logo
  • Início
  • Notícias
    • Viral
    • Cinema
    • Séries
    • Games
    • Quadrinhos
    • Famosos
    • Livros
    • Tecnologia
  • Críticas
    • Cinema
    • Games
    • TV
    • Quadrinhos
    • Livros
  • Artigos
  • Listas
  • Colunas
  • Search

Lucas Nascimento

Crítica | Sinais

Ponto de vista é chave. A mera percepção de como enxergamos um evento pode transformar nossas sensações em relação a este, e até diferenciar a forma como somos afetados. Um exemplo cômico e extremo, é se Star Wars fosse contado do ponto de vista de um pacato stormtrooper, que vive sua vida como soldado imperial e enfrenta um dia após o outro enquanto discute sobre novos modelos de speeders e treina sua pontaria contra a Aliança Rebelde. Até o dia em que é subitamente incinerado quando a Estrela da Morte é explodida por Luke Skywalker, e nós certamente sentiríamos pena desse soldado anônimo.

É uma comparação um tanto exagerada, mas serve para chegar aonde queremos com Sinais, o terceiro filme de M. Night Shyamalan em Hollywood e que seria marcado como seu último grande sucesso antes da fase sombria de sua carreira. Embarcando no gênero da ficção científica, Shyamalan registra uma invasão alienígena de grande escala, mas ao invés de concentrar-se na chegada e na destruição (como, por exemplo, o Guerra dos Mundos de Spielberg), as lentes do cineastas voltam-se para uma família praticamente isolada do resto do mundo; em um formidável exercício de atmosfera.

A trama nos apresenta à Graham Mess (Mel Gibson), um ex-reverendo que teve sua crença em Deus e na fé completamente destruídas após a trágica morte de sua esposa em um acidente de carro. Sustentando uma fazenda no interior dos EUA com a ajuda do irmão Merrill (Joaquin Phoenix) e seus dois filhos, Morgan (Rory Culkin) e Bo (Abigail Breslain), a Graham precisará uni-los quando misteriosos círculos e sinais começam a aparecer em suas plantações - indicando para uma invasão alienígena de escala global.

Basicamente, um filme de invasão. Mas como elaborado no parágrafo de introdução, é o ponto de vista adotado pelo cineasta que torna a experiência tão rica e diferente das inúmeras outras abordagens a esse gênero. É um filme silencioso e isolado, e todas as influências externas que nos oferecem pistas do que acontece numa escala maior vêm pelo jornal ou televisão, e é admirável como Shyamalan inicia uma progressão muito controlada para a sequência de eventos; mostrar um lojista assistindo à uma matéria na TV sobre os círculos na plantação para contar o número de comerciais de refrigerante, por exemplo, oferece uma visão natural e de figuras palpáveis para um tema tão intenso. O roteiro do diretor também trabalha bem ao trazer sugestões e pistas sobre o background dos personagens, como o fato de todos ainda chamarem Graham de "padre" ou o taco de beisebol de Merrill na parede da sala.

Esse clima quieto e aparentemente sem eventos só torna mais exacerbante quando as grandes ameaças do longa começam a de fato se manifestar. Em dois momentos, vemos o talento incontestável de Shyamalan para construir um suspense insuportável até a revelação de algo; o primeiro deles, indubitavelmente o mais famoso do filme, acontece quando Merrill assiste pela televisão (novamente, a presença da mídia torna tudo mais alarmante) um vídeo captado em uma festa de aniversário no Brasil, onde vemos diversas crianças gritando e tentando encontrar a criatura alienígena - que nos é revelada de forma abrupta e assustadora pela primeira vez, seguido pelo tema marcante de James Newton Howard. O outro momento segue o mesmo princípio, com Graham entrando na casa de Ray Redds (personagem do próprio Shyamalan), onde ele clama ter conseguido trancafiar um dos alienígenas após uma briga. Nossa expectativa já é enorme por sabermos que o invasor pode aparecer a qualquer instante, e Shyamalan nos mantém colados à poltrona quando Graham usa a lâmina de uma faca para enxergar o cômodo do outro lado da porta trancada; culminando em mais uma súbita aparição da criatura, mas que impacta - e assusta - justamente pela longuíssima antecipação.

O grande clímax da projeção mantém essa condução primorosa e requintada, com Shyamalan nos mostrando o mínimo possível das criaturas ou da violência; ouvir pelo outro lado da porta os latidos de um cachorro serem interrompidos pelo cortante som de um pescoço se partindo é muito mais impactante. É também quando Sinais afasta grande parcela do público, que considera o desfecho uma grande bobagem e artificial por trazer Merrill enfrentando o alienígena com seu taco de beisebol. E realmente teria sido, se Shyamalan não tivesse preparado todo um jogo de foreshadowing que culmina brilhantemente nesse momento, desde as conversas sobre beisebol com seu colega militar, o flashback de Graham onde sua esposa diz para "bater com força" e até a mania de Bo em espalhar copos de água pela casa. Essa culminação de elementos, aliadas à mudança na câmera de Shyamalan (que abraça planos centrais e lentes grande angulares para marcar a catarse de Graham) e a forte música de Howard, tornam esse um dos mais belos e emocionantes momentos da carreira do cineasta.

Sinais talvez seja o mais Hitchcockiano dos trabalhos de M. Night Shyamalan, com uma verdadeira masterclass de como construir-se uma ambientação pesada e envolvente, ao passo em que o suspense desenvolvido é um dos maiores de sua carreira. É justamente por tapar o mundo externo de um evento megalomaníaco e alarmente que temos algo realmente assustador.

Sinais (Signs, EUA - 2002)

Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Mel Gibson, Joaquin Phoenix, Rory Culkin, Abigal Breslin, Cherry Jones, M. Night Shyamalan
Gênero: Suspense, Ficção Científica
Duração: 106 min

https://www.youtube.com/watch?v=G4f3X1TGSXY


by Lucas Nascimento

Crítica | O Lobo de Wall Street

Eu adoro Ilha do Medo. E acho A Invenção de Hugo Cabret um filme adorável. Mas é com O Lobo de Wall Street que Martin Scorsese tem a oportunidade de fazer (novamente) aquilo que faz como ninguém: histórias sobre sujeitos do outro lado da lei, almas sórdidas cuja conduta irreversível atropela todos os valores éticos, morais e até vidas humanas em sua trajetória brutal – e que, ainda com todas as características repelentes, certamente vão conquistar o público e fazê-lo (de certa forma) ficar ao seu lado, mesmo quando o fundo do poço transforma-se no desfecho inevitável.

A trama é inspirada na vida real de Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio), um implacável corretor da bolsa de valores que rapidamente foi construindo sua reputação em Wall Street na década de 80. Sua estratégia rendeu milhões graças a sua série de mentiras a que submetia compradores de ações mais baratas, para depois iniciar uma grande empresa que se manteve sob mesmo modus operandi, visando agora os grandes investidores. O roteiro de Terence Winter aborda também sua vida pessoal e as complicações com o FBI que Belfort enfrentou.

Em muitos aspectos, O Lobo de Wall Street se assemelha muito a dois dos melhores filmes da carreira de Martin Scorsese: Os Bons Companheiros e o subestimado Cassino. Não só pelo fato de termos duas histórias reais sobre sujeitos que ascenderam em suas carreiras ilegais (para depois, sucumbirem em suas próprias ambições estratosféricas), mas pela forma com que seu magistral diretor as contou. Scorsese utiliza de diversos recursos visuais fascinantes, seja a colagem de diversos vídeos promocionais dentro da história, narrações em off (e até uma curiosa “conversa telepática” entre dois personagens) seus famosos planos-sequência (aqui, rende a sequência mais intensa da projeção, que envolve uma tensa briga domiciliar), a quebra da 4a parede para inteligentemente aproximar o espectador do protagonista (“Vocês não estão entendendo nada disso né? Resumindo, tudo isso era ilegal”, diz Belfort diretamente para a câmera após exemplificar diversos termos específicos da Economia) ou até mesmo alterações na razão de aspecto da tela. Muitos créditos também para a excepcional montadora Thelma Schoonmaker, que profere velocidade e um ritmo alucinado à projeção, mesmo com suas extensas 3 horas.

É de se impressionar também com a presença do humor (politicamente incorreto em sua mais pura forma, claro) presente aqui. Mais conhecido por seu trabalho em séries como Família Soprano e Boardwalk Empire, o roteirista Terence Winter tece diversos diálogos inteligentes e bem contextualizados na insanidade do mundo das ações de Wall Street. Seja no importantíssimo diálogo com o personagem de Mark Hanna (Matthew McConaughey, em participação breve mas memorável) ou no sutil duelo de segundas intenções travado por DiCaprio e o agente do FBI vivido por Kyle Chandler (que pelo visto, se contentou em fazer exatamente o mesmo papel em todos os seus trabalhos em Hollywood) em um barco, que vai ficando mais envolvente (e divertido) à medida em que os dois vão compreendendo suas intenções. Winter também aposta em diversas cenas que não escondem o vício em drogas e as luxuriosas orgias do protagonista  e mesmo que diversas vezes o efeito seja cômico, é impossível não ter a noção de que Jordan está cada vez mais próximo de sua autodestruição.

E então chegamos à performance central de Leonardo DiCaprio. Uma que, não fosse tão bem sucedida, resultaria na perda de identificação entre o filme e o espectador e eu aqui agradeço mais uma vez pela gloriosa parceria entre o ator e Scorsese. Na pele do irremediável Lobo, o intenso DiCaprio alcança aqui um dos trabalhos mais memoráveis de sua esforçada carreira, demonstrando incríveis habilidades como ator, dançarino e… ginasta – aguardem só pela cena em que DiCaprio e o colega Jonah Hill (que nem parece Jonah Hill, de tão perdido dentro de seu comicamente perturbado Donnie Azoff) sofrem os efeitos de uma droga rara; duvido que haverá cena mais insana do que esta em 2014. De tão bom que está, um (merecido) Oscar para DiCaprio seria um mero pleonasmo.

Com o mais inspirado uso de trilha sonora incidental em sua carreira em anos, O Lobo de Wall Street é uma frenética e implacável tragédia grega do mundo das finanças. Pode muito bem ser considerado o terceiro capítulo da "trilogia" formada por Os Bons Companheiros e Cassino, mais uma fantástica adição para a carreira de Martin Scorsese. Um trabalho de mestre. Obrigado, Scorsese. Obrigado, Leo.

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, EUA – 2013)

Direção: Martin Scorsese

Roteiro: Terence Winter
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Matthew McConaughey, Kyle Chandler, Jon Favreau, Rob Reiner, Jon Bernthal, Jean Dujardin, Joanna Lumley, Cristin Milioti
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 180 min

https://www.youtube.com/watch?v=iszwuX1AK6A


by Lucas Nascimento

Crítica | A Invenção de Hugo Cabret

Martin Scorsese é um dos maiores diretores da História do Cinema, e um não pode ser chamado de cinéfilo sem ter visto alguma de suas obras-primas. Famoso por longas de gangsters e violência, ele explora território completamente novo em A Invenção de Hugo Cabret (pronuncia-se “Cabrê”), uma doce e inocente aventura infantil em 3D, onde o cineasta aprimora técnicas narrativas e ainda encontra espaço para homenagear a Sétima de Arte.

A trama é ambientada em uma Paris dos anos 30 cujo visual beira o fantástico (em um excelente trabalho do design de produção e efeitos visuais), onde encontramos o órfão Hugo Cabret (Asa Butterfield) morando entre as paredes do relógio de uma estação de trem. O jovem sobrevive por meio de furtos e escapadas, enquanto tenta consertar um enigmático autômato deixado por seu pai (Jude Law), e inicia uma amizade com Isabelle (Chloe Grace Moretz), que possui a chave para a resolução do mistério.

Assim como O Artista e Meia-Noite em Paris (ambos indicados para Melhor Filme no Oscar de 2012), Hugo é um ode ao passado, uma homenagem nostálgica sobre tempos mais simples e inesquecíveis. Escrito a partir do livro de Brian Selznick, o roteiro de John Logan é um texto maravilhoso que traz mensagens verdadeiramente inspiradoras em suas entrelinhas (especialmente na comparação feita por Hugo entre o mundo e uma máquina, e o conceito das peças extras) ao mesmo tempo em que traça histórias interessantes dentro desse mundo semi-fantasioso. Os diálogos fluem bem e sua trama é acessível para qualquer público, com um requisito claro: a paixão pelo cinema.

E Scorsese é um apaixonado por cinema. Ele usa o texto de Logan como guia e faz de Hugo algo propriamente pessoal, usando de velhas assinaturas (como a névoa, onipresente nos filmes do diretor, que ganha uma bela profundidade com o 3D) a passo que adota recursos mais modernos, como o ótimo travelling digital nos segundos iniciais – que oferecem uma imersão no cenário e na história como eu não via há muito tempo; eu realmente me senti dentro da estação de trem. A tal homenagem à Sétima Arte que você tanto tem ouvido falar é proporcionada, em sua maior parte, pela presença do icônico Georges Méliès (Ben Kingsley, ótimo); precursor no cinema de efeitos especiais, cuja vida e obra são relembradas aqui em uma sequência particularmente empolgante, (Viagem a Lua, longa mais famoso de sua filmografia tem um papel maior) que ainda conta com imagens dos filmes do próprio e de diversos outros (até de O Trem chegando na Estação, primeiro da História). É Scorsese e sua campanha para a preservação de películas em uma propaganda nada apelativa, muito pelo contrário, e sim convincente.

Todo o elenco também abraça o universo de Hugo Cabret. Asa Butterfield impressiona com seu carisma e dramaticidade ao viver o personagem-título, hipnotizando com seus olhos azuis da mesma forma que a sempre talentosa Chloe Grace Moretz esbanja um portentoso sotaque britânico, que cai bem com a empolgação inocente de sua personagem. Repleto de salientes coadjuvantes, Sacha Baron Cohen (o eterno Borat) talvez seja o melhor deles como o divertido inspetor da estação, cuja agressividade na perseguição a jovens órfãos é contrastada de forma dócil por sua timidez ao conversar com a florista Lisette (Emily Mortimer, de Ilha do Medo). Prestem atenção também à ligeira ponta de Martin Scorsese…

A Invenção de Hugo Cabret é mais do que apenas o primeiro 3D de Martin Scorsese. É uma história sobre encontrarmos nossa função no mundo e como os sonhos podem ser capturados pela incomparável magia do cinema. É uma carta de amor para o cinéfilo dentro de todos nós.

Obs: A crítica já deve ter deixado bem claro mas, se possível, assista em 3D!

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA – 2011)

Direção: Martin Scorsese
Roteiro: John Logan
Elenco: Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Emily Mortimer, Jude Law
Gênero: Aventura
Duração: 126 minutos

https://www.youtube.com/watch?v=Hv3obL9HqyY


by Lucas Nascimento

Crítica | X-Men: O Confronto Final

"Pelo menos podemos concordar que o terceiro é sempre o pior", ironiza a Jean Grey de Sophie Turner ao sair de uma sessão de O Retorno de Jedi durante uma cena de X-Men: Apocalipse. É uma clara - e um tanto deselegante - indireta ao trabalho de Brett Ratner em X-Men: O Confronto Final, filme que encerrou a primeira trilogia dos mutantes da Marvel no cinema e que encontrou uma recepção crítica muito desfavorável - e quando o próprio Bryan Singer insere um comentário em seu próprio filme, é sinal de que nem o estúdio estava particularmente satisfeito; e a ironia do destino acabou fazendo de Apocalipse (o terceiro filme da segunda trilogia) um dos filmes mais criticados da saga.

Mas o drama do terceiro X-Men começa em um longínquo 2005.

O sucesso da franquia X-Men rendera diferentes mudanças para todos envolvidos ao seu redor. O gênero de quadrinhos no cinema passava por uma nova renascença, o mundo acolhia Hugh Jackman como um grande astro, e a carreira de Bryan Singer se abria para um universo de projetos e opções variadas. Com isso, é de se entender quando o cineasta largou a franquia para se juntar ao lado DC e comandar o aguardado reboot do Homem de Aço com Superman: O Retorno, deixando O Confronto Final nas mãos de Matthew Vaughn; que desistiu para dedicar-se a outro projeto da Marvel e acabou passando o bastão para Brett Ratner.

No fim, essa história infelizmente não deu muito certo para ninguém. Superman: O Retorno foi um (injustiçado!) fracasso de bilheteria e dividiu a crítica, enquanto Vaughn saiu para fazer um filme do Thor que só acabou acontecendo de fato em 2011. E Ratner acabou saindo como o grande culpado por "estragar" os X-Men e forçar a Fox a seguir em uma direção diferente e até um retcom com viagem no tempo em 2014. Porém, mesmo que o filme de Ratner careça do talento e dedicação de Singer, ele nem de longe merece metade das críticas que recebe.

A trama do longa segue a promessa do fatídico final do anterior, com o sacrifício de Jean Grey (Famke Janssen) abalando os X-Men, em especial o agora depressivo Scott Summers (James Marsden). Paralelamente, o mundo político e social ganha uma gigantesca novidade quando laboratórios revelam a descoberta de uma vacina capaz de "curar" o gene mutante X, o que rapidamente faz com que humanos e mutantes dividam-se entre aqueles a favor, e contra; deixando um furioso Magneto (Ian McKellen) liderar um grupo para destruir os responsáveis pela cura. Como se isso já não fosse o bastante para Charles Xavier (Patrick Stewart) e seus alunos, Jean ressurge com a sombria entidade da Fênix Negra, mostrando-se um perigo para aqueles ao seu redor.

São basicamente duas grandes linhas narrativas que o roteiro de Simon Kinberg e Zak Penn aborda, baseando-se em duas famosas histórias dos quadrinhos dos X-Men. A maioria dos fãs critica o fato de que ambas as fontes de inspiração acabaram misturadas em uma, e que alguns detalhes importantes teriam sido deixados de lado. Pois bem, se O Confronto Final falha como adaptação (não li os quadrinhos), é irrelevante para a análise do produto final, que é bastante eficiente em equilibrar as duas tramas e trazer o peso necessário para cada uma delas.

O advento da cura mutante garante que Kinberg e Penn tragam ótimas cenas e diálogos que trazem os personagens discutindo e refletindo sobre o assunto, como quando a Tempestade de Halle Berry afirma à Vampira de Anna Paquin que não existe "nada para curar", ainda que a jovem mutante sofra com sua inabilidade do toque com outras pessoas - sem de fato matá-las ou machucá-las profundamente. Isso até permite que o antagonista Magneto permaneça um personagem racional e com o qual podemos simpatizar, mesmo que suas ações possam ser classificadas como terrorismo - como a fantástica cena da Ponte Golden Gate. E o impacto da cura na sociedade em geral não é nem um pouco longe da realidade, afinal já vimos por aí diversos políticos oferecendo programas de "cura para homossexualidade" ou atrocidades do gênero. Parece-me digno e respeitoso ao legado que Singer iniciou em 2000.

Da mesma forma, o retorno de Jean Grey como a Fênix é onde o filme realmente tem um ponto mais fraco. Ver Famke Janssen atuando como uma verdadeira femme fatale sanguinária e vestida com um vermelho berrante é divertido, além dos criativos efeitos visuais que ilustram seu sinistro poder de desintegração - e elogio a coragem de Ratner e dos roteiristas em matar personagens importantes... Mesmo que, bem... Não tenham ficado realmente mortos em futuros capítulos. Porém, a repentina "mudança de lado" que faz Jean juntar-se à Irmandade de Magneto soa extremamente artificial e digna de uma novela das nove, ainda que o roteiro tente justificar a exploração que Magneto faz de seus poderes; e é atencioso colocá-lo durante a batalha final arrependido de suas ações, tal como sua reação apavorada quando é forçado a ver a morte de seu melhor amigo pelas mãos da Fênix.

O ritmo também é um problema. Ainda que fluido e que jamais deixe a peteca cair, o longa merecia alguns minutinhos a mais de contemplação e desenvolvimento. Tudo se resolve rápido demais, e é de se espantar que apenas 104 minutos tenham sido o bastante para resolver duas tramas tão complexas e importantes, da mesma forma que diversos núcleos menores acabem subvalorizados. Por exemplo, o Anjo de Ben Foster acaba sendo um elemento irrelevante e preguiçoso ao longo da narrativa; servindo para despertar a busca pela cura mutante nos créditos iniciais, mas descartado depois de algumas cenas e resgatado como um Deus Ex Machina durante o clímax. Nessa mesma linha, o triângulo amoroso que envolve Vampira, Bobby Drake (Shawn Ashmore) e a novata Kitty Pride (Ellen Page) sofre dessa rapidez e ausência de desenvolvimento em seus arcos, ainda mais saído de um trabalho tão consistente em X-Men 2.

Em termos de direção, Brett Ratner se sai surpreendentemente eficaz na construção visual do longa. Mesmo que os núcleos coadjuvantes citados acima careçam de desenvolvimento, Ratner é bem capaz de lhes oferecer uma iconografia poderosa e memorável, como a primeira vez em que as majestosas asas do Anjo libertam-se de suas amarras ou a belíssima cena em que Bobby congela a água de uma fonte para que possa patinar no gelo com Kitty. Também fico impressionado com a elegância de seus movimentos de câmera em momentos específicos, como o engenhoso plano que nos apresenta ao ótimo Fera de Kelsey Grammer, e até mesmo a eficiente construção de suspense que antecede o ataque de Magneto à Golden Gate. São características que se mantém em sua abordagem envolvente durante as muitas cenas de ação.

A maioria delas merecem aplausos pela construção e criatividade, especialmente pelo uso dos poderes diferentes (a perseguição de Kitty e o mutante Fanático é uma linda demonstração de brutalidade vs discrição), com um destaque central para a antológica cena na casa de Jean Grey, onde não só a mise em scène de Ratner é clara e valoriza o trabalho de dublês - ver o Wolverine de Hugh Jackman sendo arremessado de canto a canto é algo que jamais soa artificial -, além de contar com uma montagem precisa de Mark Goldblatt, Mark Helfrich e Julia Wong, que mantém nosso interesse na briga ao mesmo tempo em que nos lembram do que está em jogo ali; afinal, a Fênix prepara-se para desintegrar o Professor Xavier em um confronto emocionalmente pesado. Já o tal confronto final titular acaba com uma escala épica menor do que o esperado, principalmente por termos mutantes "avatares" com poderes randômicos que só servem para dar algum trabalho braçal aos protagonistas. Porém, é um conjunto de cenas que funcionam como boa diversão e garantem um envolvimento com os personagens, além de toques funcionais de humor negro e um desfecho trágico que deixaria Shakespeare orgulhoso - podemos agradecer ao Wolverine por ambos.

Mas se existe uma grande tragédia em relação ao filme e o backlash criado pela comunidade nerd, é o total esquecimento da brilhante trilha sonora composta por James Powell. Ainda que seja inexplicável o fato de Powell não trazer o épico tema criado por John Ottman para X-Men 2, o compositor oferece uma evolução (sem trocadilhos) daquela melodia para algo apropriadamente mais operático. A grande saga da Fênix Negra no filme ganha uma trilha simplesmente inacreditável, com Powell abraçando as influências na tragédia grega para um tema forte e de orquestra pesada, que mescla seus pontos de drama, terror e ação de forma espetacular; contando ainda com um acertado coral que exacerba a jornada sombria de Jean Grey.

X-Men: O Confronto Final é um dos filmes de quadrinhos mais subestimados da última década. Claramente não é uma obra-prima nem traz o nível de excelência de seus antecessores, mas o longa de Brett Ratner oferece uma conclusão digna para a primeira fase dos X-Men no cinema, surpreendendo com sua história esperta e o espetáculo visual que oferece nas cenas de ação. 

X-Men: O Confronto Final (X-Men: The Last Stand, EUA, Canadá – 2006)

Direção: Brett Ratner

Roteiro: Simon Kinberg, Zak Penn
Elenco: Hugh Jackman, Ian McKellen, Patrick Stewart, Halle Berry, Famke Janssen, James Marsden, Kelsey Grammer, Shawn Ashmore, Anna Paquin, Ellen Page, Ben Foster, Rebecca Romijn, Aaron Stanford, Daniel Cudmore, Vinnie Jones
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 104 minutos

https://www.youtube.com/watch?v=5ofXf6z7HoY


by Lucas Nascimento

Crítica | X-Men Origens: Wolverine

Lá no final dos anos 2000, parecia até redundância a ideia de um filme solo do Wolverine de Hugh Jackman, visto que o mutante carcaju praticamente roubou a cena de todos os filmes da primeira trilogia X-Men nos cinemas. Com o suposto encerramento da saga com X-Men: O Confronto Final, a Fox inauguraria o selo de X-Men Origens, apostando em derivados de alguns personagens icônicos da franquia para explorar histórias anteriores à do primeiro filme de Bryan Singer. Wolverine, claro, foi o primeiro a testar a fórmula, que resultou na catástrofe que atende o nome de X-Men Origens: Wolverine, e serviu para matar de vez o selo de origens.  

A trama volta bem cedo no passado do personagem, para quando James Logan era apenas um garoto no século XVII e tem a trágica revelação de suas garras de osso quando acidentalmente mata seu pai, obrigando-o a fugir com seu meio-irmão, Victor. Crescidos e acostumados com seus poderes bestiais e de regeneração, os irmãos atravessam as principais guerras americanas até serem encontrados pelo Coronel William Stryker (Danny Houston), que os coloca em sua equipe secreta de mutantes que realizam missões ocultas para o governo americano. Quando Logan abandona a equipe, Victor se sente traído e jura vingança a seu meio-irmão.

Comentei acerca da redundância em um filme do Wolverine logo acima, mas é impossível negar que era uma fantástica ideia termos uma história sobre o passado do personagem, especialmente por sua longa trajetória que seu fator de cura possibilitou. E de fato, na sequência de créditos de abertura quando vemos Wolverine e Victor correndo na Guerra da Secessão americana, mergulhados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, desembarcando na Normandia no conflito decisivo da Segunda Guerra e até sobrevoando Saigon durante a Guerra do Vietnã, temos um dos pontos altos de toda a franquia, graças à condução ágil do diretor Gavin Hood, a fotografia de Donald McAlpine e a dramática trilha sonora de Harry Gregson-Williams. Infelizmente, essa talvez seja a única cena que faz jus à proposta do filme.

É uma bagunça estrutural tão grande que o filme chega a ter 3 prólogos antes de ter um início propriamente dito, e percebe-se um claro embate entre as ambições artísticas de Gavin Hood e os interesses executivos do estúdio, já que constantemente o roteiro de David Benioff (que felizmente se encontrou anos depois como o showrunner de Game of Thrones) e Skip Woods tenta oferecer um aprofundamento às emoções de Logan e o fardo de possuir um instinto animalesco, quase conseguindo criar um certo afeto entre o protagonista e o interesse amoroso vivido pela bela Lynn Collins, mas é algo impossível de se levar a sério quando Origens continua nos enfiando cenas de ação guela abaixo. Incontáveis vezes temos lutas entre Wolverine e Victor quebrando o fluxo da narrativa, quase como se entrassem ali por uma exigência do estúdio para aumentar o número de cenas de ação, vide que nenhuma delas oferece uma consequência realmente significante para o andar da narrativa - sem falar que nem ao menos a direção de Gavin Hood ali é decente, reforçando os rumores de que a Fox teria contratado um "diretor fantasma" para assumir as gravações do longa.

Além desses confrontos intermináveis, temos uma fuga de moto de um helicóptero que abraça o ridículo ao apostar no exagero (até mesmo com uma tomada slow motion de Logan caminhando de uma explosão à suas costas), uma inacreditável luta de boxe que realmente é levada a sério e um clímax que oferece um oponente digno da série Resident Evil, transformando o adorado Deadpool (antes de renascer com estilo em 2016) em um show de horrores indesculpável. Isso sem falar que praticamente todas essas cenas contam com efeitos visuais grotescos, principalmente pela artificialidade das garras do Wolverine em planos fechados - sinceramente, qual a desculpa para usar o efeito digital em uma cena onde o personagem simplesmente OLHA as garras em frente ao espelho de um banheiro? Quem lembra do notório vazamento de uma cópia incompleta do filme antes de sua estreia sabe do nível do trabalho.

Claro que Hugh Jackman torna tudo um pouco mais suportável, já que parece incapaz de entregar uma performance do Wolverine que não seja carismática e divertida, vide pela personalidade nervosa ou pelos pontuais momentos de humor. Porém, ele é o único capaz de oferecer algum personagem sustentável aqui, já que Liev Schreiber parece completamente deslocado e não ajuda o fato de que Victor seja um personagem sem motivação ou profundidade. Danny Houston assume um piloto automático funcional, Ryan Reynolds surge como um bom easter egg antes que seu Deadpool passe pela monstruosa transformação e o azarado Taylor Kistch até tenta fazer de seu Gambit uma figura memorável, mas seu papel na história é simplesmente incoerente e forçado; já se passaram 17 anos e ainda estão tentando fazer um filme do mutante das cartinhas, veja só. E o que dizer do risível will.i.am como um mutante genérico e bonachão?

X-Men Origens: Wolverine é um filme desequilibrado e claramente problemático quanto ao tipo de história que tenta contar. É um exagero de cenas de ação desinteressantes, personagens genéricos e um passado profundamente decepcionante para um dos grandes personagens dos X-Men. Realmente comprova a força de Hugh Jackman em seu retrato do Wolverine, pois até mesmo depois dos créditos terminarem de subir e nos liberarem da tortura, ainda existe interesse em ver mais do personagem.

X-Men Origens: Wolverine (X-Men Origins: Wolverine, EUA - 2009)

Direção: Gavin Hood
Roteiro: David Benioff e Skip Woods
Elenco: Hugh Jackman, Liev Schreiber, Jynn Collins, Ryan Reynolds, Danny Houston, will.i.am, Taylor Kitsch
Gênero: Aventura, Ação
Duração: 107 minutos.

https://www.youtube.com/watch?v=kd6zYnHwQWA


by Lucas Nascimento

Crítica | Moonlight: Sob a Luz do Luar

Durante diversos momentos de Moonlight: Sob a Luz do Luar, o protagonista Chiron é questionado por outros personagens sobre sua identidade: sobre quem de fato é, sobre como ele precisaria decidir o tipo de pessoa quem seria na vida, e que isso deveria vir de sua própria índole; não daqueles ao seu redor. Ao longo de três atos distintos, Barry Jenkins parte para um estudo de personagem fascinante e belissimamente executado. Mas, e isso pode ser analisado como demérito ou qualidade, eu não sei quem é Chiron.

Partindo do argumento de Tarell Alvin McCraney e do roteiro do próprio Jenkins, toda a trama gira em torno de Chiron, que é interpretado por Alex Hibbert em sua infância, Ashton Sanders na adolescência e Trevante Rhodes durante a fase adulta, todos os três períodos no qual a narrativa é dividida. Nessa passagem de tempo, vemos a criação sofrida de Chiron em um bairro pobre de Miami, a relação complicada com sua mãe viciada (Naomie Harris) e a descoberta de sua homosexualidade, que o torna alvo de agressões e bullyings na escola. Os únicos que realmente contribuem para a formação do rapaz são o traficante Juan (Mahershala Ali), sua namorada Teresa (Janelle Monáe) e o amigo Kevin (Jaden Piner, Jarrel Jerome e André Holland, em seus três períodos), que é seu primeiro interesse amoroso.

É impossível não levantar comparações do projeto com Boyhood: Da Infância à Juventude, épico indie de Richard Linklater onde acompanhávamos a vida e o crescimento de um menino ao longo de 12 anos de material. É uma semelhança que pára por aí, já que o filme de Barry Jenkins estabelece uma separação estrutural entre cada período, além de trocar os atores para cada personificação do protagonista, que por sua vez é uma figura radicalmente diferente daquela interpretada por Ellar Coltrane. Todo o contexto e ambientação também é diferente, com o enfoque na perigosa criação no subúrbio de Miami, um elenco todo negro e uma direção muito mais estilística e provocadora do que a de Linklater, além de ser muito mais perturbador e depressivo; mas, acima de tudo, humano.

Ainda mais seguindo a polêmica do Oscars So White em 2016, a onda de racismo nos EUA e a eleição de Donald Trump, é corajoso que vejamos uma obra desse teor e que aborde diversos tabus dentro do cinema americano, especialmente em seu retrato da homossexualidade em um ambiente do qual não estamos acostumados a ver; chega a ser uma desmistificação, de certa forma, da figura do gangbanger: a figura imponente e durona de Chiron em sua fase adulta é algo que remte ao rapper 50 Cent, e vê-lo abraçar a sensibilidade e a vergonha de uma situação delicada como essa é algo realmente poderoso, em um desempenho absolutamente sensível e multifacetado de Trevante Rhodes; assim como ver dois adolescentes negros com um dialeto típico da região, composto de gírias, palavrões e outros termos, compartilhando uma noite inquestionavelmente romântica em uma praia - o que também é desafiador e gera performances genuínas de Ashton Sanders e Jharrel Jerome.

Os diálogos de Jenkins são dos mais simples possíveis, o que acaba gerando um certo clichê quando acompanhamos o óbvio bullying escolar e toda a reciclagem temática do núcleo da mãe viciada, mas que ao menos ganha uma boa catarse em sua resolução e força graças à perturbadora performance de Naomie Harris. O texto ganha alguma substância quando o personagem Juan está no meio, que acaba tornando-se uma espécie de figura paterna para o protagonista e introduz a questão da identidade na história. A cena em que tenta delicadamente explicar a Chiron o que significa a palavra "bicha" é um ótimo momento, e que termina com uma sutil inversão de poder quando o jovem lhe pergunta se vende drogas como ofício - uma pergunta que o desarma e rende uma resposta envergonhada, admitida, em apenas um dos ótimos momentos de Mahershala Ali no longa.

Mas é mesmo com o visual que Barry Jenkins se mostra um talento ímpar. Durante uma história contada por Juan para Chiron, ele comenta como uma idosa cubana comentava que "quando um negro fica à luz do luar, ele fica azul", e a partir dessa frase altamente simbólica (que sabiamente também é usada no título), a estética do filme abraça a cor azul de forma sutil, mas impactante. Por exemplo, os detalhes azuis nos uniformes escolares, a mochila de Chiron, a invasão da cor em pilastras, portas e janelas de um corredor durante o momento decisivo na vida do Chiron adolescente até a cena final, onde um dos personagens deliberadamente troca sua camisa branca por uma azul. É um cuidado preciso da direção de arte e dos adereços, que são sábios em não trazer nenhum elemento azul na sufocante casa de Chiron.

A câmera de Jenkins é fluida e mergulha o espectador naquele universo, como no longo plano que abre o filme ao praticamente "dançar" entre os personagens enquanto cineticamente nos apresenta ao ambiente da história e à boca de fumo, usando uma estratégia similar para criar tensão e antecipação quando um dos bullies escolhe sua vítima em meio a uma multidão, nos jogando em infinitas panorâmicas que rodeiam o agressivo personagem. Os planos mais contemplativos e que quebram o eixo ao sugerir uma abordagem mais sensitiva a algumas cenas são impactantes, como uma troca de olhares entre Chiron e Kevin na praia ou o denso plano que traz sua mãe gritando diretamente para a câmera, sem som.

Então voltamos à questão que o roteiro tenta responder ao longo de seus três atos: quem é Chiron? É curioso notar como sua fase adulta traz fortes influências de Juan, desde a touca preta, os dentes de metal e a carreira infeliz como traficante, já nos deixando claro que o jovem usou sua figura paterna mais forte como inspiração para sua própria identidade. O fato de não sabermos quem é Chiron ou qual é a motivação que o mantém seguindo é um fator interessante e que deve agradar outros observadores, mas que pessoalmente me provoca um sentimento de vazio e subjetividade: não consigo me importar com o personagem, com exceção dos momentos em que a mão de Jenkins interfere para gerar empatia ou suspense. 

Moonlight: Sob a Luz do Luar é uma história impactante e familiar, mas que ganha força graças ao poderio técnico e narrativo de Barry Jenkins, que explora cantos e raízes de um contexto que raramente é explorado no cinema americano. Não só sua câmera é infalível, o elenco perfeitamente dribla e nos faz ignorar os clichês da história, tornando esta uma experiência memorável.

Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, EUA - 2016)

Direção: Barry Jenkins
Roteiro: Barry Jenkins
Elenco: Alex Hibbert, Ashton Sanders, Trevante Rhodes, Mahershala Ali, Naomie Harris, Janelle Monáe, Jaden Piner, Jarrel Jerome, André Holland
Gênero: Drama
Duração: 111 min

https://www.youtube.com/watch?v=cYFIBxizOW0


by Lucas Nascimento

Crítica | John Wick: Um Novo Dia Para Matar

Há algo de empolgante em ver um mundo todo nascendo de forma inesperada. Acho que nem mesmo Keanu Reeves poderia esperar que sua carreira tivesse uma Segunda Vinda tão marcante e bem sucedida quanto a que Chad Stahelski, que fora seu dublê durante a trilogia Matrix, lhe proporcionaria com John Wick. Um filme simples, mas executado com eficiência e que trazia Reeves chutando traseiros e explondindo cabeças com precisão de uma forma que há muito não víamos. A recepção do filme o transformou em um cult do gênero, e uma sequência maior e - sim - melhor ganha forma com John Wick: Um Novo Dia para Matar.

A trama tem início imediato às ações do anterior, com John Wick (Reeves) amarrando pontas soltas de sua vingança explosiva e recuperando seu carro roubado da máfia russa. O passado novamente bate à sua porta quando Santino D'Antonio (Ricardo Scamarcio) vem lhe cobrar uma dívida antiga, algo que a sociedade do qual fazem parte chama de Promissória, exigindo que Wick assassine sua irmã para que ele ganhe um cargo de alto nível dentro da organização. Ameaçado e obrigado pela obrigatoriedade do contrato, Wick retorna mais uma vez da aposentadoria para completar a missão, mas é traído quando D'Antonio revela segundas intenções.

É uma premissa muito mais complexa e desenvolvida do que a do primeiro, a qual carinhosamente é resumida como "o filme de vingança pelo cachorrinho". Era um simples e eficaz que agradou meio mundo, mas acredito que seja mesmo com Um Novo Dia para Matar que John Wick realmente prove a que veio, e quais as possibilidades de seu suculento universo expandido. O roteiro de Derek Kolstad explora ainda mais o funcionamento do Continental, o brilhante hotel dos assassinos, assim como suas divisões internacionais e o alto leque de departamentos e serviços disponíveis, desde um armamento e alfaiataria que impressionariam James Bond em nível de fogo e deixariam a agência Kingsman no chinelo em termos de sofisticação e elegância. Esse é o real credo dos assassinos que a Ubisoft falhou miseravelmente em adaptar com Michael Fassbender, surpreendendo ao revelar diversos civis disfarçados, prestadores de serviço a praticamente toda esquina e uma bizarra expansão que envolve o personagem de Laurence Fishbourne em uma cena memorável, ou as ótimas participações de Ian McShane e Franco Nero.

Um admirável novo mundo, de fato. É o palco perfeito para que Stahelski conduza uma narrativa impressionante e que nunca perde o interesse, mesmo que o roteiro de Kolstad siga uma missão básica e com reviravoltas previsíveis; é funcionalidade feita com estilo. Não sentimos a frustrante sensação de repetição de fórmula, já que o fato de que Wick ter saído de sua aposentadoria abruptamente atraiu a atenção de alguns colegas do Continental, mantendo a perfeita lógica de causa e efeito de um longa para o outro. E, novamente, é justamente a expansão do universo que torna tudo tão novo, especialmente por vermos interações de Wick com outros assassinos e membros do clube, em diálogos repletos de sugestões de interações prévias e até um respeito rancoroso; vide a excelente cena em que toma um drinque com o personagem de Common, após uma violentíssima luta.

Falando de luta, não há outra forma de descrever o que Stahelski faz com as cenas de ação além de puta que pariu. O ex-dublê revela-se um diretor ainda mais competente e criativo do que no anterior, valorizando a coreografia dos brutais confrontos corporais em planos longos e uma montagem ágil, permitindo ao espectador compreender a ação e se impressionar por seu realismo e estilização. As lutas agradam pela coreografia inventiva, enquanto os tiroteios são absurdamente envolventes graças à sua câmera solta (jamais shaky cam) que acompanha o rampage de Wick de maneira fluida, mantendo também o impacto ao trazer sangue digital sempre presente e um design sonoro marcante para cada bala disparada.

É um filme absolutamente violento, sem sombra de dúvidas, mas de bom gosto. Isso porque Stahelski aposta em uma elegância visual que me faz relembrar o fenomenal trabalho de Sam Mendes e Roger Deakins em 007 - Operação Skyfall, já que a maioria das cenas de ação ocorrem em algum tipo de exibição artística, galerias de arte ou outros eventos pirotécnicos que exigem um visual dinâmico do diretor de fotografia Dan Laustsen. Temos tiroteios em meio a um show pop dominado por canhões de luz difusa, uma perseguição de carros banhada pelo neon da Times Square e um confronto brilhante que se desenrola dentro de uma sala espelhada; um artifício que já vimos diversas vezes, mas que ganha vida nova nas mãos de Stahelski e seus enquadramentos engenhosos. É, sem trocadilhos, a real definição de "filme de ação de Arte."

No centro disso, temos Keanu Reeves. Nunca um ator conhecido por seu carisma ou expressividade, Reeves é a escolha perfeita para John Wick, com sua "canastrice charmosa" rendendo inúmeros momentos sutis de humor e frases de efeito apropriadamente desajeitadas e piegas - do tipo que Stallone ou Schwarzenegger soltariam na década de 1980. Vale ressaltar também como Reeves mostra-se incrivelmente dedicado às cenas de ação, sendo possível notar seu esforço e competência ao rapidamente recarregar armas de fogo ou imagens inacreditáveis como ver o ator no volante realmente chocando seu carro com outro veículo; o enquadramento de Stahelski em tal momento é revelador demais para suspeitar de CGI. Ah, e Wick tem um novo cachorro, sendo sempre divertido observar a doçura que fornece ao animalzinho.

John Wick: Um Novo Dia para Matar é o raro exemplo de continuação que supera o original em absolutamente todos os aspectos, impressionando pela qualidade de suas cenas de ação e o ambicioso universo expandido que desabrocha e deixa portas abertas para uma inevitável continuação. Que Keanu Reeves não pare quieto em casa.

John Wick: Um Novo Dia Para Matar (John Wick: Chapter 2, EUA -2017)

Direção: Chad Stahelski
Roteiro: Derek Kolstad
Elenco: Keanu Reeves, Riccardo Scamarcion, Ian McShane, Laurence Fishburne, Ruby Rose, John Leguizamo
Gênero: Ação
Duração: 122 minutos

https://www.youtube.com/watch?v=REt99QNJ5Gs


by Lucas Nascimento

Crítica | Aliados

No atual período do cinema americano, é perfeitamente comum sentir uma dose de saudades e nostalgia em relação ao passado. O público pode sentir isso diante do estilo de narrativa mais acelerado e violento do que o comum, e até cineastas por trás das câmeras podem voltar seu estilo para algo mais saudosista. E isso parece estar tornando-se cada vez mais popular, bastando observar como La La Land: Cantando Estações, um musical que presta homenagens à Era de Ouro da Hollywood clássica, é o grande favorito ao Oscar deste ano ou como grandes franquias hollywoodianas (em especial os dois últimos Star Wars) tentam desesperadamente captar o espírito de grandes clássicos do passado.

Nessa linha de raciocínio, Robert Zemeckis é um cineasta que segue muito tradicional, e com Aliados ele claramente nos mostra o quanto é apaixonado por Casablanca, o cinema de Alfred Hitchcock e por thrillers de espionagem dos anos 40, tanto pelo setting da história quanto pela natureza de sua narrativa. E ao balancear o clássico com uma técnica moderna e inconfundivelmente própria, Zemeckis entrega um projeto surpreendentemente eficiente e que eu não sabia que precisávamos.

A trama parte de um roteiro original de Steven Knight, ambientando-se no auge da Segunda Guerra Mundial em 1942. Nesse cenário, o espião canadense Max Vatan (Brad Pitt) é enviado para Casablanca, onde fará contato com a agente francesa Marianne Beauséjour (Marion Cotillard) para que juntos conspirem o assassinato de um influente embaixador alemão. Surpreendentemente, essa é apenas a premissa do primeiro ato do longa, que então revela-se algo muito mais intimista e devastador quando o casal acaba se apaixonando e muda-se para Londres, onde se casam e têm uma filha bebê. Porém, a lealdade dos dois é testada quando a central de inteligência britânica desconfia que Marianne seja uma espiã alemã, algo que Max fará de tudo para provar sua inocência.

É um roteiro sem grandes ambições, afinal já vimos esse tipo de história ao menos um milhão de vezes - curiosamente, o próprio Brad Pitt já protagonizou uma narrativa similar de espionagem e casamento em Sr. & Sra. Smith. Esse provavelmente é ponto mais frágil da produção, ainda que eficiente, já que é uma história batida e que é movida através de alguns clichês, principalmente na relação inicial do casal protagonista e - principalmente - na resolução de algumas pontas soltas e muletas narrativas que fazem a ação se mover. Estruturalmente, é até estranho a transição entre o primeiro ato fortemente centrado na missão de guerra e o restante centrado na paranóia de Max quanto à real natureza de Marianne, mas confesso que até o fato de o assassinato ter sido executado de forma tão eficiente ("Nem estamos sendo seguidos!", exclama Marianne durante a fuga de carro dos dois) é justificado posteriormente pela reviravolta final.

Felizmente, as coisas podem sair muito diferentes quando um roteiro razoável é entregue nas mãos de um mestre indiscutível, e que espetáculo cinematográfico Robert Zemeckis é capaz de entregar aqui. Todos os conhecedores de seu cinema sabem que o diretor é absolutamente criativo e inventivo com seus enquadramentos e posicionamentos de câmera, e fica bem claro que estamos assistindo a um filme de Zemeckis logo nos segundos iniciais, quando o plano de um pôr do sol no deserto é lentamente invadido pelos pés de Max aterrissando de pára-quedas através de um tilt dinâmico e efeitos visuais elegantes. De forma similar, temos suas tradicionais brincadeiras com a câmera dentro de espelho, atravessando carros digitais e os discretos planos longos que começam em um ponto e terminam em outro inimaginável - vide a aterrissagem de um avião que tem início na lanterna piscando de um guarda. Definitivamente foi mais trabalho para o diretor de fotografia Don Burgess.

Essa mise en scène elaborada também contribui para o grande trunfo do filme, que é seu inesperado mergulho na paranóia. Do momento em que Max recebe a tarefa de testar Marianne e eliminá-la caso as suspeitas se confirmem, o filme transforma-se em um thriller do melhor sentido da palavra, onde Zemeckis nos revela também ser um dedicado aluno do cinema de Alfred Hitchcock. Max passa a observar Marianne através de cantos da porta e reflexos no espelho (sempre um recurso competente para ilustrar a dualidade), e a câmera quase voyerística de Zemeckis nos faz lembrar da obsessão de James Stewart em Um Corpo que Cai. Os planos sequência também contribuem para a sensação de tensão e até terror, como quando Max caminha pela festa lotada em sua casa, sempre de olho no comportamento de Marianne e nas diversas figuras suspeitas com quem ela parece interagir, enquanto a câmera de Zemeckis o segue, circula e explora as diferentes possibilidades do ambiente.

De maneira similar, o trabalho de som é absolutamente impecável para essa atmosfera dúbia e inconstante, em especial pelo momento em que Max aguarda uma ligação de seus superiores na inteligência britânica, e os quase inaudíveis ponteiros do relógio na cabeceira logo aumentam para batidas esmagadoras e torturosas, e o efeito é bem equlibrado com a tensa música de Alan Silvestri. Para um efeito mais simbólico, reparem no inteligente raccord (quando um áudio começa em um plano e termina em outro) quando Max coloca sua mão na barriga gestante de Marianne, e o som de bombardeios invade a tela antes de finalmente cortarmos para a batalha que o foley sugerira, já nos indicando o tipo de vida que o casal está condenado a seguir: marcado pela guerra e a violência.

E que violência. Não é sempre que Robert Zemeckis conduz um filme de censura R, mas ele certamente o faz com estilo e inteligência. As cenas de ação são intensas e não optam pelo tipo de combate "limpo", então vemos o sangue saindo de corpos baleados e sentimos cada pancada, disparada e golpe ao longo de tais sequências, outro bom fruto da edição de som potente do longa. E ainda assim, Zemeckis jamais transforma a experiência em um festival gore, já que algumas das mortes que mais sentimos ocorrem offscreen, e são ainda mais impactantes do que poderíamos imaginar; vide a cena em que Max entra em uma joalheria para executar um suspeito, e somos deixados do lado de fora, aguardando com nada além do som da chuva intensa; que demora um bom tempo para ser cortada pelo som do disparo. O susto que levamos durante a explosão de um tanque ou até a revelação de um rosto desfigurado são momentos memoráveis que Zemeckis é hábil ao brincar com expectativas: o tanque pela panorâmica que acompanha Max preparando a granada antes de seu lançamento, e o rosto escondido pelo enquadramento do personagem - um irreconhecível Matthew Goode.

Mas grande parcela do público provavelmente se interessará pelo elenco, especialmente pela junção dos talentos de Brad Pitt e Marion Cotillard. Pitt surge mais contido e cool, evidentemente emulando um aura charmosa de Humphrey Bogart durante boa parte do longa, transformando tudo isso em uma performance mais furiosa e fechada quando as suspeitas em relação à Marianne tem início. Já Marion Cotillard é o grande destaque em termos de atuação, tendo uma presença em cena magnética e carismática. É Marianne quem apresenta a Max o universo de Casablanca e os perigos da missão, o que rendem momentos divertidos que a atriz é definitivamente capaz de expressar bem. A partir do momento em que o arco de suspeita em torno da personagem começa, Cotillard mantém a mesma nota de sua atuação, tornando praticamente impossível para Max e o próprio espectador saber no que acreditar. A desconfiança se dá a partir de alguns flashbacks de frases chave de Marianne durante a missão inicial, como quando menciona que "fingir emoções é sua especialidade", já dando um toque de dualidade através de uma performance já estabelecida. Um excelente trabalho, sem dúvida.

Já a química dos dois é algo mais complicado, já que realmente não é uma relação que explode nas telas. É funcional, mas isso se dá mais por decisões estéticas do que pela interação entre os dois, vide a excelente cena de sexo dentro de um carro em meio a uma violenta tempestade de areia no deserto - mais uma boa simbologia do tipo de relação entre os dois. Porém, a baixa no romance não é nada que realmente prejudique o suspense do filme, muito menos o dramático clímax que certamente demonstra a coragem dos realizadores em seguir as consequências mais brutais de sua proposta, em uma das imagens mais emblemáticas do cinema recente de Robert Zemeckis.

Com um pé no espírito saudosista do clássico cinema hollywoodiano dos anos 40 e outro em uma abordagem moderna de alta qualidade, Aliados é um filme surpreendente que nos lembra o prazer de um bom thriller e o frio na barriga que uma boa condução é capaz de fazer. Nas mãos de um mestre como Robert Zemeckis, até um roteiro imperfeito é capaz de fazer maravilhas, e eu sinceramente espero que Zemeckis não mude nunca.

Aliados (Allied, EUA - 2016)

Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Brad Pitt, Marion Cotillard, August Diehl, Jared Harris, Lizzy Caplan, Simon McBurney
Gênero: Drama, Suspense, Guerra, Espionagem
Duração: 124 min

https://www.youtube.com/watch?v=iQz2MleXtEw


by Lucas Nascimento

Crítica | Quase 18

Deve até soar um pouco cansativo quando ouvimos que teremos um novo filme "coming of age" sobre os problemas da adolescência e os difíceis problemas que essa fase traz, especialmente no colégio. Cineastas como Johh Hughes foram bem capazes de explorar essa questão nos anos 80, com um senso de humor único e um melodrama sutil que entregava uma mensagem afetiva, e mais recentemente tivemos casos como Boyhood, O Maravilhoso Agora, A Mentira e até o surpreendentemente doce e pervertido Superbad.

Não seria um exagero pensar que o gênero já havia explorado todo seu potencial, dada a qualidade das obras citadas acima. Porém, claramente é um erro, já que o ciclo da adolescência é um looping que se repete por gerações e gerações, o que praticamente garante que veremos muitas histórias do tipo pela frente - afinal, muitas destas são inspiradas na própria experiência de seus realizadores. Esse caráter fica bem claro em Quase 18 (por pouco o título não é confundido com um besteirol), que oferece uma ótica muito diferente e original para o tema, e ouso dizer que talvez seja o melhor exemplar do gênero dos últimos anos. 

Simplíssima, a trama nos apresenta à Nadine (Hailee Steinfeld), uma adolescente de 17 anos que tem muita dificuldade para se encaixar aos demais colegas de sua faixa etária (rotulando-se como uma "alma velha"), algo provocado por sua personalidade irônica e, por falta de definição melhor, fora da caixinha. Sua única amiga é Krista (Haley Lu Richardson), mas tudo desanda quando esta começa a namorar seu irmão Darian (Blake Jenner), o que faz as duas se afastarem e Nadine ter uma bizarra crise de identidade, levando-a a desabafar com um professor aparentemente desinteressado (Woody Harrelson), ter uma relação embaraçosamente mais próxima com sua mãe (Kyra Sedgwick) e se aproximar de um estudante de cinema tímido (Hayden Szeto).

Eu sei, eu sei. Com a leitura da sinopse, você provavelmente pensaria que isso é mais um drama adolescente descartável e clichê; eu pensaria o mesmo, e nem quero arriscar em assistir ao trailer, visto que é um filme dificílimo de se vender sem torná-lo algo piegas. Porém, o que a estreante Kelly Fremon Craig faz com o material é algo verdadeiramente especial, vide tamanha honestidade e veracidade com que pinta sua história. Claro, todos os eventos e situações que acabam se desenrolando não são necessariamente originais (como acidentalmente mandar uma mensagem erótica para o crush, fugir de casa para um encontro), mas o tratamento de Craig a elas é o que torna tudo tão fresco e envolvente - até mesmo a abertura com um prólogo que se ambienta no meio da narrativa já desperta nosso interesse - assim como a presença fortíssima de sua protagonista.

Nadine é uma personagem como poucas no cinema americano recente. Verborrágica e simplesmente incapaz de parar de falar, seja com outros ou consigo própria, o que por si só é interessante considerando sua personalidade antisocial; quase como usar o discurso como forma de se manter isolada de interações sociais de verdade, o que constantemente a coloca em conflito consigo mesma ("por que você é tão esquisita?" resmunga ela no espelho durante uma festa desconfortável). Esse comportamento também resulta em Nadine dizer diversas coisas repreendíveis ou simplesmente erradas, como quando faz um jogo psicológico com seu irmão ao trazer à tona a morte de seu pai ou quando apela para um melodrama radical ao dar um ultimato para Krista sobre a relação das duas, sem nem ao menos pensar sobre. É uma personagem que mantém nosso interesse a admiração mesmo durante suas decisões mais infelizes - em determinado momento, me peguei observando uma escolha curiosa de vocabulário da menina, apenas para que segundos depois ela fizesse exatamente a mesma observação, já demonstrando como Craig foi capaz de criar uma figura que já conhecemos integralmente com pouco tempo de projeção.

Mas é quando Nadine revela o real drama de sua situação que o texto de Craig realmente fica mais especial. O grande problema da protagonista não é como aqueles a seu redor, mas consigo própria. Em uma das muitas divertidíssimas cenas com o professor vivido por Woody Harrelson, ela comenta sobre como é incapaz de se encaixar e que não tem o menor interesse nisso - constatação para a qual ele brilhantemente replica "talvez as pessoas simplesmente não gostem de você", gerando aqui um personagem que constantemente zomba e contraria sua aluna, mas que claramente forma um vínculo forte e de apoio. Porém, quando Nadine tem uma aguardada redenção catártica com seu irmão, percebi o caráter majestoso da prosa de Craig. É quando Nadine percebe que está infeliz consigo mesma, "que sua alma projeta-se para fora do corpo e fica triste com o que está vendo, e desesperada por ter que conviver com isso pelo resto da vida", que Quase 18 toca em questões universais e profundamente identificáveis. Isso é simplesmente uma jóia de prosa.

É um papel difícilimo e que depende muito da força de sua atriz para funcionar, e fico extasiado em observar como Hailee Steinfeld lidou com o desafio de forma fantástica. Desde sua estreia sensacional nos cinemas com Bravura Indômita, em um longíquo 2010, fiquei esperando para ver a grande promessa daquele filme se concretizar nas telas, decepcionando-me com a escolha pouco criativa de Steinfeld para uma variedade de papéis esquecíveis e uma carreira musical sem muito impacto. Nadine era exatamente o que Steinfeld precisava. Da mesma forma como Olive em A Mentira revelou o carisma imenso de Emma Stone, Nadine é um canivete suíço de emoções e nuances, de um humor ácido e palavrões que brotam a todo momento, e Steinfeld está absolutamente excepcional em todos os momentos - em especial na reconciliação com seu irmão, mencionada ali em cima.

Quase 18 é uma fantástica surpresa. É um filme pouco inventivo em termos de direção, mas que funciona por manter a força de seus excepcionais personagens e do excelentee sincero roteiro, que já coloca Kelly Fremon Craig como um nome para se seguir de perto. Que as angústias e dramas da adolescência continuem gerando obras tão inspiradoras e envolventes como esta.

Quase 18 (The Edge of Seventeen, EUA - 2016)

Direção: Kelly Fremon Craig
Roteiro: Kelly Fremon Craig
Elenco: Hailee Steinfeld, Woody Harrelson, Haley Lu Richardson, Blake Jenner, Kyra Sedgwick, Hayden Szeto
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 104 min

https://www.youtube.com/watch?v=BabwExsIGVU


by Lucas Nascimento

Crítica | A Qualquer Custo

Muitos dizem que o gênero do faroeste morreu no cinema americano, mas os mais atentos definitivamente perceberam que histórias de cowboys e índios em tramas de assalto e perseguição nunca acabaram, elas só evoluíram. Aliás, é curioso como o atual cinema americano vem apostando em diversos longas do gênero, desde os remakes e homenagens como Bravura Indômita, Sete Homens e um Destino, Django Livre e Os Oito Odiados, até aqueles que corajosamente introduzem novos elementos e os modernizam, seja pela abordagem ou pelo setting da história - vide o espetacular Bone Tomahawk ou o premiado O Regresso. Um exemplo formidável dessa vertente também vem do faroeste moderno, com tramas ambientadas em períodos contemporâneos, mas que são westerns em sua essência.

A Qualquer Custo é o longa dessa categoria que mais ganhou destaque em 2016, partindo de um roteiro original de Tyler Sheridan (seu segundo trabalho na função, depois de Sicario - Terra de Ninguém) que acompanha o plano de dois irmãos, Tanner e Toby Howard (Ben Foster e Chris Pine, respectivamente) que assaltam algumas agências bancárias pela região interiorana do Texas, tudo na ambição de garantir uma herança decente para os filhos de Toby. Enquanto a dupla passa por poucas e boas ao longo da jornada, sua cruzada atrai a atenção dos policiais Marcus Hamilton (Jeff Bridges) e Alberto Parker (Gil Birmingham), que perseguirão os dois até o fim.

É o clássico road movie de perseguição, onde os incidentes incitantes da trama vão aparecendo ao longo do caminho enquanto mergulhamos nas relações entre os personagens, o que rende um fantástico exercício de roteiro, e também direção. Só pelo fato de termos duas duplas em situações opostas já garante um espelhamento eficiente, e Sheridan já demonstra uma melhora considerável na escrita de diálogos (convenhamos, foi Denis Villeneuve quem fez Sicario tão especial) e na personalidade de seus personagens. Tanner e Toby trazem o clássico estereótipo da intriga entre o sujeito mais violento/impulsivo e aquele mais racional e que geralmente costuma ser a bússola moral, mas o truque funciona pelo background  familiar expressivo dos dois. O núcleo dos policias também parte da premissa mais clichê possível, com o veterano a poucos dias de sua aposentadoria e um parceiro de outra etnia que acaba bombardeado por comentários e insultos racistas - mesmo que todos sirvam como alívios cômicos.

Sheridan faz bem com o material, e mantém uma linha de diálogos e acontecimentos que jamais deixam de prender o interesse ou entreter o espectador. O esquema dos irmãos para "lavar" o dinheiro em um cassino pode tornar-se um tanto maçante, tendo em vista que é o tipo de ideia que fica ótima no papel, mas um tanto absurda em sua execução, visto que envolve que os personagens apostem fichas em jogos de azar... Mas é um recurso eficiente e original. A crítica de Sheridan ao colapso da economia dos EUA também se manifesta através de diálogos e intenções, visto que frequentemente temos personagens fazendo alguma menção à perdas pessoais ou a embaraçosa situação onde uma garçonete recusa-se a entregar a um dos policiais os 200 dólares de gorjeta que recebera de um dos irmãos assaltantes, mesmo servindo de evidência.

Esse mundo caído e decadente é algo maravilhosamente traduzido pelas lentes do diretor David Mackenzie. Com o auxílio do fotógrafo Giles Nuttgens, Mackenzie oferece uma paisagem árida marcada por cores pastéis fortes e vibrantes, capturando a atmosfera quente e opressora do deserto texano. As composições do diretor também são eficientes em retratar personagens sendo esmagados pela gigantesca paisagem, quase formigas sobrevivendo à todo custo em um ambiente hostil, o que também é uma ótima ferramenta para a construção do suspense. Logo nos minutos iniciais, a câmera de Mackenzie nos apresenta a um plano sequência discreto e silencioso, acompanhando uma funcionária de banco chegando a seu local de trabalho (notem como uma das paredes traz uma pichação com o dizer "três idas ao Iraque e nada mudou para nós", eficientemente nos estabelecendo ao contexto) apenas para ser vítima de um brutal assalto.

E durante essas cenas, é ótimo perceber como estamos diante de personagens não muito habilidosos. Ainda nessa cena de abertura, chega a ser cômico que a funcionária que acabara de chegar seja praticamente inútil para os assaltantes protagonistas, que são forçados a ter uma espera embaraçosa com a moça enquanto o gerente - o único capaz de abrir o cofre - não chega para trabalhar. É um senso de humor muito sutil, e que ganha mais força com os longos planos optados pelo diretor, incluindo também uma ótima cena na qual Tanner acaba provocando dois sujeitos num posto de gasolina, fornecendo mais um indício de sua natureza autodestrutiva. Mas o grande ápice de Mackenzie se dá no tiroteio que marca o clímax, e nas explosões de violência que definitivamente chocam por sua imprevisibilidade.

Finalmente, temos o elenco. Quem foi lembrado pela Academia (e praticamente todos os prêmios da temporada) foi o policial vivido por Jeff Bridges, que mantém sua postura descontraída e divertida para uma ótima performance, que ganha tons mais dramáticos e interessantes à medida em que vamos nos aproximando do clímax. Mas Bridges também deve muito a Gil Birmingham, que interpreta seu parceiro de forma silenciosa e antagônica, oferecendo o perfeito contraponto às tiradas irônicas e sarcásticas de Hamilton. Já os dois irmãos ganham algumas das melhores performances das carreiras de Ben Foster e Chris Pine, com o primeiro chegando a assustar por sua imprevisibilidade e agressão, mas também surpreendendo por sua compaixão e lealdade - vide sua decisão no violento terceiro ato. Quanto a Pine, sua postura de bom moço/bad boy é quebrada pela atuação "desesperado, mas calmo" do irmão mais racional, sendo extremamente bem sucedido ao transmitir a responsabilidade do personagem e fazer com que o público perdoe suas ações questionáveis e torça para seu sucesso, apesar de tudo.

Simples e eficiente em sua proposta, A Qualquer Custo é mais um exemplar digno do neo western, e um atestado do crescente talento de Taylor Sheridan como roteirista, que aqui tem suas ideias e personagens ganhando vida pelas mãos de um impecável diretor e um elenco talentoso.


by Lucas Nascimento

  • 1
  • …
  • 56
  • 57
  • 58
  • 59
  • 60
  • …
  • 70
© 2025 Bastidores. All rights reserved
Bastidores
Política de cookies
Para fornecer as melhores experiências, usamos tecnologias como cookies para armazenar e/ou acessar informações do dispositivo. O consentimento para essas tecnologias nos permitirá processar dados como comportamento de navegação ou IDs exclusivos neste site. Não consentir ou retirar o consentimento pode afetar negativamente certos recursos e funções.
Funcional Sempre ativo
O armazenamento ou acesso técnico é estritamente necessário para a finalidade legítima de permitir a utilização de um serviço específico explicitamente solicitado pelo assinante ou utilizador, ou com a finalidade exclusiva de efetuar a transmissão de uma comunicação através de uma rede de comunicações eletrónicas.
Preferências
O armazenamento ou acesso técnico é necessário para o propósito legítimo de armazenar preferências que não são solicitadas pelo assinante ou usuário.
Estatísticas
O armazenamento ou acesso técnico que é usado exclusivamente para fins estatísticos. O armazenamento técnico ou acesso que é usado exclusivamente para fins estatísticos anônimos. Sem uma intimação, conformidade voluntária por parte de seu provedor de serviços de Internet ou registros adicionais de terceiros, as informações armazenadas ou recuperadas apenas para esse fim geralmente não podem ser usadas para identificá-lo.
Marketing
O armazenamento ou acesso técnico é necessário para criar perfis de usuário para enviar publicidade ou para rastrear o usuário em um site ou em vários sites para fins de marketing semelhantes.
Gerenciar opções Gerenciar serviços Manage {vendor_count} vendors Leia mais sobre esses propósitos
Ver preferências
{title} {title} {title}