Psicose e a reinvenção
Psicose é um filme assustador. Quando visto da primeira vez, sua trama absolutamente inesperada, sua fotografia em preto e branco e suas personagens nos fazem sentir um medo atávico, vindo das entranhas de nossa psique. Fora o fato de ser um filme excelente, mítico, que provocou reações histéricas e apaixonadas quando de seu lançamento, o que mais nos interessa aqui não é a análise do filme em termos de conteúdo, mas sim da sua feitura.
O que o filme Hitchcock e o livro que o originou, Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose, de Stephen Rebello, demonstram é uma história fascinante por trás das telas.
Hitchcock vinha de um sucesso estrondoso, Intriga Internacional (North by Northwest, 1959). Mesmo assim, resolveu dar uma guinada na carreira. As motivações podem ser várias. O sucesso de crítica de As diabólicas (Les diaboliques, Henry-Georges Clouzot, 1955), o sucesso de filmes de terror de baixo orçamento, a própria necessidade que tem os grandes artistas de se reinventarem. Este último ponto é o que me interessa. Como disse no quinto parágrafo deste texto, Hitchcock nasceu em um país que tinha um nível de liberdade individual e econômica inimaginável aos dias de hoje. Isto provavelmente estava impregnado em sua cabeça.
Apesar de parecerem coisas distantes, negócios e arte não são estanques. Uma sempre teve relação com a outra, seja por conta de mecenatos, como por conta de pessoas e artistas que buscam lucrar com suas obras, assim como incentivos estatais e subsídios. Enquanto as duas últimas são eivadas por interesses escusos, as outras são regidas pela lei da oferta e procura, e pelo conceito de “destruição criativa”, de Schumpeter. Este diz que o empresário constantemente tem que inovar, a fim de enriquecer e permanecer. Não seria Psicose um perfeito exemplo disto?
Abstraindo um pouco o conceito, quando Hitchcock parte para novos rumos com seu filme, quando Beethoven vende e negocia a sua Missa solemnis a vários editores[1], eles não seriam como empresários (o que Hitchcock efetivamente o era) que tentam inovar num mercado em competição? Muitos críticos comparavam As Diabólicas aos filmes de Hitchcock, e Hitchcock ele mesmo se intrigava dos motivos pelos quais os filmes de terror de baixo orçamento dos anos 1950 conseguiam fazer sucesso[2]. Este conceito de disputa explica muito melhor a dinâmica das sociedades modernas de que a interpretação marxista que usualmente se aplica na análise da arte, como a Escola de Frankfurt.
Partindo destes conceitos, fica mais fácil entender a feitura de Psicose. Hitchcock quer algo novo, surpreendente. “Hitch nunca procurava casualmente ‘alguma coisa diferente’. Ele era incansável”[3]. Acha a história em um livro baseado em um caso real. Porém, a busca pela novidade traz consequências. A principal delas é que é uma história brutal, versando sobre travestismo, complexo de Édipo e tensões sexuais. Mais: Hitchcock sabe que seria um filme dos anos 60, e que isto implicaria em incorporar uma boa dose de erotismo[4]. Na Hollywood da virada dos anos 1960, era pedir muito. Os executivos argumentavam por qual motivo Hitchcock não continuava na mesma linha, com grandes filmes em Technicolor; por que trocar isto por algo tão baixo?[5] O resultado final foi que Hitchcock teve que botar dinheiro do próprio bolso no filme, apenas garantindo que a Paramount o distribuísse. A própria casa em que morava entrou como hipoteca. Era o artista/empresário arriscando alto pela reinvenção.
Fora dos esquemas tradicionais, a saída era fazer o filme por um custo muito menor. Para se ter uma ideia, Intriga Internacional custou US$ 3,3 milhões[6], e Psicose US$ 850 mil[7]. Não há milagres. Para chegar a isto, Hitchcock teve que abrir mão de muita coisa. Para um homem tímido e reservado, acostumado a trabalhar sempre com as mesmas pessoas, a solução foi trabalhar com a equipe que filmava os programas de TV que Hitchcock apresentava. O que não foi fácil, segundo Leonard South, operador de câmera do filme:
Hitchcock era um cara muito assertivo, mas não agressivo. Ele era bondoso demais para magoar os sentimentos de Jack Russell. Ligou para mim dizendo: “Lenny, eles decididamente não me entendem”. Referindo-se ao pessoal da Universal-Revue que só estava acostumado a fazer episódios para a TV. Ele descreveu um movimento de câmera bastante sofisticado que a equipe queria fazer de um jeito que ele considerava totalmente inaceitável. Nós conversamos sobre a tomada literalmente passo a passo para que ele pudesse explicar como fazê-la de forma adequada. No início, a realização de Psicose foi uma luta terrível para ele[8].
1) COOPER, Barry (org.). Beethoven: um compêndio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 131.
2) REBELLO, Stephen. Op. cit. p. 40.
3) Apud REBELLO, Stephen. Op. cit. p. 35.
4) Como bem analisou Roger Corman, o sucesso dos filmes europeus nos EUA se devia ao sexo, e que quando os filmes americanos fizessem isto os primeiros sumiriam. In BISKIND, Peter. Op. cit. p. 141.
5) REBELLO, Stephen. Op. cit. p. 41.
6) Idem. Op. cit. p. 34.
7) CHANDLER, Charlotte. It’s only a movie: Alfred Hitchcock – a personal biography. Londres: Simon&Schuster, 2006 p. 264.
8) Apud REBELLO, Stephen. Op. cit. p. 101.