*spoilers do jogo The Last of Us Parte II e da segunda temporada*
Como tudo envolvendo o fatídico e eternamente divisor de opiniões que foi The Last of Us Parte II de 2020, temos que primeiro falar (e comparar) com o início da história de Joel e Ellie, e o que ela estabelecera, mas não só isso, também efeito que surtira no seu público e fãs. No que diz respeito a sua adaptação televisiva pela HBO, a primeira temporada foi muito bem sucedida em traduzir a história original de Neil Druckman.
Excusando o fato de algumas decisões questionáveis em adaptar certos arcos e personagens – como transformar o David, não bastando ser um canibal mas agora é também um fanático religioso, por motivos que você deve bem saber quais são; e ao ainda motivo de discussões que foi a escolha de seus atores principais (Joel Mandaloriano e Ellie testuda); a primeira temporada foi satisfatória e inegavelmente competente em conseguir traduzir para um novo público um pouco da metade do impacto que essa potencialmente genérica história de pós-apocalipse zumbi, surtiu e despertou um efeito tão forte e pessoal para quem a experienciou e se deixou absorver por esses personagens e suas decisões.
Dito e feito, as reações negativas foram de fãs questionando algumas escolhas de casting ou pressa narrativa; mas a majoritária reação positiva foi tão acalorada tal como era de se esperar que essa primeira parte da história, adaptada, quase que palavra por palavra idêntica, viria causar. E tem que se admitir, Craig Mazin fez seu trabalho de adaptação tão bem que agora a segunda temporada está despertando as exatas mesmas reações mistas que The Last of Us Parte II teve (e tem). Parte talvez por motivos diferentes, mas partindo tudo do mesmo lugar e falha coesão de ideias que já vinha do material original.
O maior problema que a segunda temporada de The Last of Us tem contra si é exatamente o material fonte que é encarregado de adaptar. Pois eis o fato: The Last of Us Parte II é uma bagunça pretensiosa construída em cima de uma idéia temática rasa: a vingança é ruim; e uma execução que torna todas as suas decisões soarem amplamente hipócritas.
É um jogo que quer salientar o mal consumidor e auto destrutivo da vingança… com um sadismo violento voraz que permite o jogador a cometer 18 horas ininterruptas de matança para no final te forçar uma catarse moralista e niilista.
Mas o pior de tudo, querer ser uma história que (supostamente) expande a narrativa do primeiro jogo que cobriu os limites inconcebíveis (e inconsistentes) do amor, agora falando sobre o ato do perdão e sua invicta importância… na mesma história que é cercada de ódio e nilismo pseudo profundo e ousado. Coberto de toda essa (a)moralidade pueril de hoje que cobre narrativas de filmes, séries e agora também jogos que quer desvelar culpas íntimas, dívidas históricas e penas inquestionáveis, ao mesmo tempo que quer elevar impunidades idealizadas baseada em auto flagelo vitimista e idealizado.
Mas já chega de falar sobre o jogo, porque claramente o showrunner sabia que ia ser uma tarefa complicadíssima em adaptar isso para o formato de série. Seja pelo fato que eles jamais vão admitir nem para si mesmos: que a história original é uma bagunça completa; ou pela ideia de que a obra é de um brilhantismo inalcançável então eles devem tentar ao menos minimamente respeitar o que ela executa.
O resultado final parece mais ou menos uma mistura dessas duas vertentes, com mudanças e expansões que tentam deixar alguns momentos particulares e desenvolturas narrativas do jogo original, soarem mais palatáveis, enquanto que também quer deixar os eventos e estrutura do jogo razoavelmente intacta tal como era, o que meio que entrega algumas estranhas melhoras e ao mesmo tempo decisões ruins ou injustificáveis.
O maior exemplo disso talvez seja o ponto culminante que engata, ou talvez mate, essa história para muita gente: a morte de Joel; e toda essa temporada parece ter sido construída em cima desse momento tanto que o segundo episódio da temporada parece algo quase à parte do resto da série – tanto em escala quanto em qualidade no que é, para o bem e para o mal, o melhor episódio que a série já construiu!
Organizado como um mega acontecimento, tal como se fosse um season finale ou o típico penúltimo episódio de Game of Thrones que guardavam justamente para ser o episódio da grande batalha ou um grande evento que irá mudar tudo da série até então, que justamente é ambos o que esse episódio dirigido por Mark Mylod (Sucession) acaba sendo.
Transformando o que originalmente era um dia pacato nos arredores de Jackson, em uma invasão de um exército de infectados gigantesco. Onde todo dinheiro foi jogado na tela e no que parecia um momento de triunfo, a HBO conseguiu novamente conquistar o bafafá nas redes sociais com um grande acontecimento nível blockbuster em formato televisivo que parecia um retorno em glória aos dias de Game of Thrones.
Cada instante precisamente calculado e memorável – que justiça seja feita boa parte são do jogo; e uma tensão crescente atenuante até finalmente concluir no ato brutal que matou quase metade da audiência antes mesmo da temporada acabar – e a queda de vendas do jogo na época de lançamento não foi tão distante em similaridade.
A decisão em antecipar a introdução da Abby e suas motivações alterna a reação inicial de absoluto ódio e revolta com um sentimento misto de consequências se pagando de forma fria e cruel, não justificáveis apenas sujo e imoral, tal como a violência é o que cria uma imediata complexidade quanto a personagem, interpretada otimamente por Kaitlyn Dever, cuja versão original no jogo meramente descarta essa possibilidade e se contenta em apenas construir uma brutamontes sedenta que consegue exatamente o que quer e é justificada via vitimismo e manipulação sentimental.
Outros pontos positivos a se salientar ficam entre: a Dinah de Isabela Merced se tornar uma personagens de muito maior nuances e motivações próprias – que por vezes se confundem até com a Ellie original era (ou deveria ser); do que meramente só ser a acompanhante fiel;
Os Cicatrizes/Serafitas serem mais humanizados e não reduzi-los aos meros fanáticos religiosos sanguinários do jogos. O que talvez em parte remova a ameaça de sua presença, mas ao mesmo tempo adiciona mais camadas à moralidade nebulosa do que é sobreviver nesse mundo, alguns escolhem a fé, outros a arma; alguns a paz outros o confronto e expurgo.Tudo que parecia ser uma melhora automática e clara dos temas do jogo feita de forma realmente densa e humana, mas cujas outras decisões e escolhas removem quaisquer chances desses temas ressoarem com impacto tal como a série busca.
Não bastasse o Joel já ser um personagem complexo por natureza, ambos na série e no jogo, a temporada nova parece querer introduzir mais intriga moral ao personagem, não só atormentado por culpa mas ao ponto de tornar isso numa ânsia genética que ele traz consigo desde o berço.
O sexto episódio inteiramente focado num resumão/montagem de todos os flashbacks que a Ellie tem com o Joel no jogo, se transforma na tradução literal do termo favorito do momento: masculinidade tóxica, e como todo o arco do personagem se resume a uma desconstrução barata de tal termo e questionar todos os atos de Joel, tanto os bons quanto os maus, no mesmo antro de perversitude cuja principal tragédia é tentar eternamente em ser bom – a busca incessante de um pai por aceitação.
Mas apenas o reduz a uma obviedade inócua e aborrecida, tentando transformar em atos de um pai em uma espiral contraditória de um mal egoísta movido por amor, mas que não permite deixar Joel assumir isso como ele faz no jogo justamente na cena final do episódio (que é inexplicavelmente adiantada no contexto da série), tem que fazer ele pagar e murchar em lágrimas de eterno arrependimento ao ponto do exagero.
Mas se for falar para exagero vamos ao ponto chave de contenda: Bella Ramsey como Ellie. E não tem como ser suave nos fatos, e tampouco culpar a atriz que é 100% disposta e entregue ao papel, mas o texto de Mazin não lhe faz justiça nenhuma. Antipática, rebelde, cuja única personalidade ou é em ser a desbocada em dobro em excesso de palavrões beirando a caricatura; ou colocada a desafiar a autoridade dos mais velhos por motivos de empoderamento. Ela não tem arco pois não se permite evoluir já que sempre está com a razão. Buscar vingança pra quê se sua maior alegria e foco agora vai ser se tornar “pai”?! Ela mal mata ou fere algum capanga até chegar na Nora e quando vem a famosa cena das costas cicatrizadas, ou convencer o peso que Ellie esta carregando, é tudo vazio.
A série parece até que só se lembra disso literalmente de última hora quando transforma o sétimo e último episódio no mais próximo em tom ao jogo, seco e brutal, mas feito de forma tão aloprada e mais preocupado em estabelecer um gancho para os grandes conflitos da terceira temporada que, se você já conhece a história, serão um enorme flashback recontando a perspectiva de uma personagem que mais da metade do público detesta e dificilmente isso deve mudar, por mais que eles tentem.
Na falta de uma definição melhor… The Last of Us Parte II é… “abstrato” (ou tenta exageradamente ser). É uma narrativa que é vil e cru moldada para ser absolutamente sensorial em um formato de jogabilidade, te imergir como avatar dentro dessa experiência da Ellie em um luto movido à selvageria, dentro do âmago e angústia dessa dor de perda e desejo de vingança. Todo o sentimento e catarse dessa parte da história se move por essa execução, coisa que a série tenta transformar eventos e cenários em uma linha narrativa episódica, cujo o primeiro jogo já cabia muito melhor em se adaptar a tal formato.
Já a Parte II quer ser o mais denso e cinematográfico possível, não cabe isso. Não há momentum nenhum, só uma listagem de momentos a se adaptar e encontrar brechas de onde seria possível expandir ou aprofundar, em boa parte de maneira rasa mas algumas até favoráveis em oferecer elementos que ficaram só na sugestão subjacente e frustrantemente vazia de Neil Druckman no jogo.
Mas que infelizmente pouco fazem diferença em realizar um impacto final memorável em execução. Ficando-se um vaivém de erros e acertos que se alterna entre as duas versões, não apaziguando lado nenhum e terminando com um resultado realmente indeciso até com o que está querendo ser e como vai se prestar em adaptar o resto dessa história.