em , ,

Crítica | The Post: A Guerra Secreta – A paixão de Spielberg pelo jornalismo

Steven Spielberg é uma máquina. Já na casa dos 70 anos, o lendário cineasta americano vai se aprofundando em uma das fases mais interessantes de sua carreira, mais concentrado em dramas históricos e thrillers políticos, mas todos com sua tradicional assinatura e domínio da arte cinematográfica. Basta observar como suas colaborações com o dramaturgo Tony Kushner renderam dois longas com o melhor de ambos os mundos: o intenso e pesado Munique, onde Spielberg se aventurava em uma trama de espionagem adulta, e o verborrágico Lincoln, que traz alguns dos momentos mais introspectivos do diretor, que mira sua câmera para diálogos quase que o filme inteiro. É um dizer popular, que se reconhece um grande diretor não por sua escala ou megalomania, mas da forma como ele resolve enquadrar duas pessoas conversando. Spielberg, claro, se encaixa nesse seleto grupo.

Os caminhos que o levaram a este The Post: A Guerra Secreta são dos mais curiosos, visto que o drama jornalístico foi uma adição de última hora à seu currículo. Em meio a pós-produção da aventura Jogador Nº 1 e os preparamentos para The Kidnapping of Edgardo Mortara – sua reunião com Kushner – Spielberg se depara com o roteiro da blacklist de Liz Hannah, que dramatiza o escândalo dos documentos do Pentágono na década de 70, praticamente um precursor do Caso Watergate, que estouraria na mídia resultando em um dos episódios mais vergonhosos da política dos EUA. Apaixonado pela história e sentindo-se na necessidade de fazer um paralelo com o atual cenário político americano – além daquele desejo anual de concorrer ao careca dourado, claro -, Spielberg inverte a ordem de suas produções e corre contra o tempo para produzir, filmar e finalizar The Post em um período insano de 10 meses – quase como um jornalista correndo contra o deadline. O resultado, felizmente, é positivo.

A trama gira em torno do que ficou conhecido como “Pentagon Papers”, ou documentos do Pentágono. Uma série de documentos extensos ordenados pelo então Secretário de Defesa Robert McNamara (Bruce Greenwood), que detalham minuciosamente todas as relações entre os EUA e o Vietnã em todo o período que antecedeu e percorreu o conflito militar, e como os líderes americanos tinham consciência de que a guerra seria uma derrota certa. Material incendiário para qualquer governante, e quando o analista Daniel Ellsberg (Matthew Rhys) opta por vazar esses documentos para a imprensa, uma verdadeira guerra entre a mídia e o governo Nixon tem início, com o Presidente impondo sanções e liminares para censurar os jornais que se propuserem a publicar os documentos – começando com o New York Times, mas culminando na redação do The Washington Post, onde as figuras da CEO Kay Graham (Meryl Streep) e do editor Ben Bradlee (Tom Hanks) lutam para defender a liberdade de imprensa e expor so documentos.

Quando o assunto é cinema de jornalismo, a primeira coisa que vêm à mente dos cinéfilos, claro, é o clássico Todos os Homens do Presidente. Não só retrata o dia a dia de uma redação, mas também se dedica a explorar praticamente o mesmo assunto, com The Post servindo como um curioso e eficiente prólogo para o filme de Alan J. Pakula – e Spielberg brinca com esse “parentesco” entre as obras através de duas referências e acontecimentos na história, formando quase que um universo compartilhado não intencional, mas divertido. O texto da estreante Liz Hannah, que teve a ajuda de Josh Singer (oscarizado por Spotlight: Segredos Revelados, o que o torna bem apto ao trabalho) é impecável na forma como explica e sintetiza todos os passos da publicação da matéria, e também na síntese simplificada de seu conteúdo, contando com uma participação bem grande de McNamara na história; algo que facilita a exposição e a torna mais natural para o espectador.

O roteiro só acaba se desconcentrando quando saímos da redação para o núcleo de Kay, envolta em um complicado processo com banqueiros e o lado administrativo do The Post, um bloco de história consideravelmente mais fraco e sem o grande apelo do calor jornalístico. Além disso, o núcleo praticamente bate na mesma tecla durante quase todas as cenas, com Kay sendo subjulgada por ser uma mulher no comando de uma grande empresa. Mais um dos paralelos do roteiro com o período contemporâneo, e faz sentido que Hannah, Singer e Spielberg apostem tanto nessa mensagem, mas é algo que acaba ofuscado por todo o outro núcleo jornalístico, que é muito mais forte e energético. Só fica interessante quando Streep tem diálogos com McNamara, e Bruce Greenwood faz um ótimo trabalho aqui, e nas poucas cenas em que Kay conversa com sua filha (Alison Brie, excelente) e apresenta uma aposta mais intimista e menos burocrática para sua situação.

Mestre em navegar por gêneros diferentes, Spielberg respeita esse tipo de cinema jornalístico e não procura inovar tanto, com as redações sempre lotadas de pessoas tendo conversas paralelas, muita correria e pequenas aventuras no dia a dia – algo mais romantizado e cênico do que o quase documental Spotlight, por exemplo. Claro, tudo isso pelas lentes sempre fascinantes do diretor, que traz planos longuíssimos e discretos – no sentido de que nunca percebemos de que não houve um corte de um plano para o outro – nos diversos acontecimentos envolvendo o núcleo do The Post – onde o personagem de Hanks tem uma presença maior – sendo uma marca do Spielberg mais sério, mas com toques muito bem-vindos de seu lado mais pipocão, especialmente nos sutis momentos de humor presentes durante o caos, vide aquele envolvendo uma pequena vendedora de limonada.  E ainda nessa linha, sendo intencional ou não, as cenas que envolvem um Richard Nixon de costas e só visível pela janela de fora da Casa Branca surgem um pouco cartunescas, e é impossível não lembrar das reuniões de George Costanza com Steinbrenner na sitcom Seinfeld, onde só víamos o lendário GM do New York Yankees de costas e com uma voz forçada; aqui, Spielberg opta por gravações reais da voz do ex-presidente.

É um de seus trabalhos de câmera mais inspirados dos últimos anos, especialmente pela energia que confere ao cotidiano e os diálogos que transformam-se em verdadeiros momentos de tensão graças à seu olhar, sempre fluente na linguagem cinematográfica. É curioso notar também que o próprio Spielberg parece mais interessado no núcleo da redação do que aquele envolvendo Kay e os banqueiros, já que todo o jogo de cena é mais padrão e não muito elaborado em tais cenas – mas nunca desleixado, obviamente. Há uma paixão em mostrar o maquinário a todo vapor, as palavras sendo carimbadas nas folhas de papel e o famoso “roll the presses”, algo que visualmente garante resultados espetaculares, e a fotografia de seu fiel escudeiro Janusz Kaminski está na medida, com suas luzes difusas invadindo as janelas. Outro fator que demarca bastante esse amor, claro, é a trilha sonora do sempre impecável John Williams, que oferece um belo tema principal com suas clássicas notas de piano, mas também aposta em uma percussão eletrônica mais intensa para seguir os momentos mais corridos.

Assim como em Lincoln, as conversas e disputas verbais garantem a ação, fazendo com que Spielberg concentre-se na direção de seu elenco. Já falamos sobre sua criatividade nos enquadramentos e movimentação de câmera, e agora o diretor merece destaque pelo excepcional grupo de atores e atrizes que reuniu aqui, certamente um dos melhores de sua carreira. Só o fato de termos Hanks e Streep contracenando juntos já é algo digno de nota, e ambos os atores se saem muitíssimo bem como os protagonistas, ainda que aqui e ali Hanks force um pouco seu sotaque, mas nunca deixa de criar uma figura admirável. Já Streep é Streep, e não há muito o que dizer à essa altura do campeonato, mas vale enfatizar o momento genial onde a atriz oferece uma reação nada compatível com o tipo de abordagem que Spielberg vinha construindo, com a câmera se aproximando de seu rosto e Kay raciocinando para entregar uma resposta determinante para o futuro do The Post; o palco armado para uma punchline que seria digna de um “Hasta la vista Baby”. A forma como Streep entrega a fala vai contra tudo isso, sendo um dos momentos mais inspirados e inesperados da projeção, e apenas mais uma comprovação de que Meryl Streep é uma das grandes atrizes da História do Cinema.

Mas o elenco coadjuvante acaba rendendo um charme ainda maior. Com a maior concentração de estatuetas do Emmy do que a prateleira da FX após as vitórias de O Povo contra O.J. Simpson, o elenco de apoio conta com nomes pesados da televisão, começando com aquele que provavelmente tem o maior tempo de tela após os dois titulares: Bob Odenkirk. O eterno Saul Goodman oferece uma performance cativante como o carismático Ben Bagdikian, em um bom misto de desespero e humor, vide a ótima cena onde o jornalista está afivelando a caixa com os documentos em um avião, casualmente respondendo a uma aeromoça que a carga preciosa se tratava de “documentos confidenciais do governo”; como se alguém fosse acreditar. A lista ainda traz ótimas participações de um intenso Matthew Rhys, o cada vez mais interessante Jesse Plemmons, e um eficiente Tracy Letts. O grande destaque coadjuvante, porém, fica com Carrie Coon e Sarah Paulson. Ambas apresentam pouco tempo em cena durante quase toda a projeção, mas felizmente Spielberg oferece pequenos grandes momentos onde as atrizes possam brilhar, Paulson em especial, que entrega um monólogo que praticamente muda o rumo da narrativa para o personagem de Hanks.

Em tempos onde a liberdade de imprensa é um assunto cada vez mais relevante, Steven Spielberg faz com The Post: A Guerra Secreta um registro importante e eficiente, contando com uma execução primorosa, um roteiro conciso e um elenco estelar que pode se destacar como um dos melhores que o diretor já reuniu em sua carreira. Um belo filme, e mais uma importante ode à liberdade da imprensa.

The Post: A Guerra Secreta (The Post, EUA – 2017)

Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Liz Hannah e Josh Singer
Elenco: Meryl Streep, Tom Hanks, Bob Odenkirk, Carrie Coon, Sarah Paulson, Jesse Plemmons, Bruce Greenwood, Matthew Rhys, Tracy Letts, Michael Stuhlbarg, Alison Brie, Bradley Whitford, David Cross, Zach Woods
Gênero: Drama
Duração: 116 min

Avatar

Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Oscar 2018 | Quais foram os esnobados e injustiçados nas indicações?

Seven Seconds | Nova série da Netflix ganha trailer oficial