Review | Assassin's Creed: Origins é a reinvenção da franquia
Pelo menos desde Assassin’s Creed Unity que a Ubisoft vem recebendo pesadas críticas por parte da mídia e, mais importante, de seus clientes e fãs fiéis da sua franquia de maior sucesso. Mesmo sendo um bom jogo, Unity trazia muito da estrutura clássica da fórmula AC que sustentou a saga por sete anos seguidos. Com Syndicate o nível de esgotamento atingiu o máximo, apesar das notas boas providas por um lançamento mais consistente do que seu antecessor.
A pressão foi tremenda que a Ubisoft decidiu aposentar a franquia de seus lançamentos anuais e deu um Watch Dogs 2 em 2016 para suprir a demanda dos lançamentos importantes de outubro. Mas a espera realmente valeu a pena. Esse período sabático que a franquia tirou realmente fez a diferença para que nós recebêssemos o melhor jogo AC até então: Assassin’s Creed Origins.
Completamente reformulado, é bem possível dizer que a Ubisoft conseguiu reinventar a roda por dois motivos principais: estar atenta a concorrência e, principalmente, por ter escutado os desejos e reclamações dos fãs. O resultado é esse que testemunhamos nas mais de trinta horas de jogo: um sucesso imersivo absoluto de uma aventura no fim do Egito Antigo.
Bayek de Siuá, o último medjai
Se você lembrou de Geralt de Rívia, o Carniceiro de Blaviken quando leu o subtítulo, certamente fez a associação correta. Origins respira e exala The Witcher 3 até dizer chega. Mas na história em si, temos uma narrativa forte o suficiente para andar com as próprias pernas.
Bayek é um medjai, uma espécie de protetor do povo do Egito e do faraó. Agora é o último deles depois do extermínio em massa ordenado pelo faraó Ptolomeu XIII – isso depois do rompimento do governo com sua irmã Cleópatra VII, sendo substituídos pelos infames phylakes, guarda-costas nada amigáveis do faraó.
Mas caso não bastasse o completo extermínio de sua classe, Bayek sofre uma tragédia familiar de potência avassaladora que o motiva partir para uma jornada de vingança contra todos os envolvidos com esse acontecimento. Os mascarados misteriosos da Ordem dos Antigos sentirão a lâmina de Bayek que conta com a ajuda de diversos cidadãos rebeldes contra o regime do faraó marionete. Além disso, a esposa do medjai, Aya, parte em uma missão paralela para conseguir devolver Cleópatra ao trono que tem direito.
Mesmo que tenhamos novamente uma boa e velha história de vingança como já vimos inúmeras vezes antes na franquia, Bayek consegue se destacar e entrar no rol de protagonista mais memorável desde Ezio Auditore. O motivo é simples: Bayek, apesar de sempre remoer a dolorosa lembrança que motiva a jornada, é um homem vivo que sabe aproveitar as boas coisas que o cercam, se diverte e ama profundamente sua esposa. Isso torna o protagonista um pouco mais complexo, apesar de realmente não ser um trabalho fenomenal de escrita.
Bayek pode soar repetitivo diversas vezes, pois seu pensamento segue uma cartilha ética realmente muito rígida: ele é um homem que vive para beneficiar o Egito e o seu povo e reestabelecer o equilíbrio nessa terra maravilhosa. Mas isso não o impede de ser carismático, o problema mesmo fica restrito nas missões-chave do jogo que poderiam evoluir um pouco mais o personagem.
Isso se torna um problema justamente com a conclusão da história do game que é um pouco abrupta para a decisão que Bayek e Aya tomam nos segundos finais do jogo. Todavia, há uma referência muito bacana que conecta diretamente Origins com Assassin’s Creed II, um dos melhores games da franquia.
Ao longo do percurso das missões principais, há boas reviravoltas – mesmo que tenham que cair em alguns clichês, que mantém o interesse do jogador bastante desperto. Porém, o encontro com figuras históricas é um pouco decepcionante pela superficialidade dos diálogos e o visível desinteresse do protagonista em interagir com Apolodoro, Cleópatra, Júlio César e Pompeu. Há, pelo menos, a recriação de momentos históricos realmente importantes e, ao contrário de muitos outros jogos da franquia, fazemos parte ativa deles. Também há uma boa organicidade para encaixar esses eventos dentro da narrativa original, nunca soando forçados ou algo do gênero.
Mencionei The Witcher 3 logo de cara porque é justamente a inspiração máxima de Origins. Agora Assassin’s Creed é um grandioso RPG com direito a tudo que um bom jogo do gênero tem direito, mas ele se distingue um pouco pelo sistema de progressão de nível. Não serão raras as vezes que você receberá uma quest principal muito acima do nível atual que o personagem está.
O propósito é bem claro: ao chegarmos em uma nova cidade e realizarmos a missão principal designada, diversas side quests vão surgir. Nelas, somos levados a explorar intensamente as novidades do mapa, sejam vielas na cidade, tumbas no deserto ou cavernas subaquáticas. Sei bem o que está pensando: “mas que saco ser obrigado a fazer as missões secundárias.” Acredite, eu também pensei isso, até começar a fazê-las.
O time de roteiristas e o diretor do jogo, Ashraf Ismail, se esforçaram em tornar as historietas as mais atraentes possíveis para despertar nosso interesse para fazermos cada vez mais delas. Não chegamos a ter missões paralelas no nível narrativo exemplar de The Witcher 3, mas certamente Origins é o RPG que chega mais perto disso até agora.
Por exemplo, temos missões que envolvem investigações de “maldições” que aplacam diversas cidades ou vilas, outras homenageiam filmes como Os Sete Samurais, outras são focadas no resgate de pessoas sempre com uma premissa satisfatória, outras envolvem saques, entre diversas outras coisas. Essas missões, apesar da grande maioria ser concentrada em fetch quests, se aproveita da estrutura narrativa do jogo do querido Bruxo.
Ou seja, nunca se trata apenas de ir do ponto A para o B e voltar para o A, mas sim ir do A até o B e depois para o C, D e até mesmo E para regressar ao ponto de origem. É um encadeamento de eventos sempre muito bem estruturado que esticam a duração das missões para até mais de vinte minutos muito bem gastos.
Mas nem tudo é perfeito nesse campo do roteiro de Origins. De toda a franquia, possivelmente esse jogo possui os alvos menos interessantes para serem assassinados até agora. São personagens totalmente rasos e genéricos, com exceção de apenas um. Também há uma queda notável no ritmo do jogo quando a narrativa já se encontra próxima da conclusão. Ao menos, a liberdade que o jogo teve em não ficar martelando tanto aquela chatice da mitologia do embate entre Assassinos e Templários fez muito bem ao seu ritmo.
A inclusão de passagens extremamente curtas fora do Animus também é um belo acerto. O problema continua sendo como encaixar o segmento da “ficção científica” envolvendo o contato de civilizações antigas com esses artefatos superpoderosos. Por exemplo, quando um holograma surge na frente de Bayek, ele se comporta como se estivesse vendo a coisa mais normal do mundo.
Aliás, novamente, elogios a Ubi por finalmente ter colocado sotaque nas vozes dos personagens. Bayek possui um sotaque levemente africano, assim como outros personagens egípcios. Pela primeira vez não escutaremos mais personagens de outros etnias soando como britânicos do Tea Party.
Reinventando a Roda
O impossível se torna possível com Origins. A clássica mecânica de Assassin’s Creed foi alterada até a origem para dar um novo dinamismo de gameplay. As mudanças mais significativas com certeza estão centradas na movimentação em parkour e no combate.
Agora é muito mais simples para escalar as edificações e monumentos: basta pressionar apenas um botão. Bayek é um personagem mais rápido e responde melhor os comandos do controle, além disso, o design dos mapas dessas cidades é muito mais inteligente para permitir a movimentação em parkour nos telhados – adeus, Londres e o design nada amigável para correr livremente.
Já com o combate, o jogo adota um comportamento complicado. Agora não existe mais o macete do contra-ataque para eliminar uma montanha de inimigos, pois tudo realmente acontece de modo responsivo e menos previsível. Origins adota o sistema de combate da franquia Souls com um botão para bloquear, outro para ataques leves, outro de ataques pesados e mais um para a esquiva. É bem intuitivo e muito fácil de se adaptar aos novos moldes que realmente trazem mais dinamismo e diversão para o combate.
O problema é que Origins recomenda que o jogador use a trava de alvo para definir um inimigo específico dentre os demais. E essa é uma dica horrorosa, pois todo o sistema se torna um verdadeiro lixo se o jogador seguir o conselho. É uma confusão terrível para mudar de alvo resultando em um samba de ataques desornados e toscos. O melhor é usar a sua própria intuição e nunca, NUNCA, usar esse recurso. Isso deixa a jogabilidade muito mais livre e prazerosa tornando o novo modelo de combate uma joia!
Outra grande novidade é a reintrodução da importância da montaria. Entre camelos e cavalos, Bayek terá que ter uma montaria para conseguir transitar no GIGANTESCO mapa do Egito. Porém, além disso, as montarias também são um grande auxílio na hora do combate, lembrem-se.
Como disse, o lado RPG de AC agora é descaradamente explícito. Temos três árvores de habilidades que trazem alguns benefícios que realmente impactam o gameplay enquanto outras realmente não são tão necessárias. Entre as opções Guerreiro, Caçador e Vidente, temos melhorias para combate físico, combate com arcos e truques com instrumentos, além da possibilidade de domar criaturas – diretamente de Far Cry Primal. Os animais mais ferozes ajudam em horas difíceis.
Aliás, Origins pode ser considerado um jogo moderadamente difícil caso o jogador esnobe os níveis recomendados de cada missão. Se houver uma diferença de mais de um nível do personagem para a missão que você aceitar, prepare-se para morrer com muita facilidade, pois os golpes dos inimigos são devastadores de propósito. Afinal, como mencionei antes, Origins quer que você gaste um bom tempo com as missões secundárias e é realmente isso que você deve fazer.
Entretanto, apesar das side quests serem o jeito mais fácil do jogador adquiri experiência para avançar de nível, tenha em mente que o mundo aberto do jogo te recompensa diversas vezes pela exploração. Seja na conquista de acampamentos inimigos, na descoberta de tumbas, territórios e cidades, ao realizar os pontos de sincronização, ao coletar tesouros escondidos, entre outros objetivos. Aliás, disso não há o que reclamar: Origins é um jogo diversificado com muita coisa diferente para fazer nunca passando uma sensação enjoativa.
Ele é simplesmente viciante.
Fora isso, há a adição de Senu, uma águia companheira de Bayek. Ela é extremamente útil para substituir o eagle vision – mudança que claramente não veio por acaso, para marcar inimigos e pontos de interesse. É como se Origins pegasse o drone de Ghost Recon Wildlands e aprimorasse seu uso, além de torná-lo mais divertido.
O jogador também encontrará uma variedade exuberante de itens ao longo da jornada. Seja de combate ou defesa e até mesmo trajes de fim totalmente estético. As armas também possuem níveis de raridade atingindo níveis lendários e com atributos especiais que trazem uma boa diversidade na hora de ceifar os muitos inimigos que encontramos na jornada. As armas e bugigangas também são um ótimo modo para o jogador coletar dracmas, a moeda do jogo, ao vende-las para diversos vendedores dentro das cidades.
O sistema de crafting voltou e agora é mais importante do que nunca, pois através leve é possível aumentar o dano de armas de combate próximo, assim como a dos arcos e da quantidade flechas, dano da lâmina oculta e também aumentar a vitalidade. Como os animais e recursos são encontrados também com uma boa diversidade e facilidade, adotar o sistema de caça para coletar os recursos se torna outra experiência gratificante e muito recompensadora.
O Homem que mudou o jogo
Ashraf Ismail recebeu uma atenção especial na campanha de marketing do jogo. Claramente a Ubisoft tem muito orgulho do diretor do game, já adotando uma postura de que tinha emplacado um sucesso antes mesmo de seu lançamento.
E isso tem um belo propósito, afinal Ismail realmente é um fator decisivo na história da franquia. A começar, seus jogos sempre são muito inventivos e diversificados. Ele também dirigiu um dos pontos mais altos de Assassin’s Creed: Blackflag. Obviamente que temos um diretor que realmente pensa fora da caixinha e que não gosta de ficar reciclando fórmulas.
Graças a essa vontade tremenda, Origins se destaca e se distancia dos demais com folga. Não somente por adotar o melhor de The Witcher e Dark Souls, mas por conseguir manter sua originalidade com uma das magias mais fortes da franquia: o cenário histórico.
Fazia tempo que um Assassin’s Creed não conseguiu me deixar totalmente apaixonado pelo jogo como Origins conseguiu. A escolha do momento histórico próximo do fim do Egito Antigo é acertadíssima. Mesmo que tenha uma carência de personalidades históricas, era um momento que os pontos de referência do Egito já estavam construídos há muito tempo, além de permitir uma exploração de choque de culturas extremamente valioso.
A maior força de Origins é seu cenário sandbox. Esse é de longe o mundo aberto mais orgânico e vivo da franquia e um dos mais interessantes de toda a geração até agora. O nível de detalhes é absurdo com diversos templos, pirâmides, cidades grandes, médias e pequenas, fazendas diversas, minas de natrão, terraços com técnicas egípcias de plantação, vida selvagem, vegetação distinta e, com certeza, uma paleta de cores sempre muito contrastada e adequada para cada novo cenário visitado.
A atenção com as vestes e cada atividade programada para os NPCs é de deixar qualquer um realmente impressionado. Além disso, você nunca verá um NPC específico de Alexandria – uma das principais cidades do jogo, realizando uma atividade de outro NPC em Mênfis ou Crocodilópolis.
Como disse, o choque cultural é um ponto importantíssimo para Origins e nele temos até mesmo missões motivadas pelo ódio latente entre egípcios, gregos e romanos. Logo, também temos diferenças nítidas na arquitetura e planejamento das cidades claramente distintas entre si. Isso oferece um sentimento de descoberta absurdo que é muito recompensador.
Há até mesmo diferenciações agudas entre um deserto e outro: seja na variação da textura ou cor da areia, das formações rochosas peculiares, das miragens que Bayek testemunha após andar por algum tempo sob o calor escaldante do sol – há até um efeito visual que replica a ilusão do calor dos raios solares, ou com o surgimento de tempestades de areia espontâneas. É fenomenal.
O mesmo se aplica para os hieróglifos, das diferenças sutis entre os templos de deuses egípcios e gregos e na estrutura dos puzzles das tumbas secretas e escuras – acender a tocha e admirar o efeito da iluminação do fogo virou uma rotina para mim. Também há a possibilidade de usar pequenas embarcações para navegar no mar e no Nilo, ambos guardando diversos segredos para o jogador desvendar. E claro, até mesmo a quantidade de detalhes no mundo submerso de Origins é de cair o queixo. O time de desenvolvimento se esforçou ao máximo para entregar um grande jogo.
Outro grande chamariz são as atividades complementares que também recebem detalhamento e planejamento bastante importantes: a corrida de bigas e as arenas de gladiadores. Ambas são sensacionais e interessantes, com mecânicas e regras totalmente distintas.
Um detalhe que faz falta é o glossário histórico que sempre foi presente até então. Origins não possui informações complementares de qualquer tipo e é um tanto tragicômico que isso aconteça justamente dentro de um cenário histórico tão interessante como o Egito Antigo. Todavia, há algumas curiosidades curtas que surgem nas telas de carregamento do jogo. Como haverá o modo tour futuramente, é possível que essa ausência seja suplantada com algo bem mais interessante e interativo, mas por ora é decepcionante.
Obviamente, pelo tamanho massivo do mapa, o jogo sobre com bugs ocasionais, mas nenhum que realmente te force a resetar o jogo. Ao mesmo tempo que vale a pena elogiar a qualidade gráfica soberba dos cenários e dos detalhes das armas e trajes do protagonista, cabem críticas a respeito das expressões faciais de personagens secundários que são sempre um tanto insossos e não muito polidos. Além disso, até mesmo no PC, versão que joguei, é nítido que o jogo tenha o incomodo hábito de fazer pop in de texturas conforme nos movimentamos no mapa. Não é algo terrível, mas certamente um pouco decepcionante de ver isso ocorrer em um game carro-chefe da Ubi.
Também vale mencionar o excelente trabalho com a trilha musical e nos efeitos sonoros em geral. As músicas raramente aparecem durante a jogatina, mas quando surgem, são muito bem-vindas e adequadas para a situação que se desenlaça. O fato do jogo ser tão silencioso o tempo inteiro valoriza a questão dos efeitos sonoros orgânicos que contribuem ainda mais para criar a ilusão desse mundo rico e extremamente vivo – até mesmo no deserto.
O Assassino Redimido
Assassin’s Creed Origins é o melhor jogo da franquia até agora. Muito provavelmente por conta dele ser o menos parecido com os outros jogos da saga que adotavam a mecânica há muito engessada da série. Com a apresentação desse novo sistema, de um mundo aberto realmente espetacular e de livre navegação desde o primeiro momento de jogatina, um novo sistema de combate e movimentação e uma história com um ótimo protagonista, a Ubisoft alçou o padrão da série para níveis muito, mas muito altos.
É um encantamento que retorna que só fui ter há muito tempo com Assassin’s Creed Brotherhood. Com uma valiosa quantidade de horas de coisas para fazer e uma diversificação de atividades que realmente tornam o game viciante, é impossível não recomendar a compra de Origins mesmo pelo preço cheio. É raro ver um jogo que de fato valoriza o preço salgado do lançamento e esse certamente é o caso, afinal, “viajar” para o Egito nunca foi tão barato.
Com essa adição espetacular, o mínimo que espero para o próximo jogo é nada menos que outra iteração tão boa quanto esta. Enquanto esse dia não chega, peço licença que ainda tenho muito o que fazer no Egito Antigo que esse maravilhoso jogo trouxe de volta à vida.
Assassin’s Creed Origins (Idem, EUA, França – 2017)
Desenvolvedora: Ubisoft
Gênero: RPG, Aventura
Plataformas: PC, Xbox One, PS4
Review | Terra-Média: Sombras da Guerra
Todo ano de transição de geração de consoles é bastante sofrível. Na história recente, 2014 foi o escolhido para ser lembrado como um ano bastante morno para os games. Ao contrário de 2017, o primeiro ápice de safra de muita qualidade para os “novos” consoles, 2014 amargou com títulos cross-gen que deixavam bastante a desejar. Porém, entre tanta mediocridade, surgiu uma enorme surpresa: Terra-Média: Sombras de Mordor.
Pegando emprestado as muitas mecânicas da trilogia Batman Arkham, a Monolith criou uma nova saga para os sofridos jogos de Senhor dos Anéis durante anos. Logo, os fãs que clamavam um jogo de verdade, realmente caprichado e com uma história original e boa, logo ficaram satisfeitos com a jornada de Talion e Celebrimbor.
Com uma recepção crítica muito favorável e uma boa quantia de vendas, era questão de tempo para que víssemos a sequência do game chegar nas lojas. E aqui estamos nós com Terra-Média: Sombras da Guerra, um jogo que oferece uma das experiências mais completas dessa geração até agora.
A Iminência da Guerra
Ao contrário de Sombras de Mordor, há uma ênfase ferrenha na história de Sombras da Guerra. Com o final do primeiro jogo, nos despedimos de Talion e Celebrimbor jurando vingança contra Sauron para liberar Mordor de seu domínio. Para isso, o elfo decide forjar um novo Anel de Poder, dessa vez totalmente imaculado, puro da maldade e tentação. Usando sua própria alma para dar vida ao anel, Celebrimbor cria sua obra-prima, mas logo a dupla perde a posse do anel ao serem capturados pela Laracna, a aranha mais antiga e poderosa da Terra-Média.
Cedendo suas visões para Talion, o herói descobre um terrível destino para a última resistência de Gondor contra Sauron, Minas Ithil, e parte para evitar a queda da cidade. Mas o destino guarda mais surpresas para ele do que o esperado. E a maioria dessas surpresas, trazem desafios que tentam destruir o pouco da alma que restou de Talion.
Sombras da Guerra é ousado. Quem joga o primeiro ato do game, nem desconfia que a história simples logo se torna um prequel que merece ser canônico de tão surpreendente que é, além de encaixar com perfeição na cronologia principal da saga.
De fato, as missões que rondam o núcleo gondoriano do jogo, apesar de não serem ruins, são muito fracas, além do primeiro ato não permitir que o jogador explore a fundo o sistema Nemesis ainda mais aperfeiçoado – a habilidade de converter orcs e fazer seu exército só surge no segundo ato do jogo que também é sua maior parte. Sem grandes revelações e uma culminação bastante previsível, essa primeira parte ajuda a mostrar as verdadeiras ambições de Celebrimbor que passa a ser mais um espírito desagradável totalitário do que um libertador de Mordor.
Um dos grandes destaques do game certamente está concentrado na relação simbiótica de Talion com Celebrimbor e a influência do anel nisso tudo. Laracna, apesar de não decepcionar, tem uma função narrativa bastante batida e clichê oferecendo as visões que guiam as missões de Talion para evitar o futuro previsto. Ela tem uma grande importância na trama, mas nunca é desenvolvida como se deve.
No segundo ato, a narrativa expande e passa a melhorar. Temos as missões de Eltariel, uma elfa enviada por Galadriel para ajudar Talion na libertação de Mordor, as missões de Carnán, um espírito da floresta que tenta lutar contra a devastação dos orcs contra a natureza, e, por fim, as missões do olog Brûz, o primeiro capitão de seu exército.
Claramente, cada um desses conjuntos de missões, possuem propostas e temas diferentes. Carnán é uma das personagens mais interessantes que Talion encontra, além das missões focadas em necromantes e balrogs serem as melhores do jogo – e também as mais difíceis, fora a narrativa ser muito mais filosófica e densa do que o esperado. Com Brûz, o humor orc surge e também boas reviravoltas, além de contar com missões realmente diversas e bastante interessantes que o jogador se sente compelido a completar.
Já com Eltariel, as coisas são mais distintas. Apesar do grande foco na caçada dos nazgûl, as missões tendem a ser repetitivas – seja as de interromper rituais ou expurgar espíritos. Porém, existem lampejos de brilhantismo dos diretores em mostrar para o jogador um pouco do passado sombrio dos cavaleiros das sombras de Sauron – já o Lorde das Trevas continua superficial e monocórdico como de costume.
Lapidando o Nêmese
A menina dos olhos de Sombras de Mordor realmente era a inclusão do sistema pioneiro de I.A. chamado Nemesis, o qual prometia diversidade contra os inimigos principais gerados randomicamente, possuindo fraquezas e forças próprias, além de um senso de comunidade que sempre estava prosseguindo mesmo que o jogador não cumprisse missões secundárias para esse fim.
Se isso já era ótimo no game anterior, agora está perfeito em Sombras da Guerra. Tudo é expandido ao máximo para levar a mecânica até seus limites. O jogo é divido entre cinco regiões abertas para explorarmos (mesmo que não sejam enormes, possuem grande variedade de ambientação para nos manter interessados). Em cada uma delas, será necessário fazer exércitos únicos para, por fim, dominar os fortes.
A escalada para tal, porém, não acontece por meio de griding, aquela repetição infernal que muitos RPGs apostam. Tudo pode ser misturado com as missões principais nas quais o jogador pode aproveitar as oportunidades para converter novos capitães para constituir seu exército. Quando achar que está grande o suficiente, é hora de conhecer uma das pérolas do jogo: tomar os fortes.
Misturando a mecânica do game com a de outros jogos de Senhor dos Anéis como Lord of the Rings: Conquest, nos aventuramos a tomar os fortes dominados por mais orcs do que você consegue contar. A sensação de uma grande batalha perpetuada pelos filmes de Peter Jackson é real e nos sentimos bem no meio de uma enorme guerra violenta de fantasia medieval. É algo mágico que vicia o jogador. E a Warner bem sabe disso, pois o modo on-line aposta nessas batalhas e construção de legião de orcs fortíssimos. E é nisso que entramos na maior polêmica do jogo que muitos acabam o boicotando injustamente.
Em uma decisão muito infeliz, a Warner decidiu colocar um sistema de micro-transições muito similar a de jogos mobile. Apesar de existir essa enorme mancha na reputação do jogo, ela não é invasiva de modo algum e tampouco necessária. Na verdade, torna o game ainda mais fácil – ele é consideravelmente mais fácil que o anterior. É possível completar o jogo sem gastar um tostão a mais comprando os pacotes de ouro, porém, é notável que durante o quarto ato do jogo, exista uma dificuldade maior para conquistar fortes, além de um abuso na necessidade da compra de artefatos via meridian, a moeda virtual obtida ao longo das campanhas.
Enfim, considere esse sistema de mercado apenas um atalho para conseguir sets melhores e guerreiros mais fortes que vão te auxiliar nessas missões de conquista. De resto, com paciência, é possível obter as mesmas coisas já que Sombras da Guerra é um game focado em te manter nele pelo máximo de tempo possível. Só para bater a campanha principal, vai levar mais de 25 horas e, nelas, encontrará peças de combate bastante preciosas e interessantes.
Com esse sistema de fortes adicionado a mecânica principal, o jogador se sente mais impelido a cumprir as missões paralelas para emboscar e dominar novos capitães sem sentir aquele cansaço latente adquirido pela repetição menos inspirada da edição anterior. Porém, repito, no quarto ato, a fórmula começa a desgastar por perceber o crescente nível de dificuldade absurdo.
As missões paralelas também são mais interessantes, além dos colecionáveis também trazerem trechos da história antiga de Mordor. Fora isso, há ótimos trechos de narrativa focando nas batalhas antigas de Celebrimbor e nas memórias de Laracna. É tudo realmente muito completo e interessante.
A profundidade da mecânica não para somente na construção do exército e na caçada incessante por loot significativo. Na verdade, a progressão de níveis do game é sempre justa oferecendo 1 ponto de habilidade para ser gasto na massiva árvore de habilidades do jogo, afinal, com um Anel de Poder, era mais que obrigatório sermos mais poderosos. São muitas habilidades e sub-habilidades espalhadas em um sistema inteligente. Cada uma delas faz diferença no resultado final da jogatina e logo o jogador se acostuma a usá-las cada vez mais.
Muitas delas acabam deixando o ritmo da jogatina ainda mais intenso. De fato, Sombras da Guerra é um jogo rápido, tanto na movimentação quanto no combate ainda mais viciante. Com a coordenação certa e as habilidades escolhidas a dedo, é possível derrubar mais de cinquenta combatentes sem muito esforço. Te garanto que fazer uma carnificina brutal em um acampamento orc é uma das experiências mais satisfatórias do game.
Perto do fim do jogo, você está poderosíssimo, podendo sumonar feras incluindo os poderosos dracos que também são montáveis! É sensacional voar nas costas desses dragões queimando tudo o que há pelo caminho, além de serem os meios de transporte mais rápidos do jogo. Mesmo assim, pode acreditar que a curva de dificuldade dele também acompanhará sua progressão de poder até o fim. Mesmo que seja mais fácil, também é rápido ser morto por inimigos se ficar confiante demais.
Um universo coeso
Se houve mais um game dessa franquia, já podemos dizer que temos perfeitamente nove boas histórias de Senhor dos Anéis no meio audiovisual. O que torna a proposta dessa empreitada da Monolith e da Warner mais interessante que de games anteriores, é justamente o nível de comprometimento artístico visual e sonoro para manter um universo realmente único e muito rico que Peter Jackson inaugurou em 2001.
Basicamente, estamos imersos em cenários que os filmes não tiveram tempo para se aventurar. Mesmo que muita coisa seja inédita, obviamente há uma fidelidade arquitetônica e temática com o design de produção visto tanto em O Senhor dos Anéis como em O Hobbit, seja nos figurinos, na topografia das regiões, das criaturas, dos orcs, das armas e dos edifícios que escalamos vez ou outra. O refinamento estético permite que fãs inveterados da franquia não se sentem estranhos no ninho, mas o contrário, fazendo realmente parte da história dessa mitologia.
O melhor exemplo que posso dar é de Minas Ithil, uma cidade tão albina e similar com a sua irmã gondoriana vista nos filmes, Minas Tirith. Como estamos restritos a Mordor, ainda não descobrimos quais maravilhas que o time da Monolith pode fazer com outras regiões tão significativas quanto como as dominadas por elfos, anões e hobbits.
Se o visual é apurado, o mesmo se pode dizer do som. A trilha musical mimetiza e cria novas melodias que parecem ter sido escritas pelo próprio Howard Shore, compositor das peças musicais dos filmes. Os efeitos sonoros seguem a mesma linha, com dublagem de alta qualidade e sons objetivos e eficientes – o som das decapitações por espadas continua espetacular.
Mas nem tudo é perfeito. A ambiência deixa bastante a desejar. Apesar de ser raro o momento que o jogador parar para admirar o jogo, rapidamente sentirá falta de efeitos que tornam esse mundo um pouco mais vivo. Como estamos sempre na correria espectral de Celebrimbor, é bem capaz disso passar despercebido.
Também não é sentida uma melhora significativa na qualidade gráfica entre os dois jogos já separados por três anos de hiato. Óbvio que é um game bonito, mas diversas texturas carecem de maior cuidado e definição. Logo, é melhor apreciar o visual do game sempre à distância para deixar essas pequenas imperfeições menos nítidas aos olhos, porém é evidente que o fator gráfico podia ser mais caprichado, assim como as animações faciais dos personagens.
Isso vale tanto para os humanos quanto para os orcs, apesar de haver muito mais cuidado com estes últimos. Aliás, aproveito para dizer que existem monólogos de capitães que são simplesmente longos demais, tirando a urgência desses combates – isso quando eles não bugam e não falam nada, apesar da longa animação continuar prendendo o gameplay.
No fim, o ciclo permanece
Afirmo categoricamente e sem nenhum medo: Sombras da Guerra é o melhor jogo inspirado em O Senhor dos Anéis já lançado até agora. Com uma história excelente e bastante corajosa, gameplay fluído e viciante e aperfeiçoamento técnico da mecânica a níveis estratosféricos, tornam a experiência de jogar o game em algo bastante único e distinto do que há no mercado de RPGs hoje.
Pelos poderes sobrenaturais do Anel de Poder e do ritmo rápido, a mecânica de exploração e combate afastam Sombras do fantasma da franquia Arkham, dando muitos méritos para o time de desenvolvimento do jogo que finalmente cria sua própria identidade.
É um game imprescindível para todo fã de Senhor dos Anéis e dos amantes de bons RPGs. Nesse fim de ano disputado com grandes títulos chegando no mercado, é consideravelmente fácil colocar esse game no topo da lista de recomendações por conta da quantidade absurda de conteúdo que o jogador terá ao longo de vários dias.
Além de tantas certezas que encontramos aqui, é fácil definir mais uma: nesse baú de J.R.R. Tolkien, há muito mais conteúdo criativo para gerar obras tão memoráveis quanto essa. Que venha o próximo!
https://www.youtube.com/watch?v=oQ7aLU6rHLk
Crítica | Mindhunter - 1ª Temporada: Quando o Abismo Olha de Volta
Spoilers leves
Até começar a ver ao novo seriado da Netflix, Mindhunter, não fazia ideia do que encontraria realmente. Assim como nosso protagonista se aventurando em território desconhecido, segui o mesmo caminho – mesmo que bem menos perigoso. Imaginava que seria apenas mais uma boa série criminal que manteria a safra medíocre de material original do serviço em 2017.
Mas havia a pulga atrás da orelha. Ela, sempre ela. Como admirador do trabalho de David Fincher, Mindhunter estava na minha lista de obras audiovisuais obrigatórias. E certamente o que chama a atenção de um diretor tão, mas tão exigente, certamente despertará interesse em milhares de espectadores.
No caso de Mindhunter, temos o advento de um formato realmente muitíssimo interessante para o entretenimento televisivo: um seriado de progressão narrativa contínua, mas com “casos da semana” inseridos de forma muito orgânica. Pode-se dizer que Dexter fez algo parecido com isso, mas a narrativa episódica tinha uma constante força nítida. Já aqui, temo algo mais próximo do cinematográfico.
Caminho do Inferno
Mindhunter começa com a coragem de todo seriado audacioso. Somos apresentados ao nosso protagonista, o agente especial Holden Ford, um profissional extremamente “verde” para lecionar uma das funções mais delicadas da força policial: a negociação de reféns com sequestradores. Reconhecendo seus fracassos profissionais e uma vida pessoal solitária, Holden acaba conhecendo e virando assistente do veterano Bill Tench, um agente que viaja por todo os EUA para ensinar forças policiais locais como compreende e categorizar a mente de faixas mentais específicas de criminosos.
Instigado a melhorar sua performance caótica como negociador, Holden passa notar uma falha no sistema. A categorização do FBI era muito ultrapassada e não encaixava figuras diabólicas divergentes. Até então, não havia o termo assassino em série, e era justamente desses psicopatas que Holden estava interessado em categorizar.
Contrariando ordens internas do FBI, ele se arrisca a entrevistar Ed Kemper, um dos psicopatas mais letais capturados até então – o seriado se passa em 1977. A partir de uma breve entrevista, Ford consegue compreender um pouco da mente criminosa psicótica e suas origens traumáticas. Depois de muito esforço, consegue fundar um setor inédito no FBI para entrevistar mais psicopatas a fim de formalizar perfis para prever crimes.
O fato é que Mindhunter é baseado em fatos reais. Realmente nos 1970, houveram pioneiros que ousaram entrevistar os humanos mais desprezíveis dos EUA para compreender a mente criminosa de um psicopata. Eram John Douglas e Robert Kessler. Inspirado no livro escrito por Douglas, o seriado visa trazer uma mistura perfeita de ficção e realidade em sua adaptação.
Pode-se dizer que o roteiro é eficiente nessa proposta, mas toda a parte “formal” da coisa é facilmente superada quando os trechos “reais” entram com tudo na narrativa. Isso é algo que comento recorrentemente quando o fato histórico tem uma força tão avassaladora que é difícil distinguir o que é mérito da criatividade da adaptação ou apenas a excelência dramática.
Por conta disso, é relativamente fácil apontar os maiores méritos e defeitos da adaptação do showrunner e roteirista Joe Penhall. Em uma metalinguagem possivelmente acidental, temos o constante debate da teoria e a prática. Apesar de ser um escritor bastante calejado, nota-se que Penhall ainda se sente preso a um formalismo clássico de roteiros convencionais: a introdução do arco dramático dos protagonistas.
No seriado, acompanhamos Holden, Bill e Wendy, uma acadêmica que estuda traumas psicológicos que ajuda a dupla de agentes a traçar um questionário padrão para ser aplicado em diferentes psicopatas.
Com extrema competência no guião do episódio piloto, David Fincher traça um retrato do cotidiano loser de Holden. Sua apresentação ao espectador, já envolve um dos maiores fracassos profissionais de sua novata carreira. E conforme descobrimos que o imaturo agente é um dos responsáveis a lecionar negociação de reféns para novos alunos da Academia do FBI, as coisas ficam ainda mais turvas para nós. Entretanto, pela competência do ator Jonathan Groff, o personagem conquista nossa empatia por reconhecer seu fracasso profissional.
No piloto, diversos arcos importantes são estabelecidos, assim como o retrato de nosso protagonista: um rapaz verde que desconhece seu potencial, ingênuo e dócil. É definido então a aurora de seu novo relacionamento amoroso com Debbie, uma universitária hippie completamente oposta ao protagonista, mas que indica caminhos para que Holden mude seu modo quadrado de ver as coisas.
Isso gera o efeito dominó que apresenta os outros coadjuvantes principais: Bill e Wendy. Bill tem o conflito mais pertinente da série: a alienação constante que sua escola móvel provoca em relação a sua família e ao filhinho adotado. O personagem é constante afetado por isso, bastante melancólico e sem a vivacidade de Holden, o contraste clássico da dupla de detetives (o velho e o novo, o descrente vs o crente na Justiça, etc).
Com Wendy, as coisas são mais interessantes, envolvendo uma revelação imprevisível na esfera de seus relacionamentos pessoais. Há uma singela busca da mulher por afeto e companhia, mas que é ao mesmo tempo impossibilitada pela natureza tóxica de seu trabalho.
Esse arco é comum a todos os personagens, apesar da jornada deles serem completamente distintas e constantemente interrompidas para apresentar os “casos da semana” nos quais novos criminosos surgem para movimentar a trama. O amargo sabor de se misturar o pior da nossa espécie, acaba intoxicando todos os que vivem no projeto, induzindo a desavenças, sabotagens e isolamento. É o ponto original melhor trabalhado do roteiro, mas há muito mais do que isso.
Na Companhia do Medo
Holden é um protagonista funcional. Em sua apresentação de início de crise existencial, ele acaba justamente se encontrando quando senta frente-a-frente e conversa com um notório psicopata: Edmund Kemper, o Co-Ed Killer, o necrófilo “decapitador” responsável pela morte de 10 pessoas, dentre elas seus avós e mãe.
Interpretado por um muitíssimo carismático Cameron Britton (digno de prêmios), somos introduzidos a um mundo completamente avesso que testa ao máximo o talento da escrita Joe Penhall. Com diálogos magnéticos e performances fantásticas, enxergamos o potencial único de Mindhunter: as entrevistas com os psicopatas.
Apesar da força inicial das conversas com Kemper, os outros três entrevistados: Monte Rissel, Jerry Brudos e Richard Speck, garantem variações de perfis e histórias tão perturbadoras quanto, mas sem 1/3 do carisma de Kemper. E isso tem um propósito narrativo exemplar. Penhall nos seduz com essas histórias grotescas do mesmo modo que Holden acaba seduzido e atraído pela escuridão.
E é justamente nisso que temos a grandiosa sacada de David Fincher para abrir e fechar seu trabalho com o personagem. Para isso, é preciso analisar a imagem. Na apresentação de Holden, ele negocia com um criminoso a uma distância considerável e segura. Fincher quer que reparemos nisso, pois o enquadramento afastado é persistente a ponto de nunca vermos o rosto do criminoso. Na penúltima cena do seriado, com Holden indo visitar Kemper no hospital após sua vida profissional e pessoal ter se tornado um caos ético por conta das mudanças em sua psique, temos então a culminação de tudo isso.
Se antes o ingênuo Holden evitava contato direto com a imundície do crime – lembrem-se de como ele lava ferozmente a camiseta manchada de sangue, o novo Holden é tão fascinado pela mesma que acaba “abraçada” por ela. A beleza da catarse é essa: ao compreender que estava se tornando tão psicótico quanto os objetos de seu estudo, o personagem sofre um colapso nervoso acreditando que iria morrer, torna-se o paranoico perfeito. É um final muitíssimo pessimista, é um final com a cara de David Fincher, é um final de temporada perfeito.
Mas obviamente há alguns deslizes quando o seriado desvia para os arcos originais. David Fincher dirige apenas quatro episódios (1, 2, 9 e 10). Depois é substituído por Asif Kapadia que mantém um nível de excelência bastante parecido nos episódios 3 e 4. Porém as coisas mudam no miolo durante os episódios restantes conduzidos por Andrew Douglas e Tobias Lindholm.
Originalidade Complementar
Quando enfim os primeiros casos de criminosos para serem capturados surgem, sentimos o texto começar a se debilitar. Há sim momentos excelentes com diálogos que aplicam os conhecimentos adquiridos através dos psicopatas presos, mas também tudo fica bastante previsível. Apesar de Holden falhar e ousar demais, a verdade é que o roteiro é tão eficiente em sua didática que o espectador também se torna bastante entendido do assunto a ponto de matar as charadas muito antes de suas conclusões.
As pistas que o texto oferece, apesar de não serem muito óbvias, são muito bem captadas por olhos mais atentos. Como Joe Penhall nunca subverte as nossas expectativas, a série acaba entrando em um caminho entediante. Fora isso, os personagens param de evoluir, ficam estagnados e alguns conflitos clichês irrelevantes surgem. Novos colaboradores para o departamento de Holden aparecem e não funcionam em tela, Wendy deixa de ser fascinante para virar irritante, a conclusão dos arcos pessoais de Bill nunca culminam em nada e ele deixa de ser ativo na história e o namoro interminável de Holden com Debbie passa a ser enfadonho, pois não oferece nada de novo – excetuando uma brilhante cena envolvendo sapatos femininos.
Há também um caso criminoso que se estende demais envolvendo o assassinato de Beverly Jean com outro punhado de personagens enfadonhos e maçantes, além da estagnação do desenvolvimento de Holden que só retorna no episódio 8 com a culminação negativa de um caso envolvendo suspeitas de pedofilia. Apesar de ser um arco brilhantemente costurado e que dialoga com os estágios que motivam atos psicóticos, todo o caminho construído é pouco inspirado e demasiadamente extenso, além da escolha de inserir o novo ajudante puritano como parceiro de Holden.
É como se Mindhunter ficasse à deriva em um imenso oceano com poucos lampejos graciosos. Com uma maré medíocre, o espectador sabe reconhecer quando algo fenomenal surge em tela como é o caso das entrevistas com outro psicopata real: Jerry Brudos. O contraste entre Brudos com Kemper é tremendo a ponto de até mesmo teme-lo. Outra excelente performance, dessa vez de Happy Anderson, surge e nos salva de uma jornada enfadonha.
Essa cadência bizarra de ritmo e viradas previsíveis certamente são o ponto principal que o showrunner precisa trabalhar na 2ª temporada, pois praticamente ofusca o grandioso trabalho de seu roteiro. Como disse, enquanto ele aborda a teoria da construção do estudo, é perfeito, mas quando joga a prática como parte original do roteiro do seriado, as coisas perdem potência e não funcionam como devem. É como dizem, jogo é jogo. E por enquanto Penhall precisa treinar mais esses segmentos.
Iluminando a Escuridão
Todos nós sabemos que continuar um trabalho iniciado por David Fincher é um tremendo desafio. E Mindhunter comprova que, de fato, é.
Fincher conduz a trama com uma energia contrastante à imagem concebida por sua visão. Certamente que o seriado é um belo festim para os olhos, com as luzes naturalistas, suaves, sombrias e pouco contrastadas do modo que Fincher passou a requisitar para seu cinematógrafo Jeff Cronenweth – aqui, outros cinematógrafos replicam o estilo visual ao longo de todo o seriado.
Caprichando meticulosamente na composição de seus enquadramentos, fica claro que Fincher usa uma abordagem um pouco mais rara em sua assinatura autoral. Sendo um diretor completo, capaz de encenar muitíssimo bem, dominar efeitos visuais, uso do som e da música, do poder da montagem, entre tantas outras características pertinentes. No caso de Mindhunters, por conta dessa composição voraz e pouca movimentação de câmera, dá para perceber que existe uma limitação orçamentária nessa temporada.
É algo natural em diversas primeiras temporadas, mas certamente é bizarro ter um dos maiores diretores da História do Cinema à sua disposição sem poder encenar de modo mais completo. Fincher somente foge do padrão excessivo da linguagem clássica estática quando ornamenta uma ótima sequência em montagem mostrando as idas e vindas da escola móvel criminal de Holden e Bill. (Aliás, que ótima sacada narrativa de colocar os protagonistas com acesso a diversos estados e penitenciárias dos EUA).
O diretor também sabe compensar em aplicar seu DNA na estética sonora da série, em particular das músicas licenciadas. Sim, prepare-se, pois Mindhunter tem uma das melhores seleções musicais do ano. Ao contrário dos outros diretores, Fincher também é o único a exacerbar uma verve cômica ferrenhamente ácida e eficiente. É impossível não rir muito com a eficiência do timing visual e de entrega durante as entrevistas com Kemper no episódio 2 ou ficar realmente entusiasmado quando o diretor encerra esse episódio (também o melhor da temporada) com a fundação da seção inédita do FBI ao som de Psycho Killer de Talking Heads.
O design de produção aqui também é digno de menção. A década de 1970 é recriada com afinco certeiro, além do destaque excepcional nas diferentes salas das prisões nas quais são conduzidas as entrevistas. Na esfera dos personagens, também é curioso notar que somente o apartamento de Debbie possui uma forte identidade visual, inspirada claramente pela cultura hippie. Os outros personagens, todos do núcleo do FBI, recebem aposentos estéreis, sem personalidade alguma, são estranhos em suas próprias residências. O sentimento de alienação perdura em todos os cantos, são prisioneiros do ofício.
Aviso que a ênfase da análise no Fincher não é por menos. A série segue a concepção do diretor até sua conclusão, tanto visual quanto sonoramente. Aliás, é muito gratificante vê-lo resgatando boas sacadas que teve em Se7en e Zodíaco, duas obras-primas de filmes policiais dos últimos trinta anos. Em particular, Mindhunter conversa bastante com Se7ven pelo fato de nunca vermos nem uma única vez a realização do ato de matar, somente o posteriori a isso.
O desdobrar dos passos investigativos claramente é mais burocrático assim como em Zodíaco. Aliás é importante mencionar como Fincher também se apropria de uma linguagem artística de videogame. Qualquer um que tenha jogado L.A. Noire, reconhecerá de cara o estilo das introduções misteriosas de quase todos os episódios acompanhando um misterioso cidadão e suas andanças em Park City, Kansas.
O fato é que esse cidadão não é apenas um homem ordinário. Trata-se do BTK Killer, Dennis Rader, um dos psicopatas que mais conseguiu driblar as forças da lei. Na altura do tempo diegético do seriado, Rader já tinha matado 4 pessoas. É bem possível que vejamos muita coisa perturbadora através dessas introduções que conversam tanto quando o game mencionado como nas interrupções do criminoso em O Silêncio dos Inocentes.
Sob a Luz
Eu aplauso de pé Mindhunter. Há anos que eu não assistia a uma série policial tão promissora, cheia de identidade, estética irreparável e magnética quanto esta. Qualquer fã do gênero ficará extremamente fascinado pela sedução diabólica das entrevistas com os psicopatas e também por alguns casos de investigação e captura de criminosos que Joe Penhall se esforça tanto em construir.
Mindhunter é um pacote completo. Ou melhor, incompleto. Ainda estamos na primeira temporada. E ainda há um punhado de insanos doentes psicóticos que iremos conhecer nas próximas. Ted Bundy, Charles Mason, John Wayne Gacy, Lynette Fromme, Arthur Bremer, Sara Jane Moore, Donald Harvey e muitos outros estão somente à espera de sua entrevista definidora.
É mais do que hora de tirar os monstros da escuridão e despir todas as camadas de sua insanidade para aprendermos a preparar as armadilhas perfeitas. Dessa vez, sob a luz.
Mindhunter (Idem, EUA – 2017)
Showrunner: Joe Penhall
Diretores: David Fincher, Asif Kapadia, Andrew Douglas, Tobias Lindholm
Roteiro: Joe Penhall, John Douglas, Mark Olshaker
Elenco: Jonathan Groff, Holt McCallany, Hannah Gross, Anna Torv, Cotter Smith, Cameron Britton, Happy Anderson, Sam Strike
Gênero: Policial, Crime, Drama
Duração: 60 min/episódio
https://www.youtube.com/watch?v=7gZCfRD_zWE
Crítica | Stranger Things - 2ª Temporada - Coisas cada vez menos Estranhas
Spoilers moderados
Apesar de prender sua audiência com alguns carros-chefes como House of Cards, a necessidade de um fenômeno pop de maior abrangência era tremenda para a Netflix realmente cravar seu conteúdo original no imaginário popular. E assim foi feito em 2016, com o alvorecer de Stranger Things, uma aventura genérica que visava misturar diversos conceitos icônicos dos filmes dos anos 1980 das aventuras juvenis darks que marcaram gerações.
Em questão de pouco dias, o seriado explodiu em popularidade. Não só pela divertida história e química fascinante entre o elenco mirim e adulto, mas pela qualidade de seus personagens e seu grande carisma – basta ver o quanto Eleven se tornou uma queridinha do Halloween norte-americano em 2016. Mas também a tempestade perfeita estava formada. Na ressaca de Game of Thrones e em meio a uma temporada péssima de blockbusters de verão, Stranger Things foi a salvação das férias de julho de muita gente – principalmente pelo mar de referências que alimentaram diversos joguinhos e listas na internet.
Com um ano de cancelamentos precisos e novas apostas que renderam bons resultados como Big Mouth e Mindhunter, a segunda temporada de Stranger Things vem para coroar um grande segundo semestre de eficiência criativa da Netflix. Obedecendo as regras básicas de toda sequência de um sucesso original, a segunda temporada do seriado traz o necessário: é maior, mais barulhenta, mais rica, mas não necessariamente melhor, apesar de manter uma consistência satisfatória em sua maior parte.
Jornada em Dose Dupla
A 2ª Temporada é focada no grande X da primeira: Will. Com o retorno do menino para o mundo normal, é esperado um pouco de paz para sua própria vida, porém o pesadelo sem fim não desiste de perseguir o garoto que parece transitar entre os dois mundos sem ter o menor controle mesmo depois de um ano dos traumáticos acontecimentos envolvendo seu sumiço. Preocupados com a saúde psicológica de Will, família e amigos tratam o garoto como o ser humano mais frágil do mundo, como alguém anormal que não sabe cuidar de si próprio.
Isso, obviamente, deixa o menino ainda mais instável tornando as crises nas quais perambula no mundo invertido ainda mais frequentes. Trazendo cada vez mais do mundo invertido para o mundo real, Will causa um novo caos na pacata Hawkins enquanto seus amigos e família partem em aventuras que ligam as mudanças paranormais na cidade com a crescente atividade do mundo invertido. Enquanto isso, Eleven parte para uma jornada de autodescobrimento sobre sua própria história.
É nítido que os irmãos Duffer escutaram tanto a crítica quanto o público com a repercussão de opiniões da 1ª temporada. Tanto que se dispõem a “consertar” erros do passado nessa nova iteração – mesmo que isso mais prejudique o ritmo do seriado e crie subtramas desnecessárias.
O segundo ano traz consigo mudanças profundas na estrutura do roteiro dos episódios. Antes, claramente concentrados em um núcleo protagonista muito enfatizado por Mike e Eleven, agora é disperso em diversos núcleos (com predileção para duplas) que tornam a história mais lenta e abrangente. A aventura é desenhada como tantas outras narrativas de grupo de sucesso: o grupo parte consideravelmente unido e se desfaz em diversos outras jornadas que levam para o mesmo derradeiro destino.
Logo, nada mais conveniente que partir da mesma estrutura para a análise. É um tanto decepcionante sentir que os Duffer, apesar de terem criado grandes personagens, terem receio de utilizá-los de modo mais criativo. Em grande maioria, todos eles permanecem presos a um status psicológico em toda a jornada – para se ter ideia, os poucos que realmente “mudam” são Nancy e Jonathan em uma subtrama envolvendo a busca pela justiça (?) da morte de Barb na primeira temporada.
Mike, outrora protagonista, passa a temporada inteira à sombra de Will que, novamente, continua uma incógnita já que não demora nada até os Duffer colocarem o personagem em modo ocioso em diversas de suas cenas – quando está acordado, Will é um mero catalisador para a compreensão dos novos eventos sobrenaturais em Hawkins. Como há um flerte enorme com O Exorcista neste núcleo, não é possível conhecê-lo de fato. Ao menos, o pequeno Noah Schnapp dá o melhor rendimento de atuação no elenco mirim por conta das grandes provações de sofrimento pérfido que Will sofre ao longo da temporada.
O favorito dos fãs, Dustin, embarca em uma aventura de mimese a la Gremlins que, além de ser completamente irrelevante, tem função esdrúxula em uma cena-chave do episódio final trazendo à tona o quão inútil é toda a jornada que envolve o personagem durante a temporada – sim, acredite, os pontos de virada não permitem que Gustin abandone sua quest, uma desventura de erros.
Lucas, outrora o personagem mais apagado da série, agora recebe um interesse romântico que é nutrido ao longo de toda a narrativa. Esse interesse romântico nada mais é que a nova integrante da turma, Max, uma garota recém-mudada a Hawkins que sofre com os abusos de tortura psicológica de seu meio-irmão rebelde e delinquente chamado Billy.
De início, os Duffer visam mimetizar o encanto inicial da ingenuidade dos garotos em contato com uma garota depois de um longo tempo desde a ausência de Eleven. Max é uma personagem bastante distinta da garota paranormal e consegue conquistar pelo carisma de um arquétipo consolidado: a durona de coração mole com problemas de confiança. Porém, passado os três primeiros episódios – e também os conflitos superficiais de Mike não a aceitar na turma, a doce narrativa dá lugar as revelações obrigatórias para encaixá-la na narrativa sobrenatural.
Aliás, é particularmente engraçado que, quando a menina descobre a verdade sobre os acontecimentos do ano anterior, os Duffer aproveitam para alfinetar os críticos que dizem que a narrativa não é nada original. Bom, é melhor repetir a piada na terceira temporada também, pois os Duffer são uma mala do gato Félix para lançar clichês diversos em seu roteiro.
Obviamente, muitos são funcionais e dão prosseguimento a uma história frágil enquanto tentam expandir a mitologia desse universo. Até mesmo a pífia e muito estúpida ideia do pet sobrenatural de Dustin consegue render bons momentos quando Steve surge em cena para ajudar o garoto a corrigir seus erros. Aliás, Steve tem caminhado a largos passos para se tornar o personagem mais interessante do seriado inteiro, com as transformações mais bem pontuadas adquirindo mais complexidade.
O Peso do Crescer
Particularmente, é correto e bem desenvolto, cheio de provocações e pequenos conflitos, do romance de Lucas com Max. Aliás, é por conta dessa subtrama que acabamos conhecendo o ótimo núcleo familiar do garoto que se distingue pelo bom humor. Interessante notar que há sim uma ênfase no tema amadurecimento nessa temporada. Claro, não é nada que se aproxime do excepcional trabalho visto em It: A Coisa neste ano, mas é satisfatório.
Mike, Will, Lucas, Eleven, Jonathan, Nancy, Joyce e Jim passam, de alguma forma, por momentos que forçam algum amadurecimento que contribui no amargor de crescer. Mike, por exemplo, vive com o luto da “morte” de Eleven e também é obrigado a se desfazer de seus brinquedos de infância. Will precisa arcar com responsabilidades que estão fora de qualquer controle. Lucas amadurece ao conquistar uma nova amiga. Eleven tem sua própria jornada durante a temporada somente para aprender a dar valor por sua verdadeira “família”. Jonathan e Nancy precisam lidar com um assunto mal resolvido do passado. Joyce tenta reestruturar sua vida pessoal, mas se torna uma obsessiva superprotetora, enquanto Jim precisa entender novamente a cumprir seu papel paterno no esconderijo de Eleven.
Gosto de que o foco do amadurecimento não fica restrito apenas nas crianças, o que seria algo muito confortável para os roteiristas, aliás. Já Dustin retrocede, ou fica apenas no ponto morto. Ele continua a servir como um bom alívio cômico, mas não cresce como personagem e logo se torna levemente desinteressante. Aliás, essa temporada é notavelmente mais sombria e menos ingênua que a anterior – mesmo que o terror ainda seja aguado por causa das seguranças previsíveis que os Duffer aprisionam a escrita.
Logo, é inevitável que a temporada sofra com muitas situações previsíveis que chegam até mesmo a prejudicar o desenlace final de alguns personagens. Próximo do final, os Duffer também não se preocupam em resolver certos buracos na escrita. Também é preciso apontar sim o quanto que eles se baseiam em clichês já desgastados para engordar a história e oferecer algo para os personagens fazerem.
Por exemplo, a narrativa que envolve Jonathan e Nancy com o novo e insosso personagem Murray, um loser que adora teorias de conspiração completamente focado em descobrir o que aconteceu na cidade no ano anterior, para divulgar ao mundo a culpa do governo sobre os eventos recém-superados. Ou, em outra escolha muito dúbia, para mostrar a fase “rebelde” de Eleven, jogá-la em um núcleo narrativo dominado por personagens punks irritantes.
Ou, também, sobre a biologia do novo monstro da temporada, o Devorador de Mentes, que se comporta exatamente com diversas outras criaturas alienígenas de clássicos da ficção científica – o visual genérico persiste. O mesmo acontece com a relação de Will com a criatura, que basicamente mimetiza um conceito muito popularizado em Harry Potter. Também nada colabora a motivação de Billy em ser um rebelde sem causa.
Explorando um pouco mais um ponto que levantei acima, é incômodo que os Duffer nivelem muito do seu trabalho na base da mediocridade. O maior exemplo disso é a relação de Eleven com Jim durante seu exílio. Nada particularmente foge do padrão e, depois, em sua jornada, o mesmo acontece. É tudo mastigado e previsível não deixando algum espaço para surpresas ao espectador – ainda mais porque vemos Eleven descobrir coisas que nós já sabemos há um bom tempo. Na verdade, isso pode ser aplicado em praticamente todas as subtramas da temporada, excetuando a de Will, Mike, Joyce e Jim. As coisas simplesmente seguem os trilhos da linha mais manjada possível. E como a audiência é basicamente da faixa etária dos 17 aos 35 anos, é bem possível que você já esteja bastante calejado com essas estruturas narrativas.
Agente das Sombras
Realmente, os Duffer caem no vício de restringir Will em outra função narrativa concentrada em seu sofrimento, mas é impossível negar a capacidade dessa história prender o interesse do espectador. E isso tem um bom motivo: é a característica mais próxima da originalidade que Stranger Things oferece.
Uma desventura com um pet assassino? Um romance acobertado por mágoas adolescentes? A jornada em busca de uma família quando a sua verdadeira felicidade está logo ali do lado? O despertar de um novo amor entre personalidade opostas? Um valentão ensandecido jurando ferir os protagonistas? Convencer uma nova amizade na mais absurda das histórias? Tudo isso já foi aplicado e testado de diversas formas em diferentes mídias. Não fosse o carisma dos personagens, dificilmente chamaria atenção do espectador.
Mas os infernos que Will passa realmente são interessantes por nos trazer novas informações do Mundo Invertido e das criaturas que lá habitam. Além disso, há uma boa dose de ternura na escrita desse núcleo apostando no carinho de Joyce com seu filho e também nos esforços de um novo personagem, Bob, em conquistar o garoto. Inclusive, há um jogo muito bem elaborado envolvendo um conselho dado na hora errada para Will que causa um sentimento de pesar pelo azar do pré-adolescente.
Depois, quando enfim já é montado um novo circo na casa de Joyce, a relação do menino com o monstro rende reviravoltas imprevisíveis no melhor episódio da temporada: The Spy – ironicamente, é sucedido pelo pior episódio do seriado inteiro que conclui a jornada inacreditavelmente chata de Eleven –, além de alterar a relação de todos os personagens com o menino e a sua verdadeira índole. Também, é importante ressaltar que os Duffer abordam de modo muito diferente a questão do papel do governo dentro da história, o que oferece um dinamismo distinto e mais interessante para o espectador.
E é evidente que os Duffer sabem onde está a joia no meio de tanto entulho. Não é por acaso que quase todos os cliffhangers dos episódios estejam concentrados no núcleo de Will. No sistema depressivo do binge watch, a Netflix apenas está interessada em te manter preso pelo maior tempo possível na frente da televisão – e, confesso, se não fosse pelo ofício e dever de escrever sobre o seriado, não teria concluído a temporada com essa voracidade.
Em suma, vendo a distância essa temporada, nota-se que temos fios narrativos bastante simples que não chegam perto de atingir o potencial que esses personagens têm. Mesmo que a primeira temporada fosse lenta e também passasse longe do brilhantismo, tínhamos um sentimento de descoberta bastante valioso com o contato inicial dos personagens com Eleven, além das revelações sobre o mistério envolvendo a personagem. Aqui, os Duffer perdem tempo com flashbacks mostrando a garota sobrevivendo no ermo do condado... Francamente, ideias melhores deviam ter surgido nas reuniões dos irmãos Duffer, principalmente as que investissem de fato no desenvolvimento nítido dos personagens. Nota: usem a Eleven de modo menos pedestre do que o feito nessa temporada inteira.
Aperfeiçoamento Estético
Apesar da narrativa de Stranger Things 2 passar longe de surpreender, é inegável que houve um belo aperfeiçoamento na qualidade estética audiovisual do seriado. Com um orçamento mais generoso, os Duffer e diretores convidados de talento como Shawn Levy (que também é produtor) e Andrew Stanton, abusaram do que mais queriam na 1ª temporada: espaço.
Enquanto a narrativa do ano anterior era muito mais intimista mostrando lentamente novas peças de um mistério sombrio, aqui temos uma aventura abrangente por Hawkins. Logo, há a necessidade de algo primordial: (muitas) cenas externas. Conhecemos a cidadezinha em detalhes cujo sentimento nostálgico permanece muito apurado. Sim, Stranger Things é mais do que nunca uma jornada prazerosa aos anos 1980.
Também com mais dinheiro, é possível mostrar os lares de Lucas e Dustin, completamente desconhecidos na temporada anterior, e notar como o design de produção é bem trabalhado para condicionar o estilo de cada personagem em seus quartos – isso vale, principalmente, para o quarto de Dustin.
Os cenários intrincados permanecem bem cuidados com novas adições como a do fliperama, de mais espaços da sede experimental do governo, dos longos túneis do mundo invertido e até mesmo da escola de Hawkins. O capricho com os efeitos visuais finalmente deu o ar de sua graça com um acabamento muito superior as criaturas apresentadas por esta temporada – o demogorgon original realmente era... razoável, para não usar adjetivo pior.
É difícil comentar sobre a direção do seriado. Obviamente, ela passa longe da incompetência, já que o maior mérito da temporada é justo a proeza técnica, mas pode-se dizer que ela é bastante comportada. Obcecada pelo correto e em construir imagens equilibradas. Os diálogos, na maioria do tempo, são simples, com decupagem novelesca com singular falta de variedade e inspiração entre os planos.
Porém, tudo isso é meticulosamente calculado com a inserção fluída de novas imagens, novos movimentos de câmera – ao melhor estilo Chapman crane popularizado por Steven Spielberg nos anos 1980 (movimentos espetacularmente estáveis que tornam a câmera uma presença invisível). Também é digno de nota, sempre, os esforços muito bem balanceados da cinematografia expressiva do seriado, apostando em misturas de cores e fontes de luz para deixar o visual o mais interessante possível dentro dos limites do possível. Apesar de não ser um espetáculo de saturação, as cores são devidamente contrastadas para passar a impressão de imagens vivas com eficiência – procure ver o seriado em um televisor capacitado com HDR para sentir a diferença.
A direção ganha destaque pelo grande uso da montagem, sempre preocupada em fazer bons match cuts entre cenas de diferentes núcleos, construções dos transes de Will, uso certeiro de flashbacks quando necessário como durante o diálogo de Will com Joyce sobre o Monstro das Sombras e, em momentos mais inspirados, uma boa inserção de um monólogo de tema equivalente em outra cena como quando Will se apavora diante da realidade de um confortável banho quente. Até mesmo há experimentações com jump cuts em determinados momentos.
No campo da encenação puramente visual, o mesmo acontece: bom comportamento e audácia durante picos narrativos. Isso envolve, claro, uma bela homenagem a James Cameron e uma das cenas mais memoráveis de Aliens a qual é replicada em um contexto inteligente durante o episódio 6. Ou, também, a Steven Spielberg, que ganha construções visuais muito similares às que fez em Contatos Imediatos de Terceiro Grau e Jurassic Park – essa, em especial, rende uma das melhores cenas da temporada. Ah, e claro, sem me esquecer do uso sempre correto da inversão de eixos horizontais para dar o efeito do “mundo invertido” nas situações mais propícias.
O raio que não cai duas vezes no mesmo lugar
É bastante claro que, para mim, o segundo ano de Stranger Things é marcado por irregularidades e um forte sentimento que os Duffer não pensaram com muita clareza sobre o que fazer com seus personagens durante uma aventura extensa, mas satisfatoriamente ritmada.
Tentando calcar o seriado em rumos mais originais, ainda há a perturbação dos clichês muito batidos que utilizam para criar soluções narrativas mais fáceis tanto para eles quanto para o espectador. Mas existem diversos bons momentos que tornam a aventura prazerosa de assistir e que, com certeza, deixará os fãs mais ávidos satisfeitos para acalmar os nervos até a próxima temporada que possui sim diversas possibilidades – apesar de uma delas ser completamente desinteressante e que torço muito para que o seriado não insista no ano que vem.
No fim, as melhores forças de Stranger Things continuam nos mesmos lugares: nos personagens principais, no elenco e no fator nostalgia (apesar de um pouco debilitado nessa edição). Os Duffer têm uma história boa nas mãos e ainda repleta de potencial – admiro muito o sucesso deles em misturar tantos conceitos narrativos em uma história só – mas é preciso que foquem no tema que dá nome ao seriado: o estranho.
Quanto menos investirem em mistérios novos que desafiem a vontade dos bons personagens e que, obrigatoriamente, os forcem a evoluir para superar os desafios sobrenaturais, Stranger Things se tornará um seriado cada vez menos estranho.
Stranger Things - 2ª Temporada
Criado por: Matt Duffer e Ross Duffer
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Andrew Stanton, Rebecca Thomas
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, Justin Doble, Jessie Nickson-Lopez, Paul Dichter, Jessica Mecklenburg, Alison Tatlock, Kate Trefry
Elenco: Finn Wolfhard, David Harbour, Winona Ryder, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, Natalia Dyer, Millie Bobby Brown, Charlie Heaton, Cara Buono, Joe Keery, Noah Schnapp, Sadie Sink, Dacre Montgomery, Sean Astin, Paul Reiser, Matthew Modine.
Emissora: Netflix
Episódios: 9
Gênero: Aventura, Suspense, Ficção Científica
Duração: 55 min aprox
https://www.youtube.com/watch?v=R1ZXOOLMJ8s
"Ed & Lorraine Warren: Lugar Sombrio" traz relato mais visceral sobre o Exorcismo de Connecticut
Todos nós amamos uma boa história de fantasma, não é? Felizmente, vivemos uma nova era de resgate do horror elevando o gênero com obras de muita qualidade, principalmente no cinema. Com a “descoberta” da Warner com o casal Warren em Invocação do Mal, rapidamente os casos da carreira dos demonologistas viraram uma mina de ouro aguardando pacientemente ser descoberta.
Ainda sem uma adaptação na franquia cinematográfica da Warner (é especulado que o terceiro filme adapte essa história), a Editora Darkside trouxe um dos casos mais terríveis que os Warren já encaram em suas carreiras: o famigerado Exorcismo de Connecticut.
Previamente, a história fora adaptada pelo longa Evocando Espíritos, mas com diversas convenções narrativas para abrandar levemente a história triste da família Snedeker em sua maldita residência em Southington, Connecticut. Evidentemente, muita coisa foi alterada incluindo a completa remoção do envolvimento dos Warren.
Porém, com Ed & Lorraine Warren: Lugar Sombrio, finalmente temos um dos relatos mais fiéis aos acontecimentos que importunaram a vida família Snedeker por mais de um ano. Apesar de bem escrito com leitura muito fluída, Ray Garton, o romancista responsável em adaptar a história para os moldes da narrativa clássica da literatura, parece ignorar a curiosidade do leitor sobre o quanto daquilo que é descrito é realmente verídico.
Garton não se preocupa nem em estabelecer que o conteúdo do livro se trata de uma história real e tampouco oferece apêndices para explorar melhor certas passagens atribuladas. Porém, verdade seja dita, o livro é ótimo e um dos mais aterrorizantes que já li na vida. O autor tem um talento e estilo muito eficientes para contar a história. Ao contrário de 1977: Enfield, temos um livro com abordagem de romance. Ou seja, ele é e não é biográfico ao mesmo tempo, pois Garton escolhe trazer a história sob uma escrita convencional de ficção.
Logo, os acontecimentos se desenrolam com naturalidade, há arcos fechados, diferentes pontos de vista com protagonistas distintos entre os capítulos, além uma riqueza de detalhes e sentimentos que tornam o horror extremamente palpável para o leitor. Logo, a estrutura oferece um nítido desenvolvimento da história para que sintamos o escalonamento das atividades e da opressão que a família experimentou.
Além disso, o fator que mais elogio da escrita de Garton é que ela não é nada repetitiva – algo que infelizmente acontece com frequência no outro livro 1977: Enfield. Cada capítulo traz acontecimentos distintos e novas formas de assombrações. Apesar de detalhar bem as atividades, o autor decide resumir grandes passagens de tempo que não contaram com atividades distintas ou acontecimentos que já não são do conhecimento do leitor.
Enter the Devil
Somos apresentados à família Snedeker em um de seus piores momentos: a descoberta do linfoma de Hodgkin, um câncer de garganta, no filho mais velho do casal, Stephen, um pré-adolescente de 13 anos – é curioso notar que o nome de todos os menores de idade (na época) foram alterados no relato do livro (no total, são 6 alterações). Obrigados a viajar 270km diariamente para tratar a doença do menino, a família Snedeker decide se mudar para a cidade na qual estava o hospital do tratamento. Porém, na pressa e desespero, Carmen, matriarca da família, decide alugar o apartamento superior de uma casa colonial restaurada.
Ao visitar o lugar, Carmen se maravilhou com o tamanho e disposição dos quartos. Era um lugar perfeito e na faixa de preço que estava procurando. Ao ligar para o senhorio, porém, uma reviravolta acontece. O homem oferece apenas o apartamento inferior da casa que ela não tinha visitado na época. Desconfiada, mas também desesperada pela situação, acaba aceitando a oferta, afinal, o quão pior poderia ser?
E realmente era pior. Carmen e Al, seu marido, no dia da mudança, decidem dar uma inspecionada mais apurada no lugar visitando o gigantesco porão da casa. Ali, descobrem um fato desconcertante. No porão há diversos cômodos perturbadores, paredes manchadas de sangue, uma rampa de propósito nada agradável, além de uma maca presa a correntes com mecanismo de elevador... Sim, a casa que eles acabaram de alugar era uma antiga funerária. Bom, somente um detalhe meio mórbido, não é? Foi o que os Snedeker também pensaram. Até a vida deles se tornar um inferno.
Como esse é o melhor relato sobre o caso até então, fica difícil definir onde a imaginação de Ray Garton começa a interferir na veracidade dos fatos. Porém, a história dos Snedeker não poderia ser mais cinematográfica: uma mudança motivada por uma tragédia, uma família com diversas crianças e, ainda por cima, um pai ausente na maior parte da semana por conta do trabalho ainda ser em Nova Iorque. Logo, temos o cenário vulnerável perfeito.
No livro, os protagonistas mais importantes são Carmen e Stephen que, pelo menos até 2/3 da obra, representam lados contrastantes. Stephen é o menino mais sensitivo às assombrações desde o início da mudança, se sentindo desconfortável na casa, a taxando de maligna. Já Carmen e Al acham tudo aquilo uma instabilidade psicológica do filho por causa do tratamento do câncer.
Logo, rapidamente temos perfis irritantes e um ciclo de acontecimentos que enervam o leitor. Mesmo que os fatos não sejam repetitivos, o conflito é. Mesmo com diversas experimentações sobrenaturais que Stephen relata, Carmen e Al ignoram, além tratarem o garoto como um completo imbecil. Mesmo que a mãe também vivencie experiências desconcertantes como o chão sangrento da cozinha, a mulher não dá o braço a torcer e permanece desacreditando do menino.
Obviamente que isso gera uma ruptura profunda na relação familiar entre eles na qual Stephen sofre uma transformação radical e perfeitamente compreensível. Nos tornamos íntimos do menino conforme as assombrações se tornam mais invasivas, além do temperamento abusivo dos pais do garoto que passam a se tornar vilões da história. Digamos que o clichê da descrença dos adultos é levado ao extremo aqui, pois os dois presenciam elementos que já deveriam trazer atitudes para resolver o problema.
Porém, mesmo assim, os trechos sob o ponto de vista dos outros personagens também conseguem prender a leitura – principalmente os de Al. Obviamente, não cabe aqui mencionar tudo o que acontece, pois estragaria a maior graça do livro, mas há alguns problemas severos no meio do divertimento do texto.
Primeiro, Stephen acaba sumindo na metade do livro e nunca mais é mencionado apropriadamente de novo. Não há conclusão para ele nem mesmo em um epílogo – a verdade é que, 24 anos depois, o câncer retorna e ele morre. Com sua ausência, as assombrações se tornam ainda mais presentes e terríveis com diversas aparições e atos profanos que realmente assustam. O acontecimento mais famoso dessa história são os estupros e abusos sexuais que diversos membros da família sofreram na mão dos fantasmas e demônios. Então o interesse do leitor fica tão desperto que não sentimos um decréscimo na qualidade da narrativa.
Com isso, já estamos com apenas pouco mais de setenta páginas restantes do livro. E é somente aí que os Warren finalmente surgem na narrativa com seus pesquisadores e começam os trabalhos para enfim exorcizar a casa. Novamente, o relato é fascinante e muito poderoso, porém, assim que o clímax termina, o livro acaba.
Não há um epílogo, uma seção de entrevistas, uma contextualização, um apêndice com as informações sobre o que aconteceu com a família e a casa depois da nova mudança. Nada. O que certamente é decepcionante para o leitor depois de investir algumas horas na leitura. Também não existem registros fotográficos de nenhuma forma espalhados nas páginas, o que é uma verdadeira pena. Também é curioso notar que Garton falha miseravelmente em conseguir explicar a geografia da casa - algo compreensível já que ele só esteve uma vez no lugar. Isso acaba, porém, deixando a experiência ainda mais assustadora, pois não há como prever ou antecipar um refúgio naquela casa que se torna um verdadeiro labirinto.
Um Lugar Sombrio
Porém, mesmo com problemas tão aparentes e um final que deixe a desejar, a leitura de Ed & Lorraine Warren: Lugar Sombrio é uma das melhores para leitores ávidos por histórias de assombração e caos fantasmagórico. É um dos maiores casos dos Warren e Ray Garton torna toda a leitura extremamente fluida e rica para todos nós. É possível devorar o livro em apenas uma tarde de tão eficiente que é sua estrutura.
O curioso é que, na vida real, Ray Garton se tornou um grande inimigo da família Snedeker (também o modo que retrata Carmen e Al é realmente cruel) e até mesmo de Lorraine Warren. Você pode conferir o motivo no documentário abaixo que traz mais informações que Garton falhou em trazer no livro. Nessa grande guerra de versões e extrema confusão em trazer verdadeira luz aos acontecimentos, cabe apenas a crença do leitor decidir o que realmente é fantasia e realidade.
Mas uma coisa é certa: essa história te provocará calafrios.
https://www.youtube.com/watch?v=NEcqQPC0oN0
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Crítica | Big Mouth - 1ª Temporada: A Culminação Criativa dos Hormônios
Alguns itens narrativos são comuns à vida de todos nós. Enquanto outras obras preferem ver o lado luminoso da vida, com momentos mágicos da infância, sobre os primeiros romances, as aventuras do casamento, o amor paternal e maternal, entre tantos outros temas tão pertinentes a vida humana, Big Mouth traz o retrato mais cru e irreverente sobre a pré-adolescência e toda a conturbação psicológica trazida por essa fase.
Criada por profissionais já envolvidos com animações adultas de comédia, a produção de Big Mouth se comporta como uma culminação da força criativa latente das mentes de Andrew Goldberg, Mark Levin e Jennifer Flackett. Como showrunners pela primeira vez, não há limites para o que pretendem trazer em tela. A liberdade criativa da Netflix realmente parece ter sido plena.
Na história, acompanhamos a vida de dois meninos de 13 anos com tremendo potencial para serem os losers da escola (mesmo não sendo). Enquanto Andrew já atingiu a puberdade, Nick sofre com a expectativa da chegada das mudanças hormonais. Apesar de seguir uma narrativa fluída e bastante amarrada, o formato narrativo se vale do foco clássico em aventuras diversificadas para que os roteiristas trabalhem diferentes temas – assim como ocorre com Rick e Morty e BoJack Horseman.
Felizmente, o seriado não recorre a estereótipos bem consolidados para criar a psique e o modo de agir dos personagens. O que realmente faz um grande sentido, já que os protagonistas estão passando pela fase que geralmente define as características mais permanentes das pessoas no futuro. Apesar de existirem adultos, o grande foco é mesmo nas crianças.
Humor Para os Fortes
Recentemente, Big Mouth já conseguiu angaria sua primeira polêmica com um pai desavisado colocando o desenho para os filhos assistirem. Na verdade, não é nem um pouco improvável que até mesmo um adulto fique transtornado pelas coisas apresentadas no desenho.
A proposta do humor da série é ser irreverente e “politicamente incorreta”. Os moralistas com certeza ficarão afetados pela comédia crua que consegue ser ainda mais forte que a de desenhos completamente sem freios como Rick e Morty.
Ao contrário dos dois cínicos desenhos já acima citados, não há um norte filosófico aparente em Big Mouth que não tange o existencialismo ou positivismo. Algo totalmente pertinente que evita o seriado de se tornar pedante, afinal até mesmo os roteiristas reconhecem que a maioria dos pré-adolescentes não tem crises existenciais como futuramente possa ocorrer. Na verdade, interessa muito mais aqui a linha sociológica de micro-cosmos, psicológica e até mesmo biológica.
Raramente havia visto um desenho tão inteligente em formar piadas com biologia humana sem descambar de imediato para a escatologia. De fato, há sim todo o humor escatológico e escroto representando fisicamente pelo Monstro da Puberdade, uma personificação egocêntrica e escrachada dos hormônios que afetam Andrew.
O personagem serve como um guia e guru para Andrew, norteando algumas de suas piores escolhas, pois, obviamente, não são racionais. O interessante é que, apesar de ser uma criatura mitológica e extremamente velha, o Monstro dos Hormônios geralmente acompanha a idade mental dos personagens, somente reverberando os maiores e depravados desejos que ele tem, mas que são podados pelo superego do psicológico. Aliás, se fossemos comparar em termos da psicologia, o Monstro seria a personificação mais forte do Id, a nossa força de desejos sem freios morais ou éticos.
Logo, o Monstro certamente é o personagem que mais traz o humor grotesco e nojento para a história. Algo que é até mesmo confrontado pelos protagonistas que evitam escutar alguns de seus conselhos.
Nessa primeira temporada, acompanhamos essas aventuras que nada mais trazem tópicos relevantes do amadurecimento de cada um. Ao longo de dez episódios, vemos narrativas que elaboram o primeiro beijo, tamanho peniano, mudanças de altura, mudanças repentinas de comportamento, a menarca, poluções noturnas, urgência de masturbação, festas de colegas de ensino médio, relacionamento com os pais, problemas domésticos e, finalmente, a descoberta da pornografia e o possível vício.
Cada história trabalha bem esses temas, enquanto os roteiristas gostam de encaixar referências próprias do seriado em episódios posteriores. É um vício que é mal trabalhado na maioria das vezes, com exceção de uma que brinca com a linguagem visual de games arcade. Nas outras, há alguns vícios estúpidos em interromper a narrativa para inserir quebras de quarta parede nada pertinentes que mais funcionam também como uma autopromoção da série como se os showrunners tivessem medo de perder a audiência na metade da temporada.
Outro elemento muito chato e intrusivo é uma jogada imbecil de ficar mencionando a Netflix nessas quebras de quarta parede. Isso acaba nos removendo totalmente da imersão da série, além de quebrar o fluxo narrativo que é bastante fluído quando não ocorrem essas palhaçadas.
Estudo de uma Fase
Trabalhar os temas com afinco e boas piadas é o mínimo esperado para um seriado cômico, mas também é igualmente importante estruturar bem seus personagens para que não se tornem repetitivos como acontece em BoJack Horseman.
De grosso modo, Big Mouth já exibe alguns indícios de personagens que necessitam de melhor tratamento. Enquanto os pais de Nick, os dois protagonistas, Jessi e Missy e os dois Monstros da Puberdade (também tem a do sexo feminino) funcionam muitíssimo bem, outros passam a esgotar rapidamente como Jay, o fantasma de Duke Ellington e treinador Steve – esse em particular é uma boa representação do fracasso de alguém que nunca conseguiu sair da puberdade funcionando como uma crítica espetacular para a atual geração que está entre os 20 e 30 anos.
Os personagens têm bom potencial, como Jay com sua relação familiar problemática e frustrada, além do Fantasma ajudar a fazer piadas funcionais da América racista dos anos 1950. Porém, rapidamente os roteiristas não sabem mais o que fazer com eles, repetindo piadas e situações excessivas vezes. Por exemplo, todos sofrem de piadas que não funcionam, mas que insistem em surgir como a do analfabetismo de Steve, dos comerciais do pai de Jay e também sobre a vida cultural de Los Angeles em 1950 e 1960. Nada disso realmente presta ou agrega na narrativa.
Apesar de Nick ser um bom protagonista, os roteiristas têm menos interesse em trabalhar com ele por conta do atraso da puberdade. Portanto, Andrew recebe melhor desenvolvimento ao longo da temporada passando por descobrir sua sexualidade, entre outras noias pertinentes à idade. O personagem simplesmente funciona e conduz bem todos os episódios, além da escrita não ignorar os resquícios de inocência da infância dos garotos sempre as contrastando com um choque de realidade eficiente.
De resto, a narrativa não é revolucionária ou particularmente original. O uso com os personagens é bastante ordinário formando e desfazendo casais. Há, porém, jornadas geniais como um episódio que mimetiza gags de Seinfeld.
Aliás, da parte técnica, é interessante mencionar o estilo bastante único do design dos personagens extremamente cabeçudos e com lábios inchados. De certo modo, a estética não é desagradável de forma alguma e transparece boa dose de humanidade nos protagonistas e seus amigos. Na direção, não há lampejos que fujam do ordinário da animação 2D desses seriados. A linguagem é a mesma de sempre, correta e eficiente. Mas vale destacar os esforços de criar diversos números musicais paródicos com liberdades criativas visuais interessantes.
De toda a forma, Big Mouth funciona e é bastante promissor. No fim, apenas comprova que a verdadeira força dessas animações vem do carisma de seus personagens e na agilidade de diálogos inteligentes misturados com diversas caraterísticas de humor grosseiro.
Big Mouth (Idem, EUA – 2017)
Showrunners: Andrew Goldberg, Mark Levin e Jennifer Flackett
Direção: Joel Moser, Bryan Francis, Mike L. Mayfield
Roteiro: Emily Altman, Kelly Galuska, Mark Levin, Jennifer Flackett, Victor Quinaz
Elenco: Nick Kroll, John Mulaney, Maya Rudolph, Jenny Slate, Jessi Klein, Jordan Peele, Paula Pell, Kat Dennings
Gênero: Animação adulta
Duração: 25 min/episódio.
'1977: Enfield' é o melhor relato possível sobre o Poltergeist de Enfield
Algo que certamente faltava no catálogo sempre expansivo da editora Darkside, especializada em terror, ficção e fantasia, eram os relatos sobrenaturais bem escritos com riqueza de detalhes.
O indicativo de mudanças já era inferido com o lançamento de Amityville e Ed e Lorraine Warren: Demonologistas. Agora com a chegada do ótimo 1977: Enfield de Guy Lyon Playfair, é possível traçar com absoluta certeza que os relatos chegaram para ficar. E não é por menos.
Embalados pela franquia de sucesso da Warner, Invocação do Mal, e do resgate das figuras de Ed e Lorraine Warren investigando o sobrenatural, a aposta segura em explorar esses casos rendeu preciosidades na coleção de qualquer fanático por histórias sobrenaturais.
O que distingue a obra de Playfair das demais foi seu envolvimento direto durante quase todo o período que o poltergeist de Enfield assombrou a família Hodgson por praticamente um ano, todo santo dia. Ao contrário da maioria dos narradores de livros desse tipo, Playfair não demora nada para colocar as cartas na mesa.
O prefácio do livro já é extremamente honesto revelando para o leitor o que ele encontrará na totalidade do relato. Ele avisa que o caso nunca teve solução e que o fenômeno sumiu tão misteriosamente como surgiu na casinha inglesa em 1977.
Também é curioso notar como certa impaciência e cansaço transpõe a escrita do prefácio que foi feito para edições posteriores à da publicação original. Nitidamente é possível sentir como Playfair já está cansado de se sujeitar a todo tipo de questionamento pedante sobre o caso mesmo que haja mais de 30 testemunhas vivas sobre o acontecimento.
E assim como ele, já aviso que o texto aqui não se propõe a desmistificar Enfield ou algo do tipo. Isso também seria uma tarefa inglória, pois Playfair não me parece ser um charlatão em nenhum sentido, mas um autor sério de muito talento. Digo sobre o talento não por conta da fluidez da narrativa poderosa, mas como toda a construção do relato aparenta estar livre de furos – algo que raramente acontece na ficção.
O autor não se contradiz em nenhum momento. Na verdade, ele mesmo se comporta como advogado do diabo colocando o poltergeist em dúvida em diversos capítulos. Assim como muitos outros jornalistas que escreveram sobre o caso, Playfair não perde tempo para logo desvendar se toda a assombração era uma brincadeira das crianças Janet e Margaret. Ele separa com extrema lucidez o que acreditava ser a assombração e o que eram traquinagens.
Também é difícil não pesar a favor de seu relato pela riqueza dos detalhes do seu metódico modo de trabalho. O autor, junto de Maurice Grosse e da sra. Hodgson, coletou em registros diversos basicamente a maioria das ocorrências de fenômenos sobrenaturais na casa. São inúmeros eventos infernais trazidos com clareza para o leitor.
O jornalista até mesmo avisa que a obra pode ficar enfadonha por conta de tanta descrição e repetição de eventos. E, infelizmente, a leitura perde gás considerável nas últimas 30 páginas da obra. Mesmo que a organização dos fatos seja ótima e construa uma narrativa repleta de reviravoltas e novos acontecimentos intrigantes, a “solução” do caso é uma jornada bastante arrastada e sonolenta.
Porém, até chegarmos no declínio da obra, é impossível desgrudar os olhos da história que possui nuances maravilhosas de verdadeiro terror até lampejos humorísticos sobre os espíritos. Também é muitíssimo curioso notar como Playfair tem absoluta propriedade do que fala sobre fantasmas. Não são raras as ocasiões que ele discorre sobre outros casos que encontrou no Brasil em conjunto com outros médiuns. O nome de Chico Xavier é lido diversas vezes conferindo um quê mais interessante para o leitor brasileiro.
A edição da Darkside mantém o pedigree da editora: capa dura, letras serifadas, papel de gramagem superior acompanhados de letras miúdas. Mesmo assim com a fonte permanecendo pequena, a leitura é fácil e agradável. O projeto também incluir algumas das famosas fotos de Graham Morris, o primeiro fotógrafo a registrar em sequência uma atividade sobrenatural. Porém, infelizmente, são poucas imagens e a qualidade da impressão deixa bastante a desejar. O posicionamento da galeria também não é orgânico, mas esse padrão é seguido há tempos por diversas editoras.
Curiosamente, Playfair não chega a mencionar uma única vez a participação dos Warren no caso que fora mesmo bastante pífia – se permaneceram no local por mais de cinco dias, foi muito. Isso pode decepcionar os fãs dos demonologistas, mas deixa todo o caso de Enfield mais orgânico e real pela presença dos interlocutores desconhecidos e diversos outros personagens interessantes que surgem nas páginas.
Essa análise realmente não se propôs a ser um resumo da obra. É bastante óbvio que você vai encontrar o que o livro promete: relatos diversos sobre levitação de objetos, leves possessões, aparições parciais e totais, premonições, etc. Enfield é o pacote completo e, justamente por isso, ficar detalhando seu conteúdo além da conta não é justo com a obra que merece sim sua atenção. Assim como toda boa história de fantasma, a obra não vai te assustar no momento da leitura. Mas basta fechar os olhos para abraçar o sono durante a noite que os relatos de Playfair ganham vívidas e terríveis imagens na sua imaginação.
Esse é o terror que realmente vale.
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1977: Enfield (This House is Haunted: The Amazing Inside Story of the Enfield Poltergeist - 1980)
Autor: Guy Lyon Playfair
Editora: Darkside
Páginas: 270
Crítica | Les Misérables no Teatro Renault
Os Miseráveis é, incontestavelmente, uma das obras literárias mais impactantes da História da Literatura. Ao lado de épicos como Guerra e Paz, a obra-prima de Victor Hugo atravessa décadas para contar a história do miserável Jean Valjean e da vida sofrida de todas as pessoas que cercam o trágico herói penitente. Um best-seller já no lançamento em 1862, a obra ganhou inúmeras adaptações para televisão, rádio e ao cinema. Era questão de tempo até chegar uma versão musical que abalaria o mundo.
Apenas 118 anos foram necessários até Robert Houssein, Claude-Michel Schonberg e Alain Boublin fazerem História em 1980 com o primeiro musical inspirado na obra. O sucesso explodiu tão rapidamente que, em pouco tempo, chamou a atenção do muito famoso produtor Cameron Mackintosh para uma montagem inglesa que deu origem à versão da Broadway em 1987.
Depois de 16 anos, o musical retorna ao Brasil em sua segunda edição claramente inspirada pela revisão de 2010 apresentada no Royal Albert Hall. Esse aguardado retorno carrega um importante significado visto que esse foi o primeiro musical a inaugurar o chamado Teatro Abril – hoje é Teatro Renault.
Mas será que quase duas décadas e uma boa revisão deram mais fôlego para este retorno muito querido após o sucesso do filme de 2012? Infelizmente, mais ou menos.
Foto: Marcos MesquitaPetit Problèmes
Algo que basicamente nem a versão musical de 2012 consegue realizar com alguma proeza, se repete aqui com o programa do espetáculo – o livreto disponibilizado ao público para conferir informações pertinentes sobre a produção. O erro primário é a falta de qualquer informação sobre o contexto histórico da obra em questão.
Com pouco esforço, o espectador pode cometer o erro crasso de acreditar estar vendo uma narrativa pré-Revolução Francesa – a narrativa em questão não deixará essa informação clara em momento algum. Acredito que o público não tenha a menor obrigação de procurar o contexto histórico. Justamente por isso muito me surpreende não termos a informação à disposição que consegue dar uma base muitíssimo valiosa para entender o clima miserável que a França passou durante boa parte do século XIX.
Aproveito aqui então para oferecer esse muitíssimo breve panorama histórico. A narrativa se passa pós-Revolução Francesa de 1789. A Revolução consegue abolir a monarquia, mas dá origem ao Grande Terror de Robespierre até sua execução em 1794. Muito pouco se desenvolve nesse período de marasmático de transição entre a Revolução e o Império de Napoleão Bonaparte.
Em 1814 até 1815 o Império é desmantelado e Luís XVIII retorna de seu exílio de 23 anos instaurando uma nova monarquia que resulta em total decadência urbana e social, praticamente enterrando os ideais iluministas gerando diversas revoltas de barricadas conhecidas como a Revolução de Julho de 1830 derrubando a monarquia de Carlos X substituída pela Monarquia de Julho do Rei Luís Filipe I de França.
Como se tratava de um governo ainda muito recente, os movimentos de rebelião de 1832 ganharam pouco apoio público de uma população já muito cansada por conta de um período tão turbulento. É justamente no motim de 1832 e nas barricadas da Rua Saint-Denis que ocorre o clímax da narrativa. Ter essa informação já ajudaria consideravelmente para entender o completo clima de decadência, da opressão de figuras com pequenos poderes como a de Javert e do capataz da alfaiataria, da significante fome e crise econômica e da importância do florescimento do amor entre Cosette e Marius em contraste aos cenários sangrentos de uma revolução completamente perdida e flácida cujo custo foi completamente em vão. Importante lembrar que a rebelião foi motivada pela morte do General Lamarque (figura importantíssima deste período, pois era o único que fazia frente para que esta monarquia não retornasse aos moldes do antigo regime) após ter contraído cólera (mesma doença que mata Fantine).
A própria montagem da peça falha em nos situarmos entre os diversos anos que a peça percorre indo de 1815 até 1832 – a boa maquiagem de envelhecimento para Daniel Diges que interpreta Jean Valjean nos ajuda a enxergar as mudanças súbitas dos anos, além da mudança óbvia das atrizes de Cosette e Eponine.
Foto: Marcos MesquitaNarrativa Miserável
Esse contexto é mais que vital para compreender a narrativa da peça, afinal não estamos ali apenas para apreciar o majestoso trabalho musical e da tradução das letras das canções.
Apesar de reconhecer o quão feliz é o livreto por condensar a história deste enorme épico para um entretenimento com pouco mais de duas horas e meia, essa segunda edição da Os Miseráveis no Brasil já é muito prejudicada no primeiro momento que Daniel Diges começa a cantar.
Diges é um excelente ator, não há dúvidas da disposição dele para atingir as notas exigidas, além da profunda e energética performance traduzida pela expressão corporal mais do que adequada ao personagem. Entretanto, Diges é um ator espanhol e apesar de todo o esforço de aprender a cantar em português, simplesmente o resultado não é aceitável. A dicção e pronúncia das palavras tornam suas falas praticamente incompreensíveis, infelizmente.
Logo, não somente o prólogo da peça é completamente prejudicado, mas todas as cenas que Diges aparece. Encarregado em encarnar o protagonista Jean Valjean, não é preciso dizer que a narrativa se torna uma bagunça para o espectador mais preocupado com a história do musical.
Então, quando se perde mais do que a metade da narrativa, o que resta? Por incrível que pareça, muita coisa na verdade. Apesar de já ter me surpreendido negativamente, a peça possui uma montagem sensacional que consegue aliar as projeções que substituem as pinturas de fundo com os cenários tão bem construídos – mesmo que seja uma montagem mais tímida quando comparada a magnificência de outros musicais que já pintaram no Teatro como A Bela e a Fera, O Fantasma da Ópera e A Família Addams.
Nando Pradho é uma força da natureza em Les Misérables. Foto: Marcos MesquitaForça Coadjuvante
Felizmente, não demora nada para vermos uma performance realmente espetacular: Nando Pradho como Javert. Com todo o respeito aos outros atores de diversas montagens que a peça teve ao redor do mundo, mas me parece que Pradho está fazendo um dos melhores Javert da história deste musical. O ator dá a perfeita impressão de ter compreendido muitíssimo bem a essência do personagem e consegue transformar suas ações no palco conforme seu desenvolvimento é delineado.
Javert é apresentado sempre com rimas fechadas que acompanham o riff rígido e matematicamente simétrico trazidos com afinco pela orquestra. Entretanto, após tantos fracassos em capturar Jean Valjean, o único erro de sua carreira, Pradho passa a formar expressões mais cansadas e lentas de um Javert indignado e claramente derrotado que somente ganha luz e vida justo na cena de seu suicídio – aproveito aqui para elogiar o quão sensacional é a realização do truque do salto ao Sena fabricado com o esforço conjunto de técnicos de som, iluminação e projeção além da remoção de partes do cenário.
Ao entender que possui um dos personagens mais bem escritos da literatura ocidental, Pradho conseguiu, possivelmente, a melhor atuação de sua carreira até agora. Somente sua performance já justifica o custo do ingresso. Para ele só me restam os parabéns. Absolutamente perfeito.
O elenco coleciona talentos como Kacau Gomes que domina com facilidade a música mais difícil de toda a peça I Lived a Dream (Eu Tive um Sonho), além de apresentar um retrato muito valioso do sofrimento da injustiçada Fantine. Toda a encenação para a canção é pensada para valorizar o trabalho da atriz que consegue preencher o teatro mesmo estando completamente sozinha no palco apenas com focos de iluminação simples (e eficientes).
Antes de Eu Tive um Sonho, também há a segunda encenação mais rica de toda a peça. A performance do ensemble para Lindas Moças é excelente (apesar dos tons muito agudos em excesso). Destaco o trabalho de atrizes que criam ou são dirigidas para criar pequenas narrativas enquanto a desgraça de Fantine é encenada pelos atores principais da cena. A cena se passa em uma rua que concentra os bordeis de Paris e absolutamente todo o cenário é aproveitado para dar a ilusão da força sobrepujante da imoralidade que esmagará Fantine até sua morte.
Algumas atrizes aparecem simulando atos sexuais nas janelas das construções, além de outras oferecerem detalhes geniais como passar as mãos nas genitálias para aliviar a dor da laceração vaginal, além de oferecerem passos curvados que revelam cólicas e outros ferimentos que vão além do psicológico. Esses pequenos detalhes enriquecem figuras que seriam insignificantes. Não se trata de uma encenação cheia de pesos mortos parados em suas marcações.
Entretanto, nada supera o divertimento causado pelo número Seu Anfitrião (Master of the House) no qual Ivan Parente e Andrezza Massei contagiam o público com o carisma proporcionado para os alívios cômicos dos Thénardier. Além da encenação ser muito boa e inteligente, o número é dominado pela cantoria afinada dos atores que se permitem sair um pouco do texto para alegrar o público. Entretanto, mesmo apreciando o núcleo, acho que há um leve excesso desses dois personagens – isso se trata desta versão de Mackintosh, em uma história tão densa com tanto drama. Os alívios não chegam a prejudicar, mas podem virar uma presença incômoda principalmente nas cenas finais pós-rebelião.
Foto: Marcos MesquitaSem Escapatória
Infelizmente, sabendo dos ditames da montagem e da adaptação, é muito difícil se distanciar do texto importado. Porém é nítido como a peça perde força em sua segunda metade. Mesmo possuindo canções belas, muitas reciclam os tons melódios das principais que já foram apresentadas na primeira parte.
Também há sempre o núcleo consideravelmente chato do triangulo amoroso entre Cosette, Éponine e Marius. Há boas performances sim por parte de Clara Verdier, Laura Lobo e Filipe Bragança, mas não se trata de algo realmente espetacular que te desperte durante as muitas canções que eles participam. Na exibição que fui, foi possível ver Laura um pouco mais inspirada para a cena de sua trágica morte nas barricadas embalando com tons corretos para Só pra Mim e A Chuva Cai, as músicas responsáveis em desenvolver e concluir a personagem.
Creio que seja algo sempre sem escapatória para a segunda metade da obra que fica restrita a núcleos com conflitos muito abstratos. Só sabemos que Marius e os revolucionários batalham por igualdade enquanto exibem uma quantidade exorbitante de bandeiras vermelhas e poucas da França. Logo, é um conflito muito menos pessoal e de fácil identificação como a de personagens mais eficientes como Jean, Javert e Fantine. A divisão entre o amor e a revolução também é um arco muito apressado na versão de Mackintosh que acaba por prejudicar o drama de Cosette e Marius.
Ainda há ótimas passagens para a conclusão dos personagens, mas de modo geral, a primeira parte concentra a maior força do musical. O ponto alto aqui fica por conta das batalhas na barricada com boas pirotecnias e um jogo muitíssimo inteligente de iluminação para demarcar a matança e sanguinolência.
At the end of the day
Ao final desse texto, o que podemos concluir desta segunda edição de Les Misérables no Teatro Renault? É evidente que se trata de um bom espetáculo musical, mas que não atinge todo o seu potencial. Os problemas já citados no texto podem lhe fazer considerar melhor se o espetáculo vale o ingresso.
Entretanto, não o deixaria de recomendar por dois motivos muito simples: Nando Pradho está absolutamente fenomenal, Os Miseráveis foi, é e sempre será uma das histórias marco da humanidade. E a adaptação musical não deixa nada a dever em relação ao conteúdo original. Também há a enorme satisfação de ouvir o trabalho primoroso da orquestra com as canções mais que marcantes deste grande clássico do Teatro.
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Review | Far Cry Primal
A Ubisoft pegou meio mundo de surpresa com o anúncio em outubro do ano passado do interessantíssimo novo Far Cry. Ambientado sempre na modernidade – ou no universo paralelo de Blood Dragon, a série estava caminhando para a mesmice após o ótimo Far Cry 4 que recebeu na medida exata as críticas e os elogios merecidos. Não conseguiu apagar da memória do jogador a experiência para lá de gratificante de Far Cry 3, um jogo que considero uma obra-prima do gênero, um game changer para a Ubisoft, a caçadora de franquias de sucesso.
Se me lembro bem, poucos meses depois do lançamento da aventura de Ajay Gale, a companhia lançou uma enquete na qual perguntava para os internautas qual ambientação ou tema eles gostariam de ver um jogo da série explorar – vampiros, dinossauros, zumbis? Esse já era o primeiro sinal que os ares de renovação estavam presentes nos escritórios da produtora. E ela surgiu com Primal. Ainda é o Far Cry que você adora, com mecânicas de jogo muito similares, porém, a ambientação do período Neolítico muda absolutamente tudo. É mágico vivenciar a experiência que esse game nos proporciona.
Isso acontece logo nos primeiros minutos do jogo quando acompanhamos uns colegas da nossa tribo Wenja durante uma caçada à mamutes. Estar ali no meio de criaturas gigantescas, escutar os personagens firmarem uma estratégia, partir para a caça e entrar no duelo mortal, admito que me provocou um estado de reflexão que raramente esses jogos conseguem me incutir. Como a luta de nossos ancestrais foi árdua para garantir a nossa existência até hoje. Mesmo com feras de trocentos quilos, múltiplas garras e dentes, os caçando, além de todas as doenças, o clima árduo e a fome, de algum modo, chegamos até aqui.
E é exatamente isso que a Ubisoft propõe aqui. Sai o shooter explosivo carregado de adrenalina, entra o “pseudo” simulador de sobrevivência na Idade da Pedra. Bom, querendo ou não, todos os jogos são inspirados na sobrevivência, mas nenhum chega aos pés do temor que Primal consegue nos passar no primeiro instante. Eventualmente, assim que nos acostumamos com o novo e muito bem-vindo cenário, tudo se torna menos assustador e mais lógico. Vivemos como um homem das cavernas, de fato.
Encarnamos o Wenja, Takkar, que após conhecer outra integrante de sua tribo, Sayla, ele decide unificar sua tribo nômade por natureza em um só local onde todos ficarão mais seguros dos animais e também das duas outras tribos inimigas: os Udam, canibais, e os Azila, mestres na manipulação do fogo. Logo já é nítido o caminho que campanha principal seguirá: reunir outros Wenja “especiais” que estão vagando por Oros e eliminar as outras tribos. Apesar de básico, é funcional, pois a cada novo mentor que trazemos para a tribo, novas habilidades e confecções são liberadas para Takkar. De longa, Far Cry Primal é o mais complexo no que envolve crafting e árvore de habilidades. Você terminará o jogo com somente algumas desenvolvidas até a plenitude.
O papel disso é vital na mecânica. Temos que dedicar bastante tempo procurando recursos como pedras, madeira, pele, comida, gordura e outros materiais raros para fabricar nossas armas: arcos e flechas, tacapes e lanças. Logo é bom investir mesmo na coleta de matérias-primas para confeccionar bolsas maiores para não ficar sem armamento durante os combates de Primal – o game mais violento da série graças ao caráter de combate corpo a corpo. O sistema de luta é algo aproximado à experiência vista em Dying Light com o mesmo peso e potência ao esmagar os inimigos com os tacapes sendo o de duas mãos muito mais eficiente em proporcionar essa ilusão selvagem da agressão. A lança também tem um peso fenomenal graças à ótima física do jogo. Todos os personagens reagem onde você dispara a lança. Seja na cabeça os lançando diretamente ao chão ou até mesmo nas pernas fazendo o oponente voar por alguns instantes. Cômico e trágico.
Conforme vamos recrutando novos Wenjas, em certo momento passamos a adquirir a habilidade de domar algumas das feras da fauna muito diversificada do jogo. Começando por lobos e felinos médios até chegar nas criaturas imponentes como ursos pardos, ursos das cavernas, os tigres dentes-de-sabre e os rateis que botam qualquer criatura para correr. Quando domamos essas criaturas, o jogo torna-se mais fácil, inevitavelmente, tanto na caça de diversos animais, no genocídio das outras tribos e também na locomoção já que é possível montar no urso pardo e no tigre dente-de-sabre. Porém, mesmo sendo essa novidade ser um dos pontos mais fortes do jogo, ela também causa frustração pelo mapa porco de controles que a Ubisoft programou. Explico, por diversas vezes é impossível montar no animal caso ele não esteja com a barra de vida completamente cheia já que o botão usado para subir nele também é o que ativa a alimentação do bicho. Logo temos que esperar a animação acontecer para então montarmos. Em horas extremas, prepare-se para perder a paciência.
Como disse, a mecânica permanece a mesma. Ainda é o Far Cry que amamos, mas com algumas alterações. Saem as torres de vigilância para dar lugar às piras. O esquema é basicamente o mesmo, mas aqui elas se comportam como outposts, acampamentos, menores e com menos oponentes. Já os acampamentos continuam do mesmo modo, mas com localizações mais interessantes como cavernas e vales repletos gêiseres. O binóculo também deu lugar para a Coruja que tem a mesma função de mapear os inimigos no território, porém ela também pode matar alguns deles, além de jogar as três bombas que temos disponíveis: ensandecedora, de fogo e de abelhas.
A ambientação visual e sonora do jogo é o que ele tem de melhor, além da jogabilidade fluida. Os gráficos estão exemplares ainda baseados na engine do terceiro jogo. O fotorrealismo proporcionado é de tirar o fôlego pela riqueza de detalhes em Oros. Seja na exuberância de sua selva, na desolação das montanhas congeladas, na escuridão plena das cavernas ou nos vales paradisíacos onde vivem os Izila. E tudo fica ainda mais belo pela iluminação dinâmica que o jogo comporta com ciclos de dia e noite (apesar de não haver chuva). Muitas vezes parei por uns intantes simplesmente para admirar a beleza dos godrays, raios de luz, que vazavam das copas das árvores sempre agitadas pelo constante vento. Até mesmo em ambientes mais inóspitos como as montanhas, terras dos Udam, ainda há certa beleza, mesmo que seja desolado, além do design do terreno mostrar os hábitos da tribo canibal. Cheio de cadáveres humanos parcialmente comidos, muitos esqueletos de mamutes, além de ser um descampado provocado pelo desmatamento.
Aliás, essa característica refinada de design de mundo e personagem é um dos pontos mais fortes do jogo. Há uma quantidade satisfatória de oponentes, mas ainda há confrontos onde enfrentamos o mesmo modelo de personagem quatro vezes seguidas – algo típico da série. Mas o que tange os coadjuvantes e os antagonistas, as coisas passam a brilhar mais. Cada um é um personagem verdadeiramente único, apesar da maioria ser bem superficial ou não quebrar a barreira da bidimensionalidade. Temos aliados caolhos, com colares de orelhas Udam, sem braços, uma grisalha caçadora e o melhor de todos, o xamã Tensay, um personagem absolutamente cativante pelo mistério e histeria do mesmo. Ele me lembrou muito o macaco Rafiki de O Rei Leão, logo a empatia foi certeira.
Decepcionando, Primal apresenta antagonistas tão básicos quanto nossos coadjuvantes. Não há um motivo, além do estado natural de violência do período, para que os Udam e os Izila cacem os pacíficos Wenja. Ao menos o design de cada uma das tribos é verdadeiramente único. Os Udam se aproximam mais aos homens neandertais com pouco desenvolvimento tecnológico enquanto os Izila já desenvolvem uma civilização mais robusta com estudos de arquitetura, manipulação do fogo, amplo desenvolvimento tecnológico, cultivo de agricultura e flertes religiosos. Os Izila parecem ser inspirados na civilização Maia.
Já os líderes de cada tribo são completamente desinteressantes e possuem desfechos absolutamente clichês, porém o design de nível para os confrontos finais, os torna chefões de fase, algo que não acontecia antes. O pior é que a história do jogo dá brecha para muita criação de conflitos interessantes, reviravoltas, além de oportunidades de desenvolver melhor todo mundo, incluindo Takkar, mas ela se limita a ser a característica mais fraca do jogo inteiro, também impondo a repetitividade de missões.
A maioria delas ainda se limita em fetch quests originadas pelos coadjuvantes. Praticamente todas não fogem da velha fórmula vá, mate, pegue o item e volte. Somente algumas missões de caça fogem disso. Em paralelo, temos diversas missões secundárias de eliminação e caça de animais que destroçam os habitantes de Oros (algo muito similar aos contratos de bruxo em The Wircher 3). Mesmo com a quantidade abundante dessas missões, elas também não fogem da repetitividade. Eventos aleatórios também acontecem conforme você anda por Oros. Aliás, isso a Ubisoft conseguiu fazer de modo exemplar: Oros é uma terra cheia de vida. Encontramos diversas vezes outros integrantes da tribo Wenja vagando enquanto coletam frutas e caçam animais, além de entrarem em confrontos com as outras tribos. A vida animal é outra que funciona de modo independente. Os bichos caçam ou lutam entre si, mesmo que sejam da mesma espécie. É fantástico ver dois alces altos brigando durante um belíssimo entardecer.
Aliás, é importante frisar como o time de desenvolvimento aborda de modo diferenciado a vida selvagem durante as noites. Quando o sol se põe, o perigo aumenta em ao menos dez vezes, pois a noite é amiga de diversos predadores que irão te caçar com fome foraz. Algo similar ao período noturno assustador de Dying Light. Porém, o uso do fogo ajuda bastante na sobrevivência – é possível incendiar tacapes, lanças e flechas.
Outro mérito do time criativo é o uso da linguagem que os personagens usam para se comunicar. É um idioma completamente fictício, mas lógico na construção das frases sendo possível reconhecer o cuidado na criação desta língua e nos três dialetos – wenja, izila e udam, graças ao uso recorrente de algumas palavras dentro de algumas frases. Ou seja, é possível aprender um pouco do idioma a partir das legendas já que ele não é randômico como o idioma dos sims em The Sims, mas algo com uma estrutura cuidadosa. O uso da linguagem não fica centrado apenas no idioma. No mapa, as missões sempre são representadas por um ponto amarelo, além de estampar a figura do coadjuvante. Como não há o alfabeto, somente valem as imagens. É um detalhe pequeno, mas muito significativo dentro do contexto do jogo. Uma pena terem cuidado com esses detalhes que fazem sim a diferença, mas deixarem de lado a narrativa.
Far Cry Primal é um jogo que diverte e muito. Mesmo usando a antiga fórmula de seus antecessores, o uso brilhante dela dentro do contexto pré-histórico é louvável pouco incomodando. As mudanças e adaptações estão dentro do limite do possível e são muito bem-vindas. A exploração do mapa nunca fora tão divertida, mesmo com a topografia cheia de montanhas que às vezes dificultam a locomoção – em parte é resolvida com o uso do rapel (a exploração vertical está de volta). Montar em feras e mamutes, além do uso dos mesmos como ajudantes auxiliares para tomar acampamentos e piras só contribuem para nosso entretenimento. Os gráficos são belíssimos com uma paleta de cores muito apropriada para o imaginário popular dessa época, além do já muito elogiado mapa que foi inteiramente remodelado – a planta é a mesma de Far Cry 4. A vida, o dinamismo, o combate, a música, a dublagem, os efeitos sonoros, a iluminação dinâmica, as nuvens volumétricas contribuem para criar a atmosfera perfeita que esse jogo tem. Você de fato se sente dentro dessa era repleta de perigo e mistério, o seu charme verdadeiro.
Os únicos poréns ainda se concentram na fraquíssima história, mesmo que o design de produção das tribos agregue bastante a ela, falha em conseguir nos trazer um sentimento de realização e satisfação plena após o termino simplório do jogo. Também, para alguns, é bem possível que a fórmula Far Cry já possa apresentar sinais de cansaço, uma faca de dois gumes – ainda que o game encoraje a abordagem mais voltada ao stealth ante os tiroteios Rambo clássicos da franquia. Também há certo descuido na parte gráfica no que tange aos efeitos da água e da animação do fogo – já a física é ótima causando grandes incêndios em poucos segundos.
Esse pontapé inicial de spin off é algo que eu, particularmente, parabenizo a Ubisoft. Ter essa audácia em um tempo tão engessado de ideias e abrir o diálogo que possibilitou esse lançamento foi algo muito adulto e seguro dentro do empreendedorismo da empresa. Agora eu aguardo com muita ansiosidade por um Far Cry temático com dinossauros, exploração espacial, ou ambientado nos filmes de terror clássicos da Universal, de fábulas famosas, de investigação policial ou com aliens. As possibilidades são infinitas. O modelo do jogo permite isso. Só resta agora à Ubisoft continuar com a cara e coragem em disponibilizá-los para nós.
Pontos positivos: ambientação perfeita, boa duração de campanha (15 horas), fauna e flora diversificadas, montar em feras, sistema intuitivo de crafting e habilidades, dificuldade adequada, necessidade de progressão e exploração através da coleta de matérias-primas para conquistar o ambiente, iluminação dinâmica estonteante, uso inteligente da linguagem, uso da coruja, direção artística rigorosa em todos os departamentos, violência condizente com a ambientação, fórmula Far Cry, abertura para temas diversos.
Pontos negativos: história fraquíssima para um jogo da franquia a ponto de não aproveitar diversas chances para torná-la ainda mais especial, mapeamento dúbio do botão para montar na fera, mesmo diversificado, o jogo abre margem para a repetição de atividades, fator replay baixo.
Far Cry Primal
Desenvolvedora: Ubisoft
Lançamento: 01 de março de 2016
Gênero: FPS, Sobrevivência, Crafting, RPG
Disponível para: PC, PS4, Xbox One
Review | Ghost Recon: Wildlands
Os games Tom Clancy foram uma bela aposta da Ubisoft. Dessa linha, somente EndWar flopou e ainda assim era um bom jogo. Hoje, a marca Tom Clancy, apesar de forte, tornou-se coadjuvante das franquias lançadas com a grife. Dentre todas, Splinter Cell, Rainbow Six e Ghost Recon, a abordagem mais hardcore dentro dos jogos táticos de espionagem da Ubisoft.
Admito que adorava jogar Splinter Cell e Rainbow Six diversas vezes, porém Ghost Recon não conseguia chamar minha atenção e acabava desistindo de fechar o game após muitas tentativas frustradas de organizar meu esquadrão.
Isso, todavia, era por conta do meu estilo de jogatina quando jovem. Gostava de bancar o Rambo nos games de tiro e com Ghost Recon, nunca se tratava da quantidade de balas disparadas, mas sim da estratégia minuciosa para dominar o campo de batalha. Após 4 anos sem dar as caras, a franquia retorna em sua primeira empreitada de ação em mundo aberto com Wildlands. Entretanto, o estilo sandbox combina com o DNA Ghost Recon?
Os Bad Boys sem Jurisdição
A narrativa de Wildlands é extremamente raquítica, mas é, ao mesmo tempo, enorme. Sentindo os efeitos pesados do narcotráfico do cartel Santa Blanca nos Estados Unidos, o governo americano decide cortar o mal pela raiz.
Em uma operação fantasma, 4 soldados Ghost desembarcam clandestinamente em uma Bolívia transformada em narcoestado, completamente dominada pelo chefe do cartel Santa Blanca, El Sueño, após um espião americano ser brutalmente assassinado pelos sicários da facção. Com a ajuda de Bowman, uma integrante casca-grossa da CIA, para auxiliar com informações privilegiadas, os Ghosts tentam desmantelar completamente a massiva organização criminosa.
Não é preciso dizer muita coisa aqui, pois os principais personagens são completamente rasos. O protagonista, Nomad, e seus três colegas que o acompanham não possuem grandes momentos ou alguma relevância dramática para a narrativa, apesar de apresentarem diálogos bem-humorados ou adequados para algum acontecimento importante. Fora isso, não há grande profundidade o que é uma pena, pois daria para organizar uma narrativa a la Coração das Trevas de Joseph Conrad ou verdadeiramente inspirada com Sicário ou Breaking Bad.
Como complemento narrativo, existem curtas que explicam um backstory surpreendentemente rico para os muitos antagonistas: 17 chefes de distrito, 4 chefes das operações principais como Influência, Comércio e o chefe do cartel, El Sueño. Ver os vídeos é algo bastante recomendado para prestigiar o trabalho de pesquisa da Ubisoft em explicar como o cartel funciona, além da função sempre distinta de cada indivíduo.
Há histórias de torturadores, causos entre os chefes de distrito, explicação de métodos de operação, da filosofia absolutista e sobre o antagonista principal que narra diversas dessas pequenas histórias exibindo seu ponto de vista doentio e noção de posse que ele tem sobre todas as pessoas que vivem na Bolívia. Em termos religiosos, por ser mexicano, El Sueño acredita ser um enviado divino da Santa Morte para expurgar infiéis.
A verdadeira graça da história do jogo é mesmo sacar o quão bem estruturado é o império do traficante, além das pequeninas narrativas de cada um dos vilões do game. De resto, recebemos muito pouco, além da qualidade ok da dublagem.
Velhos Truques
Como prometido em seu marketing, Wildlands é o jogo de mundo aberto com o maior mapa para exploração disponível no mercado. Quando o radar indica que o objetivo está a 5km, acredite, ele realmente está a 5km. As distâncias entre as missões são enormes e dirigir neste game é um teste de paciência, principalmente por conta da área inicial extremamente montanhosa repleta de estradas com curvas fechadas.
O bom da mecânica dos veículos é que todos se comportam como verdadeiros tanques ao encarar o off-road – acredite, você vai lançar seu carro montanha acima ou abaixo para não ter que fazer tantas curvas e para cortar caminho. Entretanto, todos são bastante ingratos para condução. Não tem macete. O jeito é se acostumar com a sensibilidade e ir dominando aos poucos. O mesmo acontece com veículos aéreos como monomotores e helicópteros.
Entretanto, eles são um pouco mais amistosos para dirigir e extremamente necessários para cruzar as enormes distancias para cumprir os objetivos do jogo. É um certo problema termos que depender tanto de helicópteros, pois a abundancia deles no mapa revela que até mesmo a produtora reconhece que se deslocar com veículos terrestres entre o enorme espaço é algo inviável.
Por sorte, temos viagens rápidas para esconderijos que podem ser uma mão na roda para administrar melhor seu tempo em Wildlands além de ficar andando e andando e andando. Já as motos têm um aspecto interessante, mas que tira parte do realismo do jogo. Ao pilotarmos uma, o personagem gruda no assento e não cai de modo algum: mesmo subindo montanhas, atropelando carros, caindo de grandes alturas. Nada consegue parar as motocas de Wildlands. É impressionante.
Quem conhece jogos cujas histórias envolvem desmantelar um grande império, já devem ter sacado como funciona o game design de Ghost Recon: Wildlands. Assim como em Godfather 2 ou Mafia 3, é preciso desestabilizar o esquema criminoso em cada um dos distritos: 17 no total. Ao pisarmos em um território novo, Bowman ligará indicando lugares para conseguir informações das missões.
Ou seja, em todos os territórios, é preciso encontrar as informações – demarcadas com uma pastinha amarela no mapa, para então desbloquear as missões que permitem o progresso da história. É necessário fazer isso cinco vezes até que o subchefe saia do esconderijo para tentar estabilizar a situação. Nisso, temos a sexta missão que varia entre assassinar ou sequestrar o alvo – muitas vezes fazemos isso, afinal a CIA quer testemunhas para processar os criminosos.
O que certamente é algo bizarro dada a lógica das operações comandadas por Bowman. A proposta da mulher é bastante inconsistente em reunir tantos subchefes e chefes ao ameaçá-los com os mais diversificados tipos de tortura. Também é pouco crível que um cara tão esperto como El Sueño deixaria seu império nas mãos desses indíviduos sem ter a menor possibilidade de substituir alguns nomes. Sua natureza também é inconsistente, já que conforme desmantelamos o esquema, muitas vezes ele mesmo se livra dos subchefes que fracassam no ofício.
Logo, a estrutura das missões torna-se mais orgânica por conta dessas decisões ruins de roteiro, mas saudáveis ao gameplay. Elas reduzem a enorme receita de bolo que é conquistar cada província do game. Entretanto, nem mesmo essas pequeninas surpresas conseguem salvar Wildlands de sua pior característica: a repetitividade.
O game busca diversificar de diversas formas ao indicar as muitas abordagens diferentes que podemos fazer ao nos aproximarmos dos locais de missão. Entretanto, em sua rasa essência, o miolo das missões é sempre muito parecido: exploda tal coisa, encontre tal documento, mate tal alvo, intercepte tal alvo, sequestre fulano. É exatamente isso durante mais de cem missões.
Se ao menos o game design para a infiltração das bases fosse mais criativo, seria perdoável, porém, mesmo com alguma variedade, também somos reféns de outra receita de bolo. Esse é um game Ghost Recon, logo, a abordagem rambo é bastante desencorajada, apesar de funcionar em diversos momentos. Para seguirmos em stealth, temos o auxílio do drone o qual é extremamente necessário para mapear os inimigos espalhados nas bases.
Nisso, repetimos o processo quase todas as vezes. Felizmente, a Ubisoft dá a escolha do jogador omitir o minimapa e, acredite, isso eleva a dificuldade do game em níveis absurdos, mas também o deixa mais recompensador e realista relembrando a pegada dos Ghosts anteriores. Porém, Wildlands mais parece ser algo próprio: uma mistura de The Division e Ghost Recon com toques de Splinter Cell.
Uma nova tática
Ainda assim, Wildlands é Ghost Recon. É perfeitamente possível jogar toda a campanha no modo single player, porém é preciso dar muitas ordens para seu esquadrão já que a inteligência artificial de aliados é bastante estúpida. São raras as ocasiões que seus parceiros caem durante a batalha, mas certamente temos que ficar de olho para que não se joguem de peito aberto para o tiroteio. Quando o jogador cai, eles também te ressuscitam rapidamente.
Na abordagem stealth, o modo de tiro sincronizado – também disponível na ótima função drone, é uma excelente opção para varrer bases inteiras sem ninguém suspeitar da sua presença. Algo que por si já indica outro defeito de inteligência artificial dos inimigos já que nunca ficam alarmados ao ver os corpos de seus comparsas apodrecendo no chão.
Porém, assim como a maioria dos jogos recentes da Ubi, o gameplay em cooperativo on-line deixa a jogatina muito divertida, além de permitir planejar táticas consideravelmente mais elaboradas para uma infiltração ou assalto em uma base. Ter um mundão enorme como parque de diversões para quatro jogadores é uma jogada de mestre da Ubisoft que dá certo em Wildlands.
É bom avisar que a dificuldade do game também fica mais acentuada, oferecendo desafios apertados para os jogadores. Outro fato interessante é que se a jogatina for em dupla, nenhum bot assumirá os outros personagens, porém eles continuaram falando durante alguns diálogos criando um efeito bastante surreal.
Importante ressaltar que a Ubisoft também leva bastante a sério os termos de personalização do jogador. É possível escolher gênero, cor de pele, cicatrizes, cabelo, barba, vestes e até mesmo customizar as armas para ficar do jeito que o jogador gosta. Também há uma arvore de habilidades com upgrades nem tão incidentais para o gameplay, além dos destinados a melhorar bateria e alcance do drone. A grande maioria tem a ver com vigor, stamina, resistência a dano, entre outros elementos que farão diferença bem sutil na jogatina. O sistema de upgrade também é um tanto irritante, pois é exigido, além dos pontos de habilidade, recursos como comida, tecnologia, gasolina e medicamentos.
Tudo isso é um jeito de estender a vida útil do jogo para te sugerir as missões secundárias de resgate desses recursos. Seja assaltando comboios, colocando rastreadores em pacotes pequenos ou roubando helicópteros e aviões carregados de mercadorias.
Fluidez que vicia
Em termos de jogatina, Wildlands é sim um jogo bastante divertido, mesmo que ele te encha a paciência por sua identidade repetitiva. Basta pararmos de jogar por algum tempinho que já surge uma vontade genuína de se aventurar pela Bolívia novamente. Isso se dá por conta da pegada excelente no sistema de tiro, seja com qualquer arma.
A Ubisoft aplicou alguns efeitos de física bem interessantes como o fator do vento para tiros de sniper ou com coices diversificados de cada metralhadora. Não é nada muito complexo, mas garante peculiaridades e divertimento. Porém, deixa a desejar a fator da penetração da bala no cenário. Muitas vezes a bala não atravessava uma placa de madeira que servia de cobertura para o inimigo, além da textura turva dos vidros dificultar o tiroteio. É uma pena, pois isso certamente tornaria o gameplay de tiro praticamente perfeito e imersivo.
Impossível não comentar, também, sobre a Bolívia recriada com bastante liberdade criativa. Muito se engana quem pensa que Wildlands traz apenas um mundo gigantesco vazio e sem diversidade visual. O empenho da Ubisoft em tornar esse mapa em algo único é evidente. Entre os muitos distritos, há mudanças notáveis de terreno, clima e vegetação. Temos florestas tropicais, de coníferas, montanhas de terraços para plantação de coca, desertos de sal, pântanos, desertos montanhosos, mares de morros, regiões chuvosas, bairros paradisíacos, favelas, cemitérios, templos gigantescos, etc.
É algo absolutamente massivo e livre de telas de loading. O ciclo de dia e noite e mudanças climáticas interferem no esquema de iluminação e física do jogo: em muitas tempestades, a vegetação é agitada pela força do vento. Entretanto, mesmo com esse cuidado aos detalhes, não existem efeitos de partículas excepcionalmente bons no game. Em compensação, os modelos de colisão e texturas são os melhores desde Grand Theft Auto IV. É impressionante o quanto os carros conseguem ficar amassados aqui mesmo que não afetem de modo realista a dirigibilidade.
Em termos visuais, a Ubisoft caprichou bastante com as texturas do mundo. Wildlands é um jogo muito bonito mesmo, ainda que o antiserrilhamento deixe a desejar em alguns momentos. Já no áudio, há a preocupação até mesmo de discernir cada ambiente com ambiências diferentes. Em desertos, o barulho do vento sopra mais alto, em diferentes florestas, é possível escutar sons diferentes e assim por diante. Tirando bugs ocasionais hilários, o mundo inteiro de Wildlands é feito com capricho. Isso também se dá com os interiores dos edifícios, casas, depósitos e galpões. Mesmo que vejamos elementos similares aqui e ali, dificilmente estará disposto de modo igual. Levando em conta a magnitude desse mapa, só parabenizo quem teve a enorme paciência de levar o trabalho a sério.
Até mesmo a trilha musical colabora para essa ótima sensação de imersão que o game propicia. Surgindo com muita sutileza, consegue transformar a jogatina de reconhecimento do campo inimigo com o drone, além da abordagem stealth em algo bastante interessante, já que pega melodias inspiradas em novas trilhas de neowesterns como Sicário de Johan Johannson.
Quando um fantasma abraçou o mundo
Como devem ter percebido ao longo da análise, Ghost Recon: Wildlands está longe de ser um game terrível, mas também não chega perto de ser maravilhoso e cumprir seu potencial. Certamente é preciso muita coragem para mudar drasticamente o DNA de uma franquia tão consolidada no formato linear e com missões bem roteirizadas como Ghost Recon.
Por competência, a Ubi acertou muito ao tornar o mundo do jogo a melhor coisa que ele pode oferecer, além de toques especiais que lembram Just Cause 3 como o uso de paraquedas ao pularmos de aviões e helicópteros. O tiroteio funciona bem e consegue viciar pela jogatina, além da vontade de concluir o mapa tático. Porém, infelizmente, Wildlands sofre de algo que, para mim, é uma característica que enterra qualquer proposta: a repetitividade de gameplay, além da história rasa e fraca que te motiva bem pouco a concluir o game.
Logo, por isso, o game se torna nichado: somente quem curte jogatina coop multiplayer e mapas abertos repletos de ícones e coletáveis para explorar e finalizar. Há também o jogador que gosta da duração do jogo e posso garantir que é imensa tanto que a resenha demorou a sair justamente por este fato. De resto, fica o desejo que a Ubisoft continue nas suas empreitadas de renovar suas IPs ao apostar nesse febre open world, mas, quem sabe, seguindo o caminho inverso em algumas delas. A ideia de um jogo linear e roteirizado de Assassin’s Creed é algo que gostaria muito de ver.
Prós: tiroteio divertidíssimo, características preservadas da franquia, usabilidade do drone, possibilidade de jogar tanto em stealth quanto arcade, variedade de ambientes, armas, coop é uma adição primordial, boa trilha musical.
Contras: bugs ocasionais, história nada inspirada, enredo pouco magnético e facilmente esquecível, esquema de missões excessivamente repetitivos, personagens e dublagem razoáveis, difícil condução dos veículos.
Agradecemos pela cópia gentilmente cedida pela Ubisoft para a realização dessa análise
Ghost Recon: Wildlands (Ghost Recon: Wildlands, França – 2017)
Desenvolvedora: Ubisoft Paris
Distribuidora: Ubisolft
Gênero: tiro em terceira pessoa, tático, ação, mundo aberto
Plataformas: PS4, Xbox One, PC