A cada duas gerações pelo menos, uma pergunta assola os amantes do cinema: terá Hollywood a capacidade de se reinventar diante das crescentes mudanças não apenas tecnológicas e de mercado, como também de costumes e das preferências do público? Tem sido assim desde a regulação federal (que obrigou os grandes estúdios a se desfazerem de suas cadeias de exibição, nos anos 1940), passando pelo advento da televisão, do home-vídeo, da internet e – mais recentemente – dos novos formatos e da inteligência artificial. Isso sem contar uma infinidade de “microcrises”, revoluções contraculturais, greves e quedas de faturamento.

A cada nova reviravolta social, o temor de que o cinemão narrativo seja finalmente engolido por renovadas formas de expressão ou simplesmente atropelado, sem deixar de existir (como o rádio), porém ocupando um lugar muito mais particular e diminuindo sua capacidade de exercer influência cultural sobre a sociedade. A crise provocada pelo “isolamento social”, poucos anos atrás, foi o mais recente golpe, atingindo particularmente a exibição em salas de cinema e levantando a dúvida: terá sido este o definitivo?

O que essa discussão toda tem a ver com Wicked, o lançamento da Universal para o Natal de 2024, que por sua vez é baseado num show da Broadway, que por sua vez é baseado num romance de 1995, que por sua vez é baseado no original de L. Frank Braum e no clássico cinematográfico de 1939, O Mágico de Oz? Superficialmente, não muita coisa, mas tem sim se você realmente prestar atenção no filme e no contexto onde ele é apresentado.

Wicked é um bem acabado exemplo de como Hollywood, ou a grande indústria do cinema norte-americano, herdeira direta (embora eventualmente órfã, ou bastarda) dos estúdios da Era de Ouro, não cansa de se reinventar, assimilar as transformações e demandas de uma audiência que, ao mesmo tempo que parece em constante transformação, está também permanentemente disposta a abraçar o encanto da exibição coletiva e da tela grande na sala escura.

Filme de 2024 está distante do original de 1939 nos olhos, mas perto no coração

Existe quase um século de distância entre o filme dirigido por Victor Fleming e que apresentou o universo do embusteiro Oz ao grande público e a versão também musical, lançada agora em 2024. Tal distância não é apenas temporal, mas também representa uma lacuna significativa dentro da História do Cinema em termos de universo imaginário do público – que, hoje, tem demandas com as quais o espectador da década de 1930 sequer sonhava. Entre elas, notadamente, a relevância da “diversidade” em tela e a problemática da “aceitação”, dois temas recorrentes para a audiência contemporânea e que, não raro, acabam sofrendo de excessivo didatismo quando transpostas para os filmes, com resultados bastante irregulares.

Confirmando a hipótese de que a grande indústria consegue se adaptar à transformação do gosto popular, assimilando as preocupações e tensões sociais sem, entretanto, abrir mão de sua essência, Wicked aparece como um produto extremamente equilibrado entre espetáculo e mensagem – quase perfeito, para sermos mais precisos, se levarmos em conta que seu único real descuido é (mais uma vez, porque isso é tendência hoje na maior parte das cinematografias) alongar demais sua duração, quando ele parece ter atingido um ponto ideal, a história está (bem) contada, o clímax emocional foi alcançado, tudo isso uns 20 minutos antes de efetivamente terminar. Terminar? Bem, não exatamente, conforme o espectador verá…

Trama de Wicked consegue ser atual sem soar enfadonha ao mesmo tempo que preserva o encanto do universo original

Um dos maiores acertos de Wicked – o que também o distancia da moralidade algo enfadonha normalmente presente no gênero de fantasia – é subverter as noções de heroísmo e vilania, dotando os personagens principais de uma multidimensionalidade bastante incomum, especialmente num filme deste tamanho e que mira boa parte do público jovem. Ao contrário do que apregoam aqueles que enxergam na arte um mero instrumento de “educação para a vida”, é mais fácil tirar lições a respeito da realidade quando vemos nos personagens na tela qualidades humanas reconhecíveis, e não meras representações de modelos de comportamento a serem imitados.

Seria fácil – e provavelmente tentador – para o roteiro, por outro lado, ceder ao jogo fácil da esquematização politicamente correta, levando-se em conta que um dos temas que ele aborda é o da aceitação do que é diferente. O roteiro não se vende barato, e consegue passar sua mensagem sem que para isso tenha de recorrer à caricatura em excesso. Uma das maiores evidências disso é que os eventuais “vilões” permanecem latentes até o terceiro ato, e mesmo em seu desfecho a ambiguidade em relação a outros personagens se mantém (jogando as tensões para uma segunda parte futura).

O enredo segue os passos de Elphaba (Cynthia Erivo), uma garota de pele verde que acompanha acidentalmente a irmã com necessidade especial, Nessarose (Marissa Bode), à Universidade de Shiz, na Terra de Oz. Lá, ela logo desperta atenção da Madame Morrible (Michelle Yeoh) por seus talentos inexplorados, enquanto oscila entre a rivalidade e a amizade com a mimada Glinda (Ariana Grande).

Enquanto Glinda é obcecada em chamar atenção e se tornar popular, Elphaba enfrenta silenciosamente a zombaria dos outros alunos por causa de sua aparência, até que o desenrolar das atividades dá a ela um papel de destaque – o qual o filme explora de maneira esperta até levar ao desfecho que deixa a porta aberta para a continuação.

Se a ideia de uma estudante que foge do padrão na escola não tem nada de muito novo (bem como a de uma “universidade de magia”, que lembra automaticamente o universo Harry Potter), tanto enredo quanto a direção conseguem levar adiante os conflitos ocasionados pela trama ligeiramente banal com notável elegância. O momento da dança silenciosa, que finalmente une as duas rivais e acontece precisamente no meio da projeção, é puro cinema, uma cena belíssima que vale o ingresso e já tiraria Wicked do meio-termo da produção, elevando o filme a uma categoria acima.

Certamente Cynthia Erivo será mais lembrada pela sua atuação aqui – e ela está muito bem, de fato, embora sua personagem não seja exatamente simpática nem quando vítima dos abusos coletivos – mas seria injusto ignorar o brilho de Ariana Grande, que além de ser excelente cantora, demonstra talento natural para comédia, num pacote encantador.

Wicked surge como um encontro muito feliz entre forma e mensagem, apoiado numa direção segura e sutil (de Jon M. Chu, do também divertido Podres de Ricos), num enredo que consegue ser ácido (por exemplo, quando elabora o tema do autoritarismo na escola, remetendo a perseguições cometidas durante o século XX contra variados grupos sociais, aqui simbolizados pelos animais falantes) e, ao mesmo tempo, encantador. A parte musical tem o padrão de qualidade da Broadway e, embora – como se disse – o filme pudesse durar 20 minutos a menos, as canções não chegam a ser cansativas, contribuindo para a diversão. 

Sim, Hollywood consegue se reinventar, responder a mudança constante das plateias e persistir entregando fantasia numa embalagem caprichada, atenta à vibração do público atual sem perder a essência do espetáculo que é sua marca registrada. O que mais podemos exigir, em 2024, além de uma continuação à altura de um clássico de 1939?

Daniel Moreno

Cineasta, roteirista e colaborador esporádico de publicações na área, diretor do documentário “O Diário de Lidwina” (disponível no Amazon Prime e ClaroTV), entre outros.

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