Se alguém me perguntasse a qualquer momento sobre qual é o estúdio que mais aparenta manter o controle criativo nas mãos dos executivos do que na dos artistas, eu responderia sem pestanejar: a Disney.
Essa era a minha opinião até hoje porque Tico e Teco: Defensores da Lei é a prova concreta que ainda há esperança para o estúdio em soltar as amarras. No caso, esse retorno nada esperado de Tico e Teco é uma das melhores produções do ano, apesar da faixa etária que almeja sofrer com o desconhecimento sobre o produto.
Talvez a Disney tenha se arrependido em aprovar o projeto do modo que ele foi feito e deixou o marketing o mais brando possível para o filme passar despercebido, mas para você, amante de cinema, é um péssimo negócio ignorar a existência desse reboot de Tico e Teco.
De 1943 para 2022
Tico e Teco são velhos de guerra no panteão do catálogo original dos personagens imaginados por Walt Disney. Sempre como coadjuvantes que dificultavam a vida de Pluto ou Pato Donald, os personagens chegaram ao auge da popularidade com a estreia da série Tico e Teco e os Defensores da Lei que figurava nas telinhas da Disney na TV em 1989.
Com 65 episódios, a série rendeu aventuras suficientes para cravar a dupla de esquilinhos como personagens relevantes para o momento atual que a Disney vive desde 2010 com a viagem de nostalgia iniciada em Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton.
No caso, depois de 12 anos de incontáveis remakes e reboots um tanto quanto decepcionantes, o pódio fica justamente para o mais improvável: essa ressurreição insana da franquia Defensores da Lei.
O roteiro de Dan Gregor e Doug Mand cria um universo compartilhado aos moldes de Uma Cilada para Roger Rabbit e Space Jam para jogar absolutamente todos os personagens infantis da Disney e alguns outros estúdios convivendo naturalmente. Com um reaproveitamento e homenagem brilhante ao seriado infantil, a dupla assume que Tico e Teco eram atores de comédia que fizeram sucesso no final dos anos 1980 com a série animada, brincando a todo o momento com a metalinguagem.
A introdução do longa é eficaz para não deixar ninguém perdido ao situar as regras dessa nova diegese, muito mais interessante que a da série animada por sinal. Após o encerramento da terceira temporada e com esperança para renovações, Tico se vê traído por Teco que acaba tentando conseguir uma carreira solo – quase uma dupla sertaneja brasileira.
Com Teco trocando o sucesso garantido por um risco, a dupla se desfaz e logo Defensores da Lei acaba cancelada. Os anos passam e a equipe perde contato. Tico não perdoa mais Teco e se mantém distante.
Agora é um eficaz e solitário corretor de seguros – assim como Beto Pêra em Os Incríveis. Enquanto isso, Teco ainda tenta a sorte em Hollywood, mas vive da nostalgia do tempo do seriado. Para disfarçar a idade, se submete a uma cirurgia plástica que o deixa animado em computação gráfica.
Na cidade, um burburinho acontece por causa de alguns personagens clássicos estarem sumindo misteriosamente como Linguado e o Ursinho Pooh, ressurgindo meses depois trabalhando em cópias animadas fajutas das obras originais que estrelaram. Quando Monterey Jack, um antigo amigo da época da série, liga para Tico pedindo ajuda, ele atende o chamado reencontrando Teco no meio do caminho.
Porém, Monterey some e ambos sabem o que pode acontecer com ele. Com a ajuda da policial Ellie, eles partem em uma aventura perigosa para tentar resgatar o amigo de longa data.
A premissa inteira parece complexa, mas a naturalidade do texto em fluir a narrativa é notável de tão impressionante. Até o ponto em que a história realmente começa a se desenrolar, pode-se dizer que o filme é tímido – ainda que apresentando uma sátira excelente envolvendo o Sonic Feio e os duelos mortais que o Batman passa a enfrentar.
Quando a investigação realmente começa com Tico e Teco visitando uma casa de queijos que nada mais é que uma metáfora muito inteligente envolvendo uma casa de ópio, eu realmente já não acreditava que estava vendo um filme produzido pela Disney. É simplesmente inesperado e ousado demais, mas felizmente o ritmo de boas surpresas trazidas por Gregor e Mand é constante.
A história utiliza da sátira como defesa para esconder o quão tradicional é no sentido da estrutura da narrativa, sendo bastante previsível e fazendo piada com isso. O filme nunca almeja ser mais do que ele realmente é e por conta disso, acaba se tornando especial ao fazer das suas limitações, as melhores qualidades.
Ao mesmo tempo que o espectador é convidado a participar de uma jornada investigativa a la Los Angeles: Cidade Proibida e Chinatown, há um arco relevante envolvendo o drama de rancor entre Tico e Teco até fazer com que os dois retomem a amizade perdida há anos. É eficaz, ainda que nos conformes lembrando bastante as rivalidades iniciais vistas em buddy cops como Máquina Mortífera.
Com uma boa história, bons personagens – incluindo o vilão mais improvável possível em uma revelação inesperada -, o texto também consegue entregar situações e diálogos realmente engraçados. Nem mesmo os gatos de Cats conseguem escapar das paródias de Gregor e Mand.
“Metadesconstrução” em Tico e Teco
Fazer filmes cuja essência é a metalinguagem sempre é um tremendo desafio. Ainda que Defensores da Lei não seja um Mais Estranho que a Ficção ou Quero Ser John Malkovich, é uma obra que trabalha a ideia de múltiplas propriedades muito bem assim como Deadpool e Uma Aventura Lego conseguiram entregar para o público.
Com o melhor time de advogados de entretenimento do mundo, é notável o que a Disney conseguiu ao trazer tantas marcas importantes em um longa de baixo calibre lançado diretamente para o streaming da empresa – apesar de acreditar que esse detalhe foi crucial para o filme ser justamente o que ele é: um experimento para o futuro.
Sob a direção de Akiva Schaffer, a produção impressiona pela qualidade geral. Seja no visual impressionante ao misturar animação 2D, 3D, CGI, stop motion, rotoscopia e até mesmo a bizarra “uncanny valley” que figurou em algumas obras dos anos 2000 como Beowulf e O Expresso Polar, além do live action, é digno de respeito o trabalho de Schaffer em fazer esse pesadelo visual ser algo harmônico e interessante.
Não somente isso, mas como o cineasta se preocupa também com a escala dos elementos em tela, nunca quebrando o realismo envolvendo os minúsculos esquilos protagonistas. Os destaques são vistos também nas piadas visuais excelentes – incluindo a já mencionada casa de queijos inspirada diretamente em Era Uma Vez na América e as sessões opiáceas do protagonista. Outro jogo inteligente envolvem os planos exageradíssimos focando nos dentes bizarros do Sonic Feio – algo tirado de Austin Powers e uma determinada “pinta”.
Ainda assim, insisto em repetir que o mais impressionante é o fato do filme ser um produto da Disney. Não há como medir o nível satírico e do cinismo que o longa traz a todo instante, tornando evidente o quão pobre e lamentável é o cenário criativo hollywoodiano trazendo sequências fajutas e remakes que ninguém quer ver enquanto há ainda boas histórias para contar com personagens esquecidos como Tico e Teco.
Aliás, é importantíssimo frisar que esse filme não é para crianças. Não por conta de seu teor de violência ou linguagem, mas porque ele exige bagagem cultural cinematográfica dos espectadores. Se você não tem um bom repertório – nada extremamente avançado, óbvio -, vai perder algumas das gags mais geniais – uma envolvendo o Seth Rogen que dubla um personagem bizarro é uma das pérolas, inclusive.
Também é sensacional a ideia dos filmes bootlegs que com certeza você já acabou vendo no mundo real. Sem apontar dedos, o longa deixa claro o conhecimento da Disney sobre as cópias fajutas de Carros e Procurando Nemo que tem aos montes no cenário B e C da indústria cinematográfica.
Divertido e tenaz ao extremo, Tico e Teco: Defensores da Lei é o filme mais criativo do ano. É inacreditável que isso venha justamente de uma produção tão tímida em seu marketing que poderia passar despercebida por qualquer um.
Mas por uma grande ironia do destino, é muito provável que a participação do Sonic Feio salve a audiência do filme. Quem sabe ele mesmo não acabe ganhando uma produção bootleg para chamar de sua? Afinal o personagem é sensacional.
Acredite, inesperadamente, serão alguns dos minutos mais divertidos que você vai viver neste ano.
Tico e Teco: Defensores da Lei (Chip ‘n Dale: Rescue Rangers, EUA – 2022)
Direção: Akiva Schaffer
Roteiro: Dan Gregor, Doug Mand
Elenco: Andy Samberg, John Mulaney, KiKi Layne, J.K. Simmons, Eric Bana, Will Arnett, Seth Rogen
Gênero: Ação, Comédia
Duração: 97 min