Crítica | A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy - Boas ideias desperdiçadas
Cerca de um mês após sua estreia, A Hora do Pesadelo já era um sucesso. Seu orçamento de aproximadamente 1,8 milhões de dólares foi devolvido em lucrativos 10 milhões, que logo cresceram para um total de 25 milhões durante sua estadia nos cinemas americanos. Ainda contando a recepção positiva para o personagem de Freddy Krueger, uma continuação era prioridade para a New Line Cinema. Porém, ignorando a saída do criador Wes Craven e apressando as máquinas para lançar o filme com apenas um ano de diferença do original, não é surpresa que tenhamos tido algo pavoroso e capenga quanto A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy.
Assinada pelo estreante David Chaskin, a trama parte de uma premissa interessante. Nancy Thompson e seus amigos não estão mais por aí, mas sua casa é comprada pela família do adolescente Jesse Walsh (Mark Patton). Tentando se adaptar à vizinhança e a nova escola, Jesse começa a ser assombrado em seus sonhos e na vida real pela presença maligna de Freddy Krueger (mais uma vez, Robert Englund), que tenta possuí-lo para cometer assassinatos.
De imediato, é uma ideia admirável pelo fato de não se limitar a uma mera repetição da fórmula original. É até ousado que o roteiro de Chaskin aposte em pouquíssima presença de Krueger, concentrando-se principalmente no promissor jogo mental entre Jesse e o assassino onírico e imagens impactantes, como o adolescente subitamente se dando conta da luva de garras em sua própria mão ou a cabeça de Freddy tentando estourar de seu estômago.
Ideias promissoras, mas que são desperdiçadas em um dos roteiros mais frouxos e sem profundidade alguma. Aliás, o próprio Chaskin admitiu que fez todo o texto para sugerir um subtexto homossexual, algo que seria interessante e inédito no gênero se bem trabalhado, mas que acaba soando risível quando temos diálogos como “Há um homem tentando sair de dentro de mim!” ou uma sequência de pesadelo que envolve Freddy torturando um professor de ginástica ao acertar toalhadas em seu traseiro nu… Em uma sauna… Logo após uma perseguição em um clube de S&M. É, isso realmente é classificado como um filme de terror. Não é nenhuma surpresa que Wes Craven não quis nenhum envolvimento com o projeto.
Nenhum dos personagens é cativante como a Nancy do primeiro filme, e mesmo que Jesse traga os clichês necessários para um personagem de terror que gera empatia, a performance de Mark Patton é forçada e absolutamente irritante, como se ninguém ali – nem Patton ou o diretor – levassem algo ali a sério. Não há muito o que falar sobre o restante do elenco, a menos que Robert Englund é malignamente divertido como no original e que Kim Meyers é assustadoramente parecida com uma jovem Meryl Streep. Só na aparência, claro.
O diretor Jack Sholder também falha ao compreender a figura de Freddy e seu imenso potencial. Não há uma única sequência capaz de provocar suspense ou pelo menos dinamismo visual (com exceção da abertura em um ônibus escolar, mas o fato de a melhor cena estar nos segundos iniciais é preocupante), deixando o brilho para o departamento de maquiagem e efeitos especiais, que mais uma vez exploram bem o gore provocado pelo assassino.
Não sabendo aproveitar as boas ideias e o gigantesco potencial de seu glorioso monstro, A Vingança de Freddy é uma decepcionante e esquecível continuação, lembrada apenas por sua mediocricidade. Felizmente, Wes Craven estava observando tudo de longe, e as coisas se saíriam melhor no próximo capítulo.
A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy (A Nightmare on Elm Street 2: Freddy’s Revenge – 1985, EUA)
Direção: Jack Sholder
Roteiro: David Chaskin, baseado nos personagens de Wes Craven
Elenco: Robert Englund, Mark Patton, Kim Meyers, Robert Rusler, Clu Gulager, Hope Lange, Marshall Bell
Gênero: Terror
Duração: 87 min
https://www.youtube.com/watch?v=9iqNVyjwLFA
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Crítica | Todo o Dinheiro do Mundo - Os Problemas do Primeiro Mundo
Veio como um furacão despercebido. Quase nenhum burburinho estava sendo feito por Todo o Dinheiro do Mundo, filme de Ridley Scott que a maioria nem tinha ciência de que seria lançado, afinal, o lendário diretor concentrava mais a divulgação de seu outro projeto do ano passado, Alien: Covenant. Assim, quando o primeiro trailer saiu, a reação mais calorosa, no máximo, foi a de "uau, onde Ridley arranjou tempo de fazer outro filme?". Porém, alguns meses depois, os escândalos de abuso sexual começam a pipocar em Hollywood, e o ator Kevin Spacey, uma das "armas secretas" do filme de Scott, acabou afastado e teve sua carreira praticamente destruída.
Era o fim de Todo o Dinheiro do Mundo, que trazia um Spacey envelhecido com quilos de maquiagem para viver o magnata do petróleo J. Paul Getty, e a Sony até pretendia fazer uma pesada campanha para garantir uma indicação ao Oscar para o ator. Parecia o fim, mas não para Ridley Scott, que decidiu fazer o impossível: regravar todas as cenas de Spacey com outro ator - no caso, Christopher Plummer - e ainda manter a mesma data de estreia, com um cronograma louco de apenas alguns meses para finalizar tudo. Nunca antes na história do cinema houve algo do gênero, com uma substituição de ator tão em cima da hora. Obviamente, isso reverteu o mínimo interesse inicial pelo projeto em algo que todos simplesmente precisavam ver. No fim, Todo o Dinheiro do Mundo é um filme eficiente, mas nem de longe tão empolgante quanto a corrida contra o tempo de seus bastidores.
A trama é baseada na história real do sequestro de John Paul Getty III (Charlie Plummer), jovem de 16 anos que é tomado pelo grupo criminoso Ndràngheta em Roma na década de 70. Entrando em contato com a família Getty, os sequestradores exigem uma quantia milionária em troca de sua soltura, forçando sua mãe Gail Harris (Michelle Williams) a pedir ajuda a seu ex-sogro, o magnata J. Paul Getty (Plummer). Recusando-se a pagar o resgate, Getty contrata o ex-agente da CIA Fletcher Chase (Mark Wahlberg) para ajudar Gail e recuperar seu neto.
É curioso como, às vezes, toda a Hollywood parece interessada no mesmo assunto. Além do filme de Ridley Scott, a história do sequestro de Paul Getty também vai gerar uma série de antologia na FX: Trust, que será dirigida por Danny Boyle e trará Donald Sutherland como o magnata, além de Hilary Swank e Brendan Fraser nos papéis de Williams e Wahlberg. Até a produção televisiva chegar, temos uma boa representação dessa história pelas mãos do roteirista David Scarpa, que faz um bom trabalho ao criar o contexto dos Getty e nos apresentar a esse mundo privilegiado e quase surreal através dos olhos de Paul; a estrutura não linear no primeiro ato é um tanto problemática, já que ficamos um tanto perdidos no vai e vem temporal após o sequestro do jovem, que abre o filme. Claro, nem precisei ir muito longe no Google para perceber que Scarpa lotou sua narrativa de romantizações e elementos que não ocorreram na vida real - e isso nunca me incomodou em dramatizações cinematográficas, afinal isso não é um documentário -, buscando assim alguns arcos de personagem que funcionam bem em tela.
A Gail de Michelle Williams, principalmente, ganha um retrato que foge do clichê típico do gênero: nunca a vemos tão histérica ou desesperada, e até os jornalistas questionam sobre o fato de ela não estar chorando, e Williams consegue sutilmente transmitir a ideia de uma mãe "irritada" por ser filho ter sido raptado. Quando Gail e Fletcher descobrem a cela do rapaz, depois de este já ter sido transferido para outro cativeiro, a reação e o modo com que Gail pega o paletó do filho - de cara já esperamos um abraço melancólico na peça de roupa - é a de alguém que espera encontrar respostas ali, e a raiva sempre parece vir em primeiro lugar. Sua insistência em não aceitar dinheiro de ninguém também rende algumas cenas inspiradas - e claramente inventadas -, como quando envia mil cópias de um jornal relatando o acontecimento de seu filho para a mansão de Getty. Uma ótima performance de Williams, que garante também bons momentos com Wahlberg, em uma atuação correta e convincente na maior parte do tempo, ainda que longe de ser algo realmente expressivo.
Mas é claro, o que todos queriam saber é como a substituição de Spacey por Plummer acabaria ficando, e o resultado é perfeito. Em momento algum vemos algum indício de falha de continuidade ou bigodes digitais, sendo um trabalho impecável de montagem e concisão, e Scott merece créditos pelo feito notável. E Christopher Plummer está excelente, algo que é ainda mais bizarro de se absorver quando pensamos que o ator rodou essa performance há alguns meses atrás, e agora está merecidamente indicado ao Oscar. Seu Getty é mesquinho e calculista - só concordando em pagar o resgate ao descobrir um atalho na dedução de impostos da Receita Federal - mas Plummer e o texto de Scarpa oferecem uma bela camada ao personagem (não à figura real, creio eu), que é a de um homem que deposita sua fé e confiança nas coisas, por nunca ter certeza das reais intenções daqueles à sua volta, afinal, sua fortuna é cobiçada por todos. Plummer encarna todas essas facetas muitíssimo bem, e mesmo que não possamos avaliar a performance de Spacey, faz muito mais sentido contratar um ator idoso para viver um idoso, ao invés de cobri-lo de quilos de uma maquiagem que parecia tola artificial.
Com essa reviravolta nos bastidores já comprovando sua habilidade como produtor, Ridley Scott tem bons momentos na cadeira de diretor aqui. Ao lado do fotógrafo Dariusz Wolski, Scott pinta uma visão apropriadamente sombria e contrastada dos anos 70, em uma estética que parece uma combinação de seu trabalho em Covenant e O Conselheiro do Crime, e os dois fazem um bom proveito das belas paisagens e edifícios italianos; com o calor destes contrastando com a paleta fria e mais opressiva da mansão Getty. Com uma história tão tensa, Scott tem a oportunidade de revisitar seu lado mais macabro, e o momento em que os sequestradores resolvem enviar uma orelha de Paul para comprovar suas intenções, vemos aí que o diretor de Alien, O Oitavo Passageiro ainda é muito capaz de nos fazer ter calafrios. De forma similar, algumas decisões de Scott são muito estranhas, como a pseudo-cômica cena em que um dos sequestradores é baleado em slow motion enquanto defeca no mato. Err, Ok.
No fim, é difícil negar que a polêmica envolvendo os bastidores de Todo o Dinheiro do Mundo não tenha sido mais envolvente do que o resultado final. Ridley Scott surge em boa forma após o desastroso retorno à franquia Alien, e tem a disposição um elenco sob medida e os recursos necessários para uma boa história. Não fosse tão longo, teria sido um grande acerto.
Todo o Dinheiro do Mundo (All the Money in the World, EUA - 2017)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Scarpa, baseado no livro de John Pearson
Elenco: Michelle Williams, Christopher Plummer, Mark Wahlberg, Romain Duris, Timothy Hutton, Charlie Plummer, Andrea Piedimonte Bodini
Gênero: Drama
Duração: 132 min
https://www.youtube.com/watch?v=KXHrCBkIxQQ&t
Crítica | Não Tenha Medo do Escuro - Nem desse filme
Não é fácil ser Guillermo Del Toro. A cada projeto anunciado que tenha seu nome na direção, roteiro, produção ou qualquer outro setor, a expectativa ao seu redor é inevitável. Eu por outro lado, acompanhei muito pouco esse Não tenha Medo do Escuro, que traz o nome do espanhol como co-roteirista e co-produtor, logo o buzz não é – no meu caso – uma justificativa aceitável para o fracasso do longa.
A trama acompanha a jovem Sally (Bailee Madison), que é levada para morar com seu pai (Guy Pearce) na gigantesca propriedade que este possui. Enquanto acostuma-se com sua madrasta (Katie Holmes), ela depara-se com estranhas criaturas que habitam a escuridão da casa.
O roteiro de Guillermo Del Toro e Matthew Robbins – adaptado de um teleplay escrito por Nigel McKeand em 1973 – segue, sem grandes surpresas, a tradicional fórmula da “casa mal assombrada”. O problema aqui, é a incerteza do diretor Troy Nixey sobre o gênero de filme que iria optar em Não tenha Medo do Escuro; em certos momentos, há muita fantasia “DelToriana” (como na cena em que Sally explora a floresta próxima da casa, remetendo diretamente a O Labirinto do Fauno) e em outros, elementos de terror que parecem ter saído de um diretor completamente diferente (o razoável clímax por, exemplo).
Não que Nixey saia-se mal, pelo contrário; em seu primeiro longa-metragem, mostra-se um estiloso cineasta (especialmente nos travellings que, mesmo de sua grande maioria digitais, ajudam a acrescentar movimento à trama), a passo que recebe imenso auxílio de Oliver Stapleton, o diretor de fotografia. Aliás, é ele quem ganha o mérito pelo filme; graças a seu magistral trabalho com iluminação e uso de tons escuros, é possível sentir alguma coisa (medo, ansiedade, em raros momentos) durante a projeção, contando também com um eficiente design de som (aquelas vozes das criaturas…) e direção de arte (o trabalho feito no porão de Blackwood é realmente assustador). E se as criaturas que assombram a trama possuem um passado intrigante e bem idealizado, são prejudicadas por um visual patético e efeitos visuais medianos.
Agora sobre o elenco, digo logo que nenhuma das performances agradou-me por completo. A novata Bailee Madison até que sabe gritar, mas apresenta pouca expressão em grande parte da trama (o papel também não ajuda, já que Sally encontra-se em um estade de espírito sombrio), enquanto Guy Pearce abraça com certo ânimo o arquétipo do pai workaholic e Katie Holmes consegue tirar uma boa atuação de sua personagem, principalmente quando esta vai se aproximando da protagonista.
Mesmo apresentando um eficiente trabalho nas áreas técnicas e um conceito interessante, Não tenha Medo do Escuro é um suspense fraco e mal executado, onde nem mesmo a criatividade de Guillermo Del Toro foi capaz de salvar o dia. Ou a escuridão, que seja.
Não Tenha Medo do Escuro (Don't Be Afraid of the Dark, EUA/México - 2011)
Direção: Troy Nixey
Roteiro: Guillermo Del Toro e Matthew Robinson
Elenco: Bailee Madison, Guy Pearce, Katie Holmes, Jack Thompson, Julia Blake, Nicholas Bell
Gênero: Terror
Duração: 99 min
https://www.youtube.com/watch?v=FSkjEmTS54Y
Crítica | Círculo de Fogo (2013) - Orgasmo Nerd
Quando comecei a me inteirar sobre o material temático de Círculo de Fogo, que prometia batalhas homéricas entre monstros colossais e robôs igualmente colossais, não pude evitar de temer pelo monte de excremento que julgava ser este filme. No entanto, nunca posso me dar ao erro de esquecer quem é o artista por trás das câmeras: Guillermo Del Toro.
A trama parte de um roteiro original de Travis Beacham e do próprio Del Toro, mas com clara inspiração na cultura japonesa de monstros gigantes (o termo “Kaiju” é utilizado com frequência), onde a Terra encontra-se em constante ataque de criaturas que emergem de uma fenda no oceano pacífico (região real que atende pelo tal do Círculo, ou Anel, de Fogo do título, que no original é Pacific Rim) e que necessitam de poderosos robôs gigantes operados por humanos para defender as grandes cidades.
Em outras palavras, ROBÔS GIGANTES ARREBENTANDO MONSTROS GIGANTES. E só o uso do caps lock para ajudar a ilustrar a grandeza visual que é Círculo de Fogo. Todas as cenas de ação impressionam pela escala e o cuidado em retratar as gigantes armaduras de forma a ilustrar o peso destas (ao contrário daqueles vistos em Transformers, aqui os robôs têm seus movimentos muito mais demorados) e também a diversidade em seu visual. Depois de O Labirinto do Fauno e Hellboy II – O Exército Dourado, não achava que Del Toro continuaria me impressionando com sua imensa criatividade ao elaborar distintas criaturas: seja no design dos Jaegers ou dos detalhadíssimos Kaijus, a equipe de direção de arte do diretor acerta em cheio.
E da mesma forma que os efeitos visuais da ILM dão vida com maestria a todos esses elementos, o roteiro de Beacham e Del Toro é hábil ao criar um mundo afetado pela presença destes. Um dos mais memoráveis exemplos no Hannibal Chau de Ron Perlman, um excêntrico comerciante de “partes” de Kaijus em um mercado negro, personagem que certamente foi tão divertido para a dupla escrever como foi para o ator interpretá-lo. Infelizmente, o personagem de Perlman é a única figura memorável do filme, já que todos os outros não passam de criaturas estereotipadas e arquétipas; algo que é bom quando diverte (vide os cientistas “malucos” vividos por Charlie Day e Burn Gorman), mas que aborrece quando somos forçados a engolir clichês do tipo “o parente próximo que morreu” ou, deus me livre, o de “relação problemática com o pai”.
Além disso, o que dizer da Mako Mori de Rinko Kikuchoi, que apresenta nociva dificuldade em controlar um Jaeger com sua mente (até colocando em risco as vidas de todos os seus colegas em sua primeira experiência), mas que o roteiro o soluciona ao simplesmente trazer um dos personagens dizendo que “A primeira vez é sempre difícil”?
Mas mesmo com diversos problemas de roteiro, Círculo de Fogo oferece uma experiência contagiante graças ao tom adotado pelo cineasta: a de que tudo isto não é tão das produções de monstros gigantes tão populares no Japão. Diversão garantida.
Círculo de Fogo (Pacific Rim, EUA - 2013)
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro, Travis Beacham
Elenco: Idris Elba, Charlie Hunnam, Rinko Kikuchi, Ron Perlman, Charlie Day
Gênero: Ação, Ficção Científica
Duração: 131 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=5guMumPFBag
Crítica | The Post: A Guerra Secreta - A paixão de Spielberg pelo jornalismo
Steven Spielberg é uma máquina. Já na casa dos 70 anos, o lendário cineasta americano vai se aprofundando em uma das fases mais interessantes de sua carreira, mais concentrado em dramas históricos e thrillers políticos, mas todos com sua tradicional assinatura e domínio da arte cinematográfica. Basta observar como suas colaborações com o dramaturgo Tony Kushner renderam dois longas com o melhor de ambos os mundos: o intenso e pesado Munique, onde Spielberg se aventurava em uma trama de espionagem adulta, e o verborrágico Lincoln, que traz alguns dos momentos mais introspectivos do diretor, que mira sua câmera para diálogos quase que o filme inteiro. É um dizer popular, que se reconhece um grande diretor não por sua escala ou megalomania, mas da forma como ele resolve enquadrar duas pessoas conversando. Spielberg, claro, se encaixa nesse seleto grupo.
Os caminhos que o levaram a este The Post: A Guerra Secreta são dos mais curiosos, visto que o drama jornalístico foi uma adição de última hora à seu currículo. Em meio a pós-produção da aventura Jogador Nº 1 e os preparamentos para The Kidnapping of Edgardo Mortara - sua reunião com Kushner - Spielberg se depara com o roteiro da blacklist de Liz Hannah, que dramatiza o escândalo dos documentos do Pentágono na década de 70, praticamente um precursor do Caso Watergate, que estouraria na mídia resultando em um dos episódios mais vergonhosos da política dos EUA. Apaixonado pela história e sentindo-se na necessidade de fazer um paralelo com o atual cenário político americano - além daquele desejo anual de concorrer ao careca dourado, claro -, Spielberg inverte a ordem de suas produções e corre contra o tempo para produzir, filmar e finalizar The Post em um período insano de 10 meses - quase como um jornalista correndo contra o deadline. O resultado, felizmente, é positivo.
A trama gira em torno do que ficou conhecido como "Pentagon Papers", ou documentos do Pentágono. Uma série de documentos extensos ordenados pelo então Secretário de Defesa Robert McNamara (Bruce Greenwood), que detalham minuciosamente todas as relações entre os EUA e o Vietnã em todo o período que antecedeu e percorreu o conflito militar, e como os líderes americanos tinham consciência de que a guerra seria uma derrota certa. Material incendiário para qualquer governante, e quando o analista Daniel Ellsberg (Matthew Rhys) opta por vazar esses documentos para a imprensa, uma verdadeira guerra entre a mídia e o governo Nixon tem início, com o Presidente impondo sanções e liminares para censurar os jornais que se propuserem a publicar os documentos - começando com o New York Times, mas culminando na redação do The Washington Post, onde as figuras da CEO Kay Graham (Meryl Streep) e do editor Ben Bradlee (Tom Hanks) lutam para defender a liberdade de imprensa e expor so documentos.
Quando o assunto é cinema de jornalismo, a primeira coisa que vêm à mente dos cinéfilos, claro, é o clássico Todos os Homens do Presidente. Não só retrata o dia a dia de uma redação, mas também se dedica a explorar praticamente o mesmo assunto, com The Post servindo como um curioso e eficiente prólogo para o filme de Alan J. Pakula - e Spielberg brinca com esse "parentesco" entre as obras através de duas referências e acontecimentos na história, formando quase que um universo compartilhado não intencional, mas divertido. O texto da estreante Liz Hannah, que teve a ajuda de Josh Singer (oscarizado por Spotlight: Segredos Revelados, o que o torna bem apto ao trabalho) é impecável na forma como explica e sintetiza todos os passos da publicação da matéria, e também na síntese simplificada de seu conteúdo, contando com uma participação bem grande de McNamara na história; algo que facilita a exposição e a torna mais natural para o espectador.
O roteiro só acaba se desconcentrando quando saímos da redação para o núcleo de Kay, envolta em um complicado processo com banqueiros e o lado administrativo do The Post, um bloco de história consideravelmente mais fraco e sem o grande apelo do calor jornalístico. Além disso, o núcleo praticamente bate na mesma tecla durante quase todas as cenas, com Kay sendo subjulgada por ser uma mulher no comando de uma grande empresa. Mais um dos paralelos do roteiro com o período contemporâneo, e faz sentido que Hannah, Singer e Spielberg apostem tanto nessa mensagem, mas é algo que acaba ofuscado por todo o outro núcleo jornalístico, que é muito mais forte e energético. Só fica interessante quando Streep tem diálogos com McNamara, e Bruce Greenwood faz um ótimo trabalho aqui, e nas poucas cenas em que Kay conversa com sua filha (Alison Brie, excelente) e apresenta uma aposta mais intimista e menos burocrática para sua situação.
Mestre em navegar por gêneros diferentes, Spielberg respeita esse tipo de cinema jornalístico e não procura inovar tanto, com as redações sempre lotadas de pessoas tendo conversas paralelas, muita correria e pequenas aventuras no dia a dia - algo mais romantizado e cênico do que o quase documental Spotlight, por exemplo. Claro, tudo isso pelas lentes sempre fascinantes do diretor, que traz planos longuíssimos e discretos - no sentido de que nunca percebemos de que não houve um corte de um plano para o outro - nos diversos acontecimentos envolvendo o núcleo do The Post - onde o personagem de Hanks tem uma presença maior - sendo uma marca do Spielberg mais sério, mas com toques muito bem-vindos de seu lado mais pipocão, especialmente nos sutis momentos de humor presentes durante o caos, vide aquele envolvendo uma pequena vendedora de limonada. E ainda nessa linha, sendo intencional ou não, as cenas que envolvem um Richard Nixon de costas e só visível pela janela de fora da Casa Branca surgem um pouco cartunescas, e é impossível não lembrar das reuniões de George Costanza com Steinbrenner na sitcom Seinfeld, onde só víamos o lendário GM do New York Yankees de costas e com uma voz forçada; aqui, Spielberg opta por gravações reais da voz do ex-presidente.
É um de seus trabalhos de câmera mais inspirados dos últimos anos, especialmente pela energia que confere ao cotidiano e os diálogos que transformam-se em verdadeiros momentos de tensão graças à seu olhar, sempre fluente na linguagem cinematográfica. É curioso notar também que o próprio Spielberg parece mais interessado no núcleo da redação do que aquele envolvendo Kay e os banqueiros, já que todo o jogo de cena é mais padrão e não muito elaborado em tais cenas - mas nunca desleixado, obviamente. Há uma paixão em mostrar o maquinário a todo vapor, as palavras sendo carimbadas nas folhas de papel e o famoso "roll the presses", algo que visualmente garante resultados espetaculares, e a fotografia de seu fiel escudeiro Janusz Kaminski está na medida, com suas luzes difusas invadindo as janelas. Outro fator que demarca bastante esse amor, claro, é a trilha sonora do sempre impecável John Williams, que oferece um belo tema principal com suas clássicas notas de piano, mas também aposta em uma percussão eletrônica mais intensa para seguir os momentos mais corridos.
Assim como em Lincoln, as conversas e disputas verbais garantem a ação, fazendo com que Spielberg concentre-se na direção de seu elenco. Já falamos sobre sua criatividade nos enquadramentos e movimentação de câmera, e agora o diretor merece destaque pelo excepcional grupo de atores e atrizes que reuniu aqui, certamente um dos melhores de sua carreira. Só o fato de termos Hanks e Streep contracenando juntos já é algo digno de nota, e ambos os atores se saem muitíssimo bem como os protagonistas, ainda que aqui e ali Hanks force um pouco seu sotaque, mas nunca deixa de criar uma figura admirável. Já Streep é Streep, e não há muito o que dizer à essa altura do campeonato, mas vale enfatizar o momento genial onde a atriz oferece uma reação nada compatível com o tipo de abordagem que Spielberg vinha construindo, com a câmera se aproximando de seu rosto e Kay raciocinando para entregar uma resposta determinante para o futuro do The Post; o palco armado para uma punchline que seria digna de um "Hasta la vista Baby". A forma como Streep entrega a fala vai contra tudo isso, sendo um dos momentos mais inspirados e inesperados da projeção, e apenas mais uma comprovação de que Meryl Streep é uma das grandes atrizes da História do Cinema.
Mas o elenco coadjuvante acaba rendendo um charme ainda maior. Com a maior concentração de estatuetas do Emmy do que a prateleira da FX após as vitórias de O Povo contra O.J. Simpson, o elenco de apoio conta com nomes pesados da televisão, começando com aquele que provavelmente tem o maior tempo de tela após os dois titulares: Bob Odenkirk. O eterno Saul Goodman oferece uma performance cativante como o carismático Ben Bagdikian, em um bom misto de desespero e humor, vide a ótima cena onde o jornalista está afivelando a caixa com os documentos em um avião, casualmente respondendo a uma aeromoça que a carga preciosa se tratava de "documentos confidenciais do governo"; como se alguém fosse acreditar. A lista ainda traz ótimas participações de um intenso Matthew Rhys, o cada vez mais interessante Jesse Plemmons, e um eficiente Tracy Letts. O grande destaque coadjuvante, porém, fica com Carrie Coon e Sarah Paulson. Ambas apresentam pouco tempo em cena durante quase toda a projeção, mas felizmente Spielberg oferece pequenos grandes momentos onde as atrizes possam brilhar, Paulson em especial, que entrega um monólogo que praticamente muda o rumo da narrativa para o personagem de Hanks.
Em tempos onde a liberdade de imprensa é um assunto cada vez mais relevante, Steven Spielberg faz com The Post: A Guerra Secreta um registro importante e eficiente, contando com uma execução primorosa, um roteiro conciso e um elenco estelar que pode se destacar como um dos melhores que o diretor já reuniu em sua carreira. Um belo filme, e mais uma importante ode à liberdade da imprensa.
The Post: A Guerra Secreta (The Post, EUA - 2017)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Liz Hannah e Josh Singer
Elenco: Meryl Streep, Tom Hanks, Bob Odenkirk, Carrie Coon, Sarah Paulson, Jesse Plemmons, Bruce Greenwood, Matthew Rhys, Tracy Letts, Michael Stuhlbarg, Alison Brie, Bradley Whitford, David Cross, Zach Woods
Gênero: Drama
Duração: 116 min
https://www.youtube.com/watch?v=k-tiJlEm76A&t=
Crítica | O Conselheiro do Crime - Perdidos na Ambição
É insanamente frustrante quando um projeto se perde em sua própria ambição. Constantemente nos deparamos com tal cenário emblockbusters, mas fiquei surpreso ao reencontrá-lo aqui, em O Conselheiro do Crime. Com um elenco grandioso e um roteiro promissor, é até difícil de acreditar como uma história simples conseguiu se perder tanto ao visar a complexidade.
A trama gira em torno de um advogado (Michael Fassbender) identificado apenas como “doutor (counselor, erroneamente traduzido como “conselheiro” no título nacional) que aceita participar de uma operação de tráfico de drogas com o cliente Reiner (Javier Bardem) e o colega Westray (Brad Pitt). Quando a situação é afetada pela “guerra de drogas” da região fronteiriça entre EUA e México, não demora para que o advogado tenha sua vida, e a de sua noiva (Penelope Cruz), ameaçada pelos cruéis sujeitos envolvidos.
Marcando a estreia do célebre escritor Cormac McCarthy em produções cinematográficas, O Conselheiro do Crime traz uma premissa aparentemente simples, mas que revela-se mais intrincada a cada reavaliação. Seu roteiro aposta em uma série de cenas subjetivas e, à primeira vista, irrelevantes, mas que lentamente preparam o terreno para uma vindoura ação; vide o momento no qual um sujeito entra em uma concessionária e calmamente tira as medidas de uma motocicleta, partindo logo em seguida. Mesmo que seja uma decisão ousada (e que, em teoria, desperte a atenção do espectador), a sucessão de eventos “isolados” torna a experiência evasiva e até mesmo cansativa, ganhando valor apenas quando juntamos as peças para solucionar sua conclusão (nesse quesito, é interessantíssimo reparar na presença de pintas de leopardo tatuadas nas costas da personagem de Cameron Diaz e até na constante aparição do próprio animal).
Uma rede pegajosa e repleta de personagens e ações, mas ainda assim é um trabalho mais fácil para o diretor Ridley Scott após ir remexer na mitologia de Alien com o grandioso Prometheus. Seguindo confiante no texto de McCarthy, Scott é hábil ao capturar belas imagens com o auxílio da fotografia quente de Dariusz Wolski e, principalmente, ao criar momentos de tensão ascendente onde o elenco estelar possa trabalhar à vontade.
Mesmo que traga o sempre ótimo Michael Fassbender no topo dos créditos, Javier Bardem rouba a cena ao fazer um personagem colorido e estranhamente inserido àquele universo violento (curioso como ambos os personagens criados por McCarthy e interpretados por Bardem compartilhem de cabeleiras bizarras – vide Anton Chighurn em Onde os Fracos Não têm Vez) enquanto Cameron Diaz compõe uma personagem que certamente foi escrita com a Sharon Stone dos tempos de Instinto Selvagem em mente – aquela ousada cena do carro, uau. Por fim, Pitt e Cruz têm papéis menores, mas conseguem traduzir suas respectivas características (experiência no negócio sujo e fragilidade diante de uma situação perigosa) com sutis nuances.
Pontuado acertadamente por uma tensa música de Daniel Pemberton, O Conselheiro do Crime é um thriller engenhoso, mas que acaba soando vazio em decorrência de seus excessos de subjetividade e até incompreensível por motivos similares.
O Conselheiro do Crime (The Counselor, EUA, Reino Unido - 2013)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Cormac McCarthy
Elenco: Michael Fassbender, Javier Bardem, Penélope Cruz, Cameron Diaz, Bruno Ganz, Brad Pitt
Gênero: Crime
Duração: 117 min
Crítica | Lincoln - A Aula de História Americana de Spielberg
Sabem, o quando Cinema resolve dar uma aula de História é sempre arriscado porque a veracidade das imagens mostradas dependerá da postura de seu diretor e roteiro. Não meramente visões políticas, mas – mais importante – em como transformar eventos que são acessáveis através de inúmeros livros de escola e páginas da internet em elementos narrativos que cativem um público universal. Entre acompanhar a vida do presidente Abraham Lincoln em um livro de História ou o filme de Steven Spielberg, é apenas Daniel Day-Lewis que me provoca uma ligeira hesitação ao recorrer à primeira alternativa.
O roteiro de Tony Kushner toma parcialmente como base o livro Team of Rivals, abraangendo o período em que o presidente dos EUA lutava para ter a 13a emenda da Constituição aprovada. Esta visava abolir permanentemente a escravidão no país e também surgir como um catalisador para o fim da sangrenta Guerra Civil entre o Norte livre e o Sul escravizado.
Campeão de indicações ao Oscar deste ano, Lincoln é um filme que deve funcionar muito bem para os estadunidenses. A figura de Lincoln não só estampa todas as notas de 5 dólares, mas também é peça fundamental no ensino das escolas; o que tornaria a identificação com o longa muito maior. Eu, por exemplo, pouco sabia sobre o homem que nomeia o filme: além de seu papel na Guerra Civil, o assassinato no teatro e a longa cartola, o restante era puramente trivial. Nos países fora dos EUA essa questão é parcialmente resolvida com a inserção de letreiros (e até um mapa!) que ajudam a contextualizar o período que dá lugar à trama.
Mas quem não ajuda nem um pouco é o roteiro de Kushner, que faz de questão de analisar minuciosamente cada detalhe e ação que tornaram a aprovação da 13ª emenda possível. Pessoalmente o lado político não me interessa tanto quanto a relação de Lincoln com sua família – que é notavelmente diferente com cada membro – e para meu azar, esmagadora porção do longa é voltado para discussões à mesa da Casa Branca e quebra-paus no Congresso (estes últimos, os mais interessantes graças a algumas boas frases de efeito). Mas mesmo que não aprendamos muito sobre o Lincoln Homem, Daniel Day-Lewis está lá para fazer valer cada frame de sua participação.
Tendo o benefício de uma eficiente maquiagem que lhe transforma em um sósia do ex-presidente, o ator elabora toda uma construção física e vocal para a performance; que vai desde o andar manco e postura inclinada até a voz suave e fragilizada – característica que reflete a exaustidão de Lincoln durante os anos no cargo. Lewis tem uma presença monstruosa – e certamente vai garantir mais um Oscar por seu impecável desempenho – mas há espaço para que os coadjuvantes brilhem. Em especial, o Thaddeus Stevens de Tommy Lee Jones, figura que este preenche com sua habitual seriedade e um bem vindo tom de sarcasmo (que transborda na cena em que este separa as sílabas da palavra “republicano”).
Os valores de produção, como de habitual em um longa de Spielberg, são excepcionais. Desde o design de produção que recria com cuidado os tribunais e aposentos da Casa Branca, até a sombria fotografia de Janusz Kaminski (que aposta em interiores escuros cuja única iluminação vem de grandes feixes de luz pela janela), Lincoln é um deleite para os olhos. Já para os ouvidos, não há muito o que John Williams possa fazer, já que o veterano aposta em melodias mais contidas e melancólicas – alcançando um resultado esquecível.
Em um de seus trabalhos mais contidos e livres de maneirismos (não que isso seja uma qualidade aqui) Steven Spielberg faz de Lincoln uma aula de História americana de quase três horas. Mas mesmo com valores de produção e elenco espetaculares, o “professor” carece de um bom material didático que nos ajude a entender melhor o Lincoln Homem, e restringe seu maior impacto emocional ao povo americano.
Mas pelo menos ele não caça vampiros.
Lincoln (Lincoln, EUA - 2012)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tony Kushner
Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrock, Tommy Lee Jones, Lee Pace, Jackie Earle Haley
Gênero: Drama, Biografia
Duração: 150 minutos.
Crítica | Cavalo de Guerra - Steven Spielberg comanda mais um drama de guerra
Steven Spielberg é um dos nomes mais populares do cinema. Depois de ficar um pouco afastado das telas (desde Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal), ele retorna em 2011 com dois promissores projetos: Cavalo de Guerra e As Aventuras de Tintim. Quanto ao épico de guerra, o resultado é clichê e até apelativo, mas inegavelmente satisfatório.
A trama segue o potro Joey, que é vendido para uma fazenda e logo treinado pelo jovem Albert, com que cria um vínculo indestrutível. Quando o animal é forçado a servir de montaria na Primeira Guerra Mundial, os dois seguem caminhos diferentes, enquanto a coragem e resistência do cavalo vai ganhando atenção durante o combate.
Esse é daqueles filmes que, quando anunciado, a expectativa é a de um torturante melodrama feito com a clara intenção de arrancar lágrimas de seus espectadores. Por um lado até que é verdade – já que em diversos momentos do filme, nem Spielberg nem o mediano roteiro de Richard Curtis e Lee Hall recorrem situações ou (péssimos) diálogos dramalhões – todavia pelo outro, a história é contada de forma leve e suficientemente agradável, acertando nos momentos apropriados.
Sendo centrado constantemente no cavalo do título, é interessante como o longa “troca” de narradores ao longo de sua projeção, ao mostrar os diferentes donos que Joey coleciona durante sua estadia nas fazendas e campos de batalha. O roteiro da dupla citada no parágrafo anterior é artificial na criação de seus diálogos, mas bem-sucedido quando o objetivo é transitar os diferentes personagens no cenário, mostrando os horrores da guerra através de diferentes olhos (soldados ingleses, alemães e fazendeiros) e situações, mesmo que o próprio não apresente um desenvolvimento tão profundo nas mesmas – desse jeito, o longa seria mais comprido do que já é.
E Spielberg sabe como montar e executar o espetáculo. Experiente após longas de guerra como O Resgate do Soldado Ryan e A Lista de Schindler, não é nenhuma surpresa vê-lo retratando com o mesmo talento os terríveis conflitos durante a Primeira Guerra, especialmente aqueles que tomaram lugar nas trincheiras; e mesmo que não sendo tão violento e explícito (quanto Ryan, por exemplo), o diretor consegue criar uma atmosfera tensa, graças a ajuda da habilidosa montagem de Michael Khan e da linda fotografia de Janusz Kaminski – esta última cria um dos planos mais memoráveis do ano, onde uma execução é mostrada através de um moinho de vento. Não posso esquecer também de John Williams que, mesmo não sendo tão inventivo como antes, acerta na emocionante trilha sonora.
Com um elenco com poucas performances que valham a pena mencionar (a melhor delas sendo a de Tom Hiddleston, o oficial inglês que compra Joey), Cavalo de Guerra é um drama eficiente que, mesmo utilizando artifícios clichês e já explorados, consegue mostrar o poder de uma amizade em meio a uma guerra terrível, onde a inocência do animal – e a compaixão humana por este – surge como um tocante cessar-fogo.
Cavalo de Guerra (War Horse, EUA - 2011)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Lee Hall, Richard Curtis
Elenco: Jeremy Irvine, Emily Watson, David Thewlis, Peter Mullan, Tom Hiddleston, Benedict Cumberbatch, Toby Kebbell, Patrick Kennedy
Gênero: Drama, Guerra
Duração: 146 minutos.
Crítica | O Terminal - A Vida em um Aeroporto
Era comum, há um tempo atrás, ouvirmos alguma história real que nos espantasse, e imediatamente provocar uma reação verbal do tipo: "isso daria um filme". O que aconteceu com Merhan Karimi Nasseri, um imigrante iraniano que se viu forçado a "habitar" o aeroporto Charles de Gaulle - na região de Paris - após ter seus documentos roubados, uma situação que o deixaria confinado ali pelo período inacreditável de dezoito anos, certamente nos faz pensar imediatamente que tal história daria um filme. Essa deve ter sido a reação de Steven Spielberg, que se inspirou na história de Nasseri para uma de suas obras mais dóceis e injustiçadas: O Terminal, que representa também um raro tipo de filme que Hollywood já não produz com tanta frequência.
Escrito por Sacha Gervasi e Jeff Nathanson, a partir do argumento do versátil Andrew Niccol, a trama nos apresenta Viktor Navorski (Tom Hanks), um turista da nação fictícia da Kravózia, que acaba de aterrissar no aeroporto JFK em Nova York. Porém, enquanto no avião, seu país passa por uma súbita revolução que derruba o governo imposto, fazendo com que os documentos de Viktor sejam inválidos em sua chegada aos EUA - mas, também, impossibilitando seu retorno a um país que tecnicamente não existe mais. Dessa forma, Viktor acaba preso dentro do terminal do aeroporto, e diferentes histórias e pessoas se desenrolam e cruzam seu caminho durante a longa estadia.
É uma premissa perfeita para que o roteiro de Gervasi e Nathanson possa explorar a correria e diversidade de um aeroporto, afinal, quem já pisou em qualquer um sabe como as mais bizarras e distintas narrativas se desenrolam em paralelo. Não só os turistas, mas também todos os diferentes profissionais naquele ambiente, como seguranças, comissários de bordo, lojistas e operadores, que ganham a maior parte do destaque no texto da dupla. É divertido ver como a relação de Viktor com essas pessoas vai se tornando mais forte com o passar do tempo, na medida em que o excêntrico estrangeiro vai se tornando parte daquele local, da mesma forma como o faxineiro vivido por Kumar Pallana ou o simpático motorista interpretado por Diego Luna. Ambos, assim como Viktor, imigrantes que também acabam presos àquele local, especialmente Rajan por estar ali em uma condição ilegal.
Parece a coisa mais cabeça do mundo, mas a verdade é que esse é o roteiro mais água com açúcar que Spielberg já dirigiu. Todos esses personagens ganham núcleos e interações que beiram o absurdo, como um bobinho casamento baseado em Star Trek, que acaba ocorrendo em pleno terminal, mas isso nunca foge da proposta inicial do filme em oferecer uma comédia leve e romântica. Mesmo quando o autoritário gerente vivido por Stanley Tucci explica um evento político tão complexo e incomum, ele o faz com uma maçã e um saco de batatas; até mesmo pela dificuldade de Viktor com o idioma. É uma linha muito tênue entre o brega e o romântico pela qual Spielberg caminha (assim como na vida real, convenhamos), algo que fica claro no núcleo amoroso com a aeromoça interpretada por Catherine Zeta-Jones, que rende situações inspiradas, como um jantar à luz de velas em frente a pista de aterrissagem, mas também diálogos rasos e uma personagem igualmente desinteressante; é sempre mais empolgante ver a ansiedade de Viktor para encontrá-la, e o apoio de seus amigos, do que os encontros propriamente ditos.
O que faz O Terminal funcionar, porém, é seu implacável senso de imersão. A forma como Spielberg e sua equipe imaginam os cenários, sempre dentro do JFK, passa a imediata sensação de estarmos ali. A começar pelo fabuloso design de produção de Alex McDowell, que recria porções inteiras do terminal do JFK em estúdio; por razões óbvias, seria impossível algum tipo de gravação em um aeroporto, especialmente se considerarmos que a produção do filme vinha apenas alguns anos após os atentados do 11 de Setembro. McDowell acerta nos detalhes, na fidelidade das marcas e em toda a escala daquele ambiente - desde o terminal até as garagens, cozinhas e departamentos internos - que em momento algum transparece como um estúdio. As luzes mais frias do fotógrafo Janusz Kaminski (esse talvez seja o último filme "clean" de Spielberg, que embarcaria no grão pesado no ano seguinte com Munique) também conferem um clima apropriado e autêntico para a atmosfera, que ainda é bem complementada sonoramente pelo excepcional trabalho de mixagem, principalmente ao ouvirmos as diversas conversas paralelas, anúncios de voos em megafones e os carimbos do escritório de Dolores Torres (Zoe Saldana). Uma experiência surpreendentemente imersiva.
Sempre hábil em escolher seus elencos, é bacana assistir a O Terminal hoje, e ver a quantidade de rostos que viriam a estourar em papéis coadjuvantes. Antes de chegarmos a eles, obviamente temos Tom Hanks, se divertindo com um sotaque cartunesco e uma performance ingênua de um indivíduo confuso, mas cheio de boas intenções; e ideias, como fica bem evidenciado pelo ator ao observar o ciclo de devolução dos carrinhos no terminal, encontrando ali uma forma de obter alguma renda para se alimentar. Mesmo que seja uma personagem rasa, Catherine Zeta-Jones é capaz de oferecer seu carisma habitual, mantendo sua postura simpática até mesmo quando a personagem está agindo do modo oposto. Stanley Tucci também consegue criar um bom antagonista com seu Frank Dixon, em uma postura bem mais séria do que aquela mais alegre que se tornaria seu cartão de visitas em obras como O Diabo Veste Prada e a saga Jogos Vorazes - mas nada assustador como sua virada em Um Olhar do Paraíso. E que ironia do destino que Zoe Saldana interprete uma fanática por Star Trek, visto que ela estrelaria no reboot de J.J. Abrams alguns anos depois. Ainda nas estrelas, o ótimo Diego Luna também merece destaque, e uma década depois estaria na concorrência intergalática com Rogue One: Uma História Star Wars.
O Terminal é um filme adorável. Uma das obras mais despretensiosas de Steven Spielberg, e uma também onde sua intenção principal parece ser o entretenimento e a diversão, oferecendo um olhar caloroso para uma história onde muitos poderiam enxergar apenas a tristeza e o desespero.
O Terminal (The Terminal - EUA, 2004)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Sacha Gervasi, Jeff Nathanson
Elenco: Tom Hanks, Catherine Zeta-Jones, Stanley Tucci, Chi McBride, Diego Luna, Barry Shabaka Henley, Kumar Pallana, Zoe Saldana, Bob Morrisey
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 128 min.
Crítica | Peter Pan (2015) - Uma reinvenção desnecessária e vergonhosa
Em maio de 2011, recebíamos a notícia animadora de que Peter Pan ganharia uma nova releitura. Intitulada simplesmente como Pan, o projeto traria Aaron Eckhart como Capitão Gancho, mas o eterno vilão seria aqui um detetive que investiga o rapto de crianças por uma misteriosa figura que “nunca iria crescer”. É uma ótima e sombria ideia que poderia explorar temas complexos e originais dentro do imortal conto de fadas. Como esse thriller acabou convertido em uma bizarra e fantasiosa história de origem, é um mistério.
Assinada por Jason Fuchs, a trama parte para criar uma inédita história de origem para os personagens de J.M. Barrie, nos apresentando a um órfão (o estreante Levi Miller) que é abruptamente raptado por um navio pirata voador, controlado pelo cruel Capitão Barba Negra (Hugh Jackman). A viagem o leva pela primeira vez à Terra do Nunca, onde os piratas estão em constante guerra com os nativos liderados pela Princesa Tigrinha (Rooney Mara) e o reino das Fadas, e Peter acaba jogado no meio do conflito para servir à uma antiga profecia.
Uau. Quem diria! Peter Pan era o escolhido de mais uma das trocentas profecias que já serviram de muleta temática para o cinema desde sempre. Não seria um problema muito grave se o texto de Fuchs fosse capaz de explorar bem os conceitos básicos da jornada do herói, mas não há absolutamente nada de original – bem, excluindo o fato de termos um protagonista muito mais, como dizer, “burro” do que a habitual ingenuidade dos tantos “Neos” e “Lukes Skywalkers” da cultura pop. E já que citei o protagonista de Star Wars, é gritante a semelhança temática com o primeiro filme de George Lucas, com Peter, Tigrinha e o ainda amigo Gancho (Garrett Hedlund), cobrindo perfeitamente os personagens de Luke, Leia e Han Solo, chegando ao nível de copiar descaradamente uma das mais marcantes reviravoltas daquele filme. As explicações para a origem das fadas (então quer dizer que o pó de pirlimpimpim é extraído de grandes pedras de crack?), da liderança de Tigrinha e o “gancho” que o futuro capitão pirata carrega não empolgam, e perigam manchar a história original com um pano de fundo genérico e sem graça, ainda que o filme seja uma produção absolutamente caprichada e impressionante.
Afinal, Joe Wright é um diretor que se sai bem quanto ao visual e escala de seus projetos (vide seu impecável uso dos cenários teatrais em Anna Karenina), e com a ajuda da designer de produção Aline Bonetto, cria uma Terra do Nunca exótica e fantasiosa, com forte presença de elementos circenses e a criação de um universo pirata que beira a ficção científica com seus barcos voadores e esferas flutuantes de água, quase como um Baz Luhrmann sem toda a purpurina. Wright só não se sai bem na condução de suas cenas de ação, que acabam melhores aproveitadas pelo cenário ou a boa música de John Powell, ao invés de uma montagem confusa que deixa bizarros reaction shots (quantas vezes teremos que ouvir algum personagem interrompendo a ação para dizer “Ah, qual é?”) e efeitos visuais nem sempre tão convincentes, especialmente nas cenas de voo que transformam Pan num horroroso boneco digital.
Quanto ao elenco, é uma pena constatar que o talentosíssimo Hugh Jackman fique limitado a uma figura muito mais caricatural do que o filme exigia, limitando-se em muitos momentos a uma cópia da performance de Johnny Depp em Piratas do Caribe. Rooney Mara deveria ter vergonha de um trabalho tão desleixado e mal escalado (nem vou entrar em méritos de etnia, o buraco é mais embaixo) e o estreante Levi Miller não mostra à que veio, carecendo do carisma e a malandragem que tornam Pan uma figura tão divertida. O destaque fica mesmo para Gancho, que Garrett Hedlund transforma num adorável canastrão aos moldes de Indiana Jones, e confesso que sua futura transformação no arqui-inimigo de Peter Pan é um dos únicos motivos que me fariam querer uma continuação.
Peter Pan é uma releitura descartável e danosa ao mito original de J.M. Barrie, apoiando-se demais em estruturas que por si só não funcionam. Tem bons valores de produção e algumas boas ideias, mas sem dúvida é uma Terra do Nunca para qual eu não teria interesse de retornar.
Obs: Esta crítica seria originalmente de Matheus Fragata, mas este tragicamente perdeu a visão devido ao forte contato com o brilho colorido das fadas.
Peter Pan (Pan, EUA – 2015)
Direção: Joe Wright
Roteiro: Jason Fuchs
Elenco: Hugh Jackman, Garrett Hedlund, Rooney Mara, Levi Miller, Cara Delevingne, Adeel Aktar, Amanda Seyfried
Gênero: Aventura
Duração: 111 min
https://www.youtube.com/watch?v=TQuBwPBvLP8