Review | Star Wars: Knights of the Old Republic - O Império Contra-Ataca dos games da franquia
Através de X-Wing, Tie Fighter e Rogue Squadron fomos inseridos no universo de Star Wars com a experiência de comandar suas icônicas espaçonaves. Em Dark Forces a ação partiu para o chão e nos vimos cara a cara com os famosos stormtroopers (não tão ruins de mira aqui). Na série Jedi Knight nos deram um sabe de luz para brincar, nos tornando, afinal, um jedi. Dito isso, foi somente em Knights of the Old Republic que realmente nos sentimos em uma história como a dos filmes, explorando praticamente todos os elementos que nos fizeram amar a franquia desde que as letras amarelas começaram a rolar na tela grande.
Passado aproximadamente quatro mil anos antes do Império, Knights of the Old Republic nos leva para uma era bastante diferente do que vemos na trilogia clássica e até mesmo nos episódios I, II e III. Os jedi são parte ativa da comunidade galática, mas a ameaça dos sith está tão viva como nunca. O game inicia com um ataque de Darth Malak, lorde negro dos sith e principal antagonista do jogo, a uma nave da República. Naturalmente nosso personagem está dentro dela e após sermos acordados por um soldado aliado partimos em uma luta por sobrevivência, que posteriormente nos levaria a uma aventura pela descoberta de um antigo artefato misterioso, o Star Forge.
A Bioware nos traz em KOTOR características bastante similares a sua famosa franquia Baldur’s Gate, que posteriormente serviria de inspiração para Dragon Age. Logo após a escolha do new game no menu inicial somos levados para uma tela de criação de personagem. A aparência a ser escolhida não apresenta grandes customizações, podemos escolher entre rostos pré-definidos, mas nada além disso. A função cumpre seu papel e para um game lançado em 2003 está mais do que o suficiente. O pulo do gato, contudo, vem a seguir – nos são dadas inúmeras opções de mudanças de pontos de atributo, habilidades, feats, que permitem uma variada adaptação do modo de jogo ao nosso gosto. O caminho nós próprios trilhamos e cada ponto investido reflete na forma como iremos progredir no jogo. Os fãs menos hardcore, porém, não devem se assustar, há uma opção de criação rápida de personagem e escolhas recomendadas. Minha sugestão, todavia, é que você invista um bom tempo decidindo o que seu personagem irá se tornar.
Criado o protagonista da história vamos adentrar as mecânicas de movimentação, conversa e combate. Para a primeira não há segredos, tanto no PC, console quanto nos dispositivos móveis (Android e iOS), apenas esse último talvez necessite de um pouco mais de prática, mas nada que alguns minutos de jogo não resolvam. Os diálogos, por sua vez, desempenham um papel central dentro da narrativa do game, nos trazem o necessário lore para entendermos o plano de tudo daquelas guerras nas estrelas e trazem visíveis consequências para cada opção de resposta escolhida. Knights of the Old Republic, se espelhando na dualidade da Força estabelecida desde Uma Nova Esperança, conta com um medidor do lado negro e da luz – cada ação nos envia para um desses caminhos, portanto pense bem antes de querer obter o que é melhor para seu personagem. O principal, porém, é estabelecer uma coesão nas ações de seu protagonista, tente pensar como ele e, assim, moldar sua personalidade.
O interessante é que as consequências não param no imediato. Os diversos companheiros que se juntam a nós durante a longa aventura também reagem às nossas escolhas, fazendo comentários sobre sua maldade ou bondade. Desses o destaque vai para HK-47, uma mistura de robô de batalha com protocol droid, que constantemente nos pergunta se pode matar alguém que está lhe enchendo a paciencia (se referindo a eles como “organics” ou “meatbags”). As risadas são inevitáveis e a ironia em sua dublagem é evidente. Mas não é apenas o droide assassino que conta com esse ótimo trabalho de voz, todo o elenco merece aplausos, possibilitando que enxerguemos em cada um dos personagens uma forte personalidade e que, acima de tudo, nos faz querer dialogar com cada um deles.
O combate por sua vez é claramente inspirado em Baldur’s Gate. Ele é um perfeito híbrido entre combate em tempo real e em turnos. Escolhemos comandos de um menu bem trabalhado e simples que, então, são executados automaticamente ou em sequência pelos personagens. A possibilidade de pausar o game a qualquer momento sem entrar em uma tela separada nos possibilita que montemos uma sucessão de comandos, tanto para nosso personagem, quanto para seus companheiros a quem podemos controlar, similarmente ao que veríamos posteriormente em Dragon Age. Muitas ocasiões pedem para um comando mais tático, especialmente se escolhermos a classe scoundrel. O mais importante, porém, é que a jogabilidade de KOTOR é fluida e certamente nos prende a cada minuto jogado.
Em paralelo, naturalmente, temos sua fantástica história, que nos leva a diferentes mundos dentro do universo de Star Wars. Alguns conhecidos, como Tatooine e Dantooine (citado em Uma Nova Esperança) e outros totalmente novos, como Taris e o planeta sith Korriban. Além disso, o jogo traz uma nítida progressão de personagem que nos faz ver efetivamente nosso protagonista crescer. Começando como um simples soldado nos tornamos a peça central para a salvação da galáxia nos tornando um jedi no meio do caminho. Mais uma vez reitero a sensação constante de estarmos dentro de um dos filmes da trilogia clássica, ao passo que o roteiro utiliza diversos elementos chave dos longa-metragens, trazendo, inclusive, um plot-twist tão chocante quanto “eu sou seu pai”.
Knights of the Old Republic é o Império Contra-Ataca dos games de Star Wars. O ponto alto de um rica biblioteca de jogos, que se destaca tanto pela sua jogabilidade, quanto pela sua história. Trata-se de um jogo memorável que merece ser revisitado constantemente, nos oferecendo horas e horas de diversão, nos transportando diretamente para esse rico universo que puxa tanto dos filmes originais, por mais que se passe quatro mil anos antes deles.
Star Wars: Knights of the Old Republic
Desenvolvedor: Bioware
Lançamento: 15 de Julho de 2003
Gênero: RPG
Disponível para: Xbox, PC, Mac, iOS, Android
Crítica | Meu Nome é Ninguém - O Divertido Adeus ao Velho Oeste
Pode um homem escapar de seu destino? Tal pergunta permanece durante toda a projeção de Meu Nome é Ninguém, o penúltimo western de Sergio Leone. Neste spaghetti, co-dirigido por Tonino Valerii, o caráter experimental é visível desde os primeiros minutos, o que pode causar um grande estranhamento mesmo no espectador já familiar a filmes do gênero. Acima de tudo, contudo, o filme é uma grande homenagem aos westerns, trazendo inúmeras referências e até mesmo paródias que garantem um tom de fábula a obra.
A trama abre com Jack Beauregard (Henry Fonda), um praticamente lendário cowboy já cansado do Velho Oeste. Sua meta é embarcar em um navio em Nova Orleans com destino a Europa. Para isso, porém, são necessários quinhentos dólares. A dívida é constantemente deixada de lado pelo homem, que parece não dar importância a este fato. O cansaço é visível em seu olhar e este cenário começa a se alterar quando entra na jogada um sujeito misterioso, que insiste em ser considerado Ninguém (Terence Hill). Já nos lembrado ao emblemático homem sem nome da trilogia dos dólares. A trama progride através dos constantes encontros entre os dois – uma velha lenda, o saque mais rápido do oeste e um completo desconhecido, que busca garantir um desfecho inesquecível para a história desse seu ídolo.
O roteiro de Ernesto Gastaldi, todavia, utiliza uma aparente trama para, parcialmente, esconder o elemento central da história: a constante fuga de Beauregard da morte. Aqui começam a entrar as homenagens ao gênero. Henry Fonda, conhecido pelos seus papéis de faroeste, faz aqui sua última participação da temática. É como se assistíssemos uma verdadeira despedida ao ator e não um personagem em si. Esse tom é mantido constantemente através de Terence Hill, que não só representa o fim do Velho Oeste, como uma espécie de entidade.
Como um anjo da vida e da morte, Ninguém persegue Beauregard, utilizando sua personalidade excêntrica para cativar o espectador. Acompanhado pela trilha de Morricone, que aumenta ainda mais a fábula por trás deste personagem, assistimos essa figura inacreditável trazendo um novo sopro à falta de vitalidade no homem que apenas deseja ir embora. Aos poucos, praticamente no horizonte, enxergamos um clímax se formar, o tiroteio contra o grupo The Wild Bunch, mais uma referência ao gênero, que simbolizam a própria morte chegando a Jack, que inúmeras vezes evita o grupo de cento e cinquenta bandidos acompanhados por uma variação da Cavalgada das Valquírias, de Wagner.
Este caráter sombrio da obra, porém, não chega a abater a audiência, graças ao experimentalismo já citado. Ora ou outra nossa imersão é quebrada, através de usos não convencionais da “magia do cinema”. Aqui, Valerii e Leone brincam com o gênero, utilizando recursos como o fast forward para termos a criação do homem mais rápido do oeste, que consegue sacar sua pistola três vezes antes mesmo de seu inimigo perceber. O efeito é facilmente percebido e chega a causar risadas no espectador atual, lembremos, contudo, que estamos falando de uma história que muito bem poderia ter começado com um “era uma vez”, que já nos remete a algumas obras, e uma de destaque do próprio Leone, não? Sutil homenagem ou não, Morricone, por sua vez, opta por uma abordagem mais direta, trazendo melodias de Era Uma Vez no Oeste ao clímax desta obra.
Assim, com estranhamentos, risadas, tensão e, sem dúvidas, um certeiro entretenimento, chegamos aos minutos finais de Meu Nome é Ninguém, uma grande despedida a Henry Fonda em seus papéis no western e uma própria espécie de adeus do próprio Leone, que somente trabalharia em mais um filme do gênero. Seja pela caricata representação de Terence Hill, seja pela emblemática trilha de Ennio Morricone ou até pelo roteiro, repleto de referências ao faroeste, estamos diante de uma obra praticamente à parte, que enxerga o passado com um grande saudosismo, ao mesmo tempo que abre o caminho para o futuro, bem representado pelas palavras finais de Beauregard. É um longa experimental, cujas ousadias podem ser enxergadas como deslizes – cabe ao público decidir se são méritos ou defeitos. Este espectador que aqui escreve somente as vê como mais um motivo de encanto por essa fábula de Leone e Valerii.
Meu Nome é Ninguém (Il mio nome è Nessuno - Itália/ França/ Alemanha, 1973)
Direção: Tonino Valerii, Sergio Leone
Roteiro: Ernesto Gastaldi
Elenco: Terence Hill, Henry Fonda, Jean Martin, R.G. Armstrong, Karl Braun, Leo Gordon, Steve Kanaly, Geoffrey Lewis, Neil Summers.
Duração: 116 min.
Crítica | Quando Duas Mulheres Pecam - Um Profundo Estudo Sobre o Ser Humano
Uma das mais icônicas obras de Ingmar Bergman, que marca sua sexta colaboração com o diretor de fotografia Sven Nykvist, Persona é um objeto de interpretação até hoje por críticos e cinéfilos. Com uma narrativa que foca na psiquê de duas personagens, temos aqui uma obra extremamente intimista, cuja temática lida com as diversas máscaras que o Homem utiliza ao longo de sua vida, enterrando sua individualidade para que possa viver em sociedade, não se importando com os danos psicológicos que isso pode causar para si. Um longa-metragem que traz uma imediata reflexão e que nos faz mergulhar em nossas próprias mentes.
A trama gira em torno de Alma (Bibi Andersson), uma enfermeira sueca, cuja paciente, Elisabet (Liv Ullmann), simplesmente se recusa a falar ou até mesmo levantar de sua cama. Demonstrando uma relutância inicial ao lidar com ela, a protagonista acaba decidindo levá-la para uma casa no litoral. Ali, Elisabet passa a interagir mais, ainda que não diga uma palavra sequer. Não demora para que a enfermeira se aproxime da paciente e crie uma relação de dependência em relação a ela, ao passo que enxerga a mulher como uma forma de desabafar seus problemas e simplesmente ser ela mesma.
Na obra de Bergman, Alma e Elisabet representam claramente dois aspectos do ser humano. Enquanto a protagonista, que se abre, fala o tempo todo e demonstra uma maior alegria, simboliza nosso interior, a verdadeira face que gostaríamos de mostrar ao mundo, a paciente representa a nossa máscara. Ela é a forma que aprendemos a lidar com as adversidades da vida, é a frieza, as barreiras que criamos entre nossos semelhantes, seja motivada pela dor, seja pelo medo. É a figura ilusória do forte e silencioso, que, de fato, não passa de uma figura frágil se escondendo por trás de uma criação de sua própria mente.
O roteiro de Bergman, contudo, vai além disso e põe toda a questão de nossa individualidade em xeque. Vemos na mulher que não fala alguém que simplesmente abandonou a vontade de se relacionar, uma figura traumatizada em virtude dos diversos papéis que fora forçada a viver. Sua profissão de atriz não vem por mero acaso e dialoga com o que nós próprios desempenhamos ao longo dos anos – seja a posição de filho, pai, mãe, chefe, empregado, etc. Elisabet é o breakdown que nos aguarda em um momento ou outro de nossa trajetória, é um alerta para vivermos e não somente sobrevivermos.
A química construída entre as duas personagens vai mais a fundo nessa questão. É um clima de flerte, romance, como se nosso interior se esforçasse para quebrar essas barreiras construídas por nós próprios. A falta de êxito em desconstruir essas nossas máscaras inevitavelmente gera a frustração que culmina na luta entre as duas na segunda metade do longa – reparem como a emoção é exibida somente por Alma, cujo nome, aliás, obviamente também não é por acaso, remetendo ao latim anima, diretamente relacionado à vitalidade do ser e que também funciona como uma tradução do grego Psychē – a personagem pode ser interpretada, portanto, como a alma constantemente reprimida pelo corpo.
O foco no ser humano de Bergman é tornado ainda mais claro pela sua colaboração com Nykvist. Ambos constroem quadros que se destacam pelo minimalismo – inúmeras vezes enxergamos o personagem com um fundo branco refletindo a importância dessas personalidades na obra. A direção sustenta isso através de movimentos de câmera que sempre acompanham as duas mulheres, independente do movimento que realizam e a importância dos diálogos – a expressão da alma – é ressaltada pelos closes nos rostos de ambas, deixando claro o que se passa no psicológico de cada uma delas.
Com apenas duas personagens (na maior parte da projeção), presentes em quadros que sempre as priorizam, contrastando suas existências com o vazio à volta, Ingmar Bergman consegue nos trazer um profundo estudo sobre o ser humano. Um filme que pode ser interpretado de infinitas maneiras, todas atingindo o espectador de uma forma diferente. Trata-se de um longa-metragem feito para mergulharmos dentro de sua narrativa, nos despindo de nossas barreiras de maneira que possamos absorvê-lo por completo. É uma obra para sentir e refletir a tal ponto que dificilmente sairemos os mesmos após o seu desfecho.
Quando Duas Mulheres Pecam (Persona - Suécia, 1966)
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook, Gunnar Björnstrand
Gênero: Drama
Duração: 85 min.
Crítica | A Fonte da Donzela - A Morte da Inocência
Controverso à época que estreou e certamente perturbador, A Fonte da Donzela nos garante um vislumbre da temática que Ingmar Bergman trabalharia posteriormente em sua Trilogia do Silêncio (composta por Através do Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio). Adaptado de uma balada sueca do século XIII, a obra trabalha em cima de temáticas como a religião - o conflito entre o chamado paganismo e o cristianismo -, inocência, moralidade e, é claro, o pecado. Vencedor do Oscar de Melhor Filme estrangeiro de 1961, temos aqui um filme que não merece ser visto uma só vez, mas consecutivas a fim de experimentar todas as suas facetas.
Dentre essas inúmeras iniciemos a jornada pela direção e a fotografia de Sven Nykvist, que teve uma prolífica carreira, assinando inúmeros projetos de Bergman. Bergman e Nykvist transmitem, desde os primeiros planos a nítida sensação de que uma tempestade se aproxima. Uma jovem, suja e com olhar ameaçador, Märeta (Birgitta Valberg) trabalha em um salão de madeira - em seu evidente descontentamento reza pela presença de Odin, introduzindo aqui o primeiro elemento de conflito dentro da narrativa. Planos longos, utilizando cortes somente quando necessários, marcam o ar de calmaria presente nesse primeiro terço do longa-metragem - sutis movimentos de câmera acompanham os personagens a fim de nos dizer que tudo ali se encontra em seu devido lugar, mesmo a problemática jovem, como é vista pelos outros membros da casa.
É claro que seria percebida assim, afinal, todos os outros já se converteram ao cristianismo, deixando para trás seus deuses nórdicos tão diferentes daquela religião que, na teoria, prega o perdão. O maior e mais evidente exemplo do contraste estabelecido dentro dessa morada é a donzela que dá nome ao filme, a virgem do título internacional, Karin (Birgitta Pettersson). Sua inocência, nítida desde sua primeira aparição, conflitam com o caráter mais selvagem de Märeta em uma perfeita representação da mulher nórdica antes e depois do catolicismo. A oposição, contudo, não para por aí. O pai da donzela, interpretado por Max von Sydow, é estabelecido também em antagonia à sua esposa (Gunnel Lindblom), porém em uma gama que não se limita ao preto e o branco das duas jovens.
Conforme caminhamos na direção do clímax da narrativa, a decupagem vai adotando um número maior de cortes, utilizando uma quantidade maior de planos e contra-planos que visivelmente criam a tensão no espectador, nos deixando praticamente sufocados com a antecipação. Toda a sequência com Karin na floresta, encontrando os bandidos na estrada é assustadoramente perturbadora, culminando em uma corajosa cena de estupro que revira o estômago de qualquer um. Bergman conduz cada ator em cena harmonicamente, trabalhando com a simetria em quadro e o contraste entre o claro e o escuro, o sujo e o limpo a fim de tornar a cena verdadeiramente emblemática.
Partimos, portanto, para a temática da vingança, o pecado e o silêncio de Deus, que permite a ocorrência de tal barbaridade em relação a uma devota inocente e virgem. Bergman, porém, não torna a revanche algo fácil e a nutre com a amargura de um fiel que sabe que seu Deus condena tais ações - sua hesitação ao cometer o ato em nome de sua falecida filha é notável e ela vem acompanhada da honra de um homem que se nega em matar o outro em seu sono: não é assassino, apenas quer a justiça que lhe foi negada.
Você viu isso e não fez nada, viu minha vingança e não fez nada, repete o homem injuriado pelo peso de suas ações. Voltamos ao contraste das religiões, onde a antiga o veria como uma pessoa protegendo sua honra e a nova como um pecador. E onde está Deus? Silencioso, não punindo ou recompensando seu fiel. A surpresa, porém, formando, por fim, o título do filme: a fonte da donzela dá as caras, como um milagre da divindade, até então, ausente, que agora chora pela morte da inocência e pelo arrependimento de um homem que apenas buscou (de maneira errada?) pela paz de espírito.
Com um coro celestial, Ingmar Bergman encerra sua visão da balada sueca, chocando o espectador, esteja ele em 1960 ou já no século XXI. Com uma narrativa em tom crescente, o diretor nos suga para dentro de sua perfeita retratação do medieval, trazendo temáticas da época que nitidamente se traduzem para a atualidade. A Fonte da Donzela, como já dito, merece ser visto e revisto e, a cada exibição, somente ganha um caráter mais perturbador.
A Fonte da Donzela (Jungfrukällan - Suécia, 1960)
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ulla Isaksson
Elenco: Max von Sydow, Birgitta Valberg, Gunnel Lindblom, Birgitta Pettersson, Axel Düberg
Gênero: Drama
Duração: 89 min.
Crítica | Matrix - Uma atemporal obra de ficção científica
O mundo à nossa volta é real ou apenas uma construção mental de nosso cérebro? A máxima de Descartes, cogito, ergo sum, pode, realmente, provar nossa existência? Ou tudo não se trata apenas de reflexos, sombras na parede de uma escura caverna? Em cima dessa dúvida, inspirado diretamente por obras de ficção-científica como Ghost in the Shell e O Mundo por um Fio, as irmãs Wachowski firmaram sua obra-prima cinematográfica, Matrix. O princípio é simples e extremamente complexo ao mesmo tempo, atuando sob diferentes camadas que retomam às origens do pensamento ocidental. Mas apenas ideias não formam um filme e é necessária uma precisa execução para colocar em tela tamanha complexidade. Vamos, portanto, entrar no buraco do coelho e revisitar o longa-metragem que marcou época.
Sem dó, nem piedade, as Wachowski nos jogam no meio de seu universo. Uma cena de perseguição, com Trinity (Carrie-Anne Moss) fugindo de policiais e agentes, introduz uma narrativa onde tudo é possível: correr pelas paredes, desviar de balas e pular distâncias impossíveis. O espectador não é preparado e o choque inicial é certeiro, seja um marinheiro de primeira viagem ou um fã de carteirinha do sci-fi. Pulamos, então, para Thomas Anderson (Keanu Reeves), programador e hacker nas horas vagas que adota o nickname Neo em suas peripécias virtuais. Notícias de jornais, em segundo plano, na tela de seu computador dão indícios do que veremos nos minutos a seguir. A bagunça e a escuridão de seu quarto revela não só uma possível antissocialidade como uma fuga dos padrões da sociedade – temos aqui um homem claramente cansado do mundo à sua volta. Uma mensagem, no seu computador, porém o acorda literal e figurativamente falando. Wake up, Neo. O, até então, sr. Anderson começa uma jornada pelo desconhecido, se torna Alice no País das Maravilhas, Dorothy na Terra de Oz e logo descobre que todo o seu mundo não passa de uma construção virtual – o mundo verdadeiro é dominado pelas máquinas que utilizam os humanos como fonte de energia.
Matrix conta com uma narrativa fluida, redonda, que encadeia organicamente cada um de seus eventos – um fato leva ao outro em uma aventura praticamente incessante, com uma trama que quase nada se divide em diferentes focos. Neo nos representa em tela e sua estupefação é a nossa conforme ele descobre cada detalhe sórdido da realidade dele escondida. O roteiro de Lana e Lilly é preciso, sabendo exatamente quando revelar cada ponto de seu universo e, por mais que tenhamos alguns diálogos expositivos, esses são bem encaixados e não revelam mais do que devem. A dose de mistério é constante, bem inserida em frases que não deixam claro quando o mundo se tornou daquela forma. Mesmo a retratação daquele universo distópico é exibida em pequena frequência – poucas vezes vemos a situação real do mundo fora da nave Nabucodonosor, o que garante o choque e o espetáculo visual do excelente design de produção.
Mas o diabo mora nos detalhes e são nesses que o filme se exalta. Desde a aparência suja e sucateada da nave, até a condição limitada de seus tripulantes, tudo nos faz questionar: a liberdade realmente vale à pena? Essa dúvida ganha uma persona através de Cypher (Joe Pantoliano), um homem que apenas quer viver em seu mundo de ilusões. Essa problemática é sabiamente introduzida após cada um dos elementos “novos” serem explicados para nós. Dito isso, o filme se divide em quatro atos bastante distintos: o primeiro indo do início até o despertar de Neo fora da Matrix; o segundo vai até o jantar de Cypher e o agente Smith (Hugo Weaving); o terceiro termina com a decisão de resgatar Morfeu (Laurence Fishburne) e último, caracterizado pelo segundo despertar do herói, encerra o filme. Cada um desses conta com objetivos narrativos bem delimitados, levando o espectador em uma jornada quase didática por toda essa complexidade, que passa a ser percebida como simples graças a essa cuidadosa exposição.
Apesar dessa estrutura ser bem mastigada, Matrix é um típico filme que merece ser revisitado inúmeras vezes graças ao amplo tabuleiro que ele dispõe. Observemos o agente Smith, por exemplo, iniciando como um simples mecanismo de defesa da rede, calmo, metódico e calculista, o antagonista se revela tão humano quanto os fora-da-matrix: ele quer sair daquele mundo limitado, quer sair da caverna mas suas amarras não o permitem. Ele seria um programa defeituoso ou uma manifestação de inteligência artificial? Por que ele quer ir para outro lugar? Não se trata de algo programado? Há uma interessante profundidade escondida sob a figura tida como rasa de Smith e essa é apenas um dos muitos questionamentos levantados pelo filme. Paremos para olhar agora o lendário Morfeu, que dentro do mundo virtual é uma pessoa totalmente diferente daquela fora. Vejam como sua figura inabalável e imponente se torna humana, quase paterna quando o vemos no mundo real pela primeira vez. Fishburne imprime uma notável bondade nas falas do personagem, que juntamente da calma passam a ideia de sabedoria para o espectador.
Todo esse universo, contudo, precisa ainda de algo crucial para o cinema de ficção científica: os efeitos especiais. Não, não falo de CGI e sim de uma construção crível do mundo apresentado, técnicas que nos fazem acreditar que um homem pode desviar de balas ou pular entre prédios. As Wachowski, para tal, se apoiam nos efeitos práticos e somente utilizam a computação gráfica quando realmente necessária (vide as sentinelas) ou as balas em câmera lenta. O exagero que veríamos no segundo filme ainda não se faz presente e tudo é tão bem encaixado e disfarçado que a obra se mantém atual mesmo dezesseis anos após seu lançamento – impossível não vibrar na emblemática cena de Neo desviando das balas. Para mascarar cada um desses efeitos, temos a montagem, merecedora do Oscar que recebeu, de Zach Staenberg, que sabe exatamente quando partir do close-up para os planos mais abertos, a fim de transmitir uma maior naturalidade para os movimentos impossíveis que vemos em tela. O uso da câmera lenta, embora constante, é também bem controlado e atua em conjunto com a movimentação e ótimas coreografias das cenas de ação.
É essa mistura harmônica de elementos bem pensados que fazem de Matrix um filme atemporal, que traz questionamentos milenares para hoje em dia em uma distopia que nos prende dos segundos iniciais até o inesquecível clímax do quarto ato. Um longa bem construído, complexo mas bem explicado e fechado em si mesmo, ele não precisava de continuações, especialmente as duas que vieram, que não fazem jus ao ótimo trabalho das Wachowski aqui. Certamente um sci-fi que merece ser visto e revisto ao longo dos anos.
Matrix (The Matrix – EUA/ Austrália, 1999)
Direção: Lily Wachowski, Lana Wachowski
Roteiro: Lily Wachowski, Lana Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano, Marcus Chong, Julian Arahanga
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 136 min
https://www.youtube.com/watch?v=vKQi3bBA1y8
Crítica | Rio Violento - A Guerra das Gerações
O espectador da atualidade talvez sinta um notável estranhamento ao se deparar com Rio Violento. A obra de Elia Kazan, um dos pais do renomado Actor’s Studio e defensor ferrenho do método de atuação de Stanislavski, investe unicamente no drama dos personagens, exigindo de cada ator o máximo de seu trabalho, opondo-se, é claro, aos tempos atuais, onde Hollywood investe quase que unicamente em produções megalomaníacas, repletas de efeitos especiais, que conseguem até mesmo transformar livros de criança em odisseias longas e vazias.
Elia já deixa claro seu foco na simplicidade através dos minutos iniciais de seu longa. Somos contados a historia de um homem da TVA, uma instituição governamental que visa minimizar as vítimas das enchentes de um rio específico criando uma grande represa. Isso, porém, significaria o alagamento de grande parte da região e os habitantes de uma pequena ilha fluvial em específico se recusam a abandonar suas casas. Ella Garth (Jo Van Fleet) é a espécie de líder de tal região e se demonstra ser uma verdadeira pedra no sapato de Chuck Glover (Montgomery Clift), que tenta ao máximo convencer a velha senhora a se mudar. No processo, contudo, ele acaba se apaixonando por uma bela jovem, Carol (Lee Remick) e, ao mesmo tempo, entendendo o ponto de vista da teimosa idosa.
Kazan introduz um evidente bucolismo em sua projeção através do uso emblemático da trilha sonora de Kenyon Hopkins, que perfeitamente se encaixa com a retratação antiga das moradas dos homens dali, que nos levam de volta ao início do século XX. Expandindo essa noção, temos a própria aversão da população local à tecnologia – mesmo a luz elétrica chega a ser uma novidade para eles, o que gera algumas bem-vindas sequências de alívio cômico. Permeando essas casas antigas de madeira temos uma vegetação em completa harmonia com o homem, transmitindo uma ideia de tranquilidade ao local.
É claro que essa harmonia é quebrada comam chegada do burocrata da cidade, que visa eliminar aquele meio de vida em nome do “progresso”. O conflito entre o velho e o novo é evidente e Elia investe em tal conceito através da própria personalidade de cada personagem. Enquanto Ella e seus vizinhos são mais durões ou simples, Chuck conta com uma educada passividade que chega a ser suspeita. Não temos aqui o típico herói do cinema clássico e sim um homem frágil, que claramente resolve tudo na base da conversa ao invés dos punhos. Glover se torna a figura do colonizador, trazendo a civilização para aqueles que não a desejam, ainda se sentindo como um herói no processo.
O diretor, porém, não não deixa fácil para o espectador. Cedo na projeção já começamos a nos questionar qual o lado certo daquele conflito de interesses. Junto de nos, é claro, temos a própria figura do protagonista, que passa a identificar as motivações da população local. O trabalho que mais se destaca é aquele de Jo Van Fleet, que garante uma notável profundidade à sua personagem meramente através do olhar. Com a direção precisa de Kazan vemos a rígida senhora se transformando no retrato daqueles que perecem em nome do progresso.
Diante de tal complexidade, alguns pontos não chegam a agradar completamente. A montagem de William Reynolds, desses, é a que se destaca, trazendo alguns cortes prematuros é uma intercalação demasiadamente rápida entre sequências, prejudicando o ritmo da obra que soa apressada em determinados pontos. A construção da relação de determinados personagens é prejudicada por tal fator, por não ser oferecido ao espectador o tempo necessário para acreditarmos nessas interações.
São erros pequenos, porém, que não tiram o mérito dessa retratação da simplicidade, da guerra das gerações. Rio Violento demonstra em sua totalidade a maestria da direção de Elia Kazan, que não precisa de enredos gloriosos para compor um dramático quadro de nossa constante realidade.
Rio Violento (Wild River – EUA, 1960)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Paul Osborn
Elenco: Montgomery Clift, Lee Remick, Jo Van Fleet, Albert Salmi, Jay C. Flippen, Frank Overton, Malcolm Atterbury
Gênero: Drama, Romance
Duração: 110 min.
https://www.youtube.com/watch?v=p2pOLdj1nXg
Crítica | Pânico nas Ruas - A Violência em Nova Orleans
Um ano antes de nos trazer Uma Rua Chamada Pecado, Elia Kazan dirige um filme com uma simples premissa, mas cujo desenvolvimento adota uma maior complexidade que se estende para a construção de seus personagens. Em Nova Orleans, um jovem policial deve impedir um possível epidemia. Para isso, ele deve capturar as pessoas que entraram em contato com o primeiro hospedeiro, que agora jaz morto, vítima de dois tiros.
A trama tem início nos mostrando o ocorrido. Um armênio gravemente doente, envolvido com criminosos, acaba sendo morto. Algum tempo depois a polícia o descobre no leito do rio e cedo descobrem que há algo de errado com o corpo. Sabendo disso, chamam o doutor Clinton Reed (Richard Widmark), que trabalha para o governo no controle de doenças. Kazan, contudo, leva seus primeiros minutos com calma, dando a devida e cuidadosa atenção a cada um de seus personagens. Vemos Clint e sua família, sua relação com sua mulher e filho ilustrando essa outra faceta de um homem também implacável em seu trabalho. São detalhes como esse que dão vida aos elementos na tela de Elia e sua direção garante não só a profundidade de cada um desses indivíduos, como a total atenção do espectador.
Mesmo as mais simples sequências (do ponto de vista do roteiro) são uma verdadeira maravilha de ser ver. Trabalhando com pontuais planos sequências, Kazan dá um notável ar de naturalidade para suas cenas e transmite, de forma única, uma mistura do clássico drama americano e um realismo à frente de seu tempo. O roteiro de Richard Murphy ainda acrescenta uma notável coesão aos diálogos, inserindo elementos em determinado momento que somente são resgatados minutos após, nos passando uma nítida sensação de que os personagens realmente vivem aquilo e são afetados por cada ação e reação dentro da trama.
Dito isso, partimos dessa introdução do protagonista para a problemática central: a busca pelos envolvidos no assassinato, a fim de evitar posteriores contágios. A tensão é rapidamente inserida no ar e vai tomando maiores proporções conforme avançamos na projeção. O pânico nas ruas que o título sugere, é o que o médico procura evitar e com ele temos o capitão da polícia local, Tom Warren (Paul Douglas). A relação entre os dois é trabalhada organicamente e a inimizade inicial vai dando espaço para traços de amizade, que, quando percebemos, já está presente na segunda metade da obra. São dois homens que desejam fazer o seu trabalho da melhor maneira possível e não necessariamente concordam um com o outro.
O foco em ambos acaba sendo interrompido, pontualmente, pelo ponto de vista dos criminosos envolvidos no incidente. À princípio tais cenas soam desconexas e desnecessárias dentro do cenário geral, mas, conforme nos aproximamos do fim, passamos a enxerga-las como essenciais para o desenvolvimento da narrativa – em especial para um mais dramático desfecho.
Infelizmente, contudo, esses minutos finais acabam nos deixando no desejo. Com uma perseguição demasiadamente longa, apesar de bem conduzida, o clímax acaba se desconstruindo e não nos causa o menor impacto. O resultado chega a ser óbvio e simplesmente pulamos da beira do ápice da tensão para depois dela. A sensação deixada é que algo está faltando nesses minutos finais, em especial diante da fluida construção da história até então.
Esse fator, porém, é apenas um detalhe perante a nítida qualidade da obra. Elia Kazan consegue nos prender com sua precisa direção até o fim – o deslize final é consequência do roteiro, que, ainda assim, foi condecorado com o Oscar. Pânico nas Ruas, sobretudo, ainda nos traz uma problemática bastante em voga atualmente, com obras como Contágio e The Strain (ao menos seu início), que lidam com a velha premissa da epidemia.
Pânico nas Ruas (Panic in the Streets – EUA, 1950)
Direção: Elia Kazan
Roteiro: Richard Murphy
Elenco: Richard Widmark, Paul Douglas, Barbara Bel Geddes, Jack Palance, Zero Mostel
Gênero: Crime, Drama
Duração: 96 min.
https://www.youtube.com/watch?v=gk1r0TO-US8
Crítica | Matrix Reloaded - A Jornada do Herói desconstruída
O maior e talvez único problema de Matrix Reloaded é o seu exagero. O primeiro Matrix é, por excelência, um filme completo, que inicia e encerra uma narrativa, abrindo portas para um universo que, sim, pode ser amplamente explorado. O exagero em Reloaded, portanto, não é o fato dele expandir a mitologia criada na obra de 1999 e sim os excessivos floreios que utiliza para contar uma história que poderia ter sido, à exemplo de seu antecessor, exibida de forma simples, concisa e precisa. O longa-metragem, contudo, caiu na máxima hollywoodiana do quanto mais melhor, criando uma estrutura dilatada que, em última instância, acaba cansando o espectador.
Isso quer dizer que temos aqui um filme feito para ser jogado diretamente no lixo? É claro que não! As mentes de Lana e Lilly Wachowski nos trouxeram inúmeros erros nessas duas continuações, mas muitos elementos ainda fazem desses filmes dignos de serem assistidos.
Uma evidente elipse entre Matrix e Reloaded se estabeleceu, criando um distanciamento por nós desconhecido entre as duas tramas. Neo (Keanu Reeves) se revelou como o escolhido, mas isso apenas abriu mais perguntas dentro de si – enquanto a confiança de Morfeu (Laurence Fishburne) na profecia se mantém inabalada, Neo deve buscar o seu verdadeiro propósito dentro de todo aquele cenário. O tempo para fazer isso, todavia, é curto: as máquinas, cientes da localização de Zion, realizam uma gigantesca operação de escavação a fim de burlar o perímetro de defesa da última cidade humana.
Com essa premissa, o filme já vem dotado de uma inerente sensação de urgência – há um tempo limite para todas as ações ali descritas e ele é curto. Em termos de aprofundamento, nós partimos exatamente de onde fomos deixados no primeiro filme. Não há esforços didáticos para nos relembrar de cada um dos elementos já apresentados, o que atua em favor da narrativa da obra. A jornada pelo buraco do coelho agora é muito mais profunda, nos levando não só à Zion como aos princípios fundamentais da Matrix. O design de produção mantém a mesma lógica estabelecida no longa antecessor e nos traz, através de Zion, uma verdadeira amálgama das culturas humanas. Com uma aparência sucateada, repleta de mecanismos que parecem ter sido tirados do início do século XX, esse último reduto é preenchido por pessoas que mais parecem refugiados (e de fato são!). Por baixo dessas roupas sujas e rasgadas, porém, conseguimos enxergar traços de suas vidas quando ainda na ilusão.
As Wachowski se mantém fiéis à sua premissa original nesse sentido e fazem das minorias a maioria nesse “mundo real”, relembrando que somente saem da caverna aqueles que não são apaixonados pelas sombras nela projetadas. As sequências em Zion resgatam grande parte da estupefação do espectador quando no primeiro filme – agora conhecemos um outro lado desse universo, que, por mais distópico que seja, ainda guarda esperança. É interessante, também, notar que existem diferentes pontos de vista dentro da cidade, que nem todos acreditam no mesmo que Morfeu, fator que ajuda a construir a fragilidade de Neo dentro da obra. Dentro da Matrix ele pode ser praticamente invencível, mas no mundo real ele é tão humano quanto Trinity (Carrie-Anne Moss) ou Link (Harold Perrineau, uma ótima adição como alívio cômico da obra).
Mas nem tudo se desenvolve fora do universo virtual. Dentro dele temos uma notável ênfase em outro aspecto da Matrix, os programas, mais notavelmente o Merovíngio (Lambert Wilson) e o Arquiteto (Helmut Bakaitis), além de uma abordagem criativa das backdoors. Andy e Lana trabalham com conceitos de computação de forma inteligente, dando consciência a praticamente qualquer software dentro daquele mundo, como se todos fossem uma inteligência artificial independente. A escolha por tal abordagem, é claro, requer um mínimo conhecimento de como tais elementos funcionam, mas nada que prejudique a nossa percepção da obra como um todo. O Merovíngio, em toda a sua pompa, é um dos pontos altos do filme, o que apenas prejudica a narrativa do longa quando percebemos que ele simplesmente some de uma hora para a outra. Já, tratando do Arquiteto, entramos no real problema da projeção.
Em uma única cena fica bem exemplificado o grande deslize das Wachowski. Na tentativa de criar algo rico e complexo, os diretores/roteiristas imprimiram uma linguagem exageradamente complicada, reparem como o diálogo com tal figura é repleta de palavras “difíceis” apenas para complicar uma ideia que poderia ser facilmente transmitida. O calculismo das máquinas, muito bem exibido em Matrix através do agente Smith (Hugo Weaving), é aqui abandonado, trocado por floreios eternos que acabam confundindo o espectador. A ideia de que toda aquela história é cíclica e que o escolhido é praticamente criado pelas máquinas é, então, perdida dentro de extensos diálogos que buscam esconder sua verdadeira mensagem.
Esse deslize se estende na mesma proporção para as cenas de ação da obra. Dilatadas e muitas desnecessárias, quebram o ritmo do filme, visando apenas um espetáculo visual, muitas vezes, vazio. O maior exemplo disso, é claro, é a sequência de luta entre Neo e as centenas de cópias de Smith, que parece ter sido tirada diretamente de um vídeo-game. A ótima coreografia do primeiro filme (que ainda se faz presente em diversas das lutas, felizmente) aqui é trocada por repetitivos golpes e contragolpes que não conseguem puxar o espectador para dentro de si. O conceito da liberdade e paralelo com um vírus de computador (ou, talvez, um câncer) se faz presente através de Smith e Weaving nos proporciona memoráveis momentos através de sua caricata vilania, mas muito da profundidade do personagem é perdida aqui, fruto de uma falta de foco do roteiro, que abandona a linearidade para explorar um terreno maior sem eficácia.
Essa dilatação vista na fatídica sequência também vale para outras, como a perseguição na via expressa, que dura um tempo considerável. Felizmente, alguns momentos empolgantes são inseridos aqui e lá. Cenas de ação que recuperam o espírito do primeiro filme resgatam a obra em questão. Vale destacar a primeira luta contra os agentes logo no início do filme e a batalha no hall de entrada da mansão do Merovíngio. Para que essas funcionem, é claro, temos um louvável trabalho da direção de fotografia de Bill Pope, em conjunto com a montagem já premiada (em Matrix) de Zach Staenberg, que conseguem nos situar mesmo nos momentos de maior agitação, utilizando a mesma lógica do longa anterior, utilizando close-ups e a câmera lenta para mascarar os efeitos especiais (práticos e não-práticos). Aliado a esses fatores ainda temos a emblemática trilha sonora de Don Davis, que aqui decide utilizar melodias mais presentes que se destacam do som ambiente em ritmos eletrônicos, feito em parceria com Juno Reactor. A música tema aparece, novamente, sob diversas variações, em geral acompanhada de ações que desafiam as leis da física.
Matrix Reloaded pode não estar à altura do filme original, mas certamente vale ser conferido. Trata-se de uma grande expansão da mitologia da franquia e, por mais que possua inúmeros deslizes, ainda permanece com um saldo positivo. Andy e Lana Wachowski erraram a mão em diversos aspectos, trazendo um roteiro cheio de floreios que deixa para trás a notável simplicidade de Matrix, mas fica evidente que a ambição dos irmãos é pautada em mais que apenas a necessidade do lucro.
Matrix Reloaded (The Matrix Reloaded – EUA/Austrália, 2003)
Direção: Lana Wachowski e Lilly Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski e Lilly Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Jada Pinkett Smith, Harold Perrineau, Lambert Wilson, Monica Bellucci
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 138 min
https://www.youtube.com/watch?v=kYzz0FSgpSU
Quem é a Capitã Marvel?
Considerada a heroína mais poderosa da Marvel (e não estou limitando apenas ao gênero feminino) a Capitã Marvel ganhou a atenção do público geral desde que seu filme foi anunciado pela Marvel Studios. Agora, com a estreia de Vingadores: Guerra Infinita, a procura pela heroína aumentou ainda mais, especialmente levando em conta a cena pós-créditos do filme. Ainda assim, a Capitã permanece bastante desconhecida por muitos, que somente ouviram falar dela recentemente. Este artigo busca jogar uma luz sobre quem é Carol Danvers, de onde vieram seus poderes, o que ela pode fazer e mais.
Dito isso, venham conosco visitar brevemente a trajetória dessa importante heroína da Marvel Comics!
Origem
O Capitão Marvel existe desde 1967 - isso mesmo, no masculino, já que, originalmente, o manto do herói era vestido por um Kree, Mar-Vell, introduzido em Marvel Super-Heroes #12. Desde então, existiram oito Capitães Marvel ao longo dos anos (Shazam não está entre eles). Mas quem interessa aqui é Carol Danvers, a atual Capitã e protagonista do filme que estreia em 2019.
Danvers foi introduzida na revista Marvel Super-Heroes #13 e originalmente era ajudante do primeiro Capitão Marvel. Piloto da Força Aérea americana, Danvers acaba sofrendo um acidente durante uma das aventuras de Mar-Vell, que acabou alterando seu DNA, o fundindo ao do Capitão, dando a ela superpoderes (algo que foi revelado apenas anos mais tarde), a tornando meio kree, meio humana. Danvers, então, assume o manto da Ms. Marvel, em 1977.
Por trinta anos ela permaneceu como essa heroína e se tornou a Capitã Marvel em 2012, em razão do sacrifício de Mar-Vell para salvar o planeta Hala, dos Kree, na guerra contra os X-Men (Vingadores vs X-Men). Na revista Capitã Marvel #1 ela assume o manto da heroína, continuando o legado de Mar-Vell após enxergar o quanto ele significava para ela.
Nesse período, a heroína ganhou um surto de popularidade, o que certamente motivou a Marvel Studios a realizar um filme solo da personagem, mesmo que anos e anos mais tarde.
Poderes
Como é o caso de praticamente todos os heróis dos quadrinhos, os poderes de Danvers foram se alterando com o passar dos anos, o que complica ainda mais em razão de sua transformação em outras heroínas ao longo de sua história.
Atualmente, no entanto, Danvers conta com superforça e resistência, tem um sexto sentido capaz de detectar ameaças iminentes, ela pode voar em seis vezes a velocidade do som (aproximadamente), pode absorver diferentes formas de energia para aumentar sua força ou para armazenar e explodir essa soma de energias. Danvers, contudo, não pode absorver energia de origem mágica sem pagar o preço por isso. Além disso, ela é capaz de disparar energia e explosões das pontas do dedo. Por fim, seu treinamento na Aeronáutica faz dela um excelente piloto e atiradora.
Principais histórias
Tudo o que leram acima não passa de um grande resumão superficial da história da heroína. Naturalmente que a melhor maneira de conhecê-la é lendo os quadrinhos. Mas aí entra o grande problema: por onde começar? Claro que nada impede de qualquer um pular logo para 2012, quando Danvers assumiu definitivamente o manto da Capitã, mas nossa sugestão é um pouco diferente.
A intenção aqui é conhecer a heroína mais a fundo, mas sem se perder nas mil fases de Danvers ao longo dos anos.
Dito isso, vamos lá!
♦ Marvel Super-Heroes #12 e 13: Aqui temos a introdução de Mar-Vell como o Capitão Marvel e de Carol Danvers, duas edições bem simples, apenas para conhecer a origem de fato de ambos os personagens.
♦ Capitão Marvel Vol. 1 #18: Já nessa revista temos o surgimento da Ms. Marvel. Em outras palavras, aqui ocorre o acidente que garante a ela seus poderes, tornando-a meio humana, meio kree.
♦ Ms. Marvel Vol. 1 #1-23: Antes de entrarmos nas histórias da Capitã Marvel em si, é bom saber exatamente o que a heroína pode fazer. Essas histórias da Ms. Marvel oferecem justamente isso, além de ajudar a ver qual a diferença na sua postura quando ela era Ms. e não Capitã.
♦ Capitã Marvel Vol. 1 em diante: Enfim, Capitã! Aqui vemos Danvers assumindo de vez o título da heroína, mantendo o legado de Mar-Vell vivo, apoiada por ninguém menos que o Capitão América. A partir daqui vemos as histórias que provavelmente serão usadas como base no filme - mais uma vez, provavelmente!
O grande problema (mais um!) é que a Marvel tem o péssimo costume de zerar suas histórias constantemente e criar mais e mais revistas com os mesmos personagens. Dito isso, nossa recomendação é ler todas elas, na ordem que foram publicadas. Isso permitirá conhecer bastante da atual fase da heroína. Aliás, em Guerra Civil II, Danvers conta com um papel de destaque, mas realmente recomendamos que passem longe dessa história, um resumão já basta!
Por fim, com essas informações, vocês já estão prontos para mergulharem no vindouro filme da Marvel Studios! Novamente, recomendamos que leiam os quadrinhos listados acima e, se gostarem da personagem, nada impede de lerem outras histórias com ela! Quanto mais melhor!
Crítica | Guardiões da Galáxia - Vol. 4 (2015-2017) - A Despedida de Brian Michael Bendis
Brian Michael Bendis teve uma entrada bastante conturbada quando se trata dos Guardiões da Galáxia. O volume três dos “vingadores cósmicos”, como foram chamados nessas edições, parecia uma grande encheção de linguiça da Marvel Comics, que parecia julgar a revista própria apenas para participar de suas sagas megalomaníacas como coadjuvantes glorificados. Durante os vinte e sete números da revista, Bendis não conseguiu nos entregar sequer um arco com início, meio e fim bem construídos, em virtude das constantes interrupções de eventos maiores da editora. Felizmente, o sucesso do filme de 2014 certamente surtiu um belo efeito nos quadrinhos e, nesse volume quatro, o roteirista conseguiu se redimir, nos entregando histórias que fazem jus ao que Andy Lanning e Dan Abnett criaram em 2008.
Apesar de ter a numeração zerada novamente, essa nova publicação dos Guardiões continua praticamente de onde fomos deixados ao término do volume anterior e, consequentemente, da saga O Vórtice Negro. Peter Quill agora é rei eleito de Spartax e Kitty Pryde, sua namorada/ noiva/ esposa (nem eles próprios sabem ao certo) tomou seu lugar na equipe. Evidente que isso não duraria muito, já que Quill serve para qualquer coisa, exceto aguentar as toneladas de burocracia de um planeta. Para agilizar essa queda de Peter como governante, Hala, a acusadora, suposta última sobrevivente dessa ordem dos Kree, jura vingança aos Guardiões, acreditando que eles foram os responsáveis pela destruição de seu planeta (eventos de O Vórtice Negro).
O que Bendis realiza nessa sua jornada final, é certamente uma das histórias mais coesas de toda a história dessa nova formação dos Guardiões. Do início ao fim, um fato puxa o outro, ao passo que testemunhamos pouquíssimas elipses e mesmo essas, presentes no início de cada um dos quatro arcos, não nos distanciam muito de onde fomos deixados na revista anterior. Enfim sentimos, de fato, como se estivéssemos acompanhando as aventuras da equipe e não somente uma colcha de retalhos formada através da participação deles em inúmeros eventos maiores da Marvel. Até mesmo a breve incursão de Peter & Co. pela Guerra Civil II é bem encaixada com o restante do volume, servindo, inclusive, como estopim para o último arco de Bendis, Grounded.
Ao terminar a leitura, fica bastante claro, ao leitor, que o roteirista tinha uma história feita em sua cabeça, pronta para ser contada. Em cada número ele nos oferece pinceladas de informações que, aos poucos, compõem o quadro geral, nos preparando para a batalha final das edições finais, um conflito há muito adiado e que, sob diversos aspectos, estivera sendo adiada desde o volume três. Cuidadosamente, o autor trabalha os seus personagens, com um destaque especial para Peter, Kitty e Gamora, explorando não somente os eventos presentes, como o passado de cada um, resgatando elementos trabalhados por Abnett e Lanning, tanto em A Imperativa Thanos, quanto na revista principal dos Guardiões da Galáxia. Dito isso, é gratificante enxergar que Bendis decidiu encerrar sua jornada com essa equipe através de um conflito com Thanos, da mesma forma que seus predecessores o fizeram, garantindo, portanto, um teor cíclico à narrativa.
Não podemos, é claro, deixar de falar sobre as “participações especiais” do volume, como Ben Grimm, Kitty, Angela e outros. Pryde já fora estabelecida como membro da equipe anteriormente e seu relacionamento com Quill é muito bem trabalhado, explorando a personalidade de ambos os personagens, mantendo o romance como uma constante incógnita, o que nos traz alguns hilários momentos de “D.R.”, jamais deixando a história ficar “piegas” demais. O Coisa, por sua vez, tem uma ótima dinâmica criada com o restante da equipe e, de imediato, o roteiro trabalha a sua vontade de estar fora da Terra, ainda que não nos diga exatamente o que o motivara a sair. Já Angela é trazida de volta mais para criar um vínculo com o volume três, mas sua camaradagem com os Guardiões dialoga perfeitamente com as histórias anteriores.
Bendis, contudo, não acerta totalmente na revista, errando, principalmente, no desfecho de cada arco. Embora, sabiamente, não construa algo verdadeiramente grandioso (na maior parte das vezes), sentimos como se cada fim fosse bastante anticlimático, com batalhas sendo resolvidas em instantes e outras simplesmente sendo puladas, como é o caso de Guerra Civil II. Nesse último caso a intenção era criar uma saída mais cômica e, de fato, o autor consegue tirar algumas boas risadas do leitor, mas continuamos sentindo aquele gosto de “quero mais”, que jamais é saciado. Felizmente, logo após cada um desses encerramentos já somos jogados direto, sem qualquer ruptura narrativa, no próximo arco, o que nos deixa ansiosos pelo que está por vir.
O texto escrito não é o único fator a contribuir para a grande coesão encontrada nesse volume. Nas mãos de Valerio Schiti, que permanece do início ao fim da revista, ao contrário da esquizofrenia da fase de 2013-2015, a arte nos cativa desde as primeiras páginas. Sabendo dialogar com o caráter mais cômico dos Guardiões, trazendo expressões caricatas, que muito bem resumem as emoções de cada personagem, o artista mantém o bom humor característico da revista como uma constante. É bastante gratificante enxergar como Schiti sabe trabalhar tanto os momentos mais íntimos desses dezenove números, quanto as grandes batalhas, criando quadros fáceis de entender, não importa quantos elementos estejam dentro deles. Fica bastante claro que o traço captou bem a alma dessa equipe, tornando toda a leitura fluida e prazerosa.
É fácil entender, portanto, por que o volume quatro de Guardiões da Galáxia se manteve em um nível de qualidade tão acima do anterior. Brian Michael Bendis acerta em cheio na construção dessa sua história, dessa vez, conseguindo nos trazer algo com início, meio e fim, mesmo com a presença de Guerra Civil II no meio de algumas edições. Temos aqui uma fase que resgata tudo o que fizera dos Guardiões uma leitura tão divertida e é nesse auge que Bendis se despede do grupo, já deixando saudades, como todo bom contador de histórias deve fazer.
Guardiões da Galáxia – Vol. 4 (EUA, 2015-2017)
Contendo: Guardiões da Galáxia (2015 – 2017 ) #01 a #19
Roteiro: Brian Michael Bendis
Arte: Valerio Schiti
Cores: Richard Isanove
Letras: Cory Petit
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: dezembro de 2015 a abril de 2017
Editora no Brasil: Panini Comics
Páginas: 472