Crítica | Sangue Negro - Obra-Prima Irretocável
Paul Thomas Anderson atinge seu ápice em seu quinto filme, considerado por muitos como sendo um dos melhores filmes dos anos 2000. Da comédia romântica, Embriagado de Amor, Anderson parte para o épico e traz para as telas uma perfeita reconstrução da corrida pelo petróleo no sul da Califórnia durante a virada do século XIX para o XX. O diretor, porém, como de costume, não permanece na superfície e escava profundamente a mente de seus personagens, trazendo de seus atores, especialmente Daniel Day-Lewis, interpretações que não só nos cativam como nos assustam verdadeiramente.
Os tons frios da fotografia abrem a projeção em uma região deserta. Ali presente somente um minerador em seu buraco procurando por pedras preciosas. Daniel Plainview (Day-Lewis) aos poucos começa a construir sua fortuna e da prata parte para o petróleo, fundando uma pequena empresa familiar, como ele próprio a descreve. Ao lado de seu filho adotado, H.W. (Dillon Freasier), o petroleiro é abordado por Paul Sunday (Paul Dano) que deseja vender o terreno de sua família. A escuridão e a sensação claustrofóbica marcada pela reunião entre os dois já oferece indícios do que poderíamos esperar do restante da obra. As terras que recebe sim, são prósperas, mas o irmão de Paul, Eli (também interpretado por Dano) deseja fundar ali sua Igreja e pouco a pouco assume a posição de principal antagonista do longa.
Similarmente a outros filmes, como Scarface, Sangue Negro retrata a ascensão e queda de um homem. A diferença aqui é que o protagonista se vê bem sucedido em todas as suas ações e seu declínio é em direção à loucura e à paranoia. Honestamente não conseguiria imaginar qualquer outro ator no lugar de Day-Lewis, em sua expressão temos um pai preocupado, um empresário ganancioso, um homem que beira a loucura, proveniente de sua ira reprimida, dentre milhares de outras sensações que nitidamente o personagem parece sentir. O turbilhão de emoções que vivenciamos ao assistir a obra certamente deve muito a cada olhar penetrante do ator, que utiliza todo seu corpo e sua voz para viver Plainview.
Do outro lado temos Eli, que representa não só o vilão, mas Deus e o Diabo ao mesmo tempo. Através dele vemos o julgamento pesar sobre Daniel e chegamos a efetivamente acreditar que uma força superior pune o petroleiro por não ter benzido seu poço. O interessante é como Anderson mantém essa inimizade, inúmeras vezes, em segundo plano. Sunday apenas observa as escavações em alguns planos e sabemos que isso é um mal presságio. A crença do protagonista é finalmente colocada em cheque com o acidente que toma a audição de seu filho e, de alguma forma, ele culpa o pastor pelo acontecido. O roteiro, contudo, não fica no óbvio e trabalha essas questões sutilmente, sem cair no didatismo exagerado e desnecessário, fazendo, portanto, o filme fluir.
Essa fluidez é o que certamente deixa toda a queda de Plainview ainda mais assustadora. Se não formos atentos não percebemos as mudanças no personagem, mais uma prova de quão humano o protagonista realmente é. Anderson deixa nas entrelinhas de seu roteiro, em diálogos bem posicionados o quanto a mente de Daniel está afetada e mesmo diante de todos os defeitos no caráter do homem ainda conseguimos nos identificar, nos relacionar com ele. Fruto evidente do trabalho de direção, que cuidadosamente enquadra o personagem da maneira correta nos pontos chaves - diálogos mais intimistas são marcados por um close, evidenciando toda a angústia do personagem. Suas mentiras, em geral, são mostradas com ele de costas ou de lado e os momentos de maior ação são filmados em planos mais longos, nos fazendo acompanhar o personagem a cada movimento. O maior exemplo disso é Daniel correndo com seu filho nos braços após o acidente, percebam como o cansaço do protagonista praticamente passa para nós, sua angústia e até mesmo seu medo e indecisão na escolha entre cuidar do menino ou salvar seu poço.
Dando vida a todo esse complexo cenário meticulosamente construído, temos a fotografia de Robert Elswit, ganhadora e merecedora do Oscar, que sabiamente emprega tons mais frios nas cenas abertas e um evidente granulado a fim de nos levar de volta para o início do século XX. Observando os campos escavados nos sentimos diante de um verdadeiro western e chega a ser surpreendente como muitos dos planos efetivamente parecem não meras construções cinematográficas e sim fotografias da época (apesar da impossibilidade técnica, em outras palavras, cores). Para construir o declínio do protagonista as cores passam a ser mais densas, escuras, quentes e cada decisão importante dentro da trama é justamente tomada nesses momentos, dialogando perfeitamente com o embate do personagem com Deus - no escuro ele toma suas decisões, fugindo do olhar da uma força superior.
Essa luta de um homem contra a divindade ou o destino, permeia toda a projeção, atingindo seu ápice no extasiante clímax, que perfeitamente dialoga com o icônico eu abandonei meu filho, dito na igreja do pastor. Daniel supera Eli e o vence de uma vez por todas, fazendo- o gritar que Deus é uma superstição, algo que apenas evidencia sua própria condição solitária no momento. No fim não há vencedores nesses dois lados, como o roteiro deixa claro através da frase I'm finished que pode ser traduzida como "eu acabei" ou "estou acabado". O único vencedor é Paul Thomas Anderson, que inegavelmente nos trouxe um dos melhores filmes dos anos 2000.
Sangue Negro (There Will Be Blood, EUA - 2007)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson (baseado no livro de Upton Sinclair)
Elenco: Daniel Day-Lewis, Paul Dano, Barry Del Sherman, Ciarán Hinds, David Willis
Gênero: Drama
Duração: 158 min
https://www.youtube.com/watch?v=0FIm5ATyAY0
Pantera Negra | Referências e Easter-Eggs
Mais um filme da Marvel nos cinemas e, como sempre, a obra está lotada de referências e easter-eggs, tanto aos outros filmes do estúdio, quanto à cultura pop em geral. Abaixo selecionamos algumas dessas referências e falamos sobre cada uma delas, portanto, contém spoilers! Se acham que faltou algo de destaque, basta comentar lá na seção de comentários abaixo. Não deixem, também, de acessar nossa crítica do filme, aqui, e leiam sobre as cenas pós-créditos, aqui.
Vamos lá!
1. Tênis de volta para o futuro
Durante a sequência de Shuri agindo como Q, na qual ela vai apresentando cada uma de suas artimanhas, a serem utilizadas pelo Pantera, ela acaba dando para T'Challa um tênis que se ajusta automaticamente e ainda cita que foi inspirado no filme preferido do pai deles - clara referência a De Volta para o Futuro 2 e os sapatos de Marty McFly no futuro.
2. Namor
"Você respira por piedade minha" diz o Pantera Negra para Ulysses Klaue. Essa frase foi tirada diretamente das HQs, mais especificamente New Avengers #22. Na revista, porém, o Pantera diz isso para Namor, pouco antes da grande briga entre os dois.
3. Outro garoto branco
Quando levam Bilbo Bolseiro, digo, Everett Ross para o laboratório de Shuri em Wakanda, ela diz "mais um garoto branco para eu consertar", fazendo referência, claro, a Bucky Barnes, que foi levado até o país após os eventos de Capitão América: Guerra Civil. Aliás, esse easter egg fica bem óbvio com a cena pós-créditos.
4. Cores de Bucky
Por falar em cena pós-créditos, vamos pular para esse momento brevemente. Quando Bucky sai de sua cabana, podemos vê-lo utilizando trajes com as cores típicas do Capitão América (vermelho e azul, obviamente) - mais um possível foreshadow de que o personagem irá assumir o manto do Bandeiroso futuramente. Será que o atual Capitão irá morrer? Afinal, Chris Evans não tem tantos filmes sobrando em seu contrato.
5. White Wolf
Também na cena pós-créditos, Bucky é chamado de Lobo Branco pelas crianças de Wakanda. Nas HQs, Lobo Branco é uma criança, Hunter, cujos pais acabam morrendo em um acidente de avião, que cai em Wakanda. Lá ele é criado por T'Chaka como um filho e acaba se tornando o chefe da violenta polícia secreta do país. Quando essa polícia é desmantelada pelo novo rei, Hunter sai do país e passa a viver como mercenário, mantendo sua lealdade ao irmão.
6. Sanctum Sanctorum
Próximo ao fim do filme, é dito que as forças de Killmonger estão prontas para atacar Nova York, Londres e Hong Kong - o que sabemos dessas cidades? Que elas contém os três Sanctums do Doutor Estranho.
7. Colar dourado
O colar dourado que Shuri mostra ao seu irmão (que posteriormente é utilizado por Killmonger) foi usado, nos quadrinhos, pelo Pantera Negra durante os anos 1990. Um claro easter-egg, mas que foi bem incluso no roteiro.
8. Bashenga
O primeiro Pantera Negra, conforme estabelecido por Jack Kirby (antes dos eventuais retcons), chamava-se Bashenga. No filme, esse nome é atribuído à montanha onde encontra-se toda a fonte de Vibranium de Wakanda - uma bela homenagem e referência aos quadrinhos originais.
9. What are those
Quando Shuri vê as sandálias de seu irmão, ela imediatamente diz "what are those?!", fazendo clara referência a um Vine famoso, no qual a pergunta é direcionada a um policial e seus sapatos.
10. Oakland
Oakland tem muitos significados em Pantera Negra. Primeiro, foi lá que surgiu o movimento dos Panteras Negras, em 1966. Além disso, o diretor do filme, Ryan Coogler, nasceu justamente nessa cidade e seu primeiro filme, Fruitvale Station, também com Michael B. Jordan, se passa em Oakland.
11. Máscara do Homem de Ferro
Durante a sequência do museu, um dos itens observados por Killmonger tem um design praticamente idêntico à máscara do Homem de Ferro (a versão antiga das HQs).
12. Moonlight
Ryan Coogler faz uma clara homenagem a Moonlight. A última frase do filme é dita por um menino interpretado por Alex R. Hibbert, que teve um papel de destaque no filme de Barry Jenkins, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2017.
13. Pais e filhos
Em um momento do filme vemos T'Chaka mais novo - o ator que vive o personagem nesse momento é filho do ator que interpreta sua contraparte mais velha. Além disso, a versão mais nova de Zuri, vivido por Forest Whitaker nos tempos atuais, é interpretada por Denzel Whitaker. Apesar do mesmo sobrenome, eles não são familiares, mas em O Grande Debate, Denzel Whitaker trabalhou ao lado de Forest Whitaker e... Denzel Washington!
14. Stan Lee
Como sempre, Stan Lee faz sua aparição em Pantera Negra. Dessa vez, ele aparece no cassino onde o Pantera tenta capturar Ulysses Klaue e conta com um dos diálogos mais extensos desde sua primeira aparição nos filmes da Marvel.
15. Leopardo Negro / Leopardo de Killmonger
O uniforme de Pantera Negra que Killmonger utiliza no final do filme (o com o colar dourado) parece ter umas marcas de leopardo. Isso faz referência a dois elementos das HQs. Primeiro, o Pantera Negra assume o manto de Leopardo Negro em determinado momento de sua história. Segundo, Killmonger já apareceu com um leopardo ao seu lado, como seu fiel sidekick.
16. Braço de Klaue
Klaue não é chamado de Garra Sônica à toa! Depois de ter seu braço arrancado por Ultron em Vingadores: Era de Ultron, o personagem substituiu seu braço por uma arma sônica, igual à sua contraparte nos quadrinhos.
17. Morte na Cachoeira
A "morte" de T'Challa no filme reflete um momento icônico dos quadrinhos, quando Killmonger também o joga da cachoeira, segurando o herói da mesma forma que fez no filme. Óbvio que ele retornaria, mas, ao menos, funciona como um belo easter-egg.
18. Máscara de Killmonger
A máscara utilizada por Killmonger (roubada do museu) quando ele resgata Klaue faz referência clara aos quadrinhos - primeiro a Mefisto, durante a fase de Christopher Priest frente ao herói; segundo ao próprio Killmonger, que utiliza uma máscara para lutar contra o Pantera em determinado momento das HQs.
19. Homem Gorila
M'Baku, nos quadrinhos, é chamado de Homem Gorila (Man-Ape no original). Ryan Coogler, no entanto, optou por não utilizar o nome, mas deixou a referência às HQs nos trajes e na própria cultura dessa tribo rival, que se veste como gorilas.
20. Pantera vs Rinoceronte
A aparição do rinoceronte e a luta entre ele e o Pantera vem direto dos quadrinhos, onde o herói também luta contra o animal.
***
O que acharam? Faltou alguma coisa? Perceberam algo que não colocamos na lista? Comente abaixo!
Legends of Tomorrow | Constantine aparecerá novamente na série
O último episódio de Legends of Tomorrow, série da CW baseado nas HQs da DC Comics, contou com a participação de John Constantine, vivido por Matt Ryan, que também encarnou o personagem na série solo cancelada do mago. Agora, o canal anunciou que Constantine irá aparecer em mais dois episódios da terceira temporada - o 15º e o 18º, ainda com Ryan no papel.
Enquanto isso, o futuro do personagem continua incerto na televisão - mas, dependendo da popularidade dos episódios, pode ser que vejamos um revival ou uma nova versão de série do mago.
Legends of Tomorrow é exibido pelo Warner Channel no Brasil.
Crítica | Jogada de Risco - A Condição Humana em Foco
O cinema não precisa de uma grande trama intrincada, repleta de twists, surpresas e ocorrências totalmente fora do lugar comum, muitas vezes tudo que ele necessita são alguns bons personagens unidos em situações que não pedem muitos floreios. A mera condição humana pode ser tão engajante, eu diria até mais, que qualquer blockbuster repleto de explosões e super-heróis – em Jogada de Risco, primeiro longa-metragem de Paul Thomas Anderson é tudo isso que temos, momentos bem construídos com diálogos (e neles incluo, é claro, os silêncios) hipnotizantes, que fazem de uma relação paternal algo a ser contemplado.
Um homem está sentado do lado de fora da porta de uma lanchonete, interpretado por John C. Reilly, John está claramente perdido, sem qualquer esperança para o futuro. Sua redução perante o mundo é marcada pelo plano aberto, que lentamente se aproxima de acordo com a atenção de Sydney (Philip Baker Hall), que aborda o sujeito perguntando se ele gostaria de um cigarro e uma xícara de café. O mais velho traz uma nítida rigidez em suas feições, sua vivência é clara e temos ali a figura de poder do quadro, ainda assim, mesmo com poucas palavras – essas com significado – ele procura ajudar o outro. Thomas Anderson constrói seu roteiro principalmente em volta desses dois personagens, Sydney, que viveu sua vida inteira nos cassinos apresenta alguns truques para John e o faz se reerguer. Com poucas sequências é estabelecido um forte vínculo de amizade e em ponto algum duvidamos dela. Mas, mais importante, somos apresentados para a dependência de um em relação ao outro. A paternalidade se constrói rapidamente e se torna um dos aspectos centrais da narrativa, de um lado o frágil e do outro a força.
Compondo todo esse quadro que funciona ao longo de um período de dois anos temos no palco central uma trama bastante simples, que não perde tempo inserindo eventos nitidamente apelativos. A tensão do desconhecido, contudo, é uma constante, perguntas como “quem é Sydney” ou o real motivo por trás de suas ações permeiam toda a projeção. Temos, é claro, alguns plot points que transformam o comum no inesperado e quebram a expectativa do espectador explodindo a tensão do que está na tela. Esses, porém, são sabiamente utilizados pelo roteiro a fim de movimentar a narrativa, criando novos rumos, ao invés de ficarmos unicamente girando em torno de eventos isolados. Percebam como o caso no quarto de motel é ligeiramente deixado para trás – a história efetivamente progride sem temer o desconhecido.
Naturalmente, para o texto funcionar apropriadamente o trabalho de direção de P.T. Anderson é essencial, conseguimos, apenas ao observar a expressão de cada ator, captar essencialmente a mensagem a ser transmitida. Mesmo o pouco movimentar de Philip Baker Hall, com seu jeito forte e silencioso, nos passa uma evidente carga emocional, que vai desde a compaixão, passando pela tristeza, até a ira. Não há exageros, apenas uma naturalidade a ser contemplada. A inconstância de John também é perfeitamente captada, expandindo a noção que temos de sua fragilidade, seu apoio na figura de pai de Sydney chega a ser infantil, mas não podemos deixar de nos identificar com o personagem ao lembrarmos de nossas próprias fraquezas diante do mundo.
Para a composição de tal enfoque, o trabalho fotográfico de Robert Elswit, que trabalharia posteriormente com Anderson em inúmeros longas, como Magnólia e Sangue Negro, é essencial. Há um amplo apoio nos close-ups, enfatizando a retratação na já mencionada condição humana. Esses, muitas vezes estáticos pulam de personagem em personagem trazendo o espectador para dentro da obra, colocando-o como outra figura naquele quadro. A tranquilidade desses enquadramentos mais parados, contudo, dá lugar, ora e outra, para uma câmera em lento movimento, seja para acompanhar o movimentar dos personagens, seja para fugir do plano e contra-plano, contribuindo visivelmente para a dinâmica da narrativa, especialmente quando a aposta está envolvida. Para coroar esse trabalho hipnotizante, temos a emblemática trilha de Jon Brion e Michael Penn, que organicamente introduzem melodias que conseguem captar a essência de cada imagem apresentada, sabendo trabalhar a expectativa do espectador e o manter completamente imerso naquilo que vemos na tela.
Paul Thomas Anderson, portanto, nos mostra, em seu longa de estreia, toda sua capacidade para fazer muito com efetivamente pouco, trabalhando com um roteiro bastante intimista, coeso e circular que nos fisga desde a cena da lanchonete até os créditos finais. O diretor nos prova que apenas uma ênfase no emocional de seus personagens é o suficiente para que nos apaixonemos por toda a sua obra, que, quando termina, já deixa saudades, implorando para uma segunda sessão.
Jogada de Risco (Hard Eight – EUA, 1996)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Philip Baker Hall, John C. Reilly, Gwyneth Paltrow, Samuel L. Jackson, F. William Parker, Philip Seymour Hoffman
Gênero: Drama
Duração: 102 min.
Crítica | O Último dos Moicanos - Um Clássico Imperfeito
Ocasionalmente nos deparamos com um filmes que nos deixaram com boas recordações, mas que, na realidade, não chegam à altura dessas saudosas memórias. Quando lidamos com clássicos - modernos ou não - algo similar ocorre, muitas vezes determinada obra é classificada como tal não pela sua qualidade, mas pela sua popularidade, seu impacto na cultura como um todo - bom exemplo disso é Os Caça-Fantasmas. Ouso dizer que, na mesma situação, encontra-se o longa de Michael Mann, O Último dos Moicanos.
Não que essa obra, baseada no romance de James Fenimore Cooper e, também, no longa de George B. Seitz, de 1936, seja péssima ou algo assim. Mas, certamente, ela apresenta perceptíveis deslizes, os quais, de uma forma geral, não impactaram sua receptividade, fruto de grandes acertos que quase eclipsam os seus defeitos, fazendo dessa uma experiência falha, porém muito proveitosa, justificando, pois, as boas recordações que permanecem conosco.
De fato, não podemos deixar de desconsiderar o corajoso roteiro de Michael Mann e Christopher Crowe, que coloca como grande antagonista um nativo-americano, questão problemática, dependendo da abordagem, considerando o massacre das populações indígenas nos EUA. Estamos falando de um filme de 1992 e não de meados do século XX, quando abordagens similares eram menos problematizadas. De toda forma, Mann e Crowe acertam na forma como lidam com o assunto, antagonizando a figura de Magua (Wes Studi), mas fazendo dele mais uma vítima da colonização da América do Norte pelos europeus.
Aliás, essa vilanização de Magua ocorre por duas razões bem claras. A primeira porque ele é uma figura presente do início ao fim - atazanando a vida dos “mocinhos” sempre que possível. Desde que intercepta Cora (Madeleine Stowe), filha do coronel Munro (Maurice Roëves) na estrada, sendo impedido por Hawkeye (Daniel Day-Lewis) e sua família, até a perseguição final, ele é demonstrado como uma figura inabalável, implacável, fazendo com que tomemos nítido desgosto por ele, por mais que entendamos sua simples sede por vingança - revelada já na metade do filme.
Claro que Mann não tenta esconder essa vilania em momento algum, deixando bem claro quem é o antagonista já em sua primeira aparição, com ele saindo das sombras do quartel-general das tropas inglesas. Wes Studi, evidentemente, merece elogios pela maneira como apresenta o olhar impiedoso de seu personagem, provocando medo no espectador pela simples certeza de que ele não irá desistir enquanto não obtiver sua vingança.
Já Hawkeye, ou Nathaniel Poe, é o completo oposto - não há vingança ou algo assim em seus olhos, basicamente ele vive ao lado de seu irmão e pai (adotivos) e decide ajudar Cora, sua irmã e o oficial inglês, Duncan (Steven Waddington), simplesmente porque esse é o correto a se fazer. O Último dos Moicanos se passa durante a Guerra dos Sete Anos, mas, quando se trata de seu protagonista, a obra facilmente poderia se passar na Idade Média - trocaríamos esse branco, criado por índios, por um cavaleiro (ou algo assim) e teríamos o mesmo resultado. Esse contraste entre o personagem de Day-Lewis e Magua é deixado bem claro quando o grupo principal se depara com os cadáveres de inocentes em uma fazenda - silenciosamente ele sofre com isso, mas se preocupa em tirar os ingleses do perigo e jamais pensa em ir atrás dos responsáveis por aqueles atos - completo oposto do vilão, que busca se vingar pela morte de sua família.
Nesse cenário, que toma várias liberdades artísticas, claro, a fim de criar a história mais dramática possível, é interessante observar como o texto se distancia o máximo que pode de conceitos como o bem ou o mal. Sejam franceses, ingleses, hurões, ou até mesmo os moicanos, todos tomam decisões dúbias, preocupam-se com seus próprios interesses, enquanto o grupo principal acaba sofrendo com as consequências - não há, de fato, como dizer quem está certo ou errado, sabemos apenas que o foco está na sobrevivência de Hawkeye, Cora e os outros.
Assim sendo, o romance entre o protagonista e a filha do coronel Munro prova ser essencial para o funcionamento dessa estrutura dramática - trata-se da segunda razão para a vilanização de Magua, que falei lá em cima. Por mais artificial que seja - ambos se apaixonam, literalmente, do dia para a noite, da mesma forma que Uncas (Eric Schweig) e Alice (Jodhi May) - é esse ponto do texto que faz com que nos importemos com a trajetória do grupo. Não conhecemos Cora o suficiente para nos preocuparmos com sua vida ou morte, mas criamos um vínculo com a relação entre ela e Nathaniel, fazendo com que, imediatamente, sintamos maior aversão a Magua, que tenta, ao máximo, matar as filhas do coronel.
Claro que grande parte disso se deve ao trabalho de Daniel Day-Lewis, que, como sempre, se entrega plenamente ao papel. Mais de uma vez sentimos como se ele estivesse, de fato, correndo e lutando para salvar a amada - há cansaço em seu olhar, determinação, permitindo que o vínculo com o espectador seja firmado. Sua dedicação é tamanha, que chega a fazer funcionar o constante uso da câmera lenta por parte de Mann, recurso claramente exagerado, desnecessário para esse filme em particular, mas que consegue ser digerido pela veracidade das ações representadas por Day-Lewis.
Existe, no entanto, um limite do que um ator pode fazer para um filme e, por mais talentoso que seja, não há como esconder as péssimas escolhas tomadas por Michael Mann em sua decupagem, especialmente durante as sequências de ação. Mann mostra o que não deve e esconde o que deveria mostrar, a tal ponto que chegamos a dar risadas - bom exemplo é o clímax, que conta com alguns planos de pessoas (bonecos) caindo de um desfiladeiro, da maneira mais artificial possível. Não bastasse isso, ao intercalar planos mais abertos, com closes no rosto dos atores, ele acaba fazendo com que não entendamos plenamente o que está acontecendo, ou onde está cada pessoa.
Aliás, é importante notar como o diretor simplesmente não sabe criar sequências dramáticas através dos seus enquadramentos, muitas vezes prejudicando consideravelmente nosso envolvimento com determinada cena. Não que Mann seja incapaz de nos presentear com alguns belíssimos enquadramentos - notadamente, muitos planos dessa filme merecem ser enquadrados, mas eles ficam perdidos em meio à tamanha bagunça, que quase nos esquecemos deles.
Felizmente, dois fatores cruciais escondem, um pouco, essa tragédia cinematográfica. O primeiro é a fotografia de Dante Spinotti, que, evidenciar o contraste entre a escuridão e as poucas fontes de luz, cria verdadeiras pinturas, especialmente durante a sequência do ataque ao forte, que traz planos que mais parecem pinturas a óleo retratando tal época. Essa escolha imprime bastante naturalidade às imagens, contribuindo consideravelmente para nossa imersão, que somente tem a ganhar com os meticulosamente fabricados figurinos e adereços.
O segundo fator é a emblemática trilha sonora de Randy Edelman e Trevor Jones, que traz um dos temas mais memoráveis da História do Cinema, tão impactante, que faz parecer que o clímax desse filme é uma obra-prima, quando, na realidade, é extremamente mal construído, indo de encontro com o construído contraste dos personagens centrais e o antagonista. Através dessas poderosas melodias trechos maçantes adquirem uma atmosfera épica, contrabalanceando os muitos deslizes da direção.
Dito isso, fica claro o porquê de O Último dos Moicanos ter se tornado um clássico dos anos 1990, por mais que esteja longe de ser perfeito. Com muitos problemas técnicos, a obra é salva pelas dedicadas atuações de Day-Lewis e Studi, além de uma trilha sonora inesquecível e direção de fotografia de encher os olhos de qualquer um. Certamente esse conjunto de grandes acertos merecia uma direção mais rebuscada, sem notáveis erros, mas, ao menos, podemos contar com as boas memórias deixadas por essa falha, porém proveitosa experiência.
O Último dos Moicanos (The Last of the Mohicans - EUA, 1992)
Direção: Michael Mann
Roteiro: Michael Mann, Christopher Crowe
Elenco: Daniel Day-Lewis, Madeleine Stowe, Russell Means, Eric Schweig, Jodhi May, Steven Waddington, Wes Studi, Maurice Roëves
Gênero: Drama, Ação, Aventura
Duração: 112 min.
Crítica | Feitiço do Tempo - Comédia Atemporal
Não são muitas comédias que conseguem nos fazer rir do início ao fim, mantendo um ritmo constante, seja de aventura, ou de frequentes quebras de expectativa – o clássico Curtindo a Vida Adoidado é um bom exemplo, que se tornou um filme eterno, podendo atingir de forma certeira qualquer direção. Mais raro ainda, contudo, é quando uma obra do gênero consegue nos levar em tamanha espiral de emoções que, no fim, somos pegos nos perguntando diante de que tipo de longa-metragem estamos. Feitiço do Tempo é um desses filmes, uma mistura perfeita de comédia, sarcasmo, humor negro, drama, romance e aventura que, no fim, nos deixa totalmente apaixonados pelo que acabamos de ver.
Tudo começa quando Phil (Bill Murray), um rabugento repórter, viaja para uma pequena cidade junto de seu operador de câmera e sua produtora para cobrir um evento conhecido como o Dia da Marmota, em que o dito animal prevê a chegada prematura da primavera ou não. Odiando cada segundo de sua estadia naquele fim de mundo, Phil acaba sendo forçado a permanecer ali em virtude de uma nevasca que os impede de retornar para suas cidades. O que o repórter não sabia, todavia, é que ele dormiria e voltaria no tempo para o início do dia do festival. Mantendo todas as suas memórias, ele é forçado a viver, repetidamente, em um mundo no qual o tempo não avança para o amanhã.
É interessante observar como o roteiro de Harold Ramis e Danny Rubin sabe desenvolver seu protagonista. Obviamente, Bill Murray, estando presente em praticamente todas as cenas, garante não só a ele como ao roteiro a possibilidade de explorar o personagem a fundo, mas o que nos chama a atenção é a maneira humana como ele é tratado. Partindo de um homem sem amor nenhum pela vida, aprendemos a prever o que ele irá fazer a seguir e suas ações iniciais são mais que justificadas. O texto, porém, não fica no óbvio e logo começa a flertar com o inesperado – jamais sabemos o que se passará no próximo Dia da Marmota e essa curiosidade criada em nós já é o suficiente para querermos continuar assistindo o filme.
Mas, como eu disse, Phil é explorado a fundo e logo começamos a enxergar as diferenças em sua personalidade. De rabugento, ele passa para louco, para aproveitador, apaixonado, depressivo e, enfim, para uma pessoa verdadeiramente boa, que sente prazer em ajudar os outros. O roteiro, aqui, é muito esperto em não deixar claro quanto tempo se passou desde a primeira repetição. Podemos acreditar que foram meses, anos ou décadas, o que já garante um realismo dentro da proposta do longa-metragem. O curioso é como sentimos o que o protagonista sente, seja sufocado por essa estagnação ou felizes com as infinitas possibilidades diante dele.
Evidente que a obra muito deve ao trabalho de Murray, que sabe transitar de forma fluida entre esses estados de espírito, apoiado por um roteiro que justifica seu ânimo a cada dia. Enxergamos no rosto do ator toda a mudança que seu personagem passa ao longo desse tempo, como se seu olhar ganhasse uma maior sabedoria e sua voz o peso dos anos de aprendizado (se é que foram anos mesmo). O sarcasmo na voz do ator também garante muitas das risadas ao longo do filme, desde ele prevendo os pequenos acontecimentos na rua, até a icônica cena na qual ele dirige com a marmota no colo. Acima disso, porém, sentimos todo o peso carregado por ele quando conversa com Rita (Andie MacDowell), por quem realmente se apaixona – não há como não sentir uma tristeza pelo personagem, que é forçado a acordar no dia seguinte sem que ela se lembre de tudo o que passaram juntos.
Um ponto bastante positivo da obra, que muito a diferencia de outras do mesmo gênero, é como o ritmo da narrativa contém a dose certa de drama e comédia. Ao invés de termos muito de um no início para lentamente o filme ser tomado por um tom mais sério, há uma nítida harmonia que permite um melhor equilíbrio desses dois dentro da projeção. Evidente que o tipo do humor sofre alterações conforme avançamos na trama, mas ele jamais deixa de existir, seja quando Phil decide matar-se inúmeras vezes, seja quando está em momentos românticos com Rita.
Feitiço do Tempo consegue, dessa maneira, fisgar-nos de forma certeira, não nos permitindo tirar os olhos da tela. Sentimos e vivemos como o protagonista em sua interminável sequência de dias repetidos, rimos, choramos e nos apaixonamos junto com ele, apenas para, como em um passe de mágica, ficarmos livres do Dia da Marmota e, como Phil, querermos repetir a dose mais uma vez. Um filme de comédia verdadeiramente icônico, que certamente merece um espaço de destaque dentro do gênero, permanecendo como uma boa lembrança em nossas memórias.
Feitiço do Tempo (Groundhog Day, EUA - 1993)
Direção: Harold Ramis
Roteiro: Harold Ramis, Danny Rubin
Elenco: Bill Murray, Andie MacDowell, Chris Elliott, Stephen Tobolowsky, Brian Doyle-Murray, Marita Geraghty, Angela Paton
Gênero: Comédia
Duração: 101 min.
https://www.youtube.com/watch?v=tSVeDx9fk60
Crítica | Trainspotting - Sem Limites
Danny Boyle certamente é um daqueles diretores que merecem ser observados de perto. Com uma filmografia bastante variada, que vai do apocalipse zumbi até cinebiografias, como é o caso do recente Steve Jobs, o realizador busca sempre manter o foco no psicológico de seus personagens e, no processo, acaba dando destaque para o talento de inúmeros atores ainda em ascensão – vide Ewan McGregor ou Cillian Murphy. Trainspotting – Sem Limites não é exceção, e nos mergulha no mundo das drogas de forma tão desconcertante quanto Réquiem para um Sonho, que seria lançado quatro anos após.
A trama gira em torno de Renton (Ewan McGregor), um jovem escocês que desde cedo se entregou ao vício da heroína. Similarmente ao filme já citado de Aronofsky, a história já se inicia com esse estado do personagem estabelecido. O curioso é que, mesmo assim, o que vemos é o auge dessa fase de sua vida. Conforme tudo vai por água abaixo, o protagonista é obrigado a lutar contra a substância, mesmo que com grande relutância. Podemos dizer que a obra é, portanto, um alerta do quão difícil pode ser largar esse hábito e como a pessoa sempre é puxada de volta pela droga. Mas limitar Trainspotting somente a isso seria um equívoco, visto que, acima de um longa que busca apresentar uma moral, ele se traduz como uma verdadeira experiência sensorial.
Há um toque de rebeldia na narração em off que logo nos apresenta aos personagens centrais da obra. Desde cedo já entendemos a necessidade de Renton em fugir da mesmice, desse sistema tão clichê que tira qualquer esperança de individualidade. Entendemos que ele busca sentir a vida e não apenas passar por ela tendo sua personalidade apagada e entregue à rotina do dia-a-dia. Com isso já sentimos uma imediata proximidade ao protagonista, ao passo que a estrutura narrativa segue aos moldes de Os Bons Companheiros, por exemplo, que primeiro nos mostra os atrativos dessa vida, para depois desconstruí-los.
É interessante observar como essa voz fora da tela do personagem consegue não se caracterizar como algo excessivamente didático. Muito pelo contrário, ela atua em conjunto com os elementos diegéticos para construir a cena, não busca explicar algo que já é mostrado. Através dela entendemos o que se passa na cabeça do jovem, grande mérito para o roteiro adaptado de John Hodge, que, merecidamente, recebeu uma indicação ao Oscar pelo seu trabalho. McGregor ainda consegue, em sua voz, transmitir uma grande dose de sentimentos que perfeitamente condizem com o que assistimos, como se efetivamente sua mente estivesse sendo transcrita pelo áudio.
Evidentemente que não é somente nesse quesito que o ator principal se destaca. Ewan consegue explicitar um misto de emoções, dúvidas e anseios que apenas tornam seu personagem ainda mais fascinante. Ele é imprevisível e ora parece ter controle de sua vida, ora parece estar sendo apenas levado pela maré, o que gera um delicioso antagonismo com sua ideia de libertação através das drogas, sua válvula de escape, que, na realidade, apenas o leva para outro compartimento fechado, somente mais uma prisão física e psicológica.
Com uma direção precisa, que sabe exatamente quando trazer planos mais fechados e abertos, a fim de mimetizar o efeito da heroína, Boyle nos joga para dentro da cabeça de seu personagem principal. Os efeitos práticos utilizados também são impressionantes e conseguem nos trazer uma imersão sem precedentes, que mantém nossa atenção totalmente fixada na tela. Sua loucura, suas viagens se tornam as nossas e uma curta projeção de apenas 94 minutos se dilata, nos trazendo a impressão que estamos acompanhando Renton por horas a fio. E isso não é um ponto negativo, é essencial para a apresentação da necessidade de mudança do protagonista, visto que precisa nos trazer a percepção do cansaço dessa vida repleta de inconstâncias, que, obviamente, conta com um prazo de validade bem próximo.
Mas nem tudo são flores e, como já dito antes, o filme mostra a desconstrução dessa vida utópica que Renton criara em sua mente e o roteiro de Hodge atua com bastante parcimônia, nos trazendo pequenas doses, à priori, do lado sombrio dessa vida, para, aos poucos, nos mostrar somente os aspectos negativos. Com algumas cenas e acontecimentos fortes ao longo da trama, o texto consegue trazer a perfeita transição da mentalidade do protagonista e a forma como ele pensa se torna a nossa, trazendo até um grande alívio quando, de fato, ele consegue se afastar de seu vício. Sabiamente, Boyle constrói seu filme quase que na totalidade com um tempo subjetivo, nos transmitindo toda a euforia de seus personagens e nos deixando, na dose certa, perdidos em relação a quanto tempo se passou desde que a história teve início.
Infelizmente, essa subjetividade cria uma pequena quebra de ritmo na segunda metade do longa, quando Renton passa a atuar como agente imobiliário. Nossa percepção é de que um novo capítulo se iniciou e somos forçados a nos habituar a ele novamente. Felizmente, a narrativa consegue rapidamente nos fisgar e nos traz um clímax simples, mas com bastante força ao retomar a cena inicial através, novamente, da narração em off, nos trazendo um ar cíclico, que funciona como uma brincadeira do roteiro, visto que, de fato, o protagonista conseguiu escapar desse seu ciclo vicioso que dominara grande parte de sua juventude.
Trainspotting – Sem Limites, ao término de sua projeção, nos deixa verdadeiramente cansados, mas genuinamente satisfeitos com o que acabamos de assistir. Trata-se de um longa-metragem pesado, que consegue nos divertir ao mesmo tempo, que nos traz náuseas em virtude de sua retratação realista desse mundo. Danny Boyle, em sua segunda obra para a tela grande nos mostra que veio para ficar, nos entregando um filme que é tão perturbador quanto educativo.
Trainspotting – Sem Limites (Trainspotting – Reino Unido, 1996)
Direção: Danny Boyle
Roteiro: John Hodge (baseado no livro de Irvine Welsh)
Elenco: Ewan McGregor, Ewen Bremner, Jonny Lee Miller, Kevin McKidd, Robert Carlyle, Kelly Macdonald, Peter Mullan, James Cosmo
Duração: 94 min.
Crítica | Precisamos Falar Sobre o Kevin - O Psicopata Pelos Olhos da Mãe
Baseado no romance homônimo da autora Lionel Shriver, Precisamos Falar Sobre o Kevin nos mostra a tentativa de racionalização de uma mãe sobre os feitos de seu filho, que acabaram o colocando na prisão. É uma indagação sobre o que transforma um psicopata no que ele é: a criação, os acontecimentos ao longo de sua vida, ou ele simplesmente nasceu assim? Apesar de ser uma ficção, o filme conta com uma dose de realidade assustadora, ao passo que chegamos efetivamente a acreditar que se baseia em fatos. Mas, pensando por certos aspectos, ele realmente se baseia.
O longa-metragem tem início com Eva Khatchadourian (Tilda Swinton) em uma espécie de festival, no qual carne com molho vermelha é jogado nas pessoas, já explicitando a ênfase nessa cor que permanece ao longo de toda obra, ao passo que em praticamente todas as cenas temos algo de cor vermelha, sempre nos lembrando da violência – ora discreta, ora totalmente exposta – que permeia toda a narrativa. Assistimos uma mulher completamente traumatizada e logo descobrimos que seu filho está na prisão. A partir daí, com um tempo sempre subjetivo, pulamos do passado para o presente inúmeras vezes, como se a protagonista buscasse entender o que ela poderia ter feito para provocar tudo aquilo.
Precisamos Falar Sobre o Kevin conta com uma atmosfera muito similar àquela de Elefante, de Gus Van Sant. Desde os primeiros minutos sabemos que algo muito errado vai/ está para acontecer, somente não sabemos exatamente o que. Essa angústia nos mantém completamente vidrados na tela e aos poucos as respostas nos são oferecidas. A princípio, o roteiro de Lynne Ramsay (que também dirige o filme) e Rory Stewart Kinnear nos mantém em um estado evidente de confusão – precisamos batalhar para efetivamente entender o que está acontecendo e, com o tempo, conseguimos. Esse estado, naturalmente, reflete o da personagem principal, que também se perde no passado a fim de obter respostas.
Chega a ser assustador como toda a cidadezinha onde Eva mora a culpa. Seu nome, obviamente, não vem por acaso – a culpada do pecado inicial – , quando ela própria é possivelmente a maior vítima de toda essa história. Sua relação complicada com Kevin (Ezra Miller, nos trazendo a encarnação perfeita de um jovem problemático), desde sua infância, chega a ser desconfortante, aos passos que ele sempre dera muito trabalho para a mãe e, apesar de seus acessos de raiva, Eva sempre estivera buscando se relacionar com o filho. A obra, nesse quesito, é corajosa, ao não nos oferecer uma resposta clara sobre a personalidade do filho, nos deixando tirar as próprias conclusões.
Swinton, também, realiza um trabalho digno de nota e fornece grande profundidade ao seu personagem – sua angústia chega a ser palpável e a mulher que vimos nos primeiros flashbacks é outra completamente diferente da que temos no tempo presente. Nela conseguimos sentir, porém, um verdadeiro amor pelo seu filho, apesar de tudo. Constantemente ela tenta se aproximar dele e a maioria das vezes sem resultado. Mas por trás disso tudo há um aspecto até bastante perturbador – somente a Eva, Kevin demonstrava quem realmente era, à sua própria maneira era dela de quem ele mais “gostava” e suas ações podem ser interpretadas como uma forma de constantemente chamar a atenção da mãe (ainda que em forma de tortura). O fato do personagem tê-la deixado viva é uma prova disso, uma forma distorcida de dizer que a ama, ao mesmo tempo que a exclui de qualquer círculo social, deixando somente ele próprio em sua vida.
Além do roteiro, a direção de Lynne Ramsay é outro fator que imprime grande subjetividade ao longa-metragem. Com uma decupagem que foca quase que inteiramente em Eva, entendemos desde o princípio que esse é o ponto de vista dela, os flashbacks são, na realidade, lembranças. A câmera, mais de uma vez, oculta inúmeros acontecimentos bem representando a inabilidade da protagonista de ainda lidar com eles, simbolizando a dor em ter de reviver esses fatos. É graças a esse foco que passamos a entender mais da finalidade da cor vermelha no filme, não se trata apenas da violência perpetrada por seu filho, como a das pessoas ao seu redor em relação a ela e, também, do amor de uma mãe, que coloca a culpa em si própria pelos traumáticos acontecimentos fora de seu controle.
Precisamos Falar Sobre o Kevin se encerra, então, com uma de suas cenas mais tocantes, quando o menino, assustado com o fato de ter de ser movido para uma prisão de adultos, enfim, se entrega ao abraço de sua mãe, revelando, mais uma vez, que nos momentos de maior fraqueza, ele se entrega a única pessoa de quem, à sua própria maneira, realmente gosta. Temos aqui um filme intimista sobre uma questão muito presente em nossa realidade, que cada vez mais nos abre mais questionamentos acerca dos motivos que levam um, chamado psicopata, fazer o que ele faz, quando, na verdade, ele próprio não tem essas respostas.
Precisamos Falar Sobre o Kevin (We Need to Talk About Kevin – EUA, 2011)
Direção: Lynne Ramsay
Roteiro: Lynne Ramsay, Rory Stewart Kinnear (baseado no livro de Lionel Shriver)
Elenco: Tilda Swinton, John C. Reilly, Ezra Miller, Jasper Newell, Ashley Gerasimovich, Siobhan Fallon Hogan
Duração: 112 min.
https://www.youtube.com/watch?v=Mmf42pkfgZw
Crítica | Sem Amor - A Doença do Ser Humano
Não é muito difícil nos depararmos com filmes sobre crianças desaparecidas/ sequestradas - a temática já rendeu dezenas de obras ao longo dos anos e, apesar dessa quantidade, poucas foram as que demonstraram abordagens diferenciadas, como foi o caso de Os Suspeitos, de Denis Villeneuve, por exemplo. Sem Amor, mais novo longa-metragem do russo Andrey Zvyagintsev, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, no entanto, apenas utiliza essa premissa para trabalhar (e criticar) os relacionamentos modernos e a nossa própria falta de empatia, independente de sua causa.
Enquanto muitos podem enxergar esse filme como uma crítica à Rússia atual, não posso deixar de enxergar nele um reflexo da humanidade nos tempos de hoje, um estudo sobre como temos negligenciado aqueles mais próximos de nós, a favor de ganhos pessoais, seja uma nova paixão, dinheiro, estabilidade, enfim. Temos esquecido o essencial diante de nossos olhos e focado no que é mais atraente e, na maior parte dos casos, dispensável - aqui incluo a constante atratividade da tela do celular, o que não deixa de ser uma grande ironia, se considerarmos que essa crítica pede justamente que o leitor olhe para uma tela e fuja do “mundo real”.
São olhares críticos como esse que se fazem tão necessários nos dias de hoje, nessa sociedade do espetáculo, que tem como auge da importância o próximo filme de herói a ser lançado - e aqui o filme de herói pode ser trocado pelo objeto de seu maior interesse, na maioria das vezes. O roteiro de Oleg Negin e do próprio Zvyagintsev acerta em cheio ao utilizar a figura da criança para criar o impacto de sua mensagem, afinal, que premissa é mais facilmente relacionável do que a de uma criança desaparecida? Como dito antes, porém, esse ponto funciona simplesmente como o veículo da mensagem e não ela em si.
Tal escolha do texto fica bastante clara pela maneira como a narrativa é construída no seu primeiro ato. Conhecemos o casal Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin) no meio de sua problemática separação. Ambos já partiram para outras paixões e parecem relegar o filho, Alyosha (Matvey Novikov), a segundo plano, se preocupando mais com seus novos interesses românticos e empregos do que com a criança. A obra gasta um bom tempo de sua duração total para construir esse cenário, mostrando o ex-marido e ex-mulher em seus respectivos ambientes de trabalho e com seus novos companheiros, propositalmente se esquecendo do jovem garoto, que é visto por último indo para a escola, com bastante pressa, diga-se de passagem.
Nesse ponto, no entanto, já foi criada a suspeita de seu desaparecimento - em um trecho de partir o coração, vemos ele descobrindo sobre a separação dos pais, enquanto se esconde atrás da porta. Dessa forma, o texto praticamente obriga o espectador a se perguntar “e a criança?”, enquanto acompanhamos longas sequências exclusivas do pai e da mãe.
Naturalmente que essa escolha do texto, propositalmente burocrático, primeiro mostrando um longo trecho de um personagem, para, em seguida, pular para o outro, é essencial para que seja criada a ilusão de passagem de tempo - de fato, nem um dia se passou, mas, para nós, parece foram semanas desde que os pais estiveram com o filho, evidenciando a negligência para com o garoto, que, especialmente nesse momento, precisava de atenção, justificando, assim, sua fuga e desaparecimento, que, enfim, coloca a narrativa em sua plena velocidade.
A partir daí, o que poderia facilmente continuar como as típicas tentativas dos pais de encontrar a criança, acaba focando ainda mais na relação dos dois, aumentando nosso choque, ao passo que os vemos, aparentemente, continuando a se preocupar com si próprios, ao invés do filho desaparecido. Dessa maneira, gradualmente, Negin e Zvyagintsev criam uma atmosfera não só real, como deprimente, que nos força a pensar sobre nossas próprias ações e aquelas das pessoas à nossa volta. A obra estilhaça por completo a empatia do ser humano e nos retrata como figuras problemáticas, com uma abordagem bastante pessimista, que foge dos costumeiros clichês de filmes sobre casais se separando.
A própria fotografia e as cores mais frias contribuem para esse sentimento, tirando qualquer vislumbre do calor das relações humanas, substituindo pela solidão e o sofrimento. A imagem, como os personagens centrais, parece estar doente, como se estivesse retratando o mais sombrio dos tempos, como se, de fato, não houvesse qualquer esperança - ponto bem salientado pela narrativa, que se torna cada vez mais pesada, enquanto o casal que busca o filho passa a entender plenamente a situação na qual se encontram.
No meio dessa construção, contudo, a obra acaba provocando constantes rupturas no seu ritmo - não se trata da já falada proposital escolha de evidenciar a passagem de tempo e sim uma divisão bastante clara entre os diferentes “estágios” da busca. Tal fator, embora funcione para mostrar o trabalho dessa investigação, acaba quebrando, ocasionalmente, nossa imersão, basicamente pedindo que o espectador se force a continuar atento.
O esforço, porém, não é tão grande assim, visto que toda a atmosfera construída por Andrey Zvyagintsev mais que dá conta desse recado, mantendo uma profunda angústia em nós, enquanto a narrativa assume seu estado mais depressivo. Dessa maneira, Sem Amor mais do que prova que seu título resume a obra perfeitamente, tudo enquanto utiliza a premissa de uma criança desaparecida para evidenciar o quão carente de amor está o nosso mundo. De fato, essa falta de empatia acaba sendo a grande doença do ser humano.
Sem Amor (Nelyubov - Rússia/ França/ Alemanha/ Bélgica, 2017)
Direção: Andrey Zvyagintsev
Roteiro: Oleg Negin, Andrey Zvyagintsev
Elenco: Maryana Spivak, Aleksey Rozin, Matvey Novikov, Marina Vasileva, Andris Keiss, Aleksey Fateev, Sergey Borisov, Natalya Potapova, Anna Gulyarenko
Gênero: Drama
Duração: 127 min.
Crítica | O Sacrifício do Cervo Sagrado - A Peculiaridade de Yorgos Lanthimos
Já no início de sua carreira cinematográfica, Yorgos Lanthimos, através de seu terceiro longa-metragem, Dente Canino, começou a ganhar a atenção do público internacional. De origem grega, essa sua obra foi indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e esse devido reconhecimento, naturalmente, ajudou a colocar O Lagosta, seu imperdível filme, lançado em 2015, no mapa - ainda que estejamos falando de uma presença bem limitada no circuito, dominado, principalmente, por blockbusters e afins.
Desde então, já se tornara notável a identidade do diretor, que constrói mundos e personagens pautados na idiossincrasia, com peculiaridades, estranhezas, visíveis, como se a relação entre um ser humano e outro fosse algo extremamente desconfortável - questão que ele chega a utilizar como cerne do já citado O Lagosta. O mesmo pode ser observado em O Sacrifício do Cervo Sagrado, obra baseada na peça Ifigénia em Áulide, de Eurípedes, que cria uma tensa atmosfera, que chega a ser aterrorizante, mas ocultando, por boa parte do filme, o que, de fato, há de errado.
É esse incômodo, de não saber exatamente o que está fora do lugar, que nos preenche durante os primeiros trechos desse novo longa do diretor. Acompanhamos Steven (Colin Farrell), um cardiologista, enquanto ele nutre uma estranha relação de paternidade com o filho, Martin (Barry Keoghan), de um de seus pacientes que morreu durante uma cirurgia. O subtexto da culpa do médico, de ter perdido a vida do homem, está ali, mas nunca é trazido à tona - ele diz não se julgar culpado, mas por qual outra razão manteria um contato tão próximo com o filho do paciente falecido?
O texto de Lanthimos e Efthymis Filippou brinca com essa dúvida e com a própria estranheza do modo de falar dos personagens - a já citada marca do diretor - para passar a impressão de que ambos estão tendo um caso. De fato, o desenvolvimento da trama busca criar essa sensação ao primeiro introduzir os dois e, em seguida, a família do médico. Assim sendo, antes de propriamente nos mostrar qual é a problemática central da obra, o texto nos mantém presos através desse ponto, apenas para subverter toda essa construção mais adiante, quando descobrimos que a família de Steven é atingida por uma estranha condição que os deixa paralisados nas pernas e que Martin, provavelmente, tem algo a ver com isso.
Já no meio do filme podemos ter a ideia do que irá acontecer - o próprio título deixa isso bem claro. Mas Lanthimos não constrói seu filme através de grandes plot twists e sim pela já citada tensão, que segue de forma crescente, tomando conta do espectador. A grande pergunta que nos acompanha não é “o que acontecerá” e sim “como acontecerá”, enquanto a agonia dos personagens centrais aumenta cada vez mais.
Interessante é observar como o diretor nos mantém sempre no estado de observador - ele quer que mantenhamos a devida distância dessa história e consegue através dos constantes planos distantes, alguns bastante abertos, como se não quisesse que nos aproximemos demais desses personagens. Isso, claro, contribui para a sensação de estranheza que permeia todo o longa e, desde cedo, nos deixa com aquela pulga atrás da orelha - a já falada sensação de ter algo errado nessa história.
Tal escolha na decupagem, claro, pode refletir o caráter da obra - adaptada de uma peça. Mantendo a câmera mais distante dos personagens a linguagem assume um caráter até mais teatral - não, não há teatralidade por si só no filme, mas sim uma visão mais clara daquelas pessoas como personagens, como se um pouco do ilusionismo do cinema fosse embora. Ironicamente, ao mesmo tempo, tudo se torna mais real, nos pegamos como figurantes, meramente observando o que se passa ali - assim sendo, os personagens ganham vida, apesar de suas peculiaridades.
Claro que toda essa bastante diferente construção deve muito ao trabalho realizado pelos atores centrais. Colin Farrell, que já trabalhou com o diretor em O Lagosta, não foge muito do que vimos nesse outro filme. Ele é praticamente robótico, como estudasse cada palavra e, por incrível que pareça, isso não é um defeito - muito pelo contrário. Farrell, mesmo com as idiossincrasias de seu personagem passa a impressão de ser, de fato, daquele jeito - não há artificialidade em sua representação, trata-se apenas de um personagem estranho, algo que se estende para sua esposa, vivida por Nicole Kidman, no segundo recente trabalho conjunto com Farrell (ambos atuaram em O Estranho que Nós Amamos).
Essa proposital ausência de qualquer calor humano, de química não só entre o casal, mas como entre qualquer indivíduo do longa, dialoga diretamente com a própria “escolha de Sofia” que vai tomando conta da trama. Voltamos para o almejado afastamento nosso dessas pessoas, que possibilita que enxerguemos tudo como uma grande ironia, captando todo o maldoso sarcasmo do texto de Lanthimos e Filippou, que, aliás, chega a brincar até com o nome do protagonista, Steven, referenciando claramente a expressão “even-steven”, que diz respeito à igualdade, “estar quites” - ponto central do roteiro, a partir do momento que o grande problema da história é revelado.
Não podemos esquecer, também, da perturbadora interpretação de Barry Keoghan como Martin, que desde cedo nos faz desconfiar do relacionamento entre ele e o médico. Keoghan dá vida a um perfeito psicopata, que, mesmo na sua simplicidade, provoca medo no espectador. Aliás, pontuais efeitos sonoros, não diegéticos, contribuem para nosso desconforto, como se tudo alertasse para o perigo iminente, outra marca de Lanthimos, que utiliza o som quase como um personagem externo, que aparece pontualmente, na hora certa.
Podemos dizer, no entanto, que parte da força desse intrincado cenário acaba indo embora em razão da duração do filme, que é mais longo do que deveria ser. Determinados trechos claramente poderiam ser encurtados ou cortados plenamente, visto que, alguns deles, meramente repetem o que já sabemos. Toda a maldosa excentricidade da trama não deixa de divertir, mas funcionaria muito melhor com alguns minutos a menos, evitando de provocar um nítido cansaço no espectador.
Ainda assim, O Sacrifício do Cervo Sagrado não deixa de ser mais um grande acerto de seu diretor, que, mais uma vez, nos entrega uma história diferente de tudo com o que estamos acostumados. Verdadeiramente angustiante, esse longa-metragem de Yorgos Lanthimos demonstra sua forte identidade, enquanto somos mergulhados nesse mundo tão carente de calor humano e que, ironicamente, lida justamente com a perda. Sarcástico e perturbador, temos mais um filme do diretor que merece nossa atenção.
O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer - Reino Unido / Irlanda / EUA, 2017)
Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Yorgos Lanthimos, Efthymis Filippou
Elenco: Colin Farrell, Barry Keoghan, Nicole Kidman, Barry G. Bernson, Herb Caillouet, Bill Camp, Raffey Cassidy, Denise Dal Vera
Gênero: Drama
Duração: 121 min.