Em 1957, Alejandro Jodorowsky lançou um curta-metragem chamado A Gravata. Contando a história de um parisiense cuja profissão consistia em vender cabeças humanas (o texto foi adaptado de um conto de Thomas Mann), a produção chamou atenção do poeta e cineasta Jean Cocteau. De certa maneira, o apoio do artista francês foi essencial para que o jovem chileno continuasse a investir na carreira de cineasta. No entanto, foi somente onze anos depois – três após ter realizado um estranho curta nomeado Teatro Sin Fin e pelo qual não recebeu crédito – que ele voltou a dirigir, desta vez, um longa metragem, o simbólico, onírico e irregular Fando e Lis.
É difícil dizer do que a obra se trata. O único elemento de sua trama que, talvez, possa ser resumido é este: Fando (Sergio Klainer) e Lis (Diana Mariscal), os personagens que dão nome ao filme, vivem em um mundo pós apocalíptico, no qual uma “guerra final” destruiu todas as cidades, fazendo delas nada mais do que ruínas e escombros, apesar de uma dessas cidades, intitulada “Tar”, continuar existindo e ser, segundo a lenda, um local onde todas as dores humanas cessam e são substituídas pelo gozo contínuo e a felicidade eterna. Já em relação ao restante do filme, qualquer outro elemento da narrativa dificilmente se encaixará em um rótulo catalogador.
Portanto, admitindo que estamos na seara do viés interpretativo, é possível chegar a algumas conclusões, e a primeira delas diz respeito ao ano de produção do longa. Lançado numa época em que o Mundo borbulhava no caldeirão das revoluções sexuais, sociais, políticas e econômicas, Fando e Lis, estranhamente, parece ser um protesto contra o liberalismo comportamental típico da década de 1960. Ao longo do trajeto em direção à cidade prometida de Tar, o casal principal contrasta constantemente a sua inocência (percebam como Lis é de um branco translúcido) com a devassidão daqueles com os quais trava contato (logo no começo, de uma maneira demasiadamente óbvia, quando vemos os dois brincarem com bonecas e soldadinhos de chumbo, fica evidente o caráter infantil de suas personalidades).
Em um universo onde o sexo, aparentemente, é o único deus venerado pelas pessoas (prestem atenção como a maioria daqueles que passam pela tela revelam-se detentores de uma determinada característica sexual, podendo ser tanto a libertinagem e a indefinição dos gêneros, quanto o exercício de poder sobre o outro), o que poderia ter se tornado uma cruel ironia, nas mãos de Jodorowsky, se transforma na salvação dos personagens. Estou falando, é claro, da paraplegia de Lis. O fato de não poderem consumar sexualmente a relação é essencial para que continuem mantendo a aura angelical responsável por suas retidões morais.
Nesse sentido, a forte imagética cristã adquire proporções muito maiores (o final é uma clara referência ao Jardim do Éden). Fando e Lis – mas, principalmente, o primeiro, afinal de contas, ele é o protagonista da história – são como Jesus Cristo caminhando entre os pecadores. Para encerrarem as suas jornadas de uma maneira transcendente, precisam resistir às tentações diabólicas e as provações de um mundo que lhes rejeita constantemente. Todavia, o nazareno, embora ignorante de certas coisas, caminhava ciente de seu destino e propósito. Os dois personagens principais, por sua vez, são movidos apenas pelo desejo de encontrarem um lugar que elimine o fardo que carregam. Assim como Cristo conduziu a sua cruz pelo calvário, Fando o fez com Lis, mas, obviamente, há um abismo separando o nível de auto consciência de cada um.
No entanto, por mais explicativa que possa ser essa análise, ela ainda não é suficiente para dar conta de todos os eventos que preenchem a narrativa. Momentos como a impactante cena dos músicos e homens vivendo suas vidas nas ruínas de uma cidade destruída, a sequência em que vários personagens brincam com uma espécie de graxa, ou até mesmo o instante em que Fando interage com a sua mãe, parecem necessitar de uma outra chave interpretativa, podendo ser vistas como um comentário de Jodorowsky sobre o estado do Mundo, da arte e a psicanálise, respectivamente.
Embalado numa narrativa exageradamente simbólica e enigmática, tudo isso que foi mencionado é construído sobre uma técnica caótica, a qual, às vezes, revela um esteta talentoso (é sublime o plano em que, ao girar, a câmera não só reflete a confusão mental de Lis, como capta a fuga de Fando ao fundo) e um cineasta ciente das ferramentas que estão à disposição (a edição de som, repleta de barulhos estranhos e produzidos posteriormente, é brilhante); porém, noutras vezes, revela um artista flertando com a mídia errada (em certos momentos, parece que o filme é uma colagem de pinturas abstratas e não uma narrativa em desenvolvimento) e deveras repetitivo (chega um instante em que alguns comentários se tornam redundantes).
Embora a história de amantes lutando pelo seu amor enquanto o mundo ao redor entra em completo colapso possa ser comovente, tudo em Fando e Lis revela ao espectador que o longa foi realizado por um diretor de primeira viagem. Apenas com o passar do tempo, as qualidades do longa se extrapolariam e passariam a respingar nas obras futuras. Já os defeitos, por vezes, seriam trocados por equívocos diferentes, por outras, seriam completamente eliminados. Contudo, quem assiste ao filme desconhecendo por completo a obra posterior de Jodorowsky, reconhece que o diretor chileno é um esteta e dono de uma mente inconvencional e desafiadora, porém, dificilmente, afirma que esteve diante de um cineasta realmente talentoso.
Fando e Lis (Fando y Lis, Chile – 1968)
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky e Fernando Arrabal
Elenco: Sergio Kleiner, Diana Mariscal, María Teresa Rivas, Tamara Garina, Juan José Arreola
Gênero: Drama, Fantasia
Duração: 96 min