Das Cinzas, a Fênix | O Final de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald explicado

A segunda iteração da franquia Animais Fantásticos acabou de estrear e, apesar de não ter feito o sucesso prometido entre a crítica e o próprio público, conseguiu trazer revelações e cliffhangers interessantes que podem auxiliar na fluidez e na complexidade dos próximos filmes. E um desses insights narrativos envolve um das figuras mais conhecidas do universo mágico: Alvo Dumbledore.

Mas primeiro vamos dar nome às cartas do jogo: como bem nos recordamos, um dos personagens mais conturbados do longa-metragem, Credence (Ezra Miller), que também retorna para Os Crimes de Grindelwald em um arco inexplicavelmente reduzido, foi acolhido pelas cruéis e manipuladoras mãos de Mary Lou (Samantha Morton), uma trouxa reacionária aversa à presença dos bruxos nos mesmos círculos sociais que seus semelhantes. Sua conduta repreensível impediu que Credence aceitasse quem realmente é, obrigando-o a internalizar sua identidade mágica e transformando-o em uma criatura mortal e muito instável conhecida como Obscurus ou Obscurial. Eventualmente, essa censura compulsória culmina em um sentimento destrutivo de não-pertencimento e numa consecutiva jornada para descobrir quem de fato é.

É claro que em meio a tantos deslizes narrativos, essa incessante busca é colocada em segundo plano e ofuscada, numa infeliz decisão, por uma trama maior e mais desenvolvida, por assim dizer. Credence cruza caminho com a sedutora presença de Grindelwald (Johnny Depp), o qual lhe diz que só ele conhece a verdadeira história do garoto - e, além disso, repete inúmeras vezes que ele é o único que pode destruir o principal obstáculo em seu caminho, Alvo (Jude Law).

As informações são muitas e, dentro de um escopo fílmico marcado pela alta de foco e pela inconstância de um roteiro perdido e saturado, as múltiplas subtramas acabam se confundindo e exaurindo a audiência. Porém, se prestarmos atenção, é até interessante observar como esses pontos a priori opostos convergem em uma resolução convincente, mesmo que previsível pelas dicas dadas pela própria obra: como bem sabemos, a família Dumbledore é associada à presença da fênix, a qual se atrela a cada membro  do clã e é capaz também de encontrá-los até mesmo nos mais inóspitos lugares. Tal qual é a nossa surpresa quando, nos minutos finais, esse belíssimo animal surge com a presença de Credence, que na verdade é o irmão perdido de Alvo, Aurelius.

Sim, é isso mesmo: Credence Barebone, de alguma forma, foi tirado de sua família e consumado com uma nova identidade, até irromper na revelação que o torna mais conturbado do que já é. Inúmeras teorias podem partir daí, incluindo aquelas em relação à irmã do Grande Mago, Ariana Dumbledore. Em Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2, Aberforth, o outro irmão de Alvo, revela que a caçula recusava-se a usar magia após ser agredida e também se transformou em um Obscurus, o qual a corroeu por dentro e, no final das contas, acabou matando-a. Talvez o ser que a habitava tenha encontrado um novo hospedeiro, uma compatibilidade de sangue com Credence/Aurélio, mantendo o trágico legado.

O problema é que a insurgência de um irmão perdido poderia bagunçar muito a timeline e a própria história arquitetada por J.K. Rowling. Afinal, até mesmo os livros refutam a presença de um quarto irmão. Eliphas Dodge, amigo íntimo de Alvo, deu declarações sobre o futuro dos Dumbledore após a morte dos pais, Percival e Kendra. A adição de Aurélio, logo, deve ser tratada com uma cautela muito além do normal - ademais, nem mesmo os números fazem muito sentido, seja em relação às idades, seja em relação aos anos dos acontecimentos.

Considerando a mixórdia sem sentido do segundo longa-metragem, essas informações adicionais podem complicar ainda mais as coisas. E ninguém iria gostar disso.


Crítica | House of Cards: 6ª Temporada - Comédia Política

Crítica | House of Cards: 6ª Temporada - Comédia Política

A produção de House of Cards é uma das mais conturbadas da televisão contemporânea, e isso não vem desde sua estreia ainda em 2013. Pelo contrário, os inúmeros problemas começaram a aparecer quando Kevin Spacey, intérprete do protagonista Frank Underwood, foi acusado de inúmeros casos de abuso sexual que datavam da década de 1980 e se estendiam até mesmo para dentro do set de gravações da série. E é claro que, com a onda de denúncias acerca de vários nomes da indústria cinematográfica, o ator perdeu o papel principal e foi obrigatoriamente afastado da sexta temporada, cultivando uma grande dúvida acerca do último ano do show: qual seria o próximo passo?

É claro que o criador Beau Willimon encontraria um jeito de sustentar a história por mais alguns episódios até o aguardado series finale. Afinal, para aqueles que não se recordam, o cliffhanger da assustadora quinta temporada trazia a figura de Claire Underwood (Robin Wright) realizando um golpe contra seu marido e assumindo a presidência dos Estados Unidos, tornando-se a primeira mulher no comando da gigantesca potência. É claro que, comparando com as investidas anteriores, o ano passado tornou-se uma miscelânea de subtramas esquisitas e bizarras que contradiziam todo o teor político-dramático da proposta do seriado. Entretanto, caso o público não levasse os episódios tão a sério, era possível se divertir com as atuações e com os diálogos carregados de clichês e travestidos com um palavreado erudito como se realmente significasse algo de importante.

A verdade é que um dos shows mais polêmicos da Netflix já deveria ter encerrado. E isso apenas se comprova com mais irrefutabilidade com a chegada da sexta iteração - uma infeliz e trágica resolução que não faz jus ao que House of Cards representou durante esses seis anos. E não, o problema não reside na saída de Spacey, mas sim na falta de tato com os personagens e com as tramas. Desde o primeiro episódio fica claro que os roteiristas e diretores brincam com suas zonas de conforto, copiando tendências que funcionaram no passado e desconstruindo-as em meio a arcos previsíveis e monótonos. De fato, se as primeiras temporadas, por mais complexas que fossem, conseguiam nos manter presos através de sua construção técnico-artística (iniciada com o aplaudível nome de David Fincher), é justamente essa minúcia que deixa de existir. Em outras palavras, acompanhar a última saga Underwood é um trabalho árduo e passível de desistência a cada minuto que passa.

Logo no episódio de abertura, Claire sente as pressões de se tornar a primeira presidente mulher. Ainda que receba apoio de certa parte dos cidadão norte-americanos, ela também é alvo de ameaças e, em meio a tantos comentários preconceituosos, mantém uma postura exemplar frente aos obstáculos que constantemente surgirão. Seguindo o mesmo padrão de seu ex-marido, agora morto, ela tem - ou ao menos acha que tem - aliados ao seu lado, materializados na figura de Mark (Campbell Usher), seu vice. Entretanto, conforme a história se desenrola, percebemos que as figuras mais próximas são as que, na verdade, estão apenas usando-a como meios para um fim.

O problema é que nada disso funciona, em momento algum. A premissa, já utilizada por outras temporadas, poderia mergulhar sem medo em uma perspectiva original, talvez focando nos atributos manipulativos de Claire e reafirmando de diversos modos como ela conseguiu chegar à presidência, contrariando seu papel como esposa e primeira-dama e orquestrando um belíssimo golpe contra seu próprio ex-companheiro. Mas, como já mencionado, a safezone fala muito mais alto e não deixa espaço para explorações interessantes, nem mesmo em relação à atuação. Wright parece perder seu brilho em meio às pressas das tramas, e rende-se a uma canastrice sem precedentes. Caso prestemos bastante atenção, é quase possível vê-la empurrar a personagem com a barriga.

Um ou outro diálogo conseguem se salvar, e isso se dá mais pela construção imagética que por qualquer coisa. Através de certos maneirismos que retornam aos anos de glória do seriado, a atmosfera coercitiva e pungente é resgatada em quase toda sua completude. Porém, ao invés de se manter, ela se perde em meio a uma arquitetura intangível e informal demais para que passe a veracidade de uma esfera política. E isso não se mantém apenas no plano visual, mas também abre margens para sequências presunçosas e risíveis: em determinado ponto, a presidente encontra o anel de Frank em seu quarto e o coloca, apenas para “mostrar o dedo” para a câmera numa quebra da quarta parede extremamente forçada. É claro que a ideia aqui era muito mais profunda do que dera a entender, mas a falta de nexo dentro do escopo narrativo transforma um promissor ápice em uma decadente rendição.

Talvez a figura que mais chame a atenção seja Duncan Shepherd (Cody Fern), filho de Annette (Diane Lane) e sobrinho de Bill (Greg Kinnear). Ao que tudo indica, o legado do ex-presidente não terminara, deixando certos acordos a serem finalizados, principalmente com a família Shepherd. Bill se mostra acolhedor para a nova governante dos Estados Unidos, mas depois revela suas reais intenções, chegando a protagonizar, indiretamente, uma das parcas delineações catárticas. Entretanto, ele e Annette retornam aos convencionalismos e dão espaço para Fern mostre mais uma vez sua versatilidade: de fato, sua performance é interessante e revela um comprometimento máximo com a caracterização de seu personagem além de representar um papel muito importante para a ameaçada fluidez da temporada.

House of Cards finalmente encontrou sua ruína, a qual vinha sido premeditada há bastante tempo. O problema é que o show transformou-se em uma convulsão de falsas promessas e voltou a se levar a sério, tentando sem sucesso resgatar o que outrora a colocou em um patamar considerável. É triste, porém é a verdade: a jornada dos Underwood acabou.

House of Cards - 6ª Temporada (Idem, 2018 – EUA)

Criado por: Beau Willimon
Direção: Alik Sakharov, Ami Canaan Mann, Stacie Passon, Ernest Dickerson, Thomas Schlamme, Louise Friedberg, Robin Wright
Roteiro: Melissa James Gibson, Frank Pugliese, Charlotte Stoudt, Sharon Hoffman, Jerome Hairston, Tian Jun Gu, Jason Horwitch
Elenco: Robin Wright, Michael Kelly, Diane Lane, Campbell Scott, Patricia Clarkson, Cody Fern, Constance Zimmer, Boris McGiver, Derek Cecil
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Drama político
Duração: 55 min. aprox.


Abraçando as Trevas | O final da 1ª Temporada do Mundo Sombrio de Sabrina Explicado

O Mundo Sombrio de Sabrina | Primeiras Impressões

Observação: a crítica abrange os dois primeiros episódios da série, disponibilizados pela Netflix à imprensa.

Em 1996, Sabrina – Aprendiz de Feiticeira ganhava as telinhas. A série, baseada nos divertidos quadrinhos da Archie Comics, foi protagonizada por Melissa Joan Hart, que durante um tempo tornou-se a queridinha do mundo adolescente antes de infelizmente cair no esquecimento, e girava em torno da personagem-título, uma bruxinha prestes a completar dezesseis anos dotada de habilidade mágicas. É claro que, à época, o show trazia um cunho mais inocente, cômico e irreverente, funcionando até mesmo numa espécie de sitcom travestida de dramédia – e é claro que não poderíamos esquecer do adorável Salem, o gato preto falante e companheiro de Sabrina em suas aventuras.

Entretanto, poucos sabem que a empresa responsável pelas histórias tem uma vertente sombria – literalmente. A divisão intitulada Archie Horror é destinada a repaginar as clássicas narrativas com um toque macabro e, para aqueles que possam não estar familiarizados com as produções televisivas, foram as revistinhas desse grupo que deram origem a Riverdale, um dos dramas adolescentes mais assistidos da década. Tal qual foi a surpresa quando a Netflix anunciou um cruel e apavorante remake da jornada coming-of-age da feiticeira com O Mundo Sombrio de Sabrina, criando um tumulto considerável e justificado inclusive pelos inúmeros releases que prometiam desconstruir a imagem de bonança da série anterior.

O cenário é conhecido (a cidade de Greendale, onde todo dia parece Halloween), e o reconhecimento da protagonista é quase instantâneo. Na mais nova investida, Sabrina (Kiernan Shipka) está prestes a completar seu décimo-sexto aniversário e deverá fazer uma escolha quase impossível: entrar para a Igreja da Noite e se realizando como feiticeira completa, abandonando sua vida mundana; ou manter vínculos com seus amigos humanos e seu cotidiano adolescente. Roberto Aguirre-Sacasa, criador e roteirista da série, não se permite cair no melodrama ficcional e parte logo para a ação, buscando inspiração em seus trabalhos anteriores para manter um ritmo frenético e angustiante. Shipka definitivamente consegue encarnar a heroína de modo sublime, delineando traços nunca antes vistos, desde a excessiva candura até um olhar oblíquo que dialoga com os segredos que esconde tanto dos amigos quanto do namorado.

É natural que o episódio piloto se mova com mais cautela e com mais autoexplicações – afinal, é preciso apresentar ou reapresentar esse novo cosmos aos espectadores. Entretanto, não pense que a sutileza é a marca registrada da série: Aguirre-Sacasa, em colaboração com um soberbo time criativo, não poupa em fazer sacrifícios nos primeiros minutos e tem plena ciência de que não está simplesmente eliminando personagens. Mundo Sombrio tem uma pegada mais satírica, com diálogos ácidos que entram em choque com os obstáculos da adolescência e a tentativa de levar tudo com a maior naturalidade possível.

Diferentemente da série protagonizada por Joan Hart, aqui Sabrina tem pleno conhecimento de suas habilidades e que, após o dia 31 de outubro – que coincide com seu aniversário, o dia das Bruxas e um eclipse conhecido como Lua de Sangue -, nada será como antes. De um lado, ela sofre por manter tal segredo de seu namorado Harvey (Ross Lynch, com quem constrói um relacionamento e uma química impecáveis) e de sua melhor amiga Rosalind (Jaz Sinclair). De outro, sofre uma pressão perturbadora das tias Hilda (Lucy Davis) e Zelda (Miranda Otton), as quais constantemente a recordam de que aceitar o Batismo e jurar fidelidade eterna para o clã era algo que seus falecidos pais sempre desejaram. A princípio, a quantidade de elementos parece desnecessária, mas eles convergem em necessidade narrativa quando pensamos nos futuros episódios, visto que explicações ocasionais não poderão existir em detrimento da continuidade cênica.

Salem não é esquecido – e não me refiro apenas ao gatinho preto. Além do familiar, guia espiritual e protetor da protagonista, a famosa cidade, conhecida por seu julgamento, é homenageada em diversos aspectos. Em The Dark Baptism, como ficou intitulado o segundo episódio, o diretor Lee Toland Krieger traz sua bagagem clássica para as técnicas fílmicas, em especial para a sequência do labirinto de feno que traça paralelos com as construções campestres reflexivas de As Bruxas de Salem. Porém, é necessário lembrar que o apego religioso e crítico de Nicholas Hytner é ofuscado por tangências mais modernizadas e juvenis e traduzidas a moldes bem mais explícitos quando Sabrina se depara com o primeiro relance acerca de seu futuro.

O show não se respalda na nostalgia, mas encontra um modo de fundi-la às mensagens que deseja passar. Além de modernizar a história atemporal, que na verdade é ambientada nos anos 1960, Aguirre-Sacasa faz críticas ao machismo das escolas de ensino médio dos Estados Unidos ao mesmo tempo que encontra terreno fértil para questões raciais dentro dos clãs mágicos. A personagem-título é uma mestiça, filha de mãe mortal e pai feiticeiro, e é constantemente alvo de chacota – ou, nesse caso, maldições – de um grupo de bruxas conhecido como as Irmãs Estranhas, que não desejam que ela entre para a Academia de Artes Ocultas. Mesmo assim, a fluidez do roteiro dá espaço para uma das cenas mais tensas do episódio, no qual as quatro trabalham juntas para se vingar de certos bullies do colégio.

É claro que a série, ao menos por enquanto, não é privada totalmente de eventuais falhas, seja em frases muito explicativas ou em erros mais técnicos. Apesar disso, não podemos negar que o showrunner se entrega às suas próprias perspectivas do gênero fantástico, utilizando, por exemplo, uma profundidade de campo baixíssima como forma de orquestrar uma atmosfera onírica – em outras palavras, com o blur aureolar proposital. Personagens como Mary Wardell (Michelle Gomez) e George Hawthorne (Bronson Pinchot) têm suas respectivas importâncias, porém trazem um potencial muito maior do que o mostrado. Ademais, ambos servem como menção, mais uma vez, ao julgamento de Salem no século XVII, brincando com aliterações nominais de modo prático e interessante – e que talvez passe despercebido por certa parte do público.

O início do Mundo Sombrio de Sabrina é muito positivo, funcionando como um refrescante mergulho na ironia e na proposital falta de sutileza para chocar o público. Entre mortes inesperadas, rituais satânicos e feitiços malignos, as expectativas para o restante da temporada são altíssimos – e esperamos que a Netflix não nos decepcione.

O Mundo Sombrio de Sabrina - 01x01: October Country / 01x02: The Dark Baptism (Chilling Adventures of Sabrina, EUA – 2018)

Criado por: Roberto Aguirre-Sacasa
Direção: Lee Toland Krieger
Roteiro: Roberto Aguirre-Sacasa, baseado nos quadrinhos da Archie Comics
Elenco: Kiernan Shipka, Richard Coyle, Miranda Otto, Lucy Davis, Tati Gabrielle, Michelle Gomez, Ross Lynch, Chance Perdomo, Bronson Pinchot, Jaz Sinclair
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Fantasia, Terror, Drama
Duração: 60 min. aprox.


Crítica | A Maldição da Residência Hill: 1ª Temporada - Entre Traumas e Sacrifícios

Crítica | A Maldição da Residência Hill - Entre Traumas e Sacrifícios

Recentemente, o nome de Mike Flanagan tem ganhado bastante destaque no cenário audiovisual, seja no cinema, seja nos serviços de streaming. Apenas nos últimos anos, o diretor foi responsável por reviver o gênero de terror com investidas interessantes e originais que renegavam os formulaicos clichês e buscavam algo muito maior do que o simples jumpscare. Além de Hush – A Morte Ouve e O Espelho, Flanagan realizou sua primeira colaboração com a Netflix no ano passado com a adaptação do romance Jogo Perigoso, assinado por Stephen King, e ganhou reconhecimento principalmente pelas incríveis atuações. Agora, ele retorna em mais uma parceria com a plataforma ao mergulhar de cabeça em mais uma releitura: A Maldição da Residência Hill.

Baseada na obra de Shirley Jackson, a suposta minissérie de dez episódios definitivamente não nos traz uma premissa inovadora. Uma família se muda para uma gigantesca mansão no interior de Massachussets e passa a ser castigada por assombrações demoníacas, surtos psicóticos e episódios ilusórios mortais. É claro que, considerando as inúmeras outras peças cinematográficas das últimas décadas, é quase impossível não perceber de cara referências a franquias como Invocação do Mal e O Exorcista, cujas tramas partem do mesmo princípio – apesar de serem-lhe confiadas uma veracidade angustiante. O principal trabalho de Flanagan seria o modo pelo qual investiria na história: horror e gore puros? Inclinações para o suspense psicológico? Abandono de supostos atrativos presunçosos? De que modo o diretor conseguiria ao menos criar um cosmos envolvente e satisfatório sem o respaldo que transformou tal nicho narrativo em uma espécie de doença crônica?

Felizmente, ele sabe muito bem o que está fazendo. Afinal, este não é o seu primeiro trabalho e, sem sombra de dúvida, não abre espaço para amadorismos – não que eles não existam; mas ao contrário de outros longas e séries, esses não são propositais e, na verdade, contribuem para o retorno do próprio público à sanidade mental. De qualquer forma, as experimentações ocasionais, os floreios artísticos, as atuações e a progressividade anacrônica conferem um ar de alívio e de superação para o show, colocando-o merecidamente em um patamar de prestígio.

DE VOLTA PARA O FUTURO

Tornou-se algo prático na escrita criativa a multiplicidade de linhas temporais. Em outras palavras, o uso de uma montagem com cronologias diferentes já se provou muito útil quando pensamos em fluidez cênica. É só pensarmos em obras como How to Get Away with Murder e Once Upon a Time que, apesar de terem suas respectivas falhas, fazem bom uso dessa divisão, seja no passado ou no futuro. É partindo da mesma ideia que Residência Hill se constrói: em cada um dos dez episódios, a funcionalidade está nessa contraposição justaposta entre o antes e o depois – e isso não se mantém apenas no âmbito teórico, como funciona na prática artística com exímia segurança.

Flanagan retoma alguns de seus preceitos básicos para as telas, incluindo a simetria excessiva e a baixa profundidade de campo, como forma de oferecer um intimismo obrigatório aos telespectadores. Ele já havia feito isso em Jogo Perigoso, ambientado apenas em um minúsculo quarto; aqui, as coisas mudam consideravelmente, visto que possui mais materiais com os quais trabalhar, mais personagens, mais ambientações e, principalmente, mais tempo para resolver cada uma das subtramas com o máximo de cautela possível. É por isso que tanto o tempo o agora quanto o anterior têm o mesmo peso dramático – e isso exige demais até mesmo do elenco infantil, o qual se entrega aos próprios papéis e se rende a performances memoráveis e assustadoras de tão fiéis que são ao que desejam passar.

Hugh (Henry Thomas) e Olivia Crain (Carla Gugino) se mudam para a mansão Hill com seus cinco filhos e desejam reformá-la por inteiro antes de vendê-la a um preço justo e que traga conforto para o promissor futuro da família. Entretanto, nenhum dos dois poderia prever a quantidade de tragédias que acometeria o núcleo após meros dois meses morando na nova casa – e não pense que não foi por falta de aviso. À época em que os descendentes Crain eram apenas crianças, até mesmo os adultos sentiram as estranhas presenças e foram alvo de estranhos acontecimentos, dentre eles possessões e perda de lucidez.

Cada um desses personagens tem uma camada a ser explorada, e o roteiro, também supervisionado pelo showrunner, faz questão de prevenir quaisquer furos inadmissíveis que convergem para um mesmo ponto de virada. Temos, por exemplo, a jovem Nell (Violet McGraw), perturbada pelas constantes aparições da “moça-do-pescoço-entortado”, e sua conexão com o gêmeo Luke (Julian Hilliard), ambos símbolos de uma inocência que, anos mais tarde, seria corrompida por descrédito e pela falta de aceitação dos outros membros de seu núcleo – não é à toa que Nell enlouquece e Luke torna-se um viciado em heroína. Além disso, temos a incrível presença de Mckenna Grace como a introvertida e sensitiva Theodora, a qual, depois de ter um contato pessoal com um espírito, passa a ter a habilidade de empatia com as ambiências que frequenta apenas pelo toque.

Talvez o que mais surpreenda é a química que os atores-mirins mantêm com seus respectivos “pais”. Grace e Gugino são aquelas que mais trazem dinâmica às cenas, aliadas a diálogos enriquecedores e a virada surpreendentes que nos recordam mais de uma vez o fato de estarmos na presença de uma força sobrenatural. Theo mantém suas características determinadas e isolantes quando cresce, passando a ser encarnada por Kate Siegel em uma apaixonante rendição artística. Ela tenta usar de sua habilidade para ajudar crianças – tornando-se Mestra em Psicologia – ao mesmo tempo que constrói um muro em volta dela para se proteger do passado e da convivência com seus outros irmãos. Eventualmente, ela e todos os outros são obrigados a encarar de frente a verdade que lhes foi negada e a aceitar sacrifícios para continuarem a viver sem culpa.

O pedantismo, por incrível que pareça, é evitado e praticamente não existe. Isso se mantém em toda a cronologia descontruída, e o tempo atual não abdica dessa regalia: um dos maiores exemplos está em Shirley (Elizabeth Reaser), que se mantém fixa a uma expressão congelada e calculista quase o tempo todo apenas para se desmontar em momentos de vulnerabilidade. Além de ter lidado com a morte prematura e inexplicável da mãe, ela fica responsável por embalsamar e reconstruir o cadáver de Nell (Victoria Pedrettin) e se recusa a ceder às emoções. Não é até o momento em que sua história é revelada que percebemos o quão traumatizada ela está, impedindo uma autorreflexão tardia; como a própria mãe diz, seu primeiro contato com a morte foi perturbador, e isso a perseguiu para o resto da vida.

As supostas falhas encontram uma explicação aceitável conforme nos aproximamos do season finale. Ainda que não saibamos da possibilidade de continuação, a narrativa encerra-se em uma completude total, unindo as pontas, atando os nós e mostrando ações e consequências. Parte do público pode até não concordar ou achar digno a atmosfera “otimista” dos últimos minutos, mas ao menos eles não estão jogados. Há uma diferença gritante até mesmo entre a estética inicial e a final, contrapondo a excessiva cegueira enevoada e mística com a compreensão dos problemas e a limpeza imagética.

EPISÓDIO Nº 6

A Netflix é conhecida por não saber separar o que seria melhor encarado como série e melhor como longa-metragem. Nos dois primeiros capítulos, Residência Hill move-se vagarosamente, sem pressa de desenrolar seus eventos, o que imediatamente causa uma comoção inversa e generalizada de repúdio – e que poderia ter sido resolvida em um filme de noventa minutos. Entretanto, o ritmo e a tensão crescentes são cruciais para o envolvimento do público, culminando em uma incrível homenagem aos clássicos do terror ao chegarmos ao sexto episódio.

Intitulado Two Storms, Flanagan brinca com inúmeros conceitos sem saturá-los ou esfregá-los na cara dos fãs. O diretor parece ganhar imunidade para trabalhar o que sempre quis, utilizando dos preceitos do suspense psicológico para ganhar tempo enquanto trabalha um micro-longa-metragem que, sem avançar aos favoritismos estéticos, é muito melhor resolvido que diversas obras contemporâneas. Regras são quebradas, desmontadas e remontadas como se bem entende; há a duplicidade anacrônica que explica e refuta decisões comportamentais dos personagens; a ambiência esquizofrênica e bizarra é quase constante – e tudo, absolutamente tudo, contribui para mostrar como cada um deles se faz de cego para a realidade.

A narrativa começa em uma noite chuvosa durante o funeral fechado de Nell, durante o qual os quatro filhos restantes recebem a visita do pai (agora interpretado por Timothy Hutton). Além da ausência compulsória e da omissão da verdade, suas crianças crescidas guardam ressentimentos pessoais com ele, principalmente quando Flanagan resolve colocá-lo em confronto com o mais velho, Steven (Michiel Huisman). Esse é o princípio da ruína, de uma batalha verborrágica que só ganha mais destaque devido ao incrível trabalho cênico realizado pelo diretor.

Aqui, todas as construções são baseadas em planos-sequências de oito minutos ou mais de duração. O diretor mantém-se atado à dupla estruturação das tramas principais e, utilizando uma fluidez sensacional, delineia dois cosmos separados pelo tempo e unidos pelo desequilíbrio familiar: no primeiro, a “lavação de roupa suja” entre adultos que não aceitam suas diferenças; no segundo, a queda de um lustra dá início a uma corrida bizarra pela manutenção da estrutura nuclear, culminando no desaparecimento inexplicável de Nell. É nesse momento que Hugh tem o seu primeiro contato com o sobrenatural e compreende que algo não está certo, enquanto Olivia se mostra cada vez mais convencida pelos discursos que os espíritos insistem em enfiar em sua cabeça.

O paradoxo não se mantém apenas no óbvio. Esta iteração é um filler ao mesmo tempo que não é, pelo simples fato de funcionar em si próprio e por ter o maior espectro de evolução dos protagonistas. As referências existentes superam quaisquer que possamos ter pensado: em alguns momentos, Flanagan opta pelo uso do plongée e do contra-plongée, resgatando elementos da Era de Ouro do cinema hollywoodiano enquanto cria uma coreografia com a câmera que nos remete às produções de James Wan. Não há excesso – muito pelo contrário. O diretor se recusa a ceder ao desnecessária e percebe que, quanto menor, melhor. É por isso que a trilha sonora inexiste e dá lugar à presença derradeira do silêncio, manchado pela constante tempestade que ameaça varrer tanto a funerária quanto a mansão.

A manutenção do terror também é feita pela sutileza. Flanagan não utiliza o foreshadowing ou a indicação da presença espiritual, ele simplesmente coloca os elementos como se fizessem parte orgânica da cena. Há um momento em que todos estão próximos do caixão e, bem ao fundo, o fantasma de Nell aparece, estático, apenas observando até que a condução imagética nos leva para outra continuidade. Em outras palavras, o único erro desse capítulo é que, infelizmente, ele acaba.

CONFRONTO EM BABEL

É Carla Gugino quem rouba a cena. O tempo todo. A atriz, após ter entrado em projetos duvidosos em meados de sua carreira, retomou o brilho e a forma principalmente depois de ter se unido a Flanagan em mais de um projeto. Ao encarnar Olivia, ela em momento algum pensa em tangenciar a canastrice por segurar as emoções apenas com um leve relance de olhar. Talvez o momento de maior glória venha no final do nono episódio, intitulado Screaming Meemies. É notável como, sem dizer uma única palavra sequer, todo o arco da personagem se concentra nos pouco mais de cinquenta minutos – e é proposital que a primeira sequência e última delineiem tanto sua personalidade conturbada quanto sua sanidade perdida.

A série funciona como uma gigantesca convergência de “pecados” que devem ser expurgados. Nell, representante máxima da inocência corrompida, vê a única salvação em sua morte, obrigando os irmãos a seguirem em frente com suas vidas após se acertarem e conhecerem a trágica verdade acerca do que aconteceu quase trinta anos atrás. E esse é o maior mérito da obra: nos manter vidrados na tela por mais de dez horas, enquanto traça uma das melhores narrativas do ano.

A Maldição da Residência Hill mostra mais uma vez que Mike Flanagan e suas colaborações constantes ainda têm muita história para contar – e muito a acrescentar para um gênero que vem se redescobrindo dia após dia.

A Maldição da Residência Hill - 1ª Temporada (The Haunting of Hill House, EUA – 2018)

Criado por: Mike Flanagan
Direção: Mike Flanagan
Roteiro: Shirley Jackson, Meredith Averill, Charise Castro Smith, Elizabeth Ann Phang
Elenco: Carla Gugino, Michiel Huisman, Victoria Pedretti, Oliver Jackson-Cohen, Elizabeth Reaser, Kate Siegel, Lulu Wilson, Mckenna Grace
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Terror, Suspense
Duração: 55 min. aprox.