Crítica | The Walking Dead – Vol. 4: Desejos Carnais
O arco da prisão continua e Robert Kirkman não dos dá espaço para respirar. O que era antes a introdução de sua história se encerrou no momento que chegaram na penitenciária, e agora ele abre espaço para trabalhar as questões que objetivava abordar desde o princípio. A cada edição, o autor nos mostra que efetivamente tudo pode mudar, a situação de relativa segurança na qual o grupo se encontra é frágil, podendo ser abalada por elementos tanto internos quanto externos e a cada acontecimento sentimos o impacto na mente dos personagens, como é o caso de Rick em Desejos Carnais.
Continuando exatamente de onde fomos deixados no número anterior, a 18ª edição nos coloca dentro da problemática do motim dentro da prisão. Kirkman, porém, não perde tempo e mesmo antes de terminar a revista já encerra essa pequena subtrama, inserindo a cada número praticamente uma nova pequena história, em em uma narrativa episódica que muito lembra a estrutura de séries televisivas (as mais ágeis e melhores construídas, é claro) – temos algo similar na segunda metade da quarta e na quinta temporadas da série adaptada.
Dos diferentes focos que temos neste quarto volume, contudo, o que chama mais atenção é o de Rick, que pouco a pouco vai sofrendo com a pressão de liderar o grupo, algo que ele diz fazer porque é o que esperavam dele (e chegaram a pedir logo nos números iniciais). O curioso, porém, é como Kirkman trabalha tal questão, nos mostrando que, de fato, Grimes não consegue largar esse osso. A pressão da liderança está sobre ele, mas em ponto algum ele efetivamente deseja largá-la – quem tem o poder não deseja deixá-lo de lado. Isso ocorre, inclusive após o mental breakdown que o personagem sofre após a tentativa de suicídio de Carol. Com a formação de um conselho – uma tentativa de retomada da democracia – Rick ainda permanece como aquela eminência parda, algo comprovado pelo seu discurso posterior.
E sobre esse mesmo monólogo do personagem podemos observar o amadurecimento do roteiro de Kirkman. Como já disse em outras críticas, já saímos da introdução da história e o já clássico “We are the Walking Dead” representa muito bem isso, justificando o título da história, oferecendo a ele um novo sentido. Os personagens que aqui acompanhamos não mais vivem, apenas sobrevivem – isso pode ser considerado, de fato, uma vida? O agravante é a questão de estarem já todos infectados, então, realmente, estão todos mortos – humanos em estado terminal roubando minutos da morte – viva cada dia como se fosse seu último, a citação surge em uma das páginas e muito bem exemplifica o que o grupo passa, pois, efetivamente, não há um futuro, ninguém virá salvá-los, como o próprio protagonista diz.
No traço há, também, um evidente crescimento – a mudança do artista do primeiro volume para o segundo já não incomoda mais, ao passo que o desenho evidentemente passa a contar com um número maior de detalhes, especialmente nos personagens, que, como nunca, conseguem demonstrar perfeitamente suas emoções. Painéis contam com um maior número de detalhes e estão evidentemente mais presentes. O interessante, porém, é, já tendo lido o que vem depois, saber que a arte ainda melhora muito.
The Walking Dead é um daqueles exemplos raros de obras que parece só ficar melhor a cada número, uma história que consegue nos sugar para dentro dela, nos fazer sentir como eles se sentem, nos angustiar. Desejos Carnais continua a narrativa ágil e angustiante construída por Robert Kirkman, apenas nos deixando com uma ânsia maior do que está por vir nos números subsequentes.
The Walking Dead – Vol. 4: Desejos Carnais (The Walking Dead – Vol. 4: The Heart’s Desire)
Contendo: The Walking Dead # 19 a 24
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Charlie Adlard
Arte-final: Cliff Rathburn
Capas: Tony Moore
Letras: Robert Kirkman
Editora nos EUA: Image Comics
Data original de publicação: junho de 2004 a novembro de 2005
Editora no Brasil: HQM
Data original de publicação no Brasil: outubro de 2009 (encadernado)
Páginas: 148
Crítica | Redemoinho - A Subjetividade de Villeneuve
As histórias criadas pelo realizador Denis Villeneuve são conhecidas pela forma íntima como ele aborda o psicológico de seus personagens e, no início de sua carreira, esse intimismo é acompanhado por narrativa subjetivas, que fazem as sensações de seus protagonistas transbordarem para as imagens as quais acompanhamos. Esse aspecto pode ser observado com clareza tanto em 32 de Agosto na Terra, primeiro longa dirigido unicamente por ele, quanto em Redemoinho, esse, sim mergulhando verdadeiramente na mente da personagem central, estabelecendo uma narrativa não linear que não deve ser apenas vista, como interpretada.
Narrada por um peixe (isso mesmo) em uma espécie de abatedouro, escuro e sangrento, o filme nos conta a história de Bibiane (Marie-Josée Croze), uma jovem de vinte e cinco anos, dona de três boutiques de moda, assolada pela depressão, fruto das fortes expectativas que recaem sobre ela em razão da fama de sua mãe. Ao realizar seu primeiro aborto, a protagonista sequer consegue ir ao trabalho e força a si mesma a sair para festas a fim de se manter ocupada. Certa noite ela acaba atropelando um senhor, acontecimento que leva à sua morte. Tomada pela culpa, sua depressão piora ainda mais, colocando-a em um dilema sobre o que fazer em relação a seu crime.
O roteiro de Villeneuve nos pega de surpresa logo nos minutos inicias, quando nos deparamos com o peixe narrador da história, que é constantemente abatido e substituído por outro, que continua a narração, simbolizando a mortalidade da própria protagonista, seus pensamentos suicidas e, é claro, a própria morte do sujeito atropelado. É criada a sensação de confusão no espectador, que perdura durante todo o filme, graças à narrativa não-linear criada pelo diretor, intercalando, ocasionalmente, eventos do presente e futuro ora como mergulho nas intenções da protagonista, ora para representar os efeitos de sua condição nas pessoas a seu redor.
O redemoinho do título, então, torna-se visível ao passo que enxergamos como as pessoas que cerceiam a personagem central são influenciadas pelo estado de depressão da protagonista. A própria morte do senhor atropelado é fruto de sua desolação perante a vida e que acaba afetando o filho da vítima, que vai ao Canadá para recolher as cinzas do pai. O texto foge ainda mais do óbvio e mostra a relação amorosa, inesperada, entre Bibiane e esse personagem, ponto que funciona perfeitamente para expandir o sentimento de culpa dessa mulher, desenvolvendo uma crescente tensão, que nos leva gradualmente ao formidável clímax da obra.
Por outro lado, essa imersão na mente da protagonista funciona como uma faca de dois gumes, visto que, em certos momentos, a não-linearidade da narrativa meramente faz certos trechos serem repetidos, sem verdadeiramente acrescentar em nada. Esse ponto traz leves rupturas no ritmo do longa, que também sofre com as breves sequências dos peixes sendo mortos – essas poderiam, facilmente, ter permanecido no início e fim do filme, transmitindo a mesma ideia, sem fragmentar a trama. O mesmo vale para as pontuais cartelas de narração, ambas utilizadas para explicitar os pensamentos de Bibiane – desses somente um, realmente, chega a ter sua importância bem definida.
Felizmente, a atuação de Marie-Josée Croze mais do que é capaz de nos distanciar desses deslizes, os quais podem ser enxergados como experimentalismos do diretor. A atriz encarna de maneira real e profunda sua personagem, tornando sua depressão palpável e impactante, sem exageros, soando como se, de fato, estivéssemos diante de uma pessoa real, tomada pela impulsividade, que, muitas vezes, leva a cometer ações impensadas e prejudiciais. Temos aqui o retrato vívido da inconstância, que nos leva a nos aproximar dela, ansiando para que, de alguma forma, consiga se livrar de sua condição.
Esse estado frenético do ser, que oscila entre a felicidade, tristeza, profunda dor, dentre milhares de outras sensações é perfeitamente representada pela direção de Villeneuve, que opta por constantes planos em movimento, com a câmera, ora fixa em um eixo, ora na mão, transmitindo toda a instabilidade da personagem. Mesmo as sequências mais paradas em termos de ação dos personagens são exibidas de forma dinâmica, com a imagem nos colocando ao lado da protagonista psicologicamente falando. As bruscas transições entre sequências, então, passam a ser enxergadas como a representação de sua vida que perdera o rumo, ao passo que somos levados de lugar a outro como se a personagem estivesse, grande parte do tempo, em uma espécie de “piloto automático”.
Mais uma vez, portanto, Denis Villeneuve permite que mergulhemos na psique de seus personagens, criando uma narrativa extremamente subjetiva, que transmite todas as sensações vividas pela sua protagonista. Mesmo com as ocasionais rupturas no ritmo, esse é um filme que nos mantém imersos, a tal ponto que a crescente tensão cria uma espécie de prisão, da qual somente escapamos ao término da projeção. Como sempre, Villeneuve entrega não apenas um filme, mas uma experiência cinematográfica.
Redemoinho (Maelström - Canadá, 2000)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denis Villeneuve
Elenco: Marie-Josée Croze, Jean-Nicolas Verreault, Stephanie Morgenstern, Pierre Lebeau, Marie-France Lambert, Kliment Denchev
Gênero: Drama
Duração: 87 min.
Crítica | A Bela Adormecida - O Último Conto de Fadas de Walt Disney
O último filme baseado em contos de fadas produzido por Walt Disney adapta o conto homônimo de Charles Perrault. A Bela Adormecida foi o primeiro longa-metragem do estúdio a ser rodado em Super Technirama 70, um dos processos de filmagem em Widescreen e também o último a ter sido colorido à mão. A obra, contudo, se destaca dentre os clássicos da Disney por diversos outros motivos, adotando não só uma narrativa diferenciada como pelo estilo de animação em si.
Abrem os créditos iniciais, com fontes em estilo medieval e somos apresentados a Once Upon a Dream, um arranjo da valsa de Tchaikovsky, já nos introduzindo ao ritmo que persevera durante o longa-metragem. Após uma breve introdução, somos levados à festa de nascimento da princesa Aurora. Cidadãos de todo o reino, ricos ou pobres, seguem até o castelo ao som de Hail to The Princess Aurora, fazendo uma clara menção ao trovadorismo.
A idade média, porém, não se limita à música, aparecendo claramente no estilo da animação, que utiliza traços mais estilizados, fazendo uso de camadas bidimensionais sobrepostas. A intenção de Disney em aproximar seus planos à arte medieval é óbvia e bem sucedida em todos os aspectos. Não só a retratação de cada personagem, como os cenários e composição de cores nos remetem ao período em questão, imergindo-nos em sua distinta narrativa.
Aliando-se a tais diferenças na imagem, a trilha sonora de A Bela Adormecida acompanha a imagem em todos os momentos, ressaltando cada mudança de tom do roteiro. A música não diegética somente é interrompida durante algumas canções de personagens, enquanto que, em outras, se mantém no fundo. Devido a este fator, o ritmo da obra rapidamente se molda em uma espécie de balé, com a harmonia musical passando para os movimentos dos personagens que parecem seguir sutis coreografias em cada sequência.
Voltando para a história, já estamos no castelo do Rei Stefan, pai de Aurora. Vemos a aparição das três fadas, figuras importantes que compõem o perfeito contraponto para a imponente vilã que dá as caras na mesma cena. Enquanto Flora, Fauna e Primavera contam com cores vivas e aparência mais cheia, Malévola é composta em tons escuros de verde, roxo e, é claro, o preto, de mesma importância. Ainda, temos seus traços mais finos que denotam a frieza da figura. Disney constrói um de seus mais icônicos vilões não trazendo uma figura habitual da bruxa, que utiliza a feiura a fim de ressaltar sua maldade. Ao invés disso ganhamos uma personagem com traços mais belos que se convertem em maldade pelas próprias expressões faciais aliadas ao ótimo trabalho de dublagem de Eleanor Audley. Ao fim da sequência, a famosa maldição dá as caras, abrindo portas para a progressão da trama.
O contraste entre o bem e o mal também é focado pela arte de cada cenário. Enquanto vemos castelos majestosos de um lado, temos ruínas, corredores e escadarias tortuosas de outro. Mais uma vez o trabalho de cor se destaca, utilizando, na fortaleza de Malévola, tons de verde escuro, que iluminam de forma fantasmagórica as paredes cinza escuras. Vemos o mesmo na bem construída sequência de Aurora caindo em seu sono profundo, que transmite uma nítida tensão através do transe da princesa em conjunto com o jogo de luzes e melodia dramática.
A fragilidade exposta nessa cena, contudo, não é evidente nas aparições anteriores da personagem. Apesar de, ainda estar à mercê da maldição de Malévola, Aurora tem sua força destacada pela voz de Mary Costa, em especial na performance de Once Upon a Dream, na floresta. Tal sequência conta com o mérito de nos fazer acreditar em uma paixão que, de fato, se desenrola em poucos instantes. A dança na cena retoma a valsa de Tchaikovsky, trazendo a mesma função de uma elipse temporal.
Neste ponto, temos a entrada do importante personagem Philip, que age como um distinto ponto de identificação do público masculino. Não se limitando a uma ponta no filme, o príncipe é a principal figura do inesquecível clímax da história, que junta elementos dos contos de cavalaria e até mesmo mitologia, se desenrolando em uma única sequência de tirar o fôlego. É a penúltima parte de uma sinfonia de 75 minutos que teria seu desfecho logo em seguida, com o despertar da princesa.
A Bela Adormecida funciona como uma obra musical única, trazendo uma narrativa fluida, decorrente de sua harmonia audiovisual. A aposta de Walt em um visual destoante de suas obras anteriores é certeira e nos remete, com exatidão, ao período medieval. No fim, ganhamos uma obra repleta de romance, heroísmo e tensão, trazendo uma das mais inesquecíveis melodias da música clássica e a transformando na icônica Once Upon a Dream, que, por muito tempo, permanecerá na mente do espectador.
A Bela Adormecida (Sleeping Beauty - EUA, 1959)
Direção: Clyde Geronimi
Roteiro: Erdman Penner, Joe Rinaldi, Winston Hibler, Bill Peet, Ted Sears, Ralph Wright, Milt Banta (baseado no conto de Charles Perrault)
Elenco: Mary Costa, Bill Shirley, Eleanor Audley, Verna Felton, Barbara Luddy, Barbara Jo Allen, Taylor Holmes, Bill Thompson
Gênero: Animação
Duração: 75 min.
Crítica | Perdidos no Espaço - 1ª Temporada - Os Robinson voltam com tudo
Os anos 1960 foram generosos com a ficção científica na televisão. Em um período de três anos - de 1963 a 1966 - três emblemáticos seriados do gênero chegaram às televisões americanas e britânicas: Doctor Who (1963), Perdidos no Espaço (1965) e Jornada nas Estrelas (1966). Evidente que a segunda falhou em se manter viva ao longo dos anos, apesar das recorrentes tentativas de remakes ou reboots - incluindo um filme com William Hurt e Gary Oldman que preferimos esquecer - mas, ainda assim, a história da família Robinson conseguiu resistir, como em um sono em criogenia, apenas esperando para ser acordada na hora certa.
Os anos se passam e surge a Netflix, no meio do alvorecer do streaming, possibilitando que inúmeras séries, que não conseguiriam encontrar seu espaço na televisão tradicional (The Handmaid’s Tale dentre elas, então não pensem apenas em seriados de menor qualidade) ganhem vida. Como uma espécie de experimento da CBS, em parceria (para distribuição) da Netflix, Star Trek: Discovery vingou, deixando claro o espaço que a ficção científica nos dias atuais, algo que pode ser observado, em partes, com o sucesso de Stranger Things, por mais que a fórmula seja completamente diferente. Chegou a hora, portanto, de acordar os Robinson e, enfim, eles recebem o tratamento que merecem.
Assim como no seriado original, a nova versão de Perdidos no Espaço gira em torno da família Robinson, formada por Maureen (Molly Parker, a Jackie Sharp de House of Cards), John (Toby Stephens, o eterno Capitão Flint de Black Sails), Will (Maxwell Jenkins), Judy (Taylor Russell) e Penny (Mina Sundwall). Após serem desviados de seu curso, com destino a colônia humana em Alpha Centauri, eles caem em um planeta desconhecido, onde são forçados a sobreviverem em meio aos muito perigos que esse local oferece. A grande diferença entre essa nova versão e a antiga é que existem muitos outros colonos junto dos Robinson, que partiram em direção à essa nova vida em um planeta tão distante.
Estruturalmente, a série não foge muito dos padrões estabelecidos lá atrás com A Família Soprano e The Wire. Embora não assuma o formato procedural (vulgo, caso da semana), cada episódio apresenta uma problemática central a ser resolvida, um novo perigo ou desdobramento de um fato anteriormente introduzido. Enquanto isso, tudo caminha para um destino específico, deixando bem evidente a importância de cada ação tomada pelos personagens centrais. Assim sendo, cada um dos capítulos conta com um início, meio e fim bem definidos, passando uma boa sensação de que testemunhamos uma história fechada em si própria em cada episódio, o que, por si só, já é bastante recompensador, visto que não precisamos esperar horas e horas para que algo de relevante aconteça.
Naturalmente que não estamos falando de algo exageradamente fragmentado - como dito, tudo faz parte de um cenário maior, seja a busca por combustível, ou luta por sobrevivência. Com isso, Perdidos no Espaço desvia dos famigerados fillers - não há um episódio sequer que podemos considerar “inútil” para o cenário geral - tudo cumpre sua função bem clara, seja em termos gerais, como a tentativa de sair do planeta, ou em termos mais íntimos, como a relação entre Maureen e John, que estavam prestes a se divorciar quando saíram da Terra.
Trata-se de um seriado, portanto, que funciona em diversas camadas. A mais superficial é o esforço da família como um todo para retomar o curso para Alpha Centauri. Abaixo disso temos o relacionamento entre o pai e a mãe. Logo mais temos a tentativa de John se reconectar com os filhos e a relação entre cada um deles. Quando outros personagens são introduzidos, como a Dra. Smith (Parker Posey) e Don West (Ignacio Serricchio), o cenário fica ainda mais complexo, mas nunca deixando as coisas excessivamente confusas, já que a estrutura da temporada permite que cada um deles seja trabalhado com mais cuidado em determinados episódios, sem a necessidade de transformar cada capítulo em uma colcha de retalhos.
A estrutura em si, no entanto, não seria capaz de fazer da velha história de um grupo tentando se tornar uma família novamente novidade. Dito isso, a série poderia facilmente cair no cansativo clichê quando se trata da subtrama de Maureen e John. Felizmente, o clichê permanece mas o ‘cansativo’ vai embora, fruto dos esforços de Parker e Stephens, ambos acostumados a viverem personagens mais ‘casca grossa’, que desempenham seus papéis à beira da perfeição. Vemos em Stephens o retrato do arrependimento, um homem que certamente voltaria ao passado se pudesse e que não poupa esforços para se reconectar com sua família. Já Parker demonstra estar no comando 100% do tempo, jamais se deixando abalar e, quando isso acontece, torcemos automaticamente para que o marido esteja lá para dar o necessário suporte. Tudo funciona, claro, graças à inegável química existente entre os dois, que nos faz enxergar ambos como marido e mulher.
Mais importante que isso, no entanto, está a maturidade do roteiro, que evidencia o que é um relacionamento saudável. Desde cedo um ou outro tenta ficar no comando e rapidamente vemos que isso não funciona. Aos poucos tudo vai caminhando em direção a um equilíbrio, mostrando que eles precisam trabalhar juntos e não um dando ordens ao outro, colocando, dessa forma, todos em pé de igualdade, abrindo espaço para o diálogo e não para desavenças. É seguro dizer, pois, que essa primeira temporada funciona como a reparação dessa família, que luta para permanecer unida desde cedo.
Toda essa química e dedicada interpretação por parte de Stephens e Parker, contudo, não nos afastam do que certamente funciona como um dos maiores atrativos de Perdidos no Espaço: a Drª Smith, vivida brilhantemente por Parker Posey. Posey nos entrega um retrato profundamente humano, uma pessoa egoísta, que coloca a si própria acima de todos, ao mesmo tempo que demonstra nítida profundidade, enquanto parece se importar, em dados momentos, com alguns indivíduos em específico. Manipulando todos a seu redor, ela não soa como uma vilã caricata, com planos intrincados. Muito pelo contrário, ela sequer é pintada estritamente como vilã, somente como alguém prestes a fazer uma grande besteira, não muito diferente do Gaius Baltar de Battlestar Galactica (a versão de 2004). Com trejeitos específicos, tiques e uma bela capacidade de mudar da água para o vinho, Posey certamente representa um dos pontos altos do seriado.
Todo esse cenário se complica quando, logo no início, é introduzido o misterioso robô alienígena sem nome, que, após ser salvo por Will Robinson, passa a caminhar sempre ao seu lado, o protegendo de todo e qualquer perigo. O que poderia funcionar como um deus ex machina fixo, sempre pronto para salvar a família, acaba garantindo belas doses de mistério e incerteza e a escolha de fazê-lo praticamente mudo apenas aumenta esse mistério, sempre nos deixando com aquela pergunta: será que ele vai se virar contra todos ali? Algo amplificado pelo seu enigmático ‘rosto’, que diz muito sem dizer, na realidade, nada. O mais impressionante, no entanto, é como, aos poucos, vamos nos afeiçoando a tal ser, mesmo não sabendo nada sobre ele - fruto da palpável relação construída entre ele e Will, mais uma prova do quão humanos são os personagens do seriado.
Já entrando no design de produção, precisamos tirar algo do caminho: o robô claramente foi inspirado (ou copiado) dos sintéticos Geth, de Mass Effect, isso é indiscutível, basta comparar os dois e percebemos a semelhança instantaneamente. Fora isso, todo o restante soa como uma perfeita fusão do imaginário sessentista (as Júpiter levemente arredondadas, lembrando dos discos voadores) com o olhar atual sobre a ficção científica. Os trajes e utensílios utilizados ainda dão a entender que estamos falando de um futuro próximo, parecendo tudo extremamente plausível - uma abordagem surpreendentemente ‘pé no chão’. O único porém é em relação à movimentação do robô, que parece exageradamente travada para algo de tecnologia tão superior à nossa.
No mais, a temporada também tropeça levemente com algumas subtramas desnecessárias, principalmente envolvendo o romance de Penny, ou outros pontos menores. Esses não ocupam muito tempo e não desgastam a história mais do que deveriam, mas acabam criando contratempos, estendendo alguns capítulos um pouco demais. Nada como outras produções da Netflix, mas, também, nada que possamos simplesmente ignorar.
Dito isso, essa temporada inaugural de Perdidos no Espaço não deixa de ser simplesmente obrigatória para fãs de ficção científica. Chegando ‘de fininho’ ao catálogo do canal de streaming essa nova versão da série sessentista mostra que fizeram bem em deixar os Robinson ‘dormindo’ por tanto tempo. Com uma formidável estrutura, atuações mais que dedicadas, funcional e crível design de produção, além de roteiros recompensadores para nós, espectadores, a série certamente mostra a que veio, deixando-nos com um grande cliffhanger que só nos faz querer mais histórias com essa família, que, enfim, recebeu o tratamento que merece.
Perdidos no Espaço – 1ª Temporada (Lost in Space – Season 1 - EUA, 13 de abril de 2018)
Desenvolvimento: Matt Sazama, Burk Sharpless (baseado em criação de Irwin Allen)
Direção: Neil Marshall, Tim Southam, Alice Troughton, Deborah Chow, Vincenzo Natali, Stephen Surjik, David Nutter
Roteiro: Matt Sazama, Burk Sharpless, Zack Estrin, Katherine Collins, Kari Drake, Ed McCardie, Vivian Lee, Daniel McLellan
Elenco: Toby Stephens, Molly Parker, Ignacio Serricchio, Taylor Russell, Maxwell Jenkins, Parker Posey, Mina Sundwall
Duração: 47-65 min. por episódio
Episódios: 10
Crítica | 32 de Agosto na Terra - O Vazio de Nossa Existência
Um dos aspectos que mais nos chamam a atenção na filmografia de Denis Villeneuve é a forma como o diretor consegue, habilmente, transitar entre diferentes gêneros, enquanto mantém a sua facilmente distinguível identidade visual. Seja na ficção científica ou no thriller policial, seu foco sempre encontra-se no psicológico de seus personagens e em 32 de Agosto na Terra isso não poderia ser diferente. Embora já tenha dirigido um segmento de um longa-metragem, Cosmos, esse filme é o primeiro que, efetivamente, podemos chamar de “seu”, marcando, pois, sua presença nas telonas, de uma vez por todas.
A trama acompanha Simone (Pascale Bussières), uma jovem canadense que acabara de sair ilesa de um grave acidente de carro. Ainda em claro estado de choque e podendo sofrer curtos e temporários problemas de memória, por ter batido a cabeça, ela decide ter um filho. Para esse propósito, pede ajuda de seu melhor amigo, Philippe (Alexis Martin), que deve fazer sexo com ela. Para tal, eles viajam para Salt Lake City, nos Estados Unidos, a fim de marcar a ocasião. O que Simone não sabe é que seu amigo a ama e, em razão disso, cria constantes obstáculos para não fazer sexo casual com ela.
A premissa da obra facilmente abriria espaço para esse filme se tornar nada mais que um drama ou comédia romântica ordinária. Villeneuve, que escreve e dirige o longa, porém, não se mantém no óbvio, aproveitando esse simples argumento a fim de criar não somente marcantes imagens, como um desenvolvimento que mergulha na mentalidade de seus personagens. Em essência, esse é um filme sobre o questionamento da mortalidade, aspecto que, invariavelmente, afeta a percepção tanto de Simone quanto de Philippe sobre a vida.
Em determinado momento, vemos ambos os personagens em meio à vastidão de um deserto plano, ausente de dunas e inteiramente branco. Esse grande vazio, naturalmente, reflete a vida dos dois, sem um propósito bem definido ou grandes sonhos – o homem continua abandonando as faculdades nas quais ingressa e ela precisa ter um filho a fim de garantir o porquê de sua vida. Discretamente, porém, o diretor insere nesses seus planos um segundo significado, indicando que, além deles dois, nada mais importa na vida um do outro, ponto que dialoga com a tensão sexual sempre presente, que vai além do objetivo da viagem, causado principalmente pela palpável química existente entre os dois, fruto das dedicadas atuações tanto de Pascale Bussières, quanto de Alexis Martin, cuja cumplicidade pode ser sentida em todos os níveis possíveis.
Podemos ir muito além, porém, caso decidamos focar nas estranhezas inseridas por Villeneuve ao longo da narrativa. Logo após o acidente, Simone pega carona com um sujeito desconhecido. Ela pergunta qual é o dia de hoje e ele responde “32 de agosto”. Esse simples detalhe, tornado evidente pelas cartelas que enunciam os dias passados nessa história (33, 34 e assim por diante), de imediato parece indicar que Simone está em um estado alterado do mundo – morta, em coma, ou algo parecido. Com o tempo, contudo, passamos a enxergar que essa passagem de tempo não importa. O dia pode ser 32 de agosto ou 1º de janeiro, que não fará a menor diferença em sua vida – as cartelas, portanto, representam a ausência de qualquer propósito ou motivação da protagonista, discretamente fazendo nós próprios ansiarmos para a mudança do mês de agosto para setembro, que, enfim, significará uma mudança substancial na própria essência da de Simone.
Além disso, essa data fictícia trabalha em paralelo com a própria decupagem de Villeneuve a fim de imprimir um ar surreal em sua narrativa. Como dito antes, a personagem central pode, momentaneamente, perder trechos de sua memória. Esse fator é colocado na imagem através dos súbitos cortes e planos que não se encaixam precisamente bem uns com os outros. O diretor, assim, transfere para a imagem a percepção do mundo de sua protagonista, fazendo bom uso de jump cuts e outras quebras de continuidade a fim de transmitir a ideia de que algo não está bem certo ali. Esse desconforto visual, claro, mistura-se organicamente com toda a interação mostrada entre os dois melhores amigos de tal forma que a tensão já existente é amplificada ao máximo.
Brilhantemente, pois, Denis Villeneuve esquiva-se de uma história para lá de comum a fim de nos entregar um verdadeiro estudo de personagens, mostrando, logo cedo, todo o seu talento como diretor e roteirista. 32 de Agosto na Terra, como primeiro longa-metragem que podemos considerar efetivamente como sendo de seu diretor, representa toda a força narrativa de Villeneuve, capaz de nos mergulhar no psicológico de seus personagens de tal forma que permanecemos com eles muito após o término da projeção.
32 de Agosto na Terra (Un 32 août sur terre — Canadá, 1998)
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denis Villeneuve
Elenco: Pascale Bussières, Alexis Martin, Paule Baillargeon, Emmanuel Bilodeau, R. Craig Costin, Richard S. Hamilton
Gênero: Drama
Duração: 88 min.
Crítica | The Walking Dead – Vol. 2: Caminhos Trilhados
Logo no segundo volume de sua obra, Robert Kirkman mostra que sua história, em ponto algum, pretende ser uma de estagnação e mesmice. Após a chocante morte de Shane, que ocorre muito antes nos quadrinhos do que na série, o grupo, agora liderado por Rick Grimes, já muda de lugar e nessa travessia, que para em alguns pontos específicos, inclusive no já famoso do not enter, dead inside, acabam se encontrando com Hershel e sua fazenda, onde o autor introduz mais questionamentos e problemáticas que garantem uma nítida profundidade a The Walking Dead.
O maior e mais óbvio desses, apresentado em um diálogo entre Rick e Hershel, é a situação dos mortos-vivos – são apenas pessoas doentes, ou, de fato, monstros famintos por carne humana? Até então somente encontramos pessoas com opiniões e pontos de vista similares aos do protagonista e seu grupo, agora, contudo, o cenário passa a se expandir e já revela o que mencionei em minha crítica do primeiro volume: o verdadeiro perigo são as pessoas e não os zumbis. Evidentemente ainda estamos em um estágio no qual essas criaturas ainda apresentam um gigantesco risco, mas o simples fato de Carl ter sido baleado por uma outra pessoa comprova o enfoque que Kirkman procura trabalhar em seus quadrinhos.
Tais questões oferecem uma grande dinâmica ao roteiro, que ainda se mantém engajante pelo acréscimo de novos personagens, como Tyrese, cujas visões são constantemente trabalhadas pelo autor. Chega a ser surpreendente como ele consegue não esquecer de cada um dos indivíduos que insere em suas páginas e novos problemas são inseridos através de subtramas com cada um deles. O apocalipse zumbi chegou, mas é interessante observar as pessoas passando pelas mesmas situações que passariam em suas vidas normais, desde a solidão, até a aceitação de um namoro por parte dos pais.
Das mudanças que vemos em Caminhos Trilhados, porém, nenhuma delas soe tão grande quanto a transição da arte de Tony Moore para Cliff Rathburn e Charlie Adlard. Moore continua nas capas, mas seu traçado detalhista e profundo é substituído pelas linhas menos refinadas de Rathburn e Adlard. Essa alteração certamente não cai bem aos olhos inicialmente, mas com o tempo percebemos a melhoria do traço, os personagens passam a ganhar mais detalhes e os fundos, antes brancos, passam a ser preenchidos. O notável é o trabalho de sombras que os artistas realizam e com eles podemos perceber mais nitidamente a condição psicológica de cada personagem. Expressões faciais também ganham o devido destaque e por mais cartunescos que sejam, enxergamos seres humanos nas páginas. Daqui a alguns volumes chega a ser quase impossível não se apaixonar pelo esforço dos dois.
Caminhos Trilhados, portanto, traz muitas mudanças para The Walking Dead, e comprovam o domínio de Kirkman sobre sua obra, que é tão apaixonante quanto em suas primeiras páginas. Não há enrolação e todos os diálogos, por mais longos que sejam, tem um motivo muito específico para estarem ali – cada palavra é escrita com precisão, com um significado a ser trabalhado posteriormente. Para coroar, ao fim do volume, temos o início de um dos melhores arcos dos quadrinhos, colocando o grupo de Rick na famigerada prisão, na qual Kirkman ainda faria muitos estômagos revirarem.
The Walking Dead – Vol. 2: Caminhos Trilhados (The Walking Dead – Vol. 2: Miles Behind Us)
Contendo: The Walking Dead # 7 a 12
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Charlie Adlard
Arte-final: Cliff Rathburn
Capas: Tony Moore
Letras: Robert Kirkman
Editora nos EUA: Image Comics
Data original de publicação: novembro de 2004
Editora no Brasil: HQM
Data original de publicação no Brasil: novembro de 2006 (encadernado)
Páginas: 148
Crítica | Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
Amor, sentimento feroz, indescritível que, ao mesmo tempo, pode ocasionar em felicidade e miséria, no mais sincero, real sentido de tais palavras, ao ser humano. Temática milenar, central da arte – afinal, a arte, independente a qual objetivo se finaliza, é amar. Portanto, como levaríamos nossas vidas, se pudéssemos apagar ligeiramente nossas dores provocadas por umas ardentes paixões mal resolvidas? Desvincular de nossas mentes, memórias ressonantes, antes de acalento, mas que agora se converteram em traumáticas cicatrizes? Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças mergulha nessa questão, ao mesmo tempo que retrata uma relação amorosa como ela na realidade é: uma furiosa tempestade que, apesar de tudo, faz nos sentir completos.
Iniciamos a obra com uma narração em off, como páginas lidas de um diário, de Joel (Jim Carrey), explicitando suas emoções ao sair de casa e ir para o trabalho. No meio do caminho, todavia, subitamente um ataque de impulsividade o acomete, o que o leva, sem nenhuma razão aparente, a pegar um trem para Montauk. Durante essa viagem não programada ele conhece Clementine (Kate Winslet), uma mulher de personalidade e aparência únicas que, de imediato, já apresenta uma grande química com o protagonista. Desde esse trecho inicial já podemos sentir como se algo estivesse fora do lugar, há alguma coisa oculta a nós, espectadores e até, talvez, para os personagens em questão. Pouco depois descobrimos que, de fato, esse é o caso: ambos tiveram uma longa relação amorosa, mas, após uma briga, Clementine optou por apagar suas memórias de Joel. Desolado, ele decide fazer o mesmo. O filme, a partir daí, centra nesse processo, enquanto nos revela diferentes períodos do namoro dos dois.
Ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original, o texto de Charlie Kaufman procura colocar em cheque a necessidade de sermos forçados a viver com memórias dolorosas, em paralelo, ele nos traz uma verdadeira tese sobre a realidade de um relacionamento – nem tudo são flores, brigas vão existir e muitas lágrimas serão derramadas. A primeira “fase” das lembranças de Joel nos trazem isso: uma relação exausta, na qual ambos mal conseguem dialogar sem se atacarem. Chega a ser angustiante ver como eles se portam diante um do outro, especialmente logo depós de termos visto seu primeiro encontro (ainda que não soubéssemos se o prólogo se passava antes ou depós de todo o incidente), um verdadeiro trunfo de uma montagem bem planejada.
Toda essa ideia construída à priori, contudo, vai sendo desconstruída, ao passo que enxergamos que o namoro não foi limitado somente a isso. O roteiro, então, nos acerta em cheio, ao passo que as memórias iniciais se traduzem como a linha de pensamento de alguém em dor, que só enxerga o lado negativo de algo. Isso, por sua vez, dialoga perfeitamente com a impulsividade de Clementine, consequência de sua sensibilidade e instabilidade emocional, ambas já apresentadas a esse ponto do filme, algo que Joel compartilha à sua própria maneira. Aqui o que já não era comum se torna verdadeiramente único – as tentativas do protagonista em abortar o processo de apagar as memórias criam uma tensão constante e crescente no espectador e cada tentativa malsucedida traz uma angústia maior. O roteiro genialmente aproveita esses trechos para construir a personalidade de Clementine, aprofundando em seus sentimentos, motivações, manias e gostos pessoais.
Enquanto tudo isso ocorre, os personagens fora da mente de Joel atuam não só como elementos para aprofundar a nossa angústia, como para mostrar o quanto todo esse procedimento é errado. Nós precisamos de nossas memórias para crescermos, por mais dolorosas que elas sejam, caso contrário seríamos apenas um amontoado de vazios sem o importante aprendizado da dor. Os personagens principais nos mostram isso com evidência, ao passo que, mesmo “esquecidos”, contam com algumas marcas do passado deixado para trás. Afinal, o sentimento que um nutre pelo outro não pode ser apagado, apenas enterrado.
Naturalmente, toda essa narrativa não atingiria sequer metade da sua eficácia não fossem as atuações de Carrey e Winslet, que, não só (como já foi dito antes) apresentam uma indiscutível química, como realmente se entregam para os papeis, de forma que neles só enxergamos seus personagens e, acima de tudo, pessoas que facilmente poderiam viver entre nós. Há uma sinceridade no olhar de ambos, ao passo que não podemos deixar de nos apaixonar pela relação deles, por mais que a tenhamos testemunhado apenas no momento da trágica desconstrução, que faz uso de efeitos especiais muitíssimos interessantes, exemplificando bem o que ocorre na mente do protagonista. Vemos, nos dois, pessoas que realmente conhecem um ao outro e o mero silêncio dos dois atores deixa isso mais que estampado na tela, fruto que também deve muito à direção de Michel Gondry, que sabe muito bem definir cada cena através de seus ângulos, sejam closes que evidenciam a emoção de cada indivíduo, sejam planos abertos que nos mostram como eles são únicos nesse mundo.
No fim, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças nos traz uma narrativa cíclica que muito bem representa as relações pelas quais passamos ao longo da vida. Somos deixados, porém, com a percepção de que Joel e Clementine verdadeiramente merecem um ao outro, afinal o que é o amor se não aceitar e valorizar as particularidades do outro, de forma que mesmo problemáticas para uns, se tornam qualidades ao olhar daquele pronto para recebê-las? Houvessem de fato esquecido de tudo jamais teríamos essa descoberta, nos mostrando que, de fato, precisamos de nossas memórias, por mais dolorosas que sejam, afinal, elas podem deixar de ser meramente lembranças.
Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind – EUA, 2004)
Direção: Michel Gondry
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Tom Wilkinson, Elijah Wood, Thomas Jay Ryan, Mark Ruffalo, Jane Adams, David Cross, Kirsten Dunst, Tom Wilkinson
Gênero: Drama
Duração: 108 min.
https://www.youtube.com/watch?v=rb9a00bXf-U
Crítica | Marcas da Violência - Um Visceral Estudo de Personagens
David Cronenberg há muito demonstrou sua capacidade de chocar, incomodar o espectador através de sua construção imagética. Suas narrativas evocam a curiosidade da audiência, ao mesmo tempo que geram receio acerca do que veremos a seguir, de tal forma que mergulhamos cautelosamente em seus filmes, em geral, sabendo que não veremos uma simples fonte de entretenimento. Baseado na graphic novel de 1997 de John Wagner e Vince Locke, publicada pela Paradox Press e, depois, pela Vertigo Comics, Marcas da Violência, não é exceção, nos mostrando um retrato insólito de vidas despedaçadas, revelando a dificuldade de deixar o passado violento para trás.
A trama nos apresenta Tom Stall (Viggo Mortensen), pai de família que vive em uma pequena cidade no interior. Após impedir um assalto em sua lanchonete, matando os dois criminosos responsáveis no processo, ele é reconhecido como herói na cidadezinha, tanto pelos outros cidadãos quanto pela mídia. Isso, contudo, acaba atraindo um grupo de mafiosos, liderados por Carl Fogarty (Ed Harris), que insistem que Stall, na realidade, é Joey Cusack e que estivera envolvido com essas pessoas há anos. De uma hora para a outra a vida de Tom e sua família é colocada em xeque, enquanto seu passado volta para assombrá-lo.
Iniciado com uma sequência de assalto, o roteiro de Josh Olson já nos deixa preparados para o que está por vir, revelando, desde cedo, que não iremos ver um simples retrato da vida comum. O texto, no entanto, não segue pelo óbvio e elabora constantes contrastes entre Tom e Joey, as duas personas do protagonista – uma é um homem pacífico, já a outra é uma pessoa extremamente violenta, capaz de matar qualquer um em seu caminho. Essa contraposição se estende para a sua vida em família antes e depois do incidente na lanchonete, aspecto bem pontuado pelas duas cenas de sexo do filme – uma apaixonada e a outra mais violenta, refletindo perfeitamente a metamorfose do personagem central.
Visivelmente a trama segue por caminhos bastante previsíveis, não criando reviravoltas efetivamente inesperadas. Marcas da Violência, porém, não é um filme sobre sua história e sim sobre seus personagens, que recebem toda a devida atenção, a tal ponto que sentimos, de fato, como se fossem pessoas reais. Mortensen, recém saído da trilogia O Senhor dos Anéis, não cansa de surpreender, nos entregando um retrato crível de um homem que tenta deixar o passado de lado. Sua linguagem corporal, muitas vezes hesitante, revela o cuidado que ele tem ao agir – tudo é natural ao extremo, o que permite que, imediatamente, nos identifiquemos com o protagonista, entendendo suas motivações e receios.
Cronenberg, claro, não deixa barato para nós, espectadores, criando sequências verdadeiramente angustiantes, que não escondem a violência que dá título à obra. Tudo é visceral ao máximo, tanto as cenas de sexo, quanto as de assassinato, algumas das quais assumem uma brutalidade raramente vista em filmes mainstream. O diretor não permite que simplesmente encostemos na cadeira e aproveitemos tal narrativa, ele problematiza toda a violência e tece críticas pungentes à maneira como ela é banalizada, fazendo desse um conto sobre a sobrevivência dos mais aptos. Com a trilha de Howard Shore sabendo muito bem transitar entre a tranquilidade e a ruptura desta, sempre mantendo a tensão no espectador.
Dessa forma, Marcas da Violência prova ser um verdadeiro estudo de personagens, fazendo uso do contraste entre paz e violência para demonstrar como esta pode desestabilizar a vida tranquila em uma pequena cidade do interior. Cronenberg acerta em cheio com esse retrato visceral, contando, de quebra, com um ótimo elenco e excelentes composições de Howard Shore. Não por acaso o diretor continuaria abordando temáticas similares em seu seguinte filme, Senhores do Crime.
Marcas da Violência (A History of Violence — EUA/ Alemanha/ Canadá, 2005)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: Josh Olson (baseado na graphic novel de John Wagner, Vince Locke)
Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, William Hurt, Ashton Holmes, Peter MacNeill, Stephen McHattie
Gênero: Drama
Duração: 96 min.
Crítica | The Walking Dead - Vol. 3: Segurança Atrás das Grades
No terceiro volume de sua obra, Robert Kirkman realmente nos mostra do que é capaz, levando uma história de zumbis (que já não era simplesmente isso) para um outro nível. O autor, enfim, deixa mais claro que nunca o real perigo desse universo, explorando o psicológico de seus personagens e introduzindo-nos a um dos melhores arcos de The Walking Dead até então, que termina somente com a saída da prisão. Aqui temos um grau de violência que efetivamente faz nossos estômagos revirarem, Kirkman traz o que há pior na raça humana e coloca nessas 148 páginas e mesmo assim não deixará de nos surpreender no futuro, especialmente com o Governador e Negan bem mais à frente.
Após serem expulsos da fazenda de Hershel, Rick e seu grupo acabam encontrando uma penitenciária, que parece ser o local ideal para transformarem em um local verdadeiramente seguro para morarem. O local, infestado de zumbis, precisa ser limpo, mas, a este ponto, tais criaturas já se revelam ser um problema menor – basta não se distrair que tudo ficará bem. O autor, através de seu protagonista, mais uma vez nos mostra quais as qualidades de cada um dos personagens, sabe explorar a personalidade de cada um e o que, de fato, eles podem fazer de útil – como é o caso de Andrea, como a melhor atiradora do grupo.
O que fica mais evidente, porém, é o perigo que o próprio homem representa. Este é o primeiro volume no qual não vemos sequer uma morte por zumbis – eles ainda são aquela “força da natureza” a ser combatida, mas o simples fato de nenhum perecer pelas mordidas dos seres já prova o ponto de Kirkman. Mesmo Tyreese, acreditado morto após seu frenesi no ginásio da prisão, retorna à salvo (ainda longe de são devido a seu trauma). Essa ausência de mortes por zumbis, contudo, está longe de significar o término do perigo: crianças decepadas, voyeurismo, assédio, suicídio consentido é só um pouco do que encontramos no volume, no qual cada capítulo consegue quebrar a esperança do leitor pouco a pouco.
Mais importante ainda, porém, é a forma como esses acontecimentos moldam Rick. De página em página ele vai largando seu antigo 'eu', o policial justo e ético que vimos lá atrás na primeira edição. O homem duro começa a ser formado, aquele que faz o que precisa ser feito, algo que já temos, de relance, nos momentos finais de Segurança Atrás das Grades. Isso, é claro, sem falar na descoberta que define todo o universo de The Walking Dead: todos estão infectados, que define uma pequena jornada pessoal para Rick, a qual já ilustra perfeitamente o antes e o depois do protagonista.
O que realmente chega a ser surpreendente é a agilidade com a qual Kirkman conduz a sua história e o faz sem, em ponto algum, torná-la inorgânica. Cada evento puxa outro, cada decisão, diálogo, de fato, desempenha um papel narrativo de importância e constrói os diversos personagens presentes na prisão. Informações aparentemente irrelevantes em um momentos são posteriormente resgatadas, garantindo toda a coerência e a coesão da história, além, é claro, de preservar sua fluidez.
Segurança Atrás das Grades é um verdadeiro marco dentro de The Walking Dead e até hoje certamente se configura como um dos melhores volumes da obra de Robert Kirkman. De forma orgânica, ágil e coesa, o autor nos traz uma narrativa de revirar o estômago de qualquer um, ao mesmo tempo que nos faz querer virar página após página em uma ânsia interminável pelo que está por vir – naturalmente um uso preciso de cliffhangers impactantes. Começou o arco da prisão e ainda veremos muita brutalidade e o pior da raça humana até o fim dele.
The Walking Dead – Vol. 3: Segurança Atrás das Grades (The Walking Dead – Vol. 3: Safety Behind Bars)
Contendo: The Walking Dead # 13 a 18
Roteiro: Robert Kirkman
Arte: Charlie Adlard
Arte-final: Cliff Rathburn
Capas: Tony Moore
Letras: Robert Kirkman
Editora nos EUA: Image Comics
Data original de publicação: Outubro de 2004 a Abril de 2005
Editora no Brasil: HQM
Data original de publicação no Brasil: abril de 2008 (encadernado)
Páginas: 148
Review | Ni No Kuni II: Revenant Kingdom - Inovação com Identidade
Lançado em 2011, no Japão, e 2013, nos EUA, exclusivamente para o Playstation 3, Ni No Kuni: Wrath of the White Witch provou ser um dos melhores RPGs de sua geração. Em colaboração com o Studio Ghibli, responsável por animações como A Viagem de Chihiro e Castelo Animado, a Level-5 nos trouxe uma aventura que poderia facilmente ser um filme de Hayao Miyazaki, explorando temáticas importantes, como a depressão e o luto, através de uma abordagem fantasiosa. Tendo se tornado um dos games mais bem vendidos do PS3, o anúncio de sua sequência, Ni No Kuni II: Revenant Kingdom, portanto, não veio como grande surpresa.
A continuação, no entanto, não trouxe a parceria entre o estúdio de animação e a desenvolvedora de games de volta, o que acabou levantando as sobrancelhas dos fãs do primeiro jogo. É com grande satisfação que, ao jogar Revenant Kingdom, posso afirmar que o espírito de seu antecessor foi mantido, mesmo com substanciais diferenças tanto no gameplay quanto no storytelling. Assim sendo, antes de mais nada, é importante levar em conta que esse jogo não nasceu na intenção de meramente repetir acertos do passado e sim de inovar - inovação essa que faz falta em muitas outras franquias dos games por aí.
Dois mundos entrelaçados
A trama tem início com Roland, presidente de um país, testemunhando a queda de uma bomba atômica sobre sua cidade. Nesse momento, ele é transportado para um universo diferente e lá encontra o rei Evan Pettiwhisker Tildrum, um jovem garoto, com orelhas e rabo de gato, que está prestes a ter seu trono usurpado pelo seu conselheiro. Após o golpe de Estado, ambos se aliam para fugir da capital Ding Dong Dell e, após conhecer melhor Evan, Roland decide permanecer nesse diferente mundo, ajudando o rei a construir um novo reino e a unir todos através de seus ideais de paz.
De imediato fica bem claro que a temática central de Revenant Kingdom não é tão pesada quanto a de seu antecessor, tampouco tão intimista. Toda a história praticamente gira em torno da construção desse novo reino e Evan o faz para ajudar o mundo e não se tornar governante novamente. Há uma nítida inocência em suas ações, mas, de maneira impressionante, o texto constrói essa inocência sem que ela soe fantasiosa demais, sendo, portanto, mais utópico do que ingênuo. Evan é a representação do perfeito governante, alguém que se preocupa plenamente com seu povo e sua aliança/ amizade com Roland claramente delineia a típica jornada do herói, ainda que a figura do mentor seja distribuída por outros personagens.
O problema dessa falta de intimismo da história é que custa a sermos, de fato, fisgados por ela. Não conhecemos ou sequer entendemos Evan completamente para, de fato, nos importarmos com sua trajetória. Mesmo Roland é mantido na superficialidade por bastante tempo, gerando, inclusive, um estranhamento inicial, quando ele, sem mais nem menos, decide ficar naquele mundo. Claro que entendemos isso como reação ao seu país ter sido explodido, mas faltam diálogos que abordem essa questão. Somente com algumas horas de jogo que essa trama começa, enfim, a andar e permanecemos presos à construção do novo reino em si.
Não ajuda, também, o fato de muitos personagens jogáveis serem introduzidos logo cedo, sem que possamos, de fato, conhecer cada um deles. Logo nas primeiras horas de jogo mais três são adicionados à equipe, somente para serem pouco explorados logo após. O cenário vai se alterando conforme progredimos, mas, como dito antes, custa mais a mergulharmos na narrativa, o que pode tornar as horas iniciais de Ni No Kuni II um tanto arrastadas, fazendo pouco para prender o jogador, que, ao mesmo tempo, tem de se habituar com as muitas novas mecânicas.
Uma jornada com altos e baixos
Já entrando nessas mecânicas do game, é preciso salientar que, de início, tudo pode parecer bastante esmagador - muitas coisas são apresentadas de uma vez, de maneira não muito didática, apoiando-se demais em tutoriais em forma de texto que pulam na tela, ao invés de algo mais intuitivo. Assim como a história, portanto, requer uma certa dedicação por parte do jogador para podermos usufruir do game em sua plenitude. A falta de uma U.I. mais esclarecedora faz falta, especialmente aos e jogar no teclado e mouse, nos forçando a depender da tela de opções para nos lembrar o que cada botão faz. Felizmente, quando nos habituamos, tais problemas desaparecem, nos deixando com uma interface bem limpa e bonita de se ver em uma clara preocupação com a simplicidade.
Por falar de simplicidade, o sistema de combate, que adota algumas características do primeiro game, mas segue por um caminho bastante diferente, tenta justamente criar uma experiência simples, porém tática. Funcionando completamente em tempo real, os personagens (controlamos apenas um por vez) seguem nossos comandos imediatamente. Podemos realizar ataques fracos, fortes, esquivar, defender ou usar uma das quatro habilidades especiais de cada personagem. Como todo bom RPG, cada oponente pede uma estratégia diferente e devemos levar isso em conta em cada encontro, tornando os combates de Revenant Kingdom bastante dinâmicos e surpreendentemente fáceis de se entender, por mais que muitos elementos estejam em nosso campo de visão.
E quais elementos são esses? Para começar, os outros dois membros da equipe (sempre três por vez) também lutam, em tempo real, ao nosso lado, fazendo uso de suas habilidades e ataques normais como se fossem outros jogadores. Além disso, pequenas criaturas, conhecidas como Higgledies, adquiridas ao longo do game, nos ajudam, seja através de curas ou outras magias. Por fim, temos os inimigos em si e, na maior parte dos casos, muitos deles preenchem a tela, nos forçando a prestar atenção em tudo que ocorre ao nosso redor.
Trata-se de uma mecânica bastante fluida e prazerosa, cujo único defeito é a exagerada facilidade da esmagadora maioria das lutas. Ainda que certos oponentes representem desafios maiores (em especial algumas criaturas com uma aura roxa em volta delas), a maior parte deles pode ser derrotada apenas clicando o botão do ataque normal, jogando pela janela todo o cuidado em se desenvolver esse excelente sistema de batalha. Essa falta de dificuldade acaba tornando o jogo mais monótono nas lutas, fazendo com que procuremos evitá-las, o que certamente pesa dentro de um RPG, considerando que é preciso subir em níveis para conseguirmos acessar certos desafios.
Ao menos, cada encontro traz suas devidas recompensas, incluindo um bom sistema de loot, com peças de equipamento caindo de cada inimigo derrotado, o que garante a necessária motivação para continuarmos batalhando, por mais que elas nos enjoem momentaneamente. Permanecemos, pois, em um eterno vai-e-vem, com o jogo praticamente nos forçando a tirar certas pausas a fim de renovar nosso interesse. Assim sendo, foi particularmente difícil para mim dedicar horas e mais horas seguidas, de maneira ininterrupta, a Ni No Kuni II, exatamente o contrário de seu antecessor, que nos fazia mergulhar de cabeça.
Criando um reino
Felizmente há muito mais a se fazer em Revenant Kingdom do que apenas partir de luta em luta. Passadas algumas horas de jogo somos introduzidos à mecânica de construção de reino, que nos permite construir lojas, locais de pesquisa e mais no novo reino de Evan, nos garantindo mais recursos, habilidades, itens melhorados e mais. Alguns desses locais permitem que pesquisemos melhorias aos personagens ou que melhores equipamentos sejam forjados, pesquisas essas que ocorrem ao longo de horas ou minutos de jogo (similarmente a Clash of Clans) - com esse elemento ‘extra’, que dialoga diretamente com a trama do game, sentimos como se mais que apenas nossos personagens cresçam, aumentando aquele envolvimento tão necessário e ausente nas horas iniciais. Devo dizer que é bastante recompensador ver o reino tomando forma e se tornando uma nação grande e cheia de pessoas.
Por sinal, essas pessoas são convidadas ao local pelo próprio jogador e devem ser colocadas em lojas, fazendas ou afins de acordo com suas habilidades. Para conseguí-las, precisamos realizar as muitas missões secundárias do jogo. Infelizmente, muitas dessas se resumem a coletar um item específico ou matar um monstro, não contando com a profundidade de outras obras da geração atual, que servem como divisores de água (vide The Witcher 3). Assim sendo, por mais que a recompensa seja atrativa, pode se tornar um tanto quanto cansativo realizar o mesmo tipo de missão repetidas vezes.
Por fim, intrinsecamente ligado à mecânica de construção de reinos, temos os combates entre exércitos, que tira algumas páginas de Total War, fazendo que controlemos até quatro unidades, unidas, com Evan no centro, e batalhemos contra outros pequenos exércitos inimigos. Essa parte do game funciona praticamente como um minigame, mas as recompensas diretamente afetam o restante do game e ajuda a passar a sensação de que realmente existe muita coisa a se fazer em Ni No Kuni II. O mais impressionante é como, mesmo sendo diferente de praticamente todo o resto do jogo, isso funciona, ainda que passe mais a impressão de ser um passatempo divertido do que algo efetivamente importante para o desenvolvimento dos personagens.
Ghibli sem ser Ghibli
Voltamos, então, à questão do jogo não contar mais com a participação do Studio Ghibli em sua concepção, o que quer dizer que não mais temos as fantásticas cutscenes em animação tradicional, sendo tudo substituído pelos gráficos em cel-shading que aparecem nas horas de gameplay em si. Claro que isso pode ser visto como um passo para trás, quando comparado ao original, mas o design de personagens de Yoshiyuki Momose mais que dá conta do recado, mantendo aquele visual típico do estúdio japonês de animação. De fato, esse é um game que parece ser feito pelo Ghibli.
Os já citados gráficos em cel-shading, claro, permanecem como um grande acerto e nos passam a impressão de estarmos diante de um anime, não muito diferente do que foi feito em The Legend of Zelda: The Wind Waker há tantos anos atrás. Infelizmente, esse cuidado com o design dos personagens é desperdiçado no mundo aberto, fora de cidades, canyons ou florestas, no qual a câmera se distancia e vemos uma versão “chibi” dos personagens. Em uma época que já testemunhamos games como Final Fantasy XV, isso soa como um grande retrocesso, ainda que traga de volta memórias dos velhos e saudosos JRPGs do NES, SNES ou Playstation.
Quando a câmera se aproxima, no entanto, o resultado não poderia ser melhor, com cenários bem detalhados e movimentação fluida dos personagens, com muitos elementos se mexendo ao mesmo tempo, fazendo bom uso das capacidades do hardware da geração atual. Assim sendo, na maior parte dos casos, Revenant Kingdom é um game belo de se ver, por mais que pudesse ter ousado mais na perspectiva do overworld, que, por sinal, nos traz de volta aos velhos cortes para cenários de batalha, mais um resquício de suas origens JRPG.
Ao menos, independente de qual imagem está diante de nós, podemos contemplar as belas composições de Joe Hisaishi, que também trabalhou no primeiro game e criou inúmeras das trilhas do Studio Ghibli, incluindo os memoráveis temas de Castelo Animado. Não há, portanto, como não acreditar nessa construção da Level-5, que soube muito bem contornar a ausência da colaboração do estúdio japonês de animação.
Os Riscos da Inovação
Após muitas horas nesse mundo de Ni No Kuni II: Revenant Kingdom fica bastante claro que todos os seus deslizes foram fruto da tentativa de inovação por parte dos desenvolvedores, que não queriam entregar apenas mais do mesmo - o que, por si só, já é algo louvável. Mesmo com esses tropeços, temos aqui uma obra que merece nossa atenção - ela está longe de ser perfeita, mas sabe recobrar o espírito dos velhos JRPGs, enquanto caminha por uma nova direção, nos oferecendo um sólido sistema de combate, ainda que muito fácil, acompanhado de inúmeras mecânicas novas que garantem horas e mais horas de diversão.
Mesmo com um início mais lento e sendo particularmente difícil mergulhar no jogo por horas a fio, ele sempre nos deixa com aquela vontade de retornar a ele, seja graças à suas mecânicas de construção de reino ou pela sua história propriamente dita, que claramente se torna mais atrativa após algumas horas. Pode não estar no mesmo patamar de seu antecessor, mas definitivamente conta com identidade própria e, no fim, nos deixa ansiando por mais Ni No Kuni.
Prós: Sólido sistema de combate, boa história, ótimos gráficos, muito a se fazer, ótima trilha sonora.
Contras: demora a nos atrair de verdade, confuso no início, muito fácil.
Agradecemos pela cópia gentilmente cedida pela Bandai Namco para a realização dessa análise
Ni No Kuni II: Revenant Kingdom (Ni No Kuni II - Revenant Kingdom, Japão – 2018)
Desenvolvedora: Level-5
Distribuidora: Bandai Namco
Gênero: RPG de ação
Plataformas: PS4, Xbox One, PC