Com Um Completo Desconhecido, projeto que quase foi abandonado por causa da pandemia e dos problemas de agenda decorrentes, não é exagero dizer que James Mangold cria um novo patamar mais elevado para as cinebiografias de músicos famosos. Ele já havia feito um excelente trabalho com Johnny & June, de 2005, mas lá, diferente daqui, o ponto central não era exatamente a obra do artista – no caso, Johnny Cash, que também é personagem no novo filme – mas sim o drama pessoal. Na biografia de Bob Dylan e fazendo jus ao título, o interesse passa prioritariamente pelo artista, ou mais especificamente, por sua arte, ficando todo o resto em segundo plano. Inclusive o enigma em torno do protagonista, quem realmente é ele, qual sua origem, quais suas motivações: todas essas indagações dissipam-se numa névoa sonora de inumeráveis matizes que representa seu cancioneiro.
A maior qualidade do filme de Mangold é, em certa medida, também sua talvez única limitação: ao apostar todas as fichas na música de Dylan, e particularmente na fase que vai do anonimato à consolidação, o filme deixa de lado a criação cinematográfica mais particular, de modo que toda a narrativa é conduzida – de forma hábil e elegante, é preciso dizer – pela evolução do cantor e compositor. Então, a direção parece ora intimidada, ora desinteressada, em criar momentos com algum frescor que diferencia os filmes “bons” daqueles “realmente bons”, e Um Completo Desconhecido está em algum lugar entre o primeiro e o segundo grupo.
Dylan expõe involuntariamente o lado reacionário de uma revolução
Na trama, o novato Bob Dylan (Timothée Chalamet) chega a Nova York procurando a lenda do folk Woody Guthrie (Scoot McNairy), cuja saúde debilitada aprisionou a um leito de hospital em Nova Jersey. Guthrie não consegue falar, então é auxiliado pelo também cantor e ativista Pete Seeger (Edward Norton), que rapidamente enxerga as qualidades do jovem compositor e o coloca no circuito da música de protesto com raízes rurais que naquele momento (início da década de 1960) está ganhando interesse popular e atraindo atenção das gravadoras.
Dylan logo se envolve com Sylvie Russo (Elle Fanning), uma artista plástica aspirante, enquanto vê sua carreira e vida amorosa cruzar – entre altos e baixos – com as de Joan Baez (Monica Barbaro), que então já é uma jovem cantora de sucesso. A escalada de Dylan para uma fama repentina (mas também dolorosa) levará o artista a empreender sua própria revolução pessoal dentro da revolução coletiva, quando ele pretende utilizar instrumentos elétricos em seu novo trabalho, mas encontra resistência por parte da comunidade musical e dos ativistas mais tradicionais.
Embora a trama esteja bem delineada desde o início e o ponto de vista de um Dylan calado e reflexivo permaneça sustentando a ação, é a névoa mágica das canções do cantor que conduz o filme, como se a mão do compositor convidasse a plateia a sua viagem intimista por corredores de criatividade e mistério que nem o próprio protagonista consegue explicar. A magia de seus versos, a voz que parece deslocada e, ao mesmo tempo, confere a eles uma sonoridade única, a atitude despreocupada mas, também, conturbada como reflexo de uma época de confrontação social, tudo isso está lá, ajudando a dar uma cara cinematográfica para a lenda que tão bem foi explorada no extraordinário documentário de Martin Scorsese, No Direction Home, de 2005.
Interesse do filme é maior na música que no cinema em si
Se em Johnny & June, os conflitos e tragédias de Johnny Cash ganham relevo e até mesmo se sobrepõem à obra musical, aqui Mangold faz uma opção clara por deixar que as canções de Dylan ditem o ritmo, conectando-se quase diretamente uma após outra, de modo que estamos diante de um drama musical cuja coreografia é a psicologia discreta e secundária dos personagens. O triângulo amoroso que se forma entre o artista, Baez e Russo, por exemplo, é tratado com discrição pelo enredo, assim como os conflitos latentes de Dylan com outros músicos da época. O diretor não quer que nada desvie atenção do espectador da obra de Dylan e isso, como se sabe, cobra seu preço – mas tal preço é pago pela grandeza musical a qual a produção presta tributo.
Transitando por uma vibrante (embora não sobressalente) ambientação dos anos 1960, o elenco se destaca a partir de uma construção minuciosa e brilhante de Chalamet que deveria estar sendo mais reconhecida do que, de fato, está. O ator não brilha sozinho, porque Norton, Fanning e Barbaro também se destacam, constituindo um conjunto rico e cheio de carisma para os personagens escolhidos.
Um Completo Desconhecido é um filme excepcionalmente produzido e interpretado, apresentado por uma direção consistente (embora tímida) e que seguramente dá um passo adiante de outras biografias musicais, como Bohemian Rhapsody (2018), Rocketman (2019) ou Elvis (2022) – ironicamente filmes que trabalham mais o espetáculo cinematográfico e que diluem a obra do artista numa dramatização mais tradicional. Talvez seja impossível fazer um filme perfeito que nada mais é que um retrato em outro meio da perfeição musical de Dylan (existe cópia para a perfeição?). Então, talvez fosse mesmo impossível fazer um filme melhor que este. O resultado é mais do que suficiente.