Como começar a difícil tarefa de explicar um filme que transformou a história do cinema? 1995 foi repleto de marcos tecnológicos importantíssimos –a popularização da internet, a criação do Windows 95 e dos DVDs entre eles – e a première de Toy Story, em novembro do mesmo ano, revelou ao mundo o primeiro longa de animação computadorizada em 3D.
O filme também deu início à parceria duradoura entre a Pixar, uma empresa que à época ainda era ligada à Apple Inc. de Steve Jobs, e o Walt Disney Studios. O acordo firmado entre as empresas garantia quase 30 milhões de dólares por parte da Disney para a produção de três longas animados, o primeiro deles sendo Toy Story. O futuro da Pixar, portanto, sempre esteve nas mãos desta animação: se ela fracassasse, o lar de Mickey Mouse provavelmente cancelaria o acordo de produção e o cinema animado como conhecemos hoje não existiria. Ainda bem que deu tudo certo, não é?
Para que o filme funcionasse, a Pixar usou softwares desenvolvidos por eles mesmos, praticamente criando um novo tipo cinematográfico. Olhando para trás, as animações parecem um tanto cruas – principalmente quando as comparamos com o filme mais recente da franquia -, mas para a época a técnica era extraordinária.
Um fator de sorte para a equipe gráfica foi que sua primeira empreitada envolvia a animação majoritária de brinquedos – a narrativa é focada nos brinquedos do menino Andy, que ganham vida quando ninguém está olhando. Já reparou como no primeiro filme as faces dos personagens humanos são evitadas? Na cena inicial vemos as mãos, braços e pernas de Andy muito antes de vermos o seu rosto. O 3D ainda possuía um efeito muito distante do natural, com pouca versatilidade de texturas.
Exatamente por isso, também, que Toy Story tem muito mérito. Com as limitações que tinham, a equipe se esforçou para trabalhar diversos aspectos simples, como as orelhas de couro do cãozinho Slinky e até o tecido da colcha da cama de Andy. O próprio chão, de madeira, possui uma certa qualidade reflexiva além das sombras dos personagens, dando a impressão de estar encerado.
A atenção aos detalhes não se limita ao campo visual e tecnológico. A história quase se sobressai em relação à arte – e é isso que torna Toy Story tão atemporal. O roteiro combina perfeitamente trechos cômicos – basicamente qualquer cena com o Sr. Cabeça de Batatas – à jornada de Woody, um boneco xerife do velho oeste com uma história carregada de emoções. Sentimentos simples como ciúme, presentes em todos desde a infância até a vida adulta, são bem trabalhados por meio dos diversos brinquedos de Andy, tornando-os mais reais do que quando eles se movimentam.
O primeiro susto que levam é durante o aniversário do menino, quando se esforçam para descobrir o que há dentro das caixas de presentes recebidos. “Será que é um outro dinossauro? ”, se desespera Rex, o tiranossauro ansioso. Quando descobrem que ele não ganhou brinquedos parecidos aos que já tinha, todos vibram aliviados sabendo que não serão substituídos.
Até a chegada de Buzz Lightyear. O capitão interestelar é a febre entre as crianças, e pouco a pouco, em uma montagem simples e sensacional, vemos o quarto de Andy se transformar: primeiro o próprio menino tira o chapéu de cowboy para vestir um traje espacial feito de caixas de papelão; depois, trocam-se os pôsteres e os desenhos da criança, para no fim até a roupa de cama que antes era do velho oeste receber a temática espacial e Buzz tomar o lugar de Woody, sentado no travesseiro. Tudo isso enquanto o boneco de pano observa, desolado, fazendo caras e bocas.
Woody Pride – seu sobrenome é uma brincadeira com sua personalidade e significa orgulho – fica cada vez mais rabugento. O momento em que resolve colocar Buzz em uma emboscada para poder ser escolhido por Andy para brincar fora de casa é quando seu ciúme e inveja culminam e ele, por acidente, manda o brinquedo voando pela janela. Na vida real isso poderia bem ser uma tentativa de homicídio – e é assim que a ocasião é encarada pelos outros brinquedos, com o hilário Sr. Cabeça de Batata prestes a linchar o cowboy. Para as crianças – e admito, muitos dos adultos que conheço – a progressão da narrativa sobre ciúme ensina muito. Nesse momento, ainda que saibamos de suas motivações, Woody é um boneco muito difícil de se gostar. Ainda que não seja um vilão, ele é um verdadeiro anti-herói que parece longe de se redimir, um exemplo de como ciúme e raiva não compensam.
Por outro lado, a ingenuidade de Buzz resulta em um contraste de personalidades explícito. O boneco, que ainda acredita ser um patrulheiro espacial original e na necessidade de reportar ao comando estelar, fica paralisado como todos quando há humanos por perto – provavelmente um instinto natural dos brinquedos -, mas conquista os companheiros do quarto de Andy rapidamente ao ficarem sozinhos. Sua tentativa de voar, um sucesso devido à muita sorte, faz com que ele seja instantaneamente admirado.
As mudanças de humor e personalidade em Woody são explícitas, enquanto a transformação de Buzz é levada com certa sutileza. Ao sair da caixa, ele ainda está “fresco” na mentalidade de patrulheiro – seguidor de regras, cheio de habilidades especiais, racional, não passional. Apesar de sua bondade, resultado de um forte senso de justiça, seu compromisso é com o Comando Estelar, não com sentimentos como é o de Woody.
Esse compromisso resulta, quando os dois protagonistas vão parar em uma pizzaria e fliperama, no patrulheiro espacial entrando em uma máquina de garra em formato de nave repleta de pequenos alienígenas de plástico. O cowboy, preocupado com a retaliação dos outros brinquedos se voltar à casa sem Buzz, vai atrás para recuperá-lo. Essa é uma cena difícil de não amar, com a fofura dos bonequinhos verdes e sua adoração pela garra, que a qualquer momento pode se mover e procurar um novo “escolhido”. Ela de fato se move, controlada pelo vizinho cruel de Andy, Sid – e tanto Buzz quanto Woody e um alien vão parar na casa do garoto.
Sid se torna o verdadeiro vilão, dando espaço para o início da jornada de redenção de Woody. O jovem destrói brinquedos por diversão, fazendo operações bizarras até mesmo nas bonecas da irmã mais na nova. A maldade intrínseca no garoto é demonstrada não só pela sua atitude, como também pelo que há ao seu redor. Em comparação com a casa de Andy, que carrega uma atmosfera alegre em tons claros e pastel, o lar de Sid é sombrio. Seu quarto é tingido por sombras arroxeadas e ali temos as cenas mais escuras do filme. Os ares de calabouço – até a porta arredondada da casa parece a entrada de uma masmorra – ficam ainda mais óbvios quando conhecemos o quarto de sua irmã, uma overdose de tons de rosa salpicados de branco.
É tentando escapar da casa do menino que Buzz tem seu choque de realidade: ele se depara com um comercial dos bonecos de Buzz Lightyear na TV e percebe, depois de tanto tempo, que não passa de um brinquedo. Em negação, vai para o patamar da escada e tenta voar novamente em direção à janela, dizendo seu icônico “ao infinito e além”. O boneco falha na tentativa, quebrando seu braço – uma cena melancólica cuja música certeira (I Will Go Sailing No More de Randy Newman, em português Voar Eu Não Vou Mais, de Zé da Viola) ajuda a superar a plasticidade do 3D e trazer a devida emoção.
A confiança do boneco astronauta só é restaurada após um discurso de Woody sobre como ele não é qualquer brinquedo. Ele é o brinquedo de Andy, O brinquedo, e por isso ele é importante. O personagem antes tão ciumento finalmente demonstra sua vulnerabilidade e insegurança abertamente. Quando Buzz é levado por Sid para uma sessão de tortura, Woody admite: “ele é meu amigo. Talvez meu único amigo”. Finalmente é possível sentir compaixão pelo cowboy.
Sobreviventes aos experimentos de Sid, os brinquedos mutantes do menino fizeram Woody literalmente tremer na base ao vê-los, e instigaram os instintos de luta de Buzz. Eles não deveriam julgar o livro pela capa: são os experimentos, liderados por uma cabeça de boneca bebê acoplada a pernas metálicas de aranha, que os ajudam na escapada e fazem com que eles cheguem ao carro a tempo para a mudança de casa.
A carismática Amigo, Estou Aqui (You’ve Got a Friend in Me), música que fez tanto sucesso que se tornou tema de toda a franquia, dá início aos créditos com uma surpresa: antes um solo, ela agora é um dueto, reflexo do novo companheirismo entre Woody e Buzz.
Desafio quem lê essa crítica a achar uma animação que supere essa para nossa geração. Algumas vezes me peguei tentando espiar os bichinhos de pelúcia pela fresta da porta, e essa com certeza foi uma herança do filme que nasceu no mesmo ano que eu. Quem nunca, por pelo menos um momento, imaginou que seus brinquedos realmente tinham vida? Toy Story mescla o simples ao complexo e atende aos sonhos das crianças – essa é a fórmula infalível do primeiro grande sucesso da Pixar.
Toy Story – Um mundo de aventuras (Toy Story, EUA – 1995)
Direção: John Lasseter
Roteiro: John Lasseter, Pete Docter, Andrew Stanton, Joe Ranft, Joss Whedon, Joel Cohen, Alec Sokolow
Elenco (vozes no original): Tom Hanks, Tim Allen, Don Rickles, Jim Varney, Wallace Shawn, John Ratzenberger, Annie Potts, Jon Morris, Erik von Detten
Gênero: Animação, Aventura, Comédia
Duração: 81 min.