Crítica | O Príncipe do Natal: O Casamento Real - Saturando as Rom-Coms
No ano passado, a Netflix deu início a suas produções originais de fim de ano, visando a concentrar um número considerável de obras natalinas que recuperassem, ou ao menos tentassem recuperar o espírito do otimismo e da esperança para o iminente ano novo. Uma dessas investidas, talvez uma das poucas que funcionaram em seu escopo limitado e previsível, intitulou-se O Príncipe do Natal e, apesar de todos os clichês dos quais se dispôs, tornou-se uma comédia romântica fofa e interessante dentro de suas propostas. De qualquer forma, a narrativa respaldada no amor proibido entre duas pessoas de mundos totalmente diferentes não é algo novo a ser visto, mas a remodelagem até que foi agradável.
O problema é que talvez a plataforma de streaming não saiba exatamente quando parar. Tal qual foi a nossa surpresa quando o serviço anunciou a continuação, trazendo uma história nada menos que previsível e que teria a atmosfera construída acerca do futuro do casal principal. Em O Casamento Real, como prenuncia o próprio título, Amber (Rose McIver) e Richard (Ben Lamb) estão prestes a se casar a constituir uma nova era dentro da secular monarquia de Aldóvia. Para aqueles que não se recordam, Amber era uma jornalista contratada por sua empresa para cobrir os escândalos acerca do príncipe e futuro herdeiro do trono, mas uma virada inesperada abriu margens para que se apaixonassem e, um ano depois, a aguardada união está prestes a se concretizar.
Entretanto, diferente do que poderíamos esperar – ou talvez não tão diferente assim -, as coisas estão bem longe de estarem perfeitas. Enquanto tenta mascarar suas decepções acerca do futuro marido, Amber mantém-se ocupada com tarefas reais e maritais ao mesmo tempo em que luta para conseguir continuar com seu blog pessoal, no qual fala sobre sua vida e sobre as realizações que alcançou. Mesmo assim, a secretária de relações públicas, Sra. Averill (Sarah Douglas), deseja tomar controle da situação e obrigá-la a seguir um rígido protocolo de etiqueta, colocando-a num ciclo inquebrável de provas de vestido, aparições públicas e sigilo absoluto. Talvez Averill seja a única personagem que foge um pouco do convencionalismo e consiga uma complexidade maior, ainda que não o suficiente, para que o público crie laços afetivos com o longa-metragem.
Todos os personagens são monótonos ou extremamente chatos. Nathan Atkins e Karen Schaler retornam como roteiristas e cedem ao “conforto” do unidimensionalismo excessivo, transformando o que poderia muito bem ser emocionante ou satisfatório em uma compulsoriedade desnecessária e repulsiva, por assim dizer. A química entre as personas é inexistente, e até a rebeldia da irmã mais nova de Richard, Emily (Honor Kneafsey), é varrida para debaixo do tapete. Seus diálogos são previsíveis, assim como seu arco e sua “importância” para a resolução de um pano de fundo que, eventualmente, também é esquecido. Na verdade, são poucas as coisas que ganham sequer uma fatia de atenção – e nem mesmo a direção de arte se salva em meio a esse equívoco audiovisual.
Como se não bastasse, o reino também passa por problemas políticos e econômicos que diminuem a aceitação da figura real pelo povo. Os programas beneficentes para as classes menos abastadas não estão funcionando, culminando na falta do pagamento de salários dos funcionários e no alto índice de desemprego. Com isso, o conde Simon (Theo Duvaney), o vilão original, retorna para ajudar sua família, ainda que eles fiquem com um pé atrás, e mergulha num arco de redenção que na superfície fica bem explícito, mas sem qualquer motivo aparente para que isso ocorra. De fato, sua presença em nada altera a continuidade narrativa, funcionando como um elemento extra que serve apenas para enrolar ainda mais um filme confuso.
Se você não desistiu até aqui de assisti-lo, meus parabéns: as coisas ficam piores conforme nos aproximamos do final. Amber se transforma em uma justiceira movida a frases prontas – há um pequeno momento de confronto dramático entre ela e o real antagonista, ambos envolvidos por uma ambiência de corrupção inexplicável que também não auxilia na aceitação do público. A adição de coadjuvantes até serve para complementar e respaldar os protagonistas, mas eles são tratados com tanto descaso que mergulham em estereótipos prontos. No geral, a produção em si parece mostrar que o gênero das rom-coms precisa urgentemente de uma repaginação.
De qualquer forma, O Casamento Real não consegue ser pior que A Princesa e a Plebleia, outra investida original da Netflix. Mas isso não quer dizer muita coisa, pois a técnica utilizada pelo diretor John Schultz invade o amadorismo puro, com falta de preocupação imagética, desfoques acidentais e perceptíveis, e erros de continuidade que poderiam ser previstos e arrumados até por diretores estreantes. A conclusão do terceiro ato é uma horrível mixórdia de zooms e planos-sequência mal utilizados que deixam a obra ainda mais rechaçável.
A continuação de O Príncipe do Natal prova mais uma vez que não há muito mais o que se fazer com histórias clássicas além de deixá-las como estão. A atemporalidade desses contos é irretocável por um motivo, então por que se aventurar em mudá-los ou deixá-los contemporâneos? Desde os contos de superação até as fábulas com morais enaltecedoras, é melhor buscar a originalidade do que travesti-la com o moderno. Para o bem de todos.
O Príncipe do Natal: O Casamento Real (A Christmas Prince: The Royal Wedding, EUA – 2018)
Direção: John Schultz
Roteiro: Karen Schaler, Nathan Atkins
Elenco: Rose McIver, Ben Lamb, Alice Krige, Honor Kneafsey, Sarah Douglas,Theo Devaney, Simon Dutton, Andy Lucas, Katarina Cas, John Guerrasio, Raj Bajaj
Gênero: Comédia, Romance
Duração: 92 min
https://www.youtube.com/watch?v=ADvwsiP6SP4
Crítica | Crônicas de Natal - Charles Dickens Wannabe
Todos sabemos que o Natal é uma época tão mágica quanto mercadológica. Além do espírito festivo que prenuncia o fechamento de um ciclo e a chegada do próximo ano, essa celebração mundial é alvo não apenas lojas de departamento, mas também a vontade de artistas em trazer uma nova obra clássica, principalmente quando falamos da indústria cinematográfica. E um estúdio em questão já resolveu se lançar na produção de obras originais desde 2016: o streaming conhecido como Netflix. Apenas nestes últimos meses, a plataforma já nos trouxe as duas comédias românticas intituladas O Feitiço do Natal e A Princesa e a Plebeia, cujo resultado não foi o dos melhores. Agora, como terceira investida para o gênero natalino, ela retorna às jornadas infanto-juvenis com um filme que, eventualmente, é bastante divertido de se assistir.
Crônicas de Natal pode confundir os espectadores. A princípio, é possível pensar numa construção antológica, com várias histórias ambientadas no feriado em questão que convergem numa mesma linha temporal - como o romance Simplesmente Amor. Entretanto, a coisa é muito mais simples. A trama gira em torno de uma família feliz que vê seu cotidiano bruscamente interrompido após a morte do pai e marido Doug (Oliver Hudson). Diferente dos outros anos, este será o primeiro em que os Pierce não sabem lidar com tais mudanças e acabam fragilizando os laços que mantêm entre si, incluindo entre os irmãos Kate (Darby Camp) e Teddy (Judah Lewis). As inúmeras brigas, discussões e ameaças que drenam o espírito de fraternidade e esperança dos personagens logo encontram uma surpresa inesperada: tentando se reconciliar, os dois flagram a chegada do Papai Noel (Kurt Russell) e embarcam em seu trenó, buscando provar sua existência para todo mundo.
Em um infortúnio acidente, ocasionado pela ingenuidade de Kate, o trenó de Noel se desata das renas, despenca do céu, e o saco de presentes se perde pelos céus. Além disso, a touca supostamente mágica do bom velhinho também se perde num vórtice do espaço-tempo à medida que eles navegam pelos sete continentes, obrigando-os a fazer uma aterrissagem de última hora na madrugada do dia 25 de dezembro em Chicago. O problema é que, sem seus poderes e seu meio de locomoção, ele não conseguirá fazer suas entregas - e isso aparentemente destruirá o espírito de Natal e as consequências não serão nem um pouco agradáveis. Resumindo: o nada convencional trio tem até o amanhecer para terminar as tarefas e deve agir rápido para recuperar o que se perdeu.
Dentro de um pano de fundo que tinha tudo para ser uma bomba, o diretor Clay Kaytis consegue fazer um bom trabalho em boa parte da obra. Orquestrando um primeiro ato digno de ser mencionado, ele se afasta dos convencionalismos a que estávamos acostumados e extrai o melhor de um elenco que tem bastante a oferecer. É claro que algumas fórmulas são reaproveitadas, colocando Kate como a criança espirituosa que acredita piamente no poder do Natal e Teddy como o adolescente rebelde que não consegue lidar muito bem com a morte do pai. Camp e Lewis possuem uma grande química quando em cena e conseguem carregá-la até metade do filme, quando as histórias ficam truncadas demais e se perdem numa profusão narrativa.
Entretanto, é Russell quem rouba a atenção. Encarnando uma versão bem modernizada e irreverente de Papai Noel, o ator entrega-se a uma performance sem canastrice, sem exageros e que não demanda muito para tornar-se envolvente. Seu carisma em cena é respaldado pela caracterização on point e por sequências de ação que nos mantêm vidrados o tempo todo. Isso sem falar que vê-lo correndo pelas ruas de Chicago e convencendo policias de que é o velhinho mais famoso de todos os tempos definitivamente não tem preço algum.
Os problemas técnicos e estruturais começam quando chegamos ao miolo da aventura. Matt Lieberman pode não ter um passado muito emblemático como roteirista - visto que ficou responsável por filme como Scooby-Doo e o futuro reboot de A Família Addams -, mas como estamos falando de um inocente filme infanto-juvenil e voltado para uma noite em família, ele poderia ter se mantido fixo à clássica jornada do herói, com enfoque em consertar o que foi desmantelado. Porém, Lieberman opta por criar três arcos, talvez fazendo jus ao título de “crônicas”, e começa a não saber por qual caminho seguir. Noel é preso por roubar um carro e “mentir” sobre sua personalidade; Terry é sequestrado por um grupo de gângsteres; Kate encontra o saco de presentes e viaja até o Polo Norte para buscar ajuda dos elfos para salvar o que restou do espírito natalino.
São muitas coisas acontecendo para o breve um ato e meio que falta até a chegada dos créditos. Logo, é mais do que óbvio que tanto o diretor quanto o roteirista aceleram drasticamente o ritmo da trama para darem conta de tudo, valendo-se de elementos ocasionais do estilo deus ex machina para convergirem num final razoável e que cumpre a proposta inicial. O que esperamos aqui é uma mensagem positiva que mude a visão de mundo dos personagens, e é isso o que conseguimos: a reconciliação dos dois irmãos, uma pequena cena pós-créditos hilária envolvendo os Noel, e algumas emocionantes e verdadeiras sequências que, apesar de clichês, são adoráveis.
Crônicas de Natal funciona como uma pedida interessante e sem muitas surpresas ou preocupações cênicas. Infelizmente, o filme se perde em meio a muito potencial desperdiçado e se encontra tarde demais para conseguirmos esquecer dos deslizes. De qualquer forma, é sempre válido ver Kurt Russell divertindo-se em cena e usando e abusando de seu carisma.
Crônicas de Natal (The Christmas Chronicles – EUA, 2018)
Direção: Clay Kaytis
Roteiro: Matt Lieberman
Elenco: Judah Lewis, Darby Camp, Kurt Russell, Oliver Hudson, Kimberly Williams-Paisley
Gênero: Aventura, Comédia
Duração: 104 min.
https://www.youtube.com/watch?v=a2ze1SV3an0
Crítica | Parque do Inferno - O Décimo Círculo
É costumeiro dizer que a época do Halloween é uma das mais adoradas pelos realizadores do mundo do entretenimento - e não me refiro apenas ao lançamento de produções do gênero durante as últimas semanas de outubro, mas sim colocar o escopo sobrenatural e assustador como pano de fundo para a delineação de narrativas. Entretanto, à medida que tal nicho ganhou popularidade, principalmente durantes as décadas iniciais do século XX e numa revisitação com os slashers a partir de 1980, as investidas cinematográficas mergulharam nas tristes investidas clichês, saturando-o de modo insuportavelmente repetitivo. Mesmo com esses inúmeros avisos, com poucas exceções (e aqui faço menção à franquia Invocação do Mal, que veio para renová-lo de forma impecável) à regra, o diretor Gregory Plotkin jurou que conseguiria trazer algo novo às telonas - e o resultado não poderia ter sido pior.
Parque do Inferno já indica ao espectadores a premissa, os acontecimentos em geral e a provável resolução de uma história bastante conhecida. Ambientado - mas que surpresa! - na noite de 31 de outubro, a trama gira em torno de um grupo de amigos que resolve visitar o parque homônimo, cujas instalações foram adornadas especialmente para os fãs de terror, com vários funcionários à caráter, atrações de arrepiar a espinha - e um sedento serial killer que aproveita a atmosfera para continuar seu sangrento legado. Na verdade, o longa começa mostrando o assassino dentro de um mansão mal-assombrada/labirinto, fingindo ser um dos personagens e atacando brutalmente uma jovem, deixando-a apodrecer dentro do cenário até alguém encontrá-la.
E é claro que parte dos protagonistas sabe dessa infeliz tragédia e, contrariando o que o bom-sendo diz e preferindo mais uma vez pelos convencionalismos narrativos, ir ao parque e aproveitar a noite. De um lado, temos cética e ao mesmo tempo hesitante Natalie (Amy Forsyth), que aceita ir ao evento como forma de compensar o súbito sumiço da vida da melhor amiga, Brooke (Reign Edwards), por conta dos estudos, e por reatar um possível romance com Gavin (Roby Attal). Na outra extremidade, insurge as figuras rebeldes e sem qualquer senso de responsabilidade Taylor (Bex Taylor-Klaus) e Asher (Matt Mercurio), os quais fazem questão de pegar no pé de Natalie até que ela ceda aos joguinhos psicológicos e faça exatamente o que querem. Apesar do otimismo que esse núcleo carrega, suas aventuras pelo parque logo são ameaçadas pela sutil presença do Outro, o nosso querido assassino.
Os problemas - e não me refiro aos obstáculos enfrentados pelos personagens principais - se fixam profusamente ao longo dos três atos da obra. O primeiro move-se num ritmo lento, com atuações beirando a canastrice e uma falta de química gritante e odiosa. Nem mesmo Forsyth, provinda de uma belíssima rendição na série Channel Zero, consegue se afastar de sua persona estereotipada - afinal, não há muito o que se fazer com diálogos tão pífios quanto esses. Conforme nos aproximamos para o miolo da narrativa, Plotkin pecaminosamente erra o teor das construções cênicas: as falas sofrem uma leve melhora e a organicidade do elenco aumenta de forma considerável, mas a exponencial tensão atmosférica nunca encontra seu ápice. Ainda que o Outro (interpretado por Stephen Conroy) elimina uma outra visitante na frente deles, isso não é o suficiente para causar qualquer catarse, apenas uma leve dúvida que apenas se concretiza nos últimos minutos.
O terceiro ato talvez seja o mais problemático por não condizer com a suposta mensagem do longa. Além de acelerar as coisas, começando pelo massacre inacabável do serial killer que poderia ser tratado de outro modo, o roteiro assinado por Seth Sherwood e Blair Butler não sabe como proceder ou acabar a so-called jornada. Eventual e tardiamente, as últimas duas sobreviventes percebem que não há mais o que fazer e se trancam - de forma inexplicável - em um labirinto cheio de “armadilhas” acionadas por sensores de movimento, e resolvem se esconder e utilizar do espaço para enganarem o assassino. É uma jogada inteligente, mas que acaba do pior jeito possível e sem qualquer nexo. A última sequência, porém, consegue cavar mais fundo: o Outro volta para sua casa, guarda a máscara e dá boa-noite para sua filha.
O que isso realmente quer dizer? Que nas noites de Halloween ele se transforma em um psicopata e sai para a matança anual? Que ele não tem controle de si próprio e vê os crimes como um modo de se livrar de qualquer angústia? Sim, essas perguntas existem, e nenhuma delas encontra a resposta necessária que converse com o tom do longa, deixando as coisas ainda mais confusas do que já estavam. Nem mesmo a direção de arte, que em tese deveria ser irretocável, consegue varrer para debaixo do tapete os inúmeros deslizes da obra. Com raras exceções, a arquitetura fílmica deixa muito a desejar e mostra, mais uma vez, que mudanças drásticas precisam existir para que o gênero do terror retorne.
Parque do Inferno, ao menos, consegue passar duas mensagens interessante: a primeira é, seja lá o que estiver fazendo, não visite um lugar que já foi palco de um massacre não resolvido. E, além disso, não vá assistir esse filme. Existem coisas melhores a se fazer.
Parque do Inferno (Hell Fest – EUA, 2018)
Direção: Gregory Plotkin
Roteiro: Seth Sherwood, Blair Butler
Elenco: Amy Forsyth, Bex Taylor-Klaus, Reign Edwards, Christian James, Stephen Conroy, Matt Mercurio, Roby Attal
Gênero: Terror
Duração: 89 min.
Crítica | A Princesa e a Plebeia - O Pior dos Natais
É um fato dizer que a Netflix parece ter ficado presa a um dos nichos mais explorados da indústria cinematográfica de todos os tempos: as comédias românticas adolescentes. Começando com a onda de filmes de baixo orçamento ano passado, 2018 atingiu um ápice inesperado com produções como Sierra Burgess Is a Loser, Para Todos os Garotos que Já Amei e Alex Strangelove. Apesar da tentativa de renovar um catálogo baseado em no drama e no terror, esses longas-metragens eventualmente se valeram das mesmas premissas de outros clássicos dos anos 1980 e 1990, tornando-se repaginações modernas de premissas já conhecidas. E, como já poderíamos esperar, a época do Natal pede por mais narrativas desse tipo: leves, inocentes e, no geral, ruins.
A Princesa e a Plebeia, marcando o retorno de Vanessa Hudgens para as telas depois de alguns anos, não tem esse título por qualquer motivo. Inspirado pelo conto O Príncipe e o Plebeu, de Mark Twain, o filme gira em torno de duas mulheres muito parecidas entre si e que vivem em mundos muito opostos - uma está prestes a tornar-se princesa, e a outra é dona de uma pequena confeitaria do subúrbio de Chicago. Stacy De Novo e Lady Margaret, ambas interpretadas por Hudgens, são apenas peões dentro de algo muito maior - ou que deveria ser maior em teoria - cruzando caminhos ao acaso quando Stacy é inscrita em um festival de gastronomia sediado pela família real de Belgravia, futuro país comandado por Margaret. É quase instantâneo imaginar que as duas se conhecerão e irão embarcar em uma aventura que mudará tudo o que conhecem.
O problema é que nem mesmo o diretor Mike Rohl ou os roteiristas Robin Bernheim e Megan Metzger parecem saber o que fazer com a trama em questão. Nenhum deles consegue conduzir com a precisão e a minúcia necessárias, optando por escolhas extremamente convencionais para dar à obra o mínimo de fluidez. No final das contas, a única coisa da qual nos lembramos é que Rohl falhou onde Nancy Myers acertou em cheio em 1998; como bem nos lembramos, Operação Cupido, baseando-se em um escopo parecido, porém com transcrições originais de irmãs gêmeas ainda separadas quando bebês, se vale de uma produção muito mais competente que, mesmo depois de tantos anos, consegue ofuscar essa pífia construção natalina.
O primeiro ato move-se com dificuldade, encontrando obstáculos para definir um ritmo que, eventualmente, inexiste. Hudgens tenta ao máximo entregar-se às personagens que encarna, mas nem mesmo Stacy consegue sobreviver em meio a atuações canastronas e diálogos horrivelmente escritos - isso sem mencionar seu risível esforço de criar um sotaque único para a nobre personagem, que também não funciona em nenhuma instância. Muito pelo contrário, o espectador vê-se frente a frente com espécies de esquetes fragmentárias cortadas de Saturday Night Live, cuja arquitetura tangencia o insuportável. Ainda que os coadjuvantes Kevin (Nick Sagar) e Olivia (Alexa Adeosun) deem um pouco mais de brilho, também não conseguem se salvar de uma unidimensionalidade gritante.
Stacy e Margaret acabam por trocar de vidas e se apaixonando por aquilo que sempre desejaram. Enquanto esta diverte-se com a proposital falta de afazeres reais, conhecendo tudo o que sempre quis, aquela se encanta com o próprio conto-de-fadas, chegando até mesmo a apaixonar-se pelo príncipe Edward (Sam Palladio), com o qual não consegue criar nem a mais ínfima química. É de se esperar que algum personagem, em determinado momento, queira destruir a felicidade das duas e obrigá-las a retornar para o status quo vigente. Mas até esses parcos momentos na verdade estão travestidos de boas intenções, convergindo para que ambas encontrem seus finais felizes sem quaisquer barreiras.
Entretanto, há um personagem em questão que definitivamente não mostra uma necessidade consistente de existir dentro do cosmos fílmico. Encarnando um ser onipresente e conhecido apenas como um bom samaritano inominável, Robin Soans mostra que o que está ruim pode ficar muito pior. É claro o que sua persona deveria representar, mas isso não quer dizer que funcione: ele auxilia cada uma das protagonistas a decidir pelo inusitado, a trocarem de vidas, a ousarem quebrar os paradigmas engessados há séculos entre a nobreza e a plebe - não é à toa que aparece em quase todos as sequências decisivas. Conforme nos aproximamos do final, não há mais nada a se fazer além de forçar nossa mente a lembrar dele, visto que, no geral, acaba não tendo uma importância significativa.
Em meio a tantos imperdoáveis deslizes, ainda mais para uma época festiva e que preza por histórias emocionantes ou pelo menos divertidas, há apenas uma cena interessante: em meados do segundo ato, quando as faíscas entre Stacy (fingindo ser Margaret) e Edward começam a acender, ambos se veem numa grande festa e tocam num belo piano de causa uma rendição envolvente de Carol of the Bells. Até mesmo as técnicas de filmagem ganham um up, preferindo por cortes suaves e enquadramentos mais fechados ao invés da constante estética panfletária do longa. Mesmo que dure apenas alguns segundos, é interessante ver como a trama poderia ter seguido por um lado muito melhor do que nos foi apresentado.
A Princesa e a Plebeia, mais uma vez, esbarra nos clichês que não funcionam. Se a Netflix queria fazer algo ao menos divertido de se assistir e que passasse uma mensagem “bonitinha”, realmente não conseguiu. É melhor assistir O Príncipe do Natal - ao menos o Castelo é mais bonito.
A Princesa e a Plebeia (The Princess Switch – EUA, 2018)
Direção: Mike Rohl
Roteiro: Robin Bernheim, Megan Metzger
Elenco: Vanessa Hudgens, Sam Palladio, Nick Sagar, Alexa Adeosun, Suanne Braun, Mark Fleischmann, Sara Stewart, Pavel Douglas, Amy Griffiths
Gênero: Romance
Duração: 101 min.
https://www.youtube.com/watch?v=RqcVavOVUBQ
Das Cinzas, a Fênix | O Final de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald explicado
A segunda iteração da franquia Animais Fantásticos acabou de estrear e, apesar de não ter feito o sucesso prometido entre a crítica e o próprio público, conseguiu trazer revelações e cliffhangers interessantes que podem auxiliar na fluidez e na complexidade dos próximos filmes. E um desses insights narrativos envolve um das figuras mais conhecidas do universo mágico: Alvo Dumbledore.
Mas primeiro vamos dar nome às cartas do jogo: como bem nos recordamos, um dos personagens mais conturbados do longa-metragem, Credence (Ezra Miller), que também retorna para Os Crimes de Grindelwald em um arco inexplicavelmente reduzido, foi acolhido pelas cruéis e manipuladoras mãos de Mary Lou (Samantha Morton), uma trouxa reacionária aversa à presença dos bruxos nos mesmos círculos sociais que seus semelhantes. Sua conduta repreensível impediu que Credence aceitasse quem realmente é, obrigando-o a internalizar sua identidade mágica e transformando-o em uma criatura mortal e muito instável conhecida como Obscurus ou Obscurial. Eventualmente, essa censura compulsória culmina em um sentimento destrutivo de não-pertencimento e numa consecutiva jornada para descobrir quem de fato é.
É claro que em meio a tantos deslizes narrativos, essa incessante busca é colocada em segundo plano e ofuscada, numa infeliz decisão, por uma trama maior e mais desenvolvida, por assim dizer. Credence cruza caminho com a sedutora presença de Grindelwald (Johnny Depp), o qual lhe diz que só ele conhece a verdadeira história do garoto - e, além disso, repete inúmeras vezes que ele é o único que pode destruir o principal obstáculo em seu caminho, Alvo (Jude Law).
As informações são muitas e, dentro de um escopo fílmico marcado pela alta de foco e pela inconstância de um roteiro perdido e saturado, as múltiplas subtramas acabam se confundindo e exaurindo a audiência. Porém, se prestarmos atenção, é até interessante observar como esses pontos a priori opostos convergem em uma resolução convincente, mesmo que previsível pelas dicas dadas pela própria obra: como bem sabemos, a família Dumbledore é associada à presença da fênix, a qual se atrela a cada membro do clã e é capaz também de encontrá-los até mesmo nos mais inóspitos lugares. Tal qual é a nossa surpresa quando, nos minutos finais, esse belíssimo animal surge com a presença de Credence, que na verdade é o irmão perdido de Alvo, Aurelius.
Sim, é isso mesmo: Credence Barebone, de alguma forma, foi tirado de sua família e consumado com uma nova identidade, até irromper na revelação que o torna mais conturbado do que já é. Inúmeras teorias podem partir daí, incluindo aquelas em relação à irmã do Grande Mago, Ariana Dumbledore. Em Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2, Aberforth, o outro irmão de Alvo, revela que a caçula recusava-se a usar magia após ser agredida e também se transformou em um Obscurus, o qual a corroeu por dentro e, no final das contas, acabou matando-a. Talvez o ser que a habitava tenha encontrado um novo hospedeiro, uma compatibilidade de sangue com Credence/Aurélio, mantendo o trágico legado.
O problema é que a insurgência de um irmão perdido poderia bagunçar muito a timeline e a própria história arquitetada por J.K. Rowling. Afinal, até mesmo os livros refutam a presença de um quarto irmão. Eliphas Dodge, amigo íntimo de Alvo, deu declarações sobre o futuro dos Dumbledore após a morte dos pais, Percival e Kendra. A adição de Aurélio, logo, deve ser tratada com uma cautela muito além do normal - ademais, nem mesmo os números fazem muito sentido, seja em relação às idades, seja em relação aos anos dos acontecimentos.
Considerando a mixórdia sem sentido do segundo longa-metragem, essas informações adicionais podem complicar ainda mais as coisas. E ninguém iria gostar disso.
Crítica | House of Cards: 6ª Temporada - Comédia Política
A produção de House of Cards é uma das mais conturbadas da televisão contemporânea, e isso não vem desde sua estreia ainda em 2013. Pelo contrário, os inúmeros problemas começaram a aparecer quando Kevin Spacey, intérprete do protagonista Frank Underwood, foi acusado de inúmeros casos de abuso sexual que datavam da década de 1980 e se estendiam até mesmo para dentro do set de gravações da série. E é claro que, com a onda de denúncias acerca de vários nomes da indústria cinematográfica, o ator perdeu o papel principal e foi obrigatoriamente afastado da sexta temporada, cultivando uma grande dúvida acerca do último ano do show: qual seria o próximo passo?
É claro que o criador Beau Willimon encontraria um jeito de sustentar a história por mais alguns episódios até o aguardado series finale. Afinal, para aqueles que não se recordam, o cliffhanger da assustadora quinta temporada trazia a figura de Claire Underwood (Robin Wright) realizando um golpe contra seu marido e assumindo a presidência dos Estados Unidos, tornando-se a primeira mulher no comando da gigantesca potência. É claro que, comparando com as investidas anteriores, o ano passado tornou-se uma miscelânea de subtramas esquisitas e bizarras que contradiziam todo o teor político-dramático da proposta do seriado. Entretanto, caso o público não levasse os episódios tão a sério, era possível se divertir com as atuações e com os diálogos carregados de clichês e travestidos com um palavreado erudito como se realmente significasse algo de importante.
A verdade é que um dos shows mais polêmicos da Netflix já deveria ter encerrado. E isso apenas se comprova com mais irrefutabilidade com a chegada da sexta iteração - uma infeliz e trágica resolução que não faz jus ao que House of Cards representou durante esses seis anos. E não, o problema não reside na saída de Spacey, mas sim na falta de tato com os personagens e com as tramas. Desde o primeiro episódio fica claro que os roteiristas e diretores brincam com suas zonas de conforto, copiando tendências que funcionaram no passado e desconstruindo-as em meio a arcos previsíveis e monótonos. De fato, se as primeiras temporadas, por mais complexas que fossem, conseguiam nos manter presos através de sua construção técnico-artística (iniciada com o aplaudível nome de David Fincher), é justamente essa minúcia que deixa de existir. Em outras palavras, acompanhar a última saga Underwood é um trabalho árduo e passível de desistência a cada minuto que passa.
Logo no episódio de abertura, Claire sente as pressões de se tornar a primeira presidente mulher. Ainda que receba apoio de certa parte dos cidadão norte-americanos, ela também é alvo de ameaças e, em meio a tantos comentários preconceituosos, mantém uma postura exemplar frente aos obstáculos que constantemente surgirão. Seguindo o mesmo padrão de seu ex-marido, agora morto, ela tem - ou ao menos acha que tem - aliados ao seu lado, materializados na figura de Mark (Campbell Usher), seu vice. Entretanto, conforme a história se desenrola, percebemos que as figuras mais próximas são as que, na verdade, estão apenas usando-a como meios para um fim.
O problema é que nada disso funciona, em momento algum. A premissa, já utilizada por outras temporadas, poderia mergulhar sem medo em uma perspectiva original, talvez focando nos atributos manipulativos de Claire e reafirmando de diversos modos como ela conseguiu chegar à presidência, contrariando seu papel como esposa e primeira-dama e orquestrando um belíssimo golpe contra seu próprio ex-companheiro. Mas, como já mencionado, a safezone fala muito mais alto e não deixa espaço para explorações interessantes, nem mesmo em relação à atuação. Wright parece perder seu brilho em meio às pressas das tramas, e rende-se a uma canastrice sem precedentes. Caso prestemos bastante atenção, é quase possível vê-la empurrar a personagem com a barriga.
Um ou outro diálogo conseguem se salvar, e isso se dá mais pela construção imagética que por qualquer coisa. Através de certos maneirismos que retornam aos anos de glória do seriado, a atmosfera coercitiva e pungente é resgatada em quase toda sua completude. Porém, ao invés de se manter, ela se perde em meio a uma arquitetura intangível e informal demais para que passe a veracidade de uma esfera política. E isso não se mantém apenas no plano visual, mas também abre margens para sequências presunçosas e risíveis: em determinado ponto, a presidente encontra o anel de Frank em seu quarto e o coloca, apenas para “mostrar o dedo” para a câmera numa quebra da quarta parede extremamente forçada. É claro que a ideia aqui era muito mais profunda do que dera a entender, mas a falta de nexo dentro do escopo narrativo transforma um promissor ápice em uma decadente rendição.
Talvez a figura que mais chame a atenção seja Duncan Shepherd (Cody Fern), filho de Annette (Diane Lane) e sobrinho de Bill (Greg Kinnear). Ao que tudo indica, o legado do ex-presidente não terminara, deixando certos acordos a serem finalizados, principalmente com a família Shepherd. Bill se mostra acolhedor para a nova governante dos Estados Unidos, mas depois revela suas reais intenções, chegando a protagonizar, indiretamente, uma das parcas delineações catárticas. Entretanto, ele e Annette retornam aos convencionalismos e dão espaço para Fern mostre mais uma vez sua versatilidade: de fato, sua performance é interessante e revela um comprometimento máximo com a caracterização de seu personagem além de representar um papel muito importante para a ameaçada fluidez da temporada.
House of Cards finalmente encontrou sua ruína, a qual vinha sido premeditada há bastante tempo. O problema é que o show transformou-se em uma convulsão de falsas promessas e voltou a se levar a sério, tentando sem sucesso resgatar o que outrora a colocou em um patamar considerável. É triste, porém é a verdade: a jornada dos Underwood acabou.
House of Cards - 6ª Temporada (Idem, 2018 – EUA)
Criado por: Beau Willimon
Direção: Alik Sakharov, Ami Canaan Mann, Stacie Passon, Ernest Dickerson, Thomas Schlamme, Louise Friedberg, Robin Wright
Roteiro: Melissa James Gibson, Frank Pugliese, Charlotte Stoudt, Sharon Hoffman, Jerome Hairston, Tian Jun Gu, Jason Horwitch
Elenco: Robin Wright, Michael Kelly, Diane Lane, Campbell Scott, Patricia Clarkson, Cody Fern, Constance Zimmer, Boris McGiver, Derek Cecil
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Drama político
Duração: 55 min. aprox.
Crítica | Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald - Os Impulsos de J.K. Rowling
Animais Fantásticos e Onde Habitam veio com uma missão: renovar e aprofundar o maravilhoso universo bruxo criado por J.K. Rowling. Apesar de se respaldar mais que o necessário na nostalgia da franquia original, é inegável dizer que o longa reacendeu a chama nos inúmeros potterheads e abriu espaço para uma nova geração se deliciar com aventuras fantásticas e mirabolantes. Logo, não foi nenhuma surpresa que o anúncio da sequência tenha causado uma comoção generalizada e aumentado as expectativas de forma exponencial. Entretanto, o resultado não foi um dos melhores.
Em Os Crimes de Grindelwald, Newt Scamander (Eddie Redmayne) retorna às telonas com uma missão de vida ou morte: o magizoologista é recrutado pelo próprio Ministério da Magia para encontrar Credence (Ezra Miller) e matá-lo antes que cause mais algum dano ou ameace a centenária paz entre os bruxos e os trouxas - afinal, como sabemos, sua repressão compulsória o transformou em uma criatura chamada Obscurus, dotada de habilidades muito instáveis. Porém, a índole do protagonista o impede de aceitar o trabalho e, contrariando as ordens de seus superiores, ele viaja para Paris com o intuito de proteger Credence.
O problema é que o antagonista-título (Johnny Depp) conseguiu escapar de seu cárcere, voltando a reunir seus seguidores e buscando o conturbado garoto também para destruir o único obstáculo em seu caminho, cujo nome já é bastante conhecido: Alvo Dumbledore (Jude Law). Mesmo que não contracenem em nenhum momento, Depp e Law fazem de suas cenas as melhores, mostrando uma possível futura química que será de extrema importância para a pouca fluidez narrativa restante da franquia. Law, em especial, encarna com precisão seu personagem e delineia maneirismos do grande feiticeiro de modo nostálgico e bem satisfatório.
Todavia, os parcos ápices do filme logo cedem ao completo desastre de sua estrutura. David Yates volta como diretor da continuação e demonstra algumas melhoras técnicas que refletem sua paixão pelo universo mágico. A primeira sequência é construída majestosamente, com um bom uso dos elementos visuais e pouquíssimo diálogo em prol da epifania catártica. A fuga de Grindelwald é emocionante por todos os motivos certos e já mostra seu poder de persuasão - que depois é tristemente esquecido. Yates volta a se perder com planos em big close inexplicáveis que fomentam um amadorismo crítico, mas logo encontra seu caminho e volta pela seriedade cênica.
O problema de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald é que nem mesmo o diretor pode fazer muita coisa com um complicado roteiro. Rowling, responsável pela história, acredita que está lidando com um romance e satura a narrativa com múltiplos focos e subtramas completamente desperdiçadas, incluindo a pífia resolução do arco de Queenie (Alison Sudol), cuja personalidade apaixonante se transforma num show de horrores - nem mesmo a performance da atriz consegue salvá-la da ruína. Jacob (Dan Fogler), seu par romântico, deixa o escapismo cômico para trás e é desconstruído em uma sessão incessante de piadas prontas que funcionam a priori, mas depois ficam cansativas até para os fãs da canastrice desmedida.
Nem mesmo o arco envolvendo Newt e sua primeira paixão, Leta Lestrange (Zoë Kravitz) se salva das construções apressadas e sem nexo. Ainda que funcionem em suas devidas proporções isoladamente, os atores não tem química e são movidos por uma força ao pior estilo de deus ex machina, culminando num tosco clímax de explicação genealógica que poderia muito bem ter sido aproveitado. Entretanto, Rowling se perde no que deveria realmente prestar atenção e preenche as diversas lacunas com fragmentos desnecessários e incômodos.
A "batalha" final só ganha força quando Yates é obrigado a transferir suas investidas para o único ponto de foco que existe. As implicações sociais como aceitação e preconceito ainda conseguem fornecer uma frágil base para os eventos decorrentes e até mesmo respaldam o objetivo de Tina (Katherine Waterston), a qual nem chega a ser lembrada em meio a tantos acontecimentos. Por fim, a introdução de personagens como Nicolau Flamel (Brontis Jodorowsky) e Nagini (Claudia Kim) tem mais praticidade travestida em fan service que em lógica narrativa.
De qualquer modo, o ótimo trabalho de Colleen Atwood como responsável pelo design artístico deve ser mencionado: resgatando a sobriedade do pós-guerra numa Paris desolada pelos corolários do conflito, suas escolhas para figurino entram em concordância com a fotografia propositalmente conflitante de Philippe Rousselot, em uma brincadeira cênica entre o claro e o escuro, o saturado e o desbotado.
Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald é uma grande decepção, tanto como obra em si quanto como parte do universo mágico. E o principal problema não reside nos personagens, mas sim no que se fazer com eles. De fato, Rowling precisa decidir de que forma proceder - e isso não inclui transformar o roteiro em um romance épico e intraduzível.
Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald (Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald - EUA/ Reino Unido, 2018)
Direção: David Yates
Roteiro: J.K. Rowling
Elenco: Eddie Redmayne, Katherine Waterston, Dan Fogler, Alison Sudol, Ezra Miller, Jude Law, Johnny Depp, Zoë Kravitz, Carmen Ejogo
Gênero: Fantasia
Duração: 134 min.
https://www.youtube.com/watch?v=8bYBOVWLNIs
O Mundo Sombrio de Sabrina | Primeiras Impressões
Observação: a crítica abrange os dois primeiros episódios da série, disponibilizados pela Netflix à imprensa.
Em 1996, Sabrina – Aprendiz de Feiticeira ganhava as telinhas. A série, baseada nos divertidos quadrinhos da Archie Comics, foi protagonizada por Melissa Joan Hart, que durante um tempo tornou-se a queridinha do mundo adolescente antes de infelizmente cair no esquecimento, e girava em torno da personagem-título, uma bruxinha prestes a completar dezesseis anos dotada de habilidade mágicas. É claro que, à época, o show trazia um cunho mais inocente, cômico e irreverente, funcionando até mesmo numa espécie de sitcom travestida de dramédia – e é claro que não poderíamos esquecer do adorável Salem, o gato preto falante e companheiro de Sabrina em suas aventuras.
Entretanto, poucos sabem que a empresa responsável pelas histórias tem uma vertente sombria – literalmente. A divisão intitulada Archie Horror é destinada a repaginar as clássicas narrativas com um toque macabro e, para aqueles que possam não estar familiarizados com as produções televisivas, foram as revistinhas desse grupo que deram origem a Riverdale, um dos dramas adolescentes mais assistidos da década. Tal qual foi a surpresa quando a Netflix anunciou um cruel e apavorante remake da jornada coming-of-age da feiticeira com O Mundo Sombrio de Sabrina, criando um tumulto considerável e justificado inclusive pelos inúmeros releases que prometiam desconstruir a imagem de bonança da série anterior.
O cenário é conhecido (a cidade de Greendale, onde todo dia parece Halloween), e o reconhecimento da protagonista é quase instantâneo. Na mais nova investida, Sabrina (Kiernan Shipka) está prestes a completar seu décimo-sexto aniversário e deverá fazer uma escolha quase impossível: entrar para a Igreja da Noite e se realizando como feiticeira completa, abandonando sua vida mundana; ou manter vínculos com seus amigos humanos e seu cotidiano adolescente. Roberto Aguirre-Sacasa, criador e roteirista da série, não se permite cair no melodrama ficcional e parte logo para a ação, buscando inspiração em seus trabalhos anteriores para manter um ritmo frenético e angustiante. Shipka definitivamente consegue encarnar a heroína de modo sublime, delineando traços nunca antes vistos, desde a excessiva candura até um olhar oblíquo que dialoga com os segredos que esconde tanto dos amigos quanto do namorado.
É natural que o episódio piloto se mova com mais cautela e com mais autoexplicações – afinal, é preciso apresentar ou reapresentar esse novo cosmos aos espectadores. Entretanto, não pense que a sutileza é a marca registrada da série: Aguirre-Sacasa, em colaboração com um soberbo time criativo, não poupa em fazer sacrifícios nos primeiros minutos e tem plena ciência de que não está simplesmente eliminando personagens. Mundo Sombrio tem uma pegada mais satírica, com diálogos ácidos que entram em choque com os obstáculos da adolescência e a tentativa de levar tudo com a maior naturalidade possível.
Diferentemente da série protagonizada por Joan Hart, aqui Sabrina tem pleno conhecimento de suas habilidades e que, após o dia 31 de outubro – que coincide com seu aniversário, o dia das Bruxas e um eclipse conhecido como Lua de Sangue -, nada será como antes. De um lado, ela sofre por manter tal segredo de seu namorado Harvey (Ross Lynch, com quem constrói um relacionamento e uma química impecáveis) e de sua melhor amiga Rosalind (Jaz Sinclair). De outro, sofre uma pressão perturbadora das tias Hilda (Lucy Davis) e Zelda (Miranda Otton), as quais constantemente a recordam de que aceitar o Batismo e jurar fidelidade eterna para o clã era algo que seus falecidos pais sempre desejaram. A princípio, a quantidade de elementos parece desnecessária, mas eles convergem em necessidade narrativa quando pensamos nos futuros episódios, visto que explicações ocasionais não poderão existir em detrimento da continuidade cênica.
Salem não é esquecido – e não me refiro apenas ao gatinho preto. Além do familiar, guia espiritual e protetor da protagonista, a famosa cidade, conhecida por seu julgamento, é homenageada em diversos aspectos. Em The Dark Baptism, como ficou intitulado o segundo episódio, o diretor Lee Toland Krieger traz sua bagagem clássica para as técnicas fílmicas, em especial para a sequência do labirinto de feno que traça paralelos com as construções campestres reflexivas de As Bruxas de Salem. Porém, é necessário lembrar que o apego religioso e crítico de Nicholas Hytner é ofuscado por tangências mais modernizadas e juvenis e traduzidas a moldes bem mais explícitos quando Sabrina se depara com o primeiro relance acerca de seu futuro.
O show não se respalda na nostalgia, mas encontra um modo de fundi-la às mensagens que deseja passar. Além de modernizar a história atemporal, que na verdade é ambientada nos anos 1960, Aguirre-Sacasa faz críticas ao machismo das escolas de ensino médio dos Estados Unidos ao mesmo tempo que encontra terreno fértil para questões raciais dentro dos clãs mágicos. A personagem-título é uma mestiça, filha de mãe mortal e pai feiticeiro, e é constantemente alvo de chacota – ou, nesse caso, maldições – de um grupo de bruxas conhecido como as Irmãs Estranhas, que não desejam que ela entre para a Academia de Artes Ocultas. Mesmo assim, a fluidez do roteiro dá espaço para uma das cenas mais tensas do episódio, no qual as quatro trabalham juntas para se vingar de certos bullies do colégio.
É claro que a série, ao menos por enquanto, não é privada totalmente de eventuais falhas, seja em frases muito explicativas ou em erros mais técnicos. Apesar disso, não podemos negar que o showrunner se entrega às suas próprias perspectivas do gênero fantástico, utilizando, por exemplo, uma profundidade de campo baixíssima como forma de orquestrar uma atmosfera onírica – em outras palavras, com o blur aureolar proposital. Personagens como Mary Wardell (Michelle Gomez) e George Hawthorne (Bronson Pinchot) têm suas respectivas importâncias, porém trazem um potencial muito maior do que o mostrado. Ademais, ambos servem como menção, mais uma vez, ao julgamento de Salem no século XVII, brincando com aliterações nominais de modo prático e interessante – e que talvez passe despercebido por certa parte do público.
O início do Mundo Sombrio de Sabrina é muito positivo, funcionando como um refrescante mergulho na ironia e na proposital falta de sutileza para chocar o público. Entre mortes inesperadas, rituais satânicos e feitiços malignos, as expectativas para o restante da temporada são altíssimos – e esperamos que a Netflix não nos decepcione.
O Mundo Sombrio de Sabrina - 01x01: October Country / 01x02: The Dark Baptism (Chilling Adventures of Sabrina, EUA – 2018)
Criado por: Roberto Aguirre-Sacasa
Direção: Lee Toland Krieger
Roteiro: Roberto Aguirre-Sacasa, baseado nos quadrinhos da Archie Comics
Elenco: Kiernan Shipka, Richard Coyle, Miranda Otto, Lucy Davis, Tati Gabrielle, Michelle Gomez, Ross Lynch, Chance Perdomo, Bronson Pinchot, Jaz Sinclair
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Fantasia, Terror, Drama
Duração: 60 min. aprox.
Crítica | A Maldição da Residência Hill - Entre Traumas e Sacrifícios
Recentemente, o nome de Mike Flanagan tem ganhado bastante destaque no cenário audiovisual, seja no cinema, seja nos serviços de streaming. Apenas nos últimos anos, o diretor foi responsável por reviver o gênero de terror com investidas interessantes e originais que renegavam os formulaicos clichês e buscavam algo muito maior do que o simples jumpscare. Além de Hush – A Morte Ouve e O Espelho, Flanagan realizou sua primeira colaboração com a Netflix no ano passado com a adaptação do romance Jogo Perigoso, assinado por Stephen King, e ganhou reconhecimento principalmente pelas incríveis atuações. Agora, ele retorna em mais uma parceria com a plataforma ao mergulhar de cabeça em mais uma releitura: A Maldição da Residência Hill.
Baseada na obra de Shirley Jackson, a suposta minissérie de dez episódios definitivamente não nos traz uma premissa inovadora. Uma família se muda para uma gigantesca mansão no interior de Massachussets e passa a ser castigada por assombrações demoníacas, surtos psicóticos e episódios ilusórios mortais. É claro que, considerando as inúmeras outras peças cinematográficas das últimas décadas, é quase impossível não perceber de cara referências a franquias como Invocação do Mal e O Exorcista, cujas tramas partem do mesmo princípio – apesar de serem-lhe confiadas uma veracidade angustiante. O principal trabalho de Flanagan seria o modo pelo qual investiria na história: horror e gore puros? Inclinações para o suspense psicológico? Abandono de supostos atrativos presunçosos? De que modo o diretor conseguiria ao menos criar um cosmos envolvente e satisfatório sem o respaldo que transformou tal nicho narrativo em uma espécie de doença crônica?
Felizmente, ele sabe muito bem o que está fazendo. Afinal, este não é o seu primeiro trabalho e, sem sombra de dúvida, não abre espaço para amadorismos – não que eles não existam; mas ao contrário de outros longas e séries, esses não são propositais e, na verdade, contribuem para o retorno do próprio público à sanidade mental. De qualquer forma, as experimentações ocasionais, os floreios artísticos, as atuações e a progressividade anacrônica conferem um ar de alívio e de superação para o show, colocando-o merecidamente em um patamar de prestígio.
DE VOLTA PARA O FUTURO
Tornou-se algo prático na escrita criativa a multiplicidade de linhas temporais. Em outras palavras, o uso de uma montagem com cronologias diferentes já se provou muito útil quando pensamos em fluidez cênica. É só pensarmos em obras como How to Get Away with Murder e Once Upon a Time que, apesar de terem suas respectivas falhas, fazem bom uso dessa divisão, seja no passado ou no futuro. É partindo da mesma ideia que Residência Hill se constrói: em cada um dos dez episódios, a funcionalidade está nessa contraposição justaposta entre o antes e o depois – e isso não se mantém apenas no âmbito teórico, como funciona na prática artística com exímia segurança.
Flanagan retoma alguns de seus preceitos básicos para as telas, incluindo a simetria excessiva e a baixa profundidade de campo, como forma de oferecer um intimismo obrigatório aos telespectadores. Ele já havia feito isso em Jogo Perigoso, ambientado apenas em um minúsculo quarto; aqui, as coisas mudam consideravelmente, visto que possui mais materiais com os quais trabalhar, mais personagens, mais ambientações e, principalmente, mais tempo para resolver cada uma das subtramas com o máximo de cautela possível. É por isso que tanto o tempo o agora quanto o anterior têm o mesmo peso dramático – e isso exige demais até mesmo do elenco infantil, o qual se entrega aos próprios papéis e se rende a performances memoráveis e assustadoras de tão fiéis que são ao que desejam passar.
Hugh (Henry Thomas) e Olivia Crain (Carla Gugino) se mudam para a mansão Hill com seus cinco filhos e desejam reformá-la por inteiro antes de vendê-la a um preço justo e que traga conforto para o promissor futuro da família. Entretanto, nenhum dos dois poderia prever a quantidade de tragédias que acometeria o núcleo após meros dois meses morando na nova casa – e não pense que não foi por falta de aviso. À época em que os descendentes Crain eram apenas crianças, até mesmo os adultos sentiram as estranhas presenças e foram alvo de estranhos acontecimentos, dentre eles possessões e perda de lucidez.
Cada um desses personagens tem uma camada a ser explorada, e o roteiro, também supervisionado pelo showrunner, faz questão de prevenir quaisquer furos inadmissíveis que convergem para um mesmo ponto de virada. Temos, por exemplo, a jovem Nell (Violet McGraw), perturbada pelas constantes aparições da “moça-do-pescoço-entortado”, e sua conexão com o gêmeo Luke (Julian Hilliard), ambos símbolos de uma inocência que, anos mais tarde, seria corrompida por descrédito e pela falta de aceitação dos outros membros de seu núcleo – não é à toa que Nell enlouquece e Luke torna-se um viciado em heroína. Além disso, temos a incrível presença de Mckenna Grace como a introvertida e sensitiva Theodora, a qual, depois de ter um contato pessoal com um espírito, passa a ter a habilidade de empatia com as ambiências que frequenta apenas pelo toque.
Talvez o que mais surpreenda é a química que os atores-mirins mantêm com seus respectivos “pais”. Grace e Gugino são aquelas que mais trazem dinâmica às cenas, aliadas a diálogos enriquecedores e a virada surpreendentes que nos recordam mais de uma vez o fato de estarmos na presença de uma força sobrenatural. Theo mantém suas características determinadas e isolantes quando cresce, passando a ser encarnada por Kate Siegel em uma apaixonante rendição artística. Ela tenta usar de sua habilidade para ajudar crianças – tornando-se Mestra em Psicologia – ao mesmo tempo que constrói um muro em volta dela para se proteger do passado e da convivência com seus outros irmãos. Eventualmente, ela e todos os outros são obrigados a encarar de frente a verdade que lhes foi negada e a aceitar sacrifícios para continuarem a viver sem culpa.
O pedantismo, por incrível que pareça, é evitado e praticamente não existe. Isso se mantém em toda a cronologia descontruída, e o tempo atual não abdica dessa regalia: um dos maiores exemplos está em Shirley (Elizabeth Reaser), que se mantém fixa a uma expressão congelada e calculista quase o tempo todo apenas para se desmontar em momentos de vulnerabilidade. Além de ter lidado com a morte prematura e inexplicável da mãe, ela fica responsável por embalsamar e reconstruir o cadáver de Nell (Victoria Pedrettin) e se recusa a ceder às emoções. Não é até o momento em que sua história é revelada que percebemos o quão traumatizada ela está, impedindo uma autorreflexão tardia; como a própria mãe diz, seu primeiro contato com a morte foi perturbador, e isso a perseguiu para o resto da vida.
As supostas falhas encontram uma explicação aceitável conforme nos aproximamos do season finale. Ainda que não saibamos da possibilidade de continuação, a narrativa encerra-se em uma completude total, unindo as pontas, atando os nós e mostrando ações e consequências. Parte do público pode até não concordar ou achar digno a atmosfera “otimista” dos últimos minutos, mas ao menos eles não estão jogados. Há uma diferença gritante até mesmo entre a estética inicial e a final, contrapondo a excessiva cegueira enevoada e mística com a compreensão dos problemas e a limpeza imagética.
EPISÓDIO Nº 6
A Netflix é conhecida por não saber separar o que seria melhor encarado como série e melhor como longa-metragem. Nos dois primeiros capítulos, Residência Hill move-se vagarosamente, sem pressa de desenrolar seus eventos, o que imediatamente causa uma comoção inversa e generalizada de repúdio – e que poderia ter sido resolvida em um filme de noventa minutos. Entretanto, o ritmo e a tensão crescentes são cruciais para o envolvimento do público, culminando em uma incrível homenagem aos clássicos do terror ao chegarmos ao sexto episódio.
Intitulado Two Storms, Flanagan brinca com inúmeros conceitos sem saturá-los ou esfregá-los na cara dos fãs. O diretor parece ganhar imunidade para trabalhar o que sempre quis, utilizando dos preceitos do suspense psicológico para ganhar tempo enquanto trabalha um micro-longa-metragem que, sem avançar aos favoritismos estéticos, é muito melhor resolvido que diversas obras contemporâneas. Regras são quebradas, desmontadas e remontadas como se bem entende; há a duplicidade anacrônica que explica e refuta decisões comportamentais dos personagens; a ambiência esquizofrênica e bizarra é quase constante – e tudo, absolutamente tudo, contribui para mostrar como cada um deles se faz de cego para a realidade.
A narrativa começa em uma noite chuvosa durante o funeral fechado de Nell, durante o qual os quatro filhos restantes recebem a visita do pai (agora interpretado por Timothy Hutton). Além da ausência compulsória e da omissão da verdade, suas crianças crescidas guardam ressentimentos pessoais com ele, principalmente quando Flanagan resolve colocá-lo em confronto com o mais velho, Steven (Michiel Huisman). Esse é o princípio da ruína, de uma batalha verborrágica que só ganha mais destaque devido ao incrível trabalho cênico realizado pelo diretor.
Aqui, todas as construções são baseadas em planos-sequências de oito minutos ou mais de duração. O diretor mantém-se atado à dupla estruturação das tramas principais e, utilizando uma fluidez sensacional, delineia dois cosmos separados pelo tempo e unidos pelo desequilíbrio familiar: no primeiro, a “lavação de roupa suja” entre adultos que não aceitam suas diferenças; no segundo, a queda de um lustra dá início a uma corrida bizarra pela manutenção da estrutura nuclear, culminando no desaparecimento inexplicável de Nell. É nesse momento que Hugh tem o seu primeiro contato com o sobrenatural e compreende que algo não está certo, enquanto Olivia se mostra cada vez mais convencida pelos discursos que os espíritos insistem em enfiar em sua cabeça.
O paradoxo não se mantém apenas no óbvio. Esta iteração é um filler ao mesmo tempo que não é, pelo simples fato de funcionar em si próprio e por ter o maior espectro de evolução dos protagonistas. As referências existentes superam quaisquer que possamos ter pensado: em alguns momentos, Flanagan opta pelo uso do plongée e do contra-plongée, resgatando elementos da Era de Ouro do cinema hollywoodiano enquanto cria uma coreografia com a câmera que nos remete às produções de James Wan. Não há excesso – muito pelo contrário. O diretor se recusa a ceder ao desnecessária e percebe que, quanto menor, melhor. É por isso que a trilha sonora inexiste e dá lugar à presença derradeira do silêncio, manchado pela constante tempestade que ameaça varrer tanto a funerária quanto a mansão.
A manutenção do terror também é feita pela sutileza. Flanagan não utiliza o foreshadowing ou a indicação da presença espiritual, ele simplesmente coloca os elementos como se fizessem parte orgânica da cena. Há um momento em que todos estão próximos do caixão e, bem ao fundo, o fantasma de Nell aparece, estático, apenas observando até que a condução imagética nos leva para outra continuidade. Em outras palavras, o único erro desse capítulo é que, infelizmente, ele acaba.
CONFRONTO EM BABEL
É Carla Gugino quem rouba a cena. O tempo todo. A atriz, após ter entrado em projetos duvidosos em meados de sua carreira, retomou o brilho e a forma principalmente depois de ter se unido a Flanagan em mais de um projeto. Ao encarnar Olivia, ela em momento algum pensa em tangenciar a canastrice por segurar as emoções apenas com um leve relance de olhar. Talvez o momento de maior glória venha no final do nono episódio, intitulado Screaming Meemies. É notável como, sem dizer uma única palavra sequer, todo o arco da personagem se concentra nos pouco mais de cinquenta minutos – e é proposital que a primeira sequência e última delineiem tanto sua personalidade conturbada quanto sua sanidade perdida.
A série funciona como uma gigantesca convergência de “pecados” que devem ser expurgados. Nell, representante máxima da inocência corrompida, vê a única salvação em sua morte, obrigando os irmãos a seguirem em frente com suas vidas após se acertarem e conhecerem a trágica verdade acerca do que aconteceu quase trinta anos atrás. E esse é o maior mérito da obra: nos manter vidrados na tela por mais de dez horas, enquanto traça uma das melhores narrativas do ano.
A Maldição da Residência Hill mostra mais uma vez que Mike Flanagan e suas colaborações constantes ainda têm muita história para contar – e muito a acrescentar para um gênero que vem se redescobrindo dia após dia.
A Maldição da Residência Hill - 1ª Temporada (The Haunting of Hill House, EUA – 2018)
Criado por: Mike Flanagan
Direção: Mike Flanagan
Roteiro: Shirley Jackson, Meredith Averill, Charise Castro Smith, Elizabeth Ann Phang
Elenco: Carla Gugino, Michiel Huisman, Victoria Pedretti, Oliver Jackson-Cohen, Elizabeth Reaser, Kate Siegel, Lulu Wilson, Mckenna Grace
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Terror, Suspense
Duração: 55 min. aprox.
Crítica | O Mágico de Oz (1939) - Dorothy nos Tempos do Cólera
O Mágico de Oz é um dos filmes mais relembrados e adorados de todos os tempos. Desde sua comovente história de superação e autoaceitação delineada perfeitamente por L. Frank Baum até as inovações técnico-artísticas, a obra de Victor Fleming parece não envelhecer. Mesmo os cineastas contemporâneos, principalmente aqueles que ousam se aventurar no mundo da fantasia, buscam referências do clássico longa, remodelando-as em uma tentativa de aproximá-las das novas gerações. Entretanto, sua atemporalidade talvez seja um dos maiores atributos – afinal, quem não conhece a história de Dorothy, os sapatinhos de rubi, o temido feiticeiro da cidade das Esmeraldas e os macacos voadores? É claro que se restringir apenas aos artifícios narrativos é cair no senso-comum; afinal, a trama que se desenrola vai muito além do que os olhos podem ver.
Judy Garland, queridinha da MGM em seus anos dourados, foi a escolhida para encarnar a protagonista e mal imaginava que sua incrível performance a colocaria no centro dos holofotes de Hollywood. Dorothy, a heroína da aventura, é uma garota do interior que vive com os tios numa gigantesca fazenda, sonhando com o dia em que a monotonia do campo dará lugar a novas descobertas e amizades. Basicamente, ela deseja transformar seus sonhos em realidade e se sentir parte de algo grande – e é aqui que a premissa do “cuidado com o que deseja” ganha força. Após abrigar-se em sua casa, ela e o cachorrinho Totó são pegos por um forte tornado e levados à mística terra de Oz, lar dos munchkins e da terrível Bruxa Má do Oeste (Margaret Hamilton).
Já aqui podemos perceber uma sacada inteligente de Fleming: a caracterização de dois mundos totalmente distintos. Dorothy sente-se presa em uma rotina cíclica no Kansas, e sua chegada a um lugar totalmente desconhecido é motivo para um compulsório, porém justificado, encantamento. Logo, é quase instantâneo notar o motivo do diretor ter optado pela sépia na realidade e pelo technicolor no fantástico, no sobrenatural – e venho dizer que as habilidades do time artístico superam e muito as tentativas falhas de trazer cor às telonas. Partindo desse princípio dual, a narrativa cênica mantém-se em equilíbrio entre o antigo e o novo (para a época), além de criar uma tendência híbrida que seria revisitada décadas mais tarde.
Assim que chega à Província Munchkin, a heroína já recebe ameaças de sua arqui-inimiga por ter aterrissado sobre sua irmã. Ela não apenas se vê numa corrida pela sobrevivência, pois é jurada de morte, como também percebe que terá um extenso caminho a percorrer para voltar para casa – e é aqui que seus ideais entram em conflito. Dorothy talvez perceba que não está pronta o bastante para lidar com a independência obrigatória e precisa do apoio de pessoas conhecidas, ao menos para guiá-la. Porém, a própria chegada isolada da garota prenuncia um evento certeiro: a batalha final será dela e somente dela. Afinal, a Bruxa é a representação do obstáculo de propriocepção e não é por acaso que é caracterizada com a cor verde: em um sentido mais simbólico, tal tom está associado à plenitude e ao crescimento, não da feiticeira, mas sim de Dorothy.
O filme está fincado à jornada do herói de Joseph Campbell. A protagonista a princípio nega o chamado à aventura para depois descobrir que, ao cruzar o limiar entre os dois cosmos, não há caminho de volta: a única coisa a se fazer é seguir pela Estrada de Tijolos Amarelos até encontrar o Mágico e pedir sua ajuda. E é claro que, nesse meio-tempo, ela encontra aliados de extrema importância que se sentem incompletos e vazios por inúmeras razões. O Espantalho (Ray Bolger), o Homem-de-Lata (Jack Haley) e o Leão Covarde (Bert Lahr) talvez sejam o trio de coadjuvantes mais adorado da era clássica do cinema, principalmente por se manterem respaldados na commedia dell’arte e mergulharem com fidelidade nos arquétipos que representam. Cada um deles deseja também alguma coisa e resolve se unir à garota.
Tachar O Mágico de Oz como uma simples obra de ficção fantástica é cometer um erro imperdoável. Fleming não apenas imprime sua perspectiva acerca do romance de Baum, mas recupera também seus elementos críticos. Escrito em 1900, a ascensão de uma força poderosa e temida é reflexo dos governos imperialistas que impõe suas vontades às minorias – nesse caso, a relação abusiva entre a Bruxa e os munchkins. A aparição de uma força etérea e “intangível” insurge com Glinda (Billie Burke), a Bruxa Boa do Sul, e preconização uma iminente mudança nas configurações autoritárias de Oz. Afinal, pelo que podemos apreender, é Dorothy quem traz o necessário para destituir a Bruxa Má do Oeste e revelar as reais intenções do Mágico (Frank Morgan), um charlatão que assumiu tal papel para enganar e ganhar o respeito da população de Esmeralda. Trazer esses elementos para o final da década de 1930 também tem sua carga, visto que a época era propícia para o crescimento de movimentos extremistas, incluindo o nazi-fascismo, e para o início da II Guerra Mundial.
O longa também traz inovações técnicas, como já mencionado. O uso das cores vibrantes e de uma direção de arte competente é apenas a cereja do bolo; deve-se mencionar a destreza cênica com a qual Fleming conduz a narrativa com exímia maestria, criando coreografias que não se resumem apenas ao plano visual, mas estendem-se para suas respectivas causas e consequências. Os frames trazem o refinamento estético e se assemelham a pinturas neorromânticas, perscrutadas pela fantasia excessiva e envolvente. Aliás, não é à toa que os efeitos especiais do filme representem um salto considerável para o nicho em questão, desde a utilização de centenas de figurinos até a minúcia das maquiagens.
De fato, algumas sequências são inesquecíveis. Seja na rendição de Garland com Over the Rainbow, coroada com o Oscar de Melhor Canção Original, ou na frase que resume todo o escopo da obra, inúmeras construções foram reaproveitadas com o passar do tempo e, apesar de não terem atingido o mesmo sucesso que o original, servem como belas e singelas homenagens a um dos melhores filmes de todos os tempos. E conforme os créditos aparecem na tela, é difícil não se emocionar. No final das contas, apenas uma coisa é certa: não há lugar como o nosso lar.
O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, EUA – 1939)
Direção: Victor Fleming
Roteiro: Noel Langley, Florence Ryerson, Edgar Allan Woolf, baseado no romance de L. Frank Baum
Elenco: Judy Garland, Frank Morgan, Ray Bolger, Bert Lahr, Jack Haley, Billie Burke, Margaret Hamilton, Charley Grapewin, Clara Blandick
Gênero: Aventura, Fantasia, Musical
Duração: 102 min.
https://www.youtube.com/watch?v=lJi66oCFoTc