ordinários, baseada, no começo e no final das contas, em suposições que se relacionam com o cotidiano.

Plantada a dúvida, uma curiosidade forçada, os sons diegéticos urbanos são interrompidos pelos créditos, embalados por acordes barrocos. Em seguida, a sequência em que a violência do cinema é mais evidente. A câmera pega carona no banco de trás do carro dos personagens e decupa com a mesma pungência linguística de quando acompanhou as nucas de Belmondo e Seberg em Acossado. A mulher, Laura (Catalina Moga), discute com o marido Lary (Mimi Branescu), sobre o vestido que ele comprou para a filha.

Movido pela sua conveniência pessoal, o pai comprou para a filha o vestido de princesa que achou mais bonito, só que o vestido da personagem que a garotinha viverá, da maneira como a Disney fixou no imaginário mundial, é outro. O cinema moderno pula como nunca mais fará na projeção, para dar lugar a um embate de construções de contemporaneidade – muito já discorrido, ainda que com perspectivas superficialmente diferentes da de Sieranevada, nos filmes anteriores de Cristi Puiu, A Morte do Sr. Larazarescu (2005) e Aurora (2010).

Enquanto o filme de 2005 delineava as horas finais de um vetusto protagonista, Sieranevada dá para a Morte um lugar outro, afinal, seu tour é de uma force diferente, mas carrega em si toda a trajetória da pérola de onze anos atrás. A perda é a causa e não um destino. O destino é dos que ficam e têm que lidar com o que as decorrências da morte, no caso, de uma figura patriarcal. O casal no carro se dirige para uma reunião familiar, realizada para selar religiosamente a passagem do falecido. Se as tomadas externas já pareciam fechadas em sua nebulosidade, agora, as próximas duas horas e meia passam entre quatro paredes, em que o grupo familiar se desnuda simbolicamente, com o cenário e seu compartimentos, perante o enquadramento ironicamente segregador (do jeito que só a intimidade pode proporcionar) da primeira sequência do filme.

Isto é, o enquadramento impõe um contraste de habitus: o espectador é como um convidado que não recebe atenção, alheio a tudo, posicionado desde já como observador, e nada mais, numa quina, num canto fora do caminho, um ponto fixo capaz de cercar tudo com leves movimento horizontais sem atrapalhar a cena. O movimento é de uma sala a outra, uma porta que se fecha para outra ser aberta, um pensamento sobre as relações entre o que se desenvolve no palco e nos bastidores – reflexões essencialmente teatrais, muitas vezes subjugadas no cinema; de uma discussão conspiratória sobre o 11 de Setembro baseada em vídeos do YouTube e outros textos “secretos” que um familiar encontrou pela Internet para um caloroso debate político entre familiares (destaque para o fantasma do socialismo no corpo de Tatiana Iekel) e outras conversas e fofocas – todos em planos sequência, simples, compreensiva, capazes de evidenciar a qualidade dos atores.

Nesse aspecto, Puiu não mostra-se pouco flexível em relação às expectativas relativas ao cinema romeno. Um cinema que evidencia os traumas de seu país sublinhando suas narrativas e estilos. Em Mungiu, o contexto ditadura de Ceausescu surge constantemente perante a câmera na mão escandalosa que acompanhava drama pessoal de Otilia em 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias. Para Puiu, o tempo é preocupação primordial (Lazarescu já tinha 2h30 e Aurora chegou a 3h), e ele costura suas observações em contraponto direto aos grandiosos tableaux de Lisandro Alonso (Jauja, Los muertos). Vale um destaque para o fôlego da projeção: Sieranevada não é monolítico. O cineasta é capaz de colocar vírgulas que nas mãos de “apreciadores da síntese” (pose para alguns indecisos aos quais falta clareza na expressão e conclusão de seus discursos) seriam fáceis pontos finais.

No primeiro momento, os presentes esperam pelo padre para o início da celebração. Até lá ninguém pode comer. Seria o filme uma radicalização de Esperando Godot? Se o fosse, estaria perdido. O padre demora, mas chega. E com ele, o embate de representações, colocado em pauta na conversa sobre o vestido, pode aconchegar-se em nível transcendental. Enquanto os religiosos cantam e benzem, a ironia não é pouca. Querendo agradar a dois tipos de convidados distintos, Puiu não hesita em mostrar um momento de libertação, já que ninguém poderia comer senão aperitivos antes da chegada do padre), sem menosprezar o ritual em si e o avanço que confere ao vazio da trama.

Mas quando o padre vai embora ele deixa a dúvida: “E se Deus já tiver vindo uma outra vez para Terra e não o reconhecemos? Se sim, sei que ele não viria uma outra vez”. Se o próprio portador da fé não tem mais certezas, qual sua função e dos seus rituais hoje? Sentem-se cicatrizes de uma secularização incompleta, e o microcosmo familiar, infalível quando o assunto é explicitar abismos geracionais, é ambiente perfeito para o debate: os choques manifestam-se no debate sobre as heranças socialistas na Romênia; a roupa/espírito/role do patriarca grande demais para as medidas/o corpo de um familiar da geração seguinte; a pulsão constante entre os eventos “planejados” e os imprevistos gerados por conflitos de outras ordens, mas ainda centralizados em componentes da família.

A partir da segunda metade, feita a visita do padre, o filme caminha rumos um pouco diferentes, mas sem deixar sua dimensão existencial como obsessão. Um dos tios de Lary, o estereótipo de beberrão, traiu a mulher com a vizinha (e com outras mais) e agora busca o perdão de sua esposa. “Ele sempre reclamou que eu nunca soube fazer um sexo oral decente”, diz a esposa chorando. A comparação mais fácil é com Festa em Família, mas aqui não há nenhum segredo mortal nem a brutalidade nórdica. Sobrepõe-se um humor frio, e isso se torna mais latente ainda quando vemos pela primeira vez Lary gargalhando sozinho de toda a situação dramática, oposto da carnalidade vinterberguiana, conferindo uma leveza merecida.

Um segundo momento de respiro, de saída do apartamento, novamente com Lary e sua esposa, no entanto, é regado pelas lágrimas íntimas do marido. Depois de mais um longo diálogo entre os dois no carro, dessa vez o homem é condutor da ação, a mulher pede alguns dias para pensar em tudo o que ele disse. Em seguida avisa: “Eles estão esperando por nós”. E voltam para o apartamento.

As risadas finais à mesa coroam a dúvida que permeia toda a obra, e parece romper a barreira observacional de toda a projeção. Através de um simples gesto, que logo se torna contagiante, e um clichê, Puiu convida o espectador para sentar e comer a janta (não era almoço?) requentada depois de presenciar toda sua verborragia textual e temporal. “Dê-me tempo para pensar em tudo que você falou”, diz a esposa de Lary em certa cena. Puiu pede o contrário do espectador: “Bon appétit”. Sieranevada é para ser deglutido. Não interessa tanto o conteúdo superficial das conversas, mas como elas transmitem certo valores arquetípicos e doxas. Consequentemente, qual a relação delas com a verdade.

Redação Bastidores

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