Crítica | The Walking Dead – Vol. 4: Desejos Carnais

O arco da prisão continua e Robert Kirkman não dos dá espaço para respirar. O que era antes a introdução de sua história se encerrou no momento que chegaram na penitenciária, e agora ele abre espaço para trabalhar as questões que objetivava abordar desde o princípio. A cada edição, o autor nos mostra que efetivamente tudo pode mudar, a situação de relativa segurança na qual o grupo se encontra é frágil, podendo ser abalada por elementos tanto internos quanto externos e a cada acontecimento sentimos o impacto na mente dos personagens, como é o caso de Rick em Desejos Carnais.

Continuando exatamente de onde fomos deixados no número anterior, a 18ª edição nos coloca dentro da problemática do motim dentro da prisão. Kirkman, porém, não perde tempo e mesmo antes de terminar a revista já encerra essa pequena subtrama, inserindo a cada número praticamente uma nova pequena história, em em uma narrativa episódica que muito lembra a estrutura de séries televisivas (as mais ágeis e melhores construídas, é claro) – temos algo similar na segunda metade da quarta e na quinta temporadas da série adaptada.

Dos diferentes focos que temos neste quarto volume, contudo, o que chama mais atenção é o de Rick, que pouco a pouco vai sofrendo com a pressão de liderar o grupo, algo que ele diz fazer porque é o que esperavam dele (e chegaram a pedir logo nos números iniciais). O curioso, porém, é como Kirkman trabalha tal questão, nos mostrando que, de fato, Grimes não consegue largar esse osso. A pressão da liderança está sobre ele, mas em ponto algum ele efetivamente deseja largá-la – quem tem o poder não deseja deixá-lo de lado. Isso ocorre, inclusive após o mental breakdown que o personagem sofre após a tentativa de suicídio de Carol. Com a formação de um conselho – uma tentativa de retomada da democracia – Rick ainda permanece como aquela eminência parda, algo comprovado pelo seu discurso posterior.

E sobre esse mesmo monólogo do personagem podemos observar o amadurecimento do roteiro de Kirkman. Como já disse em outras críticas, já saímos da introdução da história e o já clássico “We are the Walking Dead” representa muito bem isso, justificando o título da história, oferecendo a ele um novo sentido. Os personagens que aqui acompanhamos não mais vivem, apenas sobrevivem – isso pode ser considerado, de fato, uma vida? O agravante é a questão de estarem já todos infectados, então, realmente, estão todos mortos – humanos em estado terminal roubando minutos da morte – viva cada dia como se fosse seu último, a citação surge em uma das páginas e muito bem exemplifica o que o grupo passa, pois, efetivamente, não há um futuro, ninguém virá salvá-los, como o próprio protagonista diz.

No traço há, também, um evidente crescimento – a mudança do artista do primeiro volume para o segundo já não incomoda mais, ao passo que o desenho evidentemente passa a contar com um número maior de detalhes, especialmente nos personagens, que, como nunca, conseguem demonstrar perfeitamente suas emoções. Painéis contam com um maior número de detalhes e estão evidentemente mais presentes. O interessante, porém, é, já tendo lido o que vem depois, saber que a arte ainda melhora muito.

The Walking Dead é um daqueles exemplos raros de obras que parece só ficar melhor a cada número, uma história que consegue nos sugar para dentro dela, nos fazer sentir como eles se sentem, nos angustiar. Desejos Carnais continua a narrativa ágil e angustiante construída por Robert Kirkman, apenas nos deixando com uma ânsia maior do que está por vir nos números subsequentes.

The Walking Dead – Vol. 4: Desejos Carnais (The Walking Dead – Vol. 4: The Heart’s Desire)

Contendo: The Walking Dead # 19 a 24
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Charlie Adlard
Arte-final: Cliff Rathburn
Capas: Tony Moore
Letras: Robert Kirkman
Editora nos EUA: Image Comics
Data original de publicação: junho de 2004 a novembro de 2005
Editora no Brasil: HQM
Data original de publicação no Brasil: outubro de 2009 (encadernado)
Páginas: 148


Crítica | Perdidos no Espaço - 1ª Temporada - Os Robinson voltam com tudo

Crítica | Perdidos no Espaço - 1ª Temporada - Os Robinson voltam com tudo

Os anos 1960 foram generosos com a ficção científica na televisão. Em um período de três anos - de 1963 a 1966 - três emblemáticos seriados do gênero chegaram às televisões americanas e britânicas: Doctor Who (1963), Perdidos no Espaço (1965) e Jornada nas Estrelas (1966). Evidente que a segunda falhou em se manter viva ao longo dos anos, apesar das recorrentes tentativas de remakes ou reboots - incluindo um filme com William Hurt e Gary Oldman que preferimos esquecer - mas, ainda assim, a história da família Robinson conseguiu resistir, como em um sono em criogenia, apenas esperando para ser acordada na hora certa.

Os anos se passam e surge a Netflix, no meio do alvorecer do streaming, possibilitando que inúmeras séries, que não conseguiriam encontrar seu espaço na televisão tradicional (The Handmaid’s Tale dentre elas, então não pensem apenas em seriados de menor qualidade) ganhem vida. Como uma espécie de experimento da CBS, em parceria (para distribuição) da Netflix, Star Trek: Discovery vingou, deixando claro o espaço que a ficção científica nos dias atuais, algo que pode ser observado, em partes, com o sucesso de Stranger Things, por mais que a fórmula seja completamente diferente. Chegou a hora, portanto, de acordar os Robinson e, enfim, eles recebem o tratamento que merecem.

Assim como no seriado original, a nova versão de Perdidos no Espaço gira em torno da família Robinson, formada por Maureen (Molly Parker, a Jackie Sharp de House of Cards), John (Toby Stephens, o eterno Capitão Flint de Black Sails), Will (Maxwell Jenkins), Judy (Taylor Russell) e Penny (Mina Sundwall). Após serem desviados de seu curso, com destino a colônia humana em Alpha Centauri, eles caem em um planeta desconhecido, onde são forçados a sobreviverem em meio aos muito perigos que esse local oferece. A grande diferença entre essa nova versão e a antiga é que existem muitos outros colonos junto dos Robinson, que partiram em direção à essa nova vida em um planeta tão distante.

Estruturalmente, a série não foge muito dos padrões estabelecidos lá atrás com A Família Soprano e The Wire. Embora não assuma o formato procedural (vulgo, caso da semana), cada episódio apresenta uma problemática central a ser resolvida, um novo perigo ou desdobramento de um fato anteriormente introduzido. Enquanto isso, tudo caminha para um destino específico, deixando bem evidente a importância de cada ação tomada pelos personagens centrais. Assim sendo, cada um dos capítulos conta com um início, meio e fim bem definidos, passando uma boa sensação de que testemunhamos uma história fechada em si própria em cada episódio, o que, por si só, já é bastante recompensador, visto que não precisamos esperar horas e horas para que algo de relevante aconteça.

Naturalmente que não estamos falando de algo exageradamente fragmentado - como dito, tudo faz parte de um cenário maior, seja a busca por combustível, ou luta por sobrevivência. Com isso, Perdidos no Espaço desvia dos famigerados fillers - não há um episódio sequer que podemos considerar “inútil” para o cenário geral - tudo cumpre sua função bem clara, seja em termos gerais, como a tentativa de sair do planeta, ou em termos mais íntimos, como a relação entre Maureen e John, que estavam prestes a se divorciar quando saíram da Terra.

Trata-se de um seriado, portanto, que funciona em diversas camadas. A mais superficial é o esforço da família como um todo para retomar o curso para Alpha Centauri. Abaixo disso temos o relacionamento entre o pai e a mãe. Logo mais temos a tentativa de John se reconectar com os filhos e a relação entre cada um deles. Quando outros personagens são introduzidos, como a Dra. Smith (Parker Posey) e Don West (Ignacio Serricchio), o cenário fica ainda mais complexo, mas nunca deixando as coisas excessivamente confusas, já que a estrutura da temporada permite que cada um deles seja trabalhado com mais cuidado em determinados episódios, sem a necessidade de transformar cada capítulo em uma colcha de retalhos.

A estrutura em si, no entanto, não seria capaz de fazer da velha história de um grupo tentando se tornar uma família novamente novidade. Dito isso, a série poderia facilmente cair no cansativo clichê quando se trata da subtrama de Maureen e John. Felizmente, o clichê permanece mas o ‘cansativo’ vai embora, fruto dos esforços de Parker e Stephens, ambos acostumados a viverem personagens mais ‘casca grossa’, que desempenham seus papéis à beira da perfeição. Vemos em Stephens o retrato do arrependimento, um homem que certamente voltaria ao passado se pudesse e que não poupa esforços para se reconectar com sua família. Já Parker demonstra estar no comando 100% do tempo, jamais se deixando abalar e, quando isso acontece, torcemos automaticamente para que o marido esteja lá para dar o necessário suporte. Tudo funciona, claro, graças à inegável química existente entre os dois, que nos faz enxergar ambos como marido e mulher.

Mais importante que isso, no entanto, está a maturidade do roteiro, que evidencia o que é um relacionamento saudável. Desde cedo um ou outro tenta ficar no comando e rapidamente vemos que isso não funciona. Aos poucos tudo vai caminhando em direção a um equilíbrio, mostrando que eles precisam trabalhar juntos e não um dando ordens ao outro, colocando, dessa forma, todos em pé de igualdade, abrindo espaço para o diálogo e não para desavenças. É seguro dizer, pois, que essa primeira temporada funciona como a reparação dessa família, que luta para permanecer unida desde cedo.

Toda essa química e dedicada interpretação por parte de Stephens e Parker, contudo, não nos afastam do que certamente funciona como um dos maiores atrativos de Perdidos no Espaço: a Drª Smith, vivida brilhantemente por Parker Posey. Posey nos entrega um retrato profundamente humano, uma pessoa egoísta, que coloca a si própria acima de todos, ao mesmo tempo que demonstra nítida profundidade, enquanto parece se importar, em dados momentos, com alguns indivíduos em específico. Manipulando todos a seu redor, ela não soa como uma vilã caricata, com planos intrincados. Muito pelo contrário, ela sequer é pintada estritamente como vilã, somente como alguém prestes a fazer uma grande besteira, não muito diferente do Gaius Baltar de Battlestar Galactica (a versão de 2004). Com trejeitos específicos, tiques e uma bela capacidade de mudar da água para o vinho, Posey certamente representa um dos pontos altos do seriado.

Todo esse cenário se complica quando, logo no início, é introduzido o misterioso robô alienígena sem nome, que, após ser salvo por Will Robinson, passa a caminhar sempre ao seu lado, o protegendo de todo e qualquer perigo. O que poderia funcionar como um deus ex machina fixo, sempre pronto para salvar a família, acaba garantindo belas doses de mistério e incerteza e a escolha de fazê-lo praticamente mudo apenas aumenta esse mistério, sempre nos deixando com aquela pergunta: será que ele vai se virar contra todos ali? Algo amplificado pelo seu enigmático ‘rosto’, que diz muito sem dizer, na realidade, nada. O mais impressionante, no entanto, é como, aos poucos, vamos nos afeiçoando a tal ser, mesmo não sabendo nada sobre ele - fruto da palpável relação construída entre ele e Will, mais uma prova do quão humanos são os personagens do seriado.

Já entrando no design de produção, precisamos tirar algo do caminho: o robô claramente foi inspirado (ou copiado) dos sintéticos Geth, de Mass Effect, isso é indiscutível, basta comparar os dois e percebemos a semelhança instantaneamente. Fora isso, todo o restante soa como uma perfeita fusão do imaginário sessentista (as Júpiter levemente arredondadas, lembrando dos discos voadores) com o olhar atual sobre a ficção científica. Os trajes e utensílios utilizados ainda dão a entender que estamos falando de um futuro próximo, parecendo tudo extremamente plausível - uma abordagem surpreendentemente ‘pé no chão’. O único porém é em relação à movimentação do robô, que parece exageradamente travada para algo de tecnologia tão superior à nossa.

No mais, a temporada também tropeça levemente com algumas subtramas desnecessárias, principalmente envolvendo o romance de Penny, ou outros pontos menores. Esses não ocupam muito tempo e não desgastam a história mais do que deveriam, mas acabam criando contratempos, estendendo alguns capítulos um pouco demais. Nada como outras produções da Netflix, mas, também, nada que possamos simplesmente ignorar.

Dito isso, essa temporada inaugural de Perdidos no Espaço não deixa de ser simplesmente obrigatória para fãs de ficção científica. Chegando ‘de fininho’ ao catálogo do canal de streaming essa nova versão da série sessentista mostra que fizeram bem em deixar os Robinson ‘dormindo’ por tanto tempo. Com uma formidável estrutura, atuações mais que dedicadas, funcional e crível design de produção, além de roteiros recompensadores para nós, espectadores, a série certamente mostra a que veio, deixando-nos com um grande cliffhanger que só nos faz querer mais histórias com essa família, que, enfim, recebeu o tratamento que merece.

Perdidos no Espaço – 1ª Temporada (Lost in Space – Season 1 - EUA, 13 de abril de 2018)

Desenvolvimento: Matt Sazama, Burk Sharpless (baseado em criação de Irwin Allen)
Direção: Neil Marshall, Tim Southam, Alice Troughton, Deborah Chow, Vincenzo Natali, Stephen Surjik, David Nutter
Roteiro: Matt Sazama, Burk Sharpless, Zack Estrin, Katherine Collins, Kari Drake, Ed McCardie, Vivian Lee, Daniel McLellan
Elenco: Toby Stephens, Molly Parker, Ignacio Serricchio, Taylor Russell, Maxwell Jenkins, Parker Posey, Mina Sundwall
Duração: 47-65 min. por episódio
Episódios: 10


Crítica | The Walking Dead – Vol. 2: Caminhos Trilhados

Logo no segundo volume de sua obra, Robert Kirkman mostra que sua história, em ponto algum, pretende ser uma de estagnação e mesmice. Após a chocante morte de Shane, que ocorre muito antes nos quadrinhos do que na série, o grupo, agora liderado por Rick Grimes, já muda de lugar e nessa travessia, que para em alguns pontos específicos, inclusive no já famoso do not enter, dead inside, acabam se encontrando com Hershel e sua fazenda, onde o autor introduz mais questionamentos e problemáticas que garantem uma nítida profundidade a The Walking Dead.

O maior e mais óbvio desses, apresentado em um diálogo entre Rick e Hershel, é a situação dos mortos-vivos – são apenas pessoas doentes, ou, de fato, monstros famintos por carne humana? Até então somente encontramos pessoas com opiniões e pontos de vista similares aos do protagonista e seu grupo, agora, contudo, o cenário passa a se expandir e já revela o que mencionei em minha crítica do primeiro volume: o verdadeiro perigo são as pessoas e não os zumbis. Evidentemente ainda estamos em um estágio no qual essas criaturas ainda apresentam um gigantesco risco, mas o simples fato de Carl ter sido baleado por uma outra pessoa comprova o enfoque que Kirkman procura trabalhar em seus quadrinhos.

Tais questões oferecem uma grande dinâmica ao roteiro, que ainda se mantém engajante pelo acréscimo de novos personagens, como Tyrese, cujas visões são constantemente trabalhadas pelo autor. Chega a ser surpreendente como ele consegue não esquecer de cada um dos indivíduos que insere em suas páginas e novos problemas são inseridos através de subtramas com cada um deles. O apocalipse zumbi chegou, mas é interessante observar as pessoas passando pelas mesmas situações que passariam em suas vidas normais, desde a solidão, até a aceitação de um namoro por parte dos pais.

Das mudanças que vemos em Caminhos Trilhados, porém, nenhuma delas soe tão grande quanto a transição da arte de Tony Moore para Cliff Rathburn e Charlie Adlard. Moore continua nas capas, mas seu traçado detalhista e profundo é substituído pelas linhas menos refinadas de Rathburn e Adlard. Essa alteração certamente não cai bem aos olhos inicialmente, mas com o tempo percebemos a melhoria do traço, os personagens passam a ganhar mais detalhes e os fundos, antes brancos, passam a ser preenchidos. O notável é o trabalho de sombras que os artistas realizam e com eles podemos perceber mais nitidamente a condição psicológica de cada personagem. Expressões faciais também ganham o devido destaque e por mais cartunescos que sejam, enxergamos seres humanos nas páginas. Daqui a alguns volumes chega a ser quase impossível não se apaixonar pelo esforço dos dois.

Caminhos Trilhados, portanto, traz muitas mudanças para The Walking Dead, e comprovam o domínio de Kirkman sobre sua obra, que é tão apaixonante quanto em suas primeiras páginas. Não há enrolação e todos os diálogos, por mais longos que sejam, tem um motivo muito específico para estarem ali – cada palavra é escrita com precisão, com um significado a ser trabalhado posteriormente. Para coroar, ao fim do volume, temos o início de um dos melhores arcos dos quadrinhos, colocando o grupo de Rick na famigerada prisão, na qual Kirkman ainda faria muitos estômagos revirarem.

The Walking Dead – Vol. 2: Caminhos Trilhados (The Walking Dead – Vol. 2: Miles Behind Us)

Contendo: The Walking Dead # 7 a 12
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Charlie Adlard
Arte-final: Cliff Rathburn
Capas: Tony Moore
Letras: Robert Kirkman
Editora nos EUA: Image Comics
Data original de publicação: novembro de 2004
Editora no Brasil: HQM
Data original de publicação no Brasil: novembro de 2006 (encadernado)
Páginas: 148


Crítica | The Walking Dead - Vol. 3: Segurança Atrás das Grades

No terceiro volume de sua obra, Robert Kirkman realmente nos mostra do que é capaz, levando uma história de zumbis (que já não era simplesmente isso) para um outro nível. O autor, enfim, deixa mais claro que nunca o real perigo desse universo, explorando o psicológico de seus personagens e introduzindo-nos a um dos melhores arcos de The Walking Dead até então, que termina somente com a saída da prisão. Aqui temos um grau de violência que efetivamente faz nossos estômagos revirarem, Kirkman traz o que há pior na raça humana e coloca nessas 148 páginas e mesmo assim não deixará de nos surpreender no futuro, especialmente com o Governador e Negan bem mais à frente.

Após serem expulsos da fazenda de Hershel, Rick e seu grupo acabam encontrando uma penitenciária, que parece ser o local ideal para transformarem em um local verdadeiramente seguro para morarem. O local, infestado de zumbis, precisa ser limpo, mas, a este ponto, tais criaturas já se revelam ser um problema menor – basta não se distrair que tudo ficará bem. O autor, através de seu protagonista, mais uma vez nos mostra quais as qualidades de cada um dos personagens, sabe explorar a personalidade de cada um e o que, de fato, eles podem fazer de útil – como é o caso de Andrea, como a melhor atiradora do grupo.

O que fica mais evidente, porém, é o perigo que o próprio homem representa. Este é o primeiro volume no qual não vemos sequer uma morte por zumbis – eles ainda são aquela “força da natureza” a ser combatida, mas o simples fato de nenhum perecer pelas mordidas dos seres já prova o ponto de Kirkman. Mesmo Tyreese, acreditado morto após seu frenesi no ginásio da prisão, retorna à salvo (ainda longe de são devido a seu trauma). Essa ausência de mortes por zumbis, contudo, está longe de significar o término do perigo: crianças decepadas, voyeurismo, assédio, suicídio consentido é só um pouco do que encontramos no volume, no qual cada capítulo consegue quebrar a esperança do leitor pouco a pouco.

Mais importante ainda, porém, é a forma como esses acontecimentos moldam Rick. De página em página ele vai largando seu antigo 'eu', o policial justo e ético que vimos lá atrás na primeira edição. O homem duro começa a ser formado, aquele que faz o que precisa ser feito, algo que já temos, de relance, nos momentos finais de Segurança Atrás das Grades. Isso, é claro, sem falar na descoberta que define todo o universo de The Walking Dead: todos estão infectados, que define uma pequena jornada pessoal para Rick, a qual já ilustra perfeitamente o antes e o depois do protagonista.

O que realmente chega a ser surpreendente é a agilidade com a qual Kirkman conduz a sua história e o faz sem, em ponto algum, torná-la inorgânica. Cada evento puxa outro, cada decisão, diálogo, de fato, desempenha um papel narrativo de importância e constrói os diversos personagens presentes na prisão. Informações aparentemente irrelevantes em um momentos são posteriormente resgatadas, garantindo toda a coerência e a coesão da história, além, é claro, de preservar sua fluidez.

Segurança Atrás das Grades é um verdadeiro marco dentro de The Walking Dead e até hoje certamente se configura como um dos melhores volumes da obra de Robert Kirkman. De forma orgânica, ágil e coesa, o autor nos traz uma narrativa de revirar o estômago de qualquer um, ao mesmo tempo que nos faz querer virar página após página em uma ânsia interminável pelo que está por vir – naturalmente um uso preciso de cliffhangers impactantes. Começou o arco da prisão e ainda veremos muita brutalidade e o pior da raça humana até o fim dele.

The Walking Dead – Vol. 3: Segurança Atrás das Grades (The Walking Dead – Vol. 3: Safety Behind Bars)

Contendo: The Walking Dead # 13 a 18
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Charlie Adlard
Arte-final: Cliff Rathburn
Capas: Tony Moore
Letras: Robert Kirkman
Editora nos EUA: Image Comics
Data original de publicação: Outubro de 2004 a Abril de 2005
Editora no Brasil: HQM
Data original de publicação no Brasil: abril de 2008 (encadernado)
Páginas: 148


Review | Ni No Kuni II: Revenant Kingdom - Inovação com Identidade

Review | Ni No Kuni II: Revenant Kingdom - Inovação com Identidade

 

Lançado em 2011, no Japão, e 2013, nos EUA, exclusivamente para o Playstation 3, Ni No Kuni: Wrath of the White Witch provou ser um dos melhores RPGs de sua geração. Em colaboração com o Studio Ghibli, responsável por animações como A Viagem de Chihiro e Castelo Animado, a Level-5 nos trouxe uma aventura que poderia facilmente ser um filme de Hayao Miyazaki, explorando temáticas importantes, como a depressão e o luto, através de uma abordagem fantasiosa. Tendo se tornado um dos games mais bem vendidos do PS3, o anúncio de sua sequência, Ni No Kuni II: Revenant Kingdom, portanto, não veio como grande surpresa.

A continuação, no entanto, não trouxe a parceria entre o estúdio de animação e a desenvolvedora de games de volta, o que acabou levantando as sobrancelhas dos fãs do primeiro jogo. É com grande satisfação que, ao jogar Revenant Kingdom, posso afirmar que o espírito de seu antecessor foi mantido, mesmo com substanciais diferenças tanto no gameplay quanto no storytelling. Assim sendo, antes de mais nada, é importante levar em conta que esse jogo não nasceu na intenção de meramente repetir acertos do passado e sim de inovar - inovação essa que faz falta em muitas outras franquias dos games por aí.

Dois mundos entrelaçados

A trama tem início com Roland, presidente de um país, testemunhando a queda de uma bomba atômica sobre sua cidade. Nesse momento, ele é transportado para um universo diferente e lá encontra o rei Evan Pettiwhisker Tildrum, um jovem garoto, com orelhas e rabo de gato, que está prestes a ter seu trono usurpado pelo seu conselheiro. Após o golpe de Estado, ambos se aliam para fugir da capital Ding Dong Dell e, após conhecer melhor Evan, Roland decide permanecer nesse diferente mundo, ajudando o rei a construir um novo reino e a unir todos através de seus ideais de paz.

De imediato fica bem claro que a temática central de Revenant Kingdom não é tão pesada quanto a de seu antecessor, tampouco tão intimista. Toda a história praticamente gira em torno da construção desse novo reino e Evan o faz para ajudar o mundo e não se tornar governante novamente. Há uma nítida inocência em suas ações, mas, de maneira impressionante, o texto constrói essa inocência sem que ela soe fantasiosa demais, sendo, portanto, mais utópico do que ingênuo. Evan é a representação do perfeito governante, alguém que se preocupa plenamente com seu povo e sua aliança/ amizade com Roland claramente delineia a típica jornada do herói, ainda que a figura do mentor seja distribuída por outros personagens.

O problema dessa falta de intimismo da história é que custa a sermos, de fato, fisgados por ela. Não conhecemos ou sequer entendemos Evan completamente para, de fato, nos importarmos com sua trajetória. Mesmo Roland é mantido na superficialidade por bastante tempo, gerando, inclusive, um estranhamento inicial, quando ele, sem mais nem menos, decide ficar naquele mundo. Claro que entendemos isso como reação ao seu país ter sido explodido, mas faltam diálogos que abordem essa questão. Somente com algumas horas de jogo que essa trama começa, enfim, a andar e permanecemos presos à construção do novo reino em si.

Não ajuda, também, o fato de muitos personagens jogáveis serem introduzidos logo cedo, sem que possamos, de fato, conhecer cada um deles. Logo nas primeiras horas de jogo mais três são adicionados à equipe, somente para serem pouco explorados logo após. O cenário vai se alterando conforme progredimos, mas, como dito antes, custa mais a mergulharmos na narrativa, o que pode tornar as horas iniciais de Ni No Kuni II um tanto arrastadas, fazendo pouco para prender o jogador, que, ao mesmo tempo, tem de se habituar com as muitas novas mecânicas.

Uma jornada com altos e baixos

Já entrando nessas mecânicas do game, é preciso salientar que, de início, tudo pode parecer bastante esmagador - muitas coisas são apresentadas de uma vez, de maneira não muito didática, apoiando-se demais em tutoriais em forma de texto que pulam na tela, ao invés de algo mais intuitivo. Assim como a história, portanto, requer uma certa dedicação por parte do jogador para podermos usufruir do game em sua plenitude. A falta de uma U.I. mais esclarecedora faz falta, especialmente aos e jogar no teclado e mouse, nos forçando a depender da tela de opções para nos lembrar o que cada botão faz. Felizmente, quando nos habituamos, tais problemas desaparecem, nos deixando com uma interface bem limpa e bonita de se ver em uma clara preocupação com a simplicidade.

Por falar de simplicidade, o sistema de combate, que adota algumas características do primeiro game, mas segue por um caminho bastante diferente, tenta justamente criar uma experiência simples, porém tática. Funcionando completamente em tempo real, os personagens (controlamos apenas um por vez) seguem nossos comandos imediatamente. Podemos realizar ataques fracos, fortes, esquivar, defender ou usar uma das quatro habilidades especiais de cada personagem. Como todo bom RPG, cada oponente pede uma estratégia diferente e devemos levar isso em conta em cada encontro, tornando os combates de Revenant Kingdom bastante dinâmicos e surpreendentemente fáceis de se entender, por mais que muitos elementos estejam em nosso campo de visão.

E quais elementos são esses? Para começar, os outros dois membros da equipe (sempre três por vez) também lutam, em tempo real, ao nosso lado, fazendo uso de suas habilidades e ataques normais como se fossem outros jogadores. Além disso, pequenas criaturas, conhecidas como Higgledies, adquiridas ao longo do game, nos ajudam, seja através de curas ou outras magias. Por fim, temos os inimigos em si e, na maior parte dos casos, muitos deles preenchem a tela, nos forçando a prestar atenção em tudo que ocorre ao nosso redor.

Trata-se de uma mecânica bastante fluida e prazerosa, cujo único defeito é a exagerada facilidade da esmagadora maioria das lutas. Ainda que certos oponentes representem desafios maiores (em especial algumas criaturas com uma aura roxa em volta delas), a maior parte deles pode ser derrotada apenas clicando o botão do ataque normal, jogando pela janela todo o cuidado em se desenvolver esse excelente sistema de batalha. Essa falta de dificuldade acaba tornando o jogo mais monótono nas lutas, fazendo com que procuremos evitá-las, o que certamente pesa dentro de um RPG, considerando que é preciso subir em níveis para conseguirmos acessar certos desafios.

Ao menos, cada encontro traz suas devidas recompensas, incluindo um bom sistema de loot, com peças de equipamento caindo de cada inimigo derrotado, o que garante a necessária motivação para continuarmos batalhando, por mais que elas nos enjoem momentaneamente. Permanecemos, pois, em um eterno vai-e-vem, com o jogo praticamente nos forçando a tirar certas pausas a fim de renovar nosso interesse. Assim sendo, foi particularmente difícil para mim dedicar horas e mais horas seguidas, de maneira ininterrupta, a Ni No Kuni II, exatamente o contrário de seu antecessor, que nos fazia mergulhar de cabeça.

Criando um reino

Felizmente há muito mais a se fazer em Revenant Kingdom do que apenas partir de luta em luta. Passadas algumas horas de jogo somos introduzidos à mecânica de construção de reino, que nos permite construir lojas, locais de pesquisa e mais no novo reino de Evan, nos garantindo mais recursos, habilidades, itens melhorados e mais. Alguns desses locais permitem que pesquisemos melhorias aos personagens ou que melhores equipamentos sejam forjados, pesquisas essas que ocorrem ao longo de horas ou minutos de jogo (similarmente a Clash of Clans) - com esse elemento ‘extra’, que dialoga diretamente com a trama do game, sentimos como se mais que apenas nossos personagens cresçam, aumentando aquele envolvimento tão necessário e ausente nas horas iniciais. Devo dizer que é bastante recompensador ver o reino tomando forma e se tornando uma nação grande e cheia de pessoas.

Por sinal, essas pessoas são convidadas ao local pelo próprio jogador e devem ser colocadas em lojas, fazendas ou afins de acordo com suas habilidades. Para conseguí-las, precisamos realizar as muitas missões secundárias do jogo. Infelizmente, muitas dessas se resumem a coletar um item específico ou matar um monstro, não contando com a profundidade de outras obras da geração atual, que servem como divisores de água (vide The Witcher 3). Assim sendo, por mais que a recompensa seja atrativa, pode se tornar um tanto quanto cansativo realizar o mesmo tipo de missão repetidas vezes.

Por fim, intrinsecamente ligado à mecânica de construção de reinos, temos os combates entre exércitos, que tira algumas páginas de Total War, fazendo que controlemos até quatro unidades, unidas, com Evan no centro, e batalhemos contra outros pequenos exércitos inimigos. Essa parte do game funciona praticamente como um minigame, mas as recompensas diretamente afetam o restante do game e ajuda a passar a sensação de que realmente existe muita coisa a se fazer em Ni No Kuni II. O mais impressionante é como, mesmo sendo diferente de praticamente todo o resto do jogo, isso funciona, ainda que passe mais a impressão de ser um passatempo divertido do que algo efetivamente importante para o desenvolvimento dos personagens.

Ghibli sem ser Ghibli

Voltamos, então, à questão do jogo não contar mais com a participação do Studio Ghibli em sua concepção, o que quer dizer que não mais temos as fantásticas cutscenes em animação tradicional, sendo tudo substituído pelos gráficos em cel-shading que aparecem nas horas de gameplay em si. Claro que isso pode ser visto como um passo para trás, quando comparado ao original, mas o design de personagens de Yoshiyuki Momose mais que dá conta do recado, mantendo aquele visual típico do estúdio japonês de animação. De fato, esse é um game que parece ser feito pelo Ghibli.

Os já citados gráficos em cel-shading, claro, permanecem como um grande acerto e nos passam a impressão de estarmos diante de um anime, não muito diferente do que foi feito em The Legend of Zelda: The Wind Waker há tantos anos atrás. Infelizmente, esse cuidado com o design dos personagens é desperdiçado no mundo aberto, fora de cidades, canyons ou florestas, no qual a câmera se distancia e vemos uma versão “chibi” dos personagens. Em uma época que já testemunhamos games como Final Fantasy XV, isso soa como um grande retrocesso, ainda que traga de volta memórias dos velhos e saudosos JRPGs do NES, SNES ou Playstation.

Quando a câmera se aproxima, no entanto, o resultado não poderia ser melhor, com cenários bem detalhados e movimentação fluida dos personagens, com muitos elementos se mexendo ao mesmo tempo, fazendo bom uso das capacidades do hardware da geração atual. Assim sendo, na maior parte dos casos, Revenant Kingdom é um game belo de se ver, por mais que pudesse ter ousado mais na perspectiva do overworld, que, por sinal, nos traz de volta aos velhos cortes para cenários de batalha, mais um resquício de suas origens JRPG.

Ao menos, independente de qual imagem está diante de nós, podemos contemplar as belas composições de Joe Hisaishi, que também trabalhou no primeiro game e criou inúmeras das trilhas do Studio Ghibli, incluindo os memoráveis temas de Castelo Animado. Não há, portanto, como não acreditar nessa construção da Level-5, que soube muito bem contornar a ausência da colaboração do estúdio japonês de animação.

Os Riscos da Inovação

Após muitas horas nesse mundo de Ni No Kuni II: Revenant Kingdom fica bastante claro que todos os seus deslizes foram fruto da tentativa de inovação por parte dos desenvolvedores, que não queriam entregar apenas mais do mesmo - o que, por si só, já é algo louvável. Mesmo com esses tropeços, temos aqui uma obra que merece nossa atenção - ela está longe de ser perfeita, mas sabe recobrar o espírito dos velhos JRPGs, enquanto caminha por uma nova direção, nos oferecendo um sólido sistema de combate, ainda que muito fácil, acompanhado de inúmeras mecânicas novas que garantem horas e mais horas de diversão.

Mesmo com um início mais lento e sendo particularmente difícil mergulhar no jogo por horas a fio, ele sempre nos deixa com aquela vontade de retornar a ele, seja graças à suas mecânicas de construção de reino ou pela sua história propriamente dita, que claramente se torna mais atrativa após algumas horas. Pode não estar no mesmo patamar de seu antecessor, mas definitivamente conta com identidade própria e, no fim, nos deixa ansiando por mais Ni No Kuni.

Prós: Sólido sistema de combate, boa história, ótimos gráficos, muito a se fazer, ótima trilha sonora.

Contras: demora a nos atrair de verdade, confuso no início, muito fácil.

Agradecemos pela cópia gentilmente cedida pela Bandai Namco para a realização dessa análise

Ni No Kuni II: Revenant Kingdom (Ni No Kuni II - Revenant Kingdom, Japão – 2018)
Desenvolvedora:
Level-5

Distribuidora: Bandai Namco
Gênero: RPG de ação
Plataformas: PS4, Xbox One, PC