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Alegoria Apocalíptica | O Final de “mãe!” explicado

O que pensar do final insano de mãe!? Certamente é um dos clímaces mais intensos que Aronofsky já escreveu ao longo de sua carreira repleta de filmes poderosos e tão impactantes quanto. 

Porém, para compreender o final em sua totalidade, é preciso entender a alegoria religiosa que o diretor sustenta durante o filme todo. Expliquei ela em detalhes tanto na crítica como em um artigo dedicado. 

Mas caso queira uma versão mais enxuta e menos detalhada da coisa, então estamos no lugar certo. Primeiro, basta entender que o final do filme adapta tanto o Novo Testamento quanto uma interpretação pessimista da História da Humanidade focando apenas em depravações, violência e diversos cultos à personalidade. 

Enfim, vale mencionar uma breve contextualização aos estranhos para a alegoria que mãe! traz. Javier Bardem é Deus, um poeta em crise de criatividade mais interessado no amor dos homens representados por Adão e Eva (Ed Harris e Michelle Pfeiffer) do que na sua inspiração original, a Mãe Natureza ou Gaia vivida por Jennifer Lawrence, que batalha diariamente para restaurar e preservar a casa dos dois (uma metáfora para a Terra). 

Escalada ao Caos

Nunca antes na escrita de Aranofsky tínhamos visto algo tão intenso e provocador durando tantos bons e terríveis minutos. Enquanto os dois atos inteiros conseguem dar conta de metaforizar o Antigo Testamento e suas diversas passagens, o diretor decide colocar todo o Novo Testamento em questão de minutos para encerrar a obra de modo extremamente chocante.

Para justificar os acontecimentos, Deus recebe uma ligação de sua editora (Espírito Santo) – interpretada por Kristen Wiig, avisando que seu novo escrito (aka o Novo Testamento) é o seu maior sucesso. Mãe fica surpresa e decepcionada em descobrir que Deus já tinha mostrado seu novo trabalho para outros e que as pessoas já estavam consumindo essa novidade. Porém, ela ainda decide preparar uma ceia completa para comemorar a nova conquista de seu marido narcisista.

Na noite do jantar, ocorre uma nova invasão na casa da Mãe. Deus novamente não se preocupa com a esposa – essa característica é plenamente compreensível por conta da Natureza ser uma Criação primordial e, logo, obsoleta com o alvorecer da humanidade, de propósito que já infere subjugação da anterior, afinal é assim como Ele diz: Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra! (Gênesis 1:28)

Nesse cenário, Mãe já está derrotada mesmo que ainda carregue Cristo dentro de si. A casa é novamente povoada por uma turba ainda maior que a anterior. Novamente, tudo é vilipendiado, consumido e destruído enquanto Deus festeja o sucesso de sua Palavra com os homens.

A partir do momento que um fã ensandecido diz a seguinte frase para a Mãe: A obra dele é única! Ela se comunica com todos, mas cada um a sente de modo diferente, Aronofsky elabora o resumo de toda a história da humanidade – de um modo bastante semelhante a A História da Humanidade como retratada por Milo Manara em icônica arte. A história começa com a fundação da fé judaico-cristã – só na vertente cristã, existem mais de 34 mil igrejas que interpretam a Bíblia de modos distintos.

O que antes não havia, agora existe: diferentes líderes surgem para pregar a palavra do Senhor. O manuscrito original do novo poema é tratado como uma relíquia adorada, além de Deus passar a marcar seus fãs com os dedos sujos de tinta. Ao finalmente encontrar Deus no meio de toda a muvuca, Mãe dá o ultimato: ou tira todos dali agora, ou lidará com o Apocalipse. Deus continua passivo como sempre e o Apocalipse se inicia. Fragmentos de Fome, Pestilência, Guerra e Morte são apresentados enquanto Mãe caminha pela casa, totalmente desnorteada tentando se salvar sem compreender direito como toda a situação caminhou para uma anarquia completa. Vemos guerras civis, protestos, tráfico humano, doenças diversas e divisões surgindo dentre os humanos que passaram a habitar a casa já em ruínas.

Ao contrário do que muitos devem pensar, creio que este seja o momento mais importante do filme, pois traz à luz a crueza da mensagem do filme. Subentende-se que nessa sequência, a humanidade avança por eras até o Apocalipse. Na ausência de Deus – repare que quando ele ressurge, alguns homens bradam: Ele voltou! Ele não nos abandonou! –, é o Espírito Santo, o viabilizador da Palavra divina, quem comanda as coisas na casa – o diretor então, finalmente, admite algum senso de ordem e hierarquia diante da anarquia que se instalava na casa.

A Editora assume um tom com Mãe até então antes nunca visto. Finalmente encontramos a Inspiração! Agora é hora de dar fim nessa loucura toda! A Editora decide dar fim à vida da protagonista, pois vivenciou toda a consequência da loucura originada pela Criação – lembrando que como a Natureza vem antes do homem, ela acaba inspirando a criação do mesmo. Na lógica do filme e dessa interpretação, a Editora sabe que se dar fim ao primórdio da Criação, não haverá homem e, portanto, haverá paz.

Para Aronofsky, a Palavra é perfeita, pois se mantém integra e decide sujar as próprias mãos quando se faz necessário. Ela é mais perfeita que Deus, pois Ele é conivente com o desmando das próprias Leis. Ele é um hipócrita. Porém, obviamente, Mãe é salva. Primeiramente pelo único homem gentil que logo depois é morto. Só então Deus surge, camuflado entre outros, e a leva novamente para o Paraíso cujas portas são arrombadas pelo próprio Divino. Lá, enfim, Cristo nasce.

A Culminação do Fim

Assim como em Noé, Aronofsky visa trabalhar a tensão de um suspense incerto. Nós já conhecemos a natureza de Deus nesse ponto e sabemos que ele pegará Cristo assim que a Mãe vacilar. Ele oferecerá para a turba de fanáticos que aguarda silenciosamente do lado de fora. Uma nova Criação, a mais perfeita de todas, trazendo assim ainda mais adoração. Após agonizantes minutos sempre pautados pelo barulhinho incômodo de uma sineta escondida no quarto, dias se passam no quarto e Mãe, pela primeira vez, sente a necessidade humana do descanso – repare que antes, sempre ao menor indício de barulho, a protagonista já levanta da cama muito disposta a investigar o que ocorre.

Ela perde a guerra contra o sono. Ela perde seu único filho. E acorda sozinha.

Deus entrega a criança para os zelotes e fieis que a envolvem até matá-la – assim como na Bíblia, Cristo é enviado à humanidade para morrer e transformar. Em desespero, a protagonista avança contra os homens para encontrar o corpo do filho já parcialmente devorado, literalmente, pelos fiéis – alusão clara ao fundamento da Igreja Católica e do ato de comungar o “Corpo de Cristo”.

É o primeiro momento de pura revolta e ódio na personagem pacífica até então. A casa finalmente está morta, assim como o espírito de Mãe. Porém, antes de irromper ao assassinato de alguns homens e depois ser brutalmente espancada em resposta – a imagem é poderosa e bastante perturbadora que visa criar um paralelo da humanidade destruindo o planeta, há um ponto crucial que desenvolve o personagem de Deus. E é justamente por conta disso que vejo o comentário de Aronofsky sobre a divindade menos cruel do que ele aparenta ser.

Para entendermos o desenvolvimento desse personagem, é preciso sacar que o mesmo se encontra no contraste entre as duas passagens mais importantes para Ele: a destruição do cristal e da morte de Cristo. Quando o cristal é destruído, Deus é tomado por uma fúria restritiva. Aqui, com a morte do filho, acontece o oposto. O personagem lamenta o fato e chora, mas clama para que Mãe compreenda a necessidade do perdão.

É preciso perdoar para evoluir. E Deus parece aprender isso ao longo da jornada. Ele frisa que Jesus vive, mas agora nas lamúrias da humanidade que tenta redimir seus pecados. Nesse momento, é curioso notar como a obra se torna realmente redonda. Em diálogos anteriores com Eva, Mãe reconhece que só “dá e dá e dá…”, nunca recebendo nada em troca, apenas angústia e sofrimento – esse diálogo se dá no porão da casa.

Ali, naquele ponto crucial, Mãe já não aguenta mais dar. A hora do fim realmente chega. Reencontrando o isqueiro perdido de Adão, a protagonista corre para o porão, no qual anteriormente encontrara um tonel gigantesco de combustível em uma parte ainda incendiada da casa, escondida de sua restauração. Mesmo com Deus implorando para que ela não exploda toda a Criação, Mãe o ignora e encerra tudo que havia ali, se sacrificando em conjunto.

Porém, se ainda restava alguma dúvida anterior ao espectador sobre a natureza bíblica da alegoria, ela se encerra com a conclusão do filme que se trata da mesma sequência da abertura. Deus carrega a protagonista incendiada que admite ainda amá-lo. Ela se sacrifica e entrega o coração ainda pulsante para Ele. O órgão se desfaz em cinzas e dá origem ao cristal que inspira Deus a retomar toda a Criação novamente. A Casa é restaurada e uma nova Mãe acorda no quarto, totalmente ignorante da sua condição de refém de um ciclo doentio de criações malfadadas existentes apenas para suprir o ego e carência de um egoísta. 

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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