Crítica | Vida
É um tanto engraçado e assustador se pararmos para pensar que apenas a franquia Alien aborda o terror da exploração espacial em naves ou planetas desconhecidos. O acerto de Ridley Scott foi tão grande que nenhum roteirista ou cineasta ousou tatear esse terreno dominado com maestria por Ripley e os xenomorfos. Para os fãs de terror espacial essa grande espera por mais filmes sobre o tema finalmente acabou com Vida que, ironicamente, vem sendo acusado de ser uma cópia descarada de Alien – O Oitavo Passageiro.
Em Vida, acompanhamos seis astronautas residentes da ISS – Estação Espacial Internacional. Eles se preparam para receber amostras do solo marciano que estão a bordo de uma sonda desgovernada após colisão com asteroides. Com algum esforço, as amostras são salvas e preparadas para estudo ali mesmo na Estação. O biólogo Hugh logo descobre seres microscópicos hibernando por bilhões de anos naquelas amostras decidindo tentar ressuscitá-las. Em pouco tempo, a bactéria marciana começa a responder os estímulos do biólogo, crescendo rápido em questão de poucos dias. Porém, conforme cresce, comportamentos violentos passam a surgir na criatura colocando não só a ISS e os astronautas em risco, mas todo o planeta Terra.
Enigma Marciano
Os também roteiristas de Deadpool, Rhet Reese e Paul Wernick, se arriscam pela primeira vez no ‘sci-fi’ com Vida e, por incrível que possa parecer, fizeram um trabalho bastante satisfatório. No começo, há nítido desenvolvimento de euforia pela incrível descoberta que, inclusive, passa a impactar o psicológico dos personagens. Como essa é uma narrativa de grupo, a coesão é extremamente necessária para desenvolvê-los e em Vida, os roteiristas levam isso muito a sério a ponto de prejudicar a construção de alguns deles.
De todos os seis, é possível apontar que ao menos um consegue ser desenvolvido de modo minimamente satisfatório: o biólogo paraplégico Hugh. Com síndrome de ser Deus, Hugh cria laços afetivos com a criatura, muitas vezes se negando ao fato de que seja um ser hostil. Nisso, até mesmo sua paraplegia e um jogo ambíguo de diálogos deixam sua moralidade em relação aos colegas e o alienígena batizado de ‘Calvin’.
Seguindo essa linha clichê, há algumas características que conferem certa personalidade ao restante da equipe. David, que detesta a vida mundana do homem na Terra, irá quebrar o recorde de mais dias vividos no espaço – o desfecho do personagem é extremamente irônico. Miranda é responsável pelos firewalls, as medidas de contenção e quarentena para proteger a equipe da criatura e risco de contaminação – meio óbvio dizer que ela falha em praticamente tudo da sua função. Ekaterina é a capitã da Estação (só). Sho deseja retornar ao planeta para conhecer sua filha recém-nascida e Rory é o alívio cômico descartável.
É um trabalho bastante rasteiro para a grande maioria da equipe, mas, por competência do elenco muito eficiente de boas atuações de Jake Gyllenhaal, Rebecca Ferguson, Hiroyuki Sanada e Ariyon Bakare, é fácil incutir empatia e identificação com o espectador.
A narrativa em si é uma das mais ferrenhas ao pessimismo cósmico – é até mesmo mais cruel do que as narrativas de Alien. Os roteiristas trabalham sempre na perspectiva do pior cenário possível. Como um evento sem leva ao outro para que o filme e a matança continuem, é preciso sim muita suspensão da descrença.
Como a proposta do filme é calcada em um polêmico ‘e se’ contemporâneo e toda a abordagem das áreas técnicas ser bastante realista, o espectador terá que aceitar alguns elementos inacreditáveis criados pelos roteiristas. O principal deles é a criatura que quebra, constantemente, as regras estabelecidas previamente. Sem oferecer spoilers, diversas vezes os roteiristas esquecem de informações passadas nos estágios iniciais da vida do marciano entrando sempre em colisão com a aparente invulnerabilidade extrema do bicho.
O outro ponto se trata das decisões (más) dos personagens que muitas vezes agem com despreparo completo – mesmo que haja um protocolo dos quais Miranda fica quieta até o circo pegar fogo. O interessante é notar que algumas ações são tomadas através do estado de pânico que alguns astronautas ficam ou outras que parecem moralmente dúbias.
Sobre esses roteirismos e diversas conveniências narrativas jogadas em tela, há muito pouco do que reclamar. O longa abraça a estrutura de Alien e não se desprende até seu final inovando pouco, resolvendo alguns desafios com preguiça criativa e quebrando suas regras a todo o momento conforme o marciano “evolui” jogando todo o mambo jambo científico sobre a criatura em escanteio. O problema reside mesmo nessas quebras do ‘realismo’ anteriormente proposto. Isso, na sessão, não me incomodou, mas pode incomodar alguém que espere uma ficção científica “raiz”.
Saindo do Escuro
Daniel Espinosa era um grande desconhecido até dirigir Vida assim como Ridley Scott era com Alien – mesmo que Os Duelistas seja um baita de um filme. Essa semelhança de momento na carreira dos dois, é realmente interessante dada a maneira como esta ficção se comporta com sua notória referência mestra.
Para quem esperava um estupendo desastre na direção de Espinosa, sairá muito decepcionado, pois o diretor sustenta o roteiro razoável com mãos firmes tornando essa obra a mais tensa e enervante do ano – isso é, até Alien Covenant chegar no mês que vem.
Já para abrir seu modesto blockbusters, Espinosa trabalha a câmera em um longo plano sequência falseado que explora a geografia apertada da ISS enquanto os astronautas flutuam pela Estação enquanto se preparam para apanhar as amostras desgovernadas (já um foreshadowing do desastre anunciado da descoberta da vida alienígena). Assim como os personagens, a câmera flutua no ambiente sem gravidade invertendo eixos verticais a todo o momento gerando uma leve vertigem – essa sensação nauseante perdura por um bom tempo. Toda essa encenação é feita com extremo cuidado agregando muito neste primeiro “parto” para salvar as amostras.
Outro bom elemento de sua direção é a diferente abordagem que ele tem tanto para a criatura quanto para os astronautas. Ao contrário de Alien, um filme de horror de suspense, Espinosa faz de Vida quase um slasher (diminuindo o grau de violência gráfica). O diretor mostra a criatura sem nenhum receio e a utiliza em diversos segmentos do filme com embates diretor entre os heróis.
Além de permitir que o espectador estude a biologia do monstro que revela bastante do ecossistema marciano caso pensemos nisso, Espinosa constrói um paralelo duro entre a fragilidade da vida humana (de fácil replicação) com a resistência sobrenatural do marciano que custou a renascer. Não é preciso pensar muito para notar como esse discurso de vida x morte permeia o filme inteiro.
Inclusive, nesse sentido da valorização da criatura e das emoções humanas transmitidas tão competentemente pelo elenco, que o filme ganha certas camadas de complexidade garantidas pela encenação de Espinosa. É extremamente importante notar como o marciano se comporta no primeiro contato com duas criaturas terrestres agindo com certa inocência e curiosidade que rapidamente se transforma em instinto assassino no primeiríssimo momento que se sente ameaçada – isso é levemente sugerido pelo discurso do biólogo.
Essas breves sequências contrastadas com olhares de ternura, sofrimento, deslumbramento, desespero e profundo ódio dos personagens edificam uma relação interessante entre antagonista vs. mocinhos. Além dessa atenção preciosa, Espinosa se esforça para criar sequências de extrema tensão sendo a mais enervante o primeiro ataque de Calvin. Depois, infelizmente, suas cenas exigem muito da potência da ótima trilha musical de Jon Ekstrand para nos deixarem colados na poltrona. Todavia, nada supera a excelente cena citada.
Importante também ressaltar a potência lírica da música original de Ekstrand. Ela traduz diversos sentimentos, além de potencializar o suspense da obra. Há arranjos belíssimos para refletir a euforia da descoberta da vida, assim como há outros incômodos demais. A questão da música ser muitas vezes maior que a encenação é um eterno debate dentro da crítica de cinema. Tem gente que condena quando isso acontece, a julgando pouco “orgânica”. Já eu, acho que Ekstrand fez um trabalho excepcional que se sustenta com ou sem filme.
Também gosto consideravelmente quando Espinosa tateia a simbologia das boas imagens da obra. Quase todas são funcionais, mas algumas quebram essa função primordial para dizer algo a mais. Algumas mimetizam a Criação de Adão de Michelangelo, outras flertam com a concepção da vida – principalmente o plano que fecha o filme remetendo a um óvulo e espermatozoides.
Espinosa erra somente quando inventa de colocar sua câmera como ponto de vista da criatura que resulta em uma bizarrice que quebra o realismo do filme – até mesmo a música de Ekstrand assume ares de super-herói totalmente inconvenientes. São planos que poderiam ter sido removidos pois agregam nada à narrativa.
Nova Vida
Vida é um ótimo divertimento para qualquer espectador que flerte com o gênero de ficção científica – principalmente na vertente de horror espacial. A atmosfera realista tão bem traduzida pelo visual estupendo da obra agrega muito para a tensão eficiente que o diretor constrói ao longo da obra. Desse modo, Vida se torna uma das experiências mais tensas que você pode experimentar nos cinemas neste ano. As poucas falhas ou decepções causadas seja pela estrutura vinda de Alien ou de mau uso de computação gráfica não tiram o brilho vivaz e muito funcional dessa ótima empreitada da Sony.
Vida (Life, EUA – 2017)
Direção: Daniel Espinosa
Roteiro: Rhett Reese, Paul Wernick
Elenco: Ryan Reynolds, Rebecca Ferguson, Jake Gyllehaal, Hiroyuki Sanada, Ariyon Bakare, Olga Dihovchnaya
Gênero: ficção científica, horror espacial, slasher
Duração: 104 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=W3nfZKyGeuU
Lista | 5 HQs para ler depois de Legion
Os X-Men são um grupo abençoado dentro da história da Marvel. Escritores conceituados passaram por ela deixando sua marca a tal ponto de sempre elevar as histórias do grupo mutante como as melhores da editora como um todo. Chris Claremont foi eleito um dos dez roteiristas de quadrinhos mais influentes da História. E não é por menos.
O autor é responsável por ótimos arcos como A Saga da Fênix Negra, X-Men Inferno, Dias de Um Futuro Esquecido, Deus Ama, O Homem Mata, entre outras. No meio de tanta coisa boa, durante sua fase como escritor dos Novos Mutantes nos anos 1980, Claremont criou um personagem sensacional, mas desconhecido até agora por grande parte do público: David Haller, o Legião.
Com a exibição do seriado excelente de Noah Hawley, Legion, que comentamos por episódio, a popularidade do mutante aumentou consideravelmente. Aproveitando até mesmo a curiosidade que o personagem despertou na gente, separamos as 5 histórias obrigatórias para conhecer de fato David Haller.
5. Novos Mutantes Vol. 4 (#26 a 34)
A coletânea acima reúne a grande estreia de David Haller nos quadrinhos da franquia mutante. A narrativa consiste nos Novos Mutantes tentando resgatar David, que representa uma grande ameaça devido ao seu poder extremo resultante de suas múltiplas personalidades – cada uma delas sendo mutantes de poderes diferentes. O arco é bastante curto possuindo apenas 3 edições para finalizar essa apresentação.
4. Fabulosos X-Men e X-Factor: A Saga da Ilha Muir
Novamente, Chris Claremont aparece na nossa lista. Dessa vez os mutantes lutam novamente contra David, porém agora possuído pelo Shadow King. A luta é tão intensa que varia em planos físicos e psíquicos com Professor X lutando ao lado de seus alunos na tentativa de salvar a vida de seu filho. Uma história mais simples, mas repleta de ação.
3. Fabulosos X-Men e X-Men: Legion Quest
O famoso prelúdio que deu origem a saga Era do Apocalipse. Talvez esta seja uma das histórias mais conhecidas do Legião. Confrontado sempre pela ideologia de Magneto contra a de seu pai, Legião volta no tempo para tentar matar o arqui-inimigo do grupo. Porém, no confronto, acidentalmente acaba matando Xavier, criando um tremendo paradoxo que lima até mesmo sua própria existência. Por conta disso, surgem os eventos que definem a longa era do Apocalipse.
2. Novos Mutantes: O Retorno de Legião
Em uma investigação ordinária, os Novos Mutantes se deparam novamente com Legião. O problema é que suas diversas personalidades estão lutando sem parar para tentar assumir o comando gerando problemas catastróficos para o supergrupo.
1. X-Men Legacy: Legion Omnibus (reune #1 a #24)
A excelente fase de Spurrier está toda nesse omnibus imperdível que será lançado na semana que vem, aliás. Legião, apesar de ser um personagem presente nos X-Men desde 1984, nunca tinha tido sua própria mensal até 2012. Toda a antecipação valeu bastante a pena, pois Spurrier não decepcionou ao longo de toda a fase.
A mensal começa logo após os eventos de Vingadores vs. X-Men que resultou na morte do Professor X após confrontar um Cíclope possuído por 1/5 da Fênix Negra. Sem o mestre mutante para liderar toda uma classe, Legião terá que decidir de uma vez por todas se assumirá a responsabilidade de seu pai em liderar os X-Men. Fora isso, David tenta controlar todas as suas personalidades para definir sua identidade principal.
E você? É fã de Legion e de Legião? Deixe sua dica de uma HQ sensacional nos comentários!
Especial | A Vigilante do Amanhã - Ghost In The Shell
Assim como tudo que é bom na vida, nosso especial alinhado para o lançamento de Ghost In The Shell acabou hoje. Deixamos então todos os posts criados para celebrar o lançamento do filme nesse post estratégico. Esperamos sempre que vocês gostem do nosso conteúdo, pois certamente nos esforçamos ao máximo para trazer o melhor do conteúdo de entretenimento para todos vocês.
Artigos
Ghost In The Shell e a Filosofia
Cine Vinil #02 | Lado A: Porque Amei A Vigilante do Amanhã - Ghost In The Shell
Cini Vinil #02 | Lado B: Porque Odiei A Vigilante do Amanhã - Ghost In The Shell
Ghost In The Shell | A Excelência do Anime de 1995 e do Filme Atual
Críticas
Crítica | A Vigilante do Amanhã - Ghost In The Shell
Crítica em vídeo | A Vigilante do Amanhã - Ghost In The Shell
Crítica | Ghost In The Shell (1995)
Crítica | Ghost In The Shell 2: Innocence
Listas
5 Motivos para ver A Vigilante do Amanhã - Ghost In The Shell
5 Livros Cyberpunks que influenciaram Ghost In The Shell
5 Animes Cyberpunks para ver depois de Ghost In The Shell
Crítica | Velozes & Furiosos 7
O tempo pede mudanças. Exige mudanças. E, naturalmente, esta continuou sendo a regra durante esses quatorze anos de franquia Velozes & Furiosos.
Começou como um filme sobre corridas ilegais. Seis filmes depois, as corridas foram, gradualmente, deixadas de lado. O espetáculo pirotécnico e tecnológico tão aclamado e ansiado pelas audiências contemporâneas bateram à porta da franquia milionária da Universal. A cada novo filme, o espetáculo ficou cada vez maior, visitando diversos países e roteirizando cenas de ação mais audaciosas. Agora, com o sétimo, atingiu-se o clímax. Porém, o novo longa conta com a mudança muito bem-vinda de diretores. O veterano Justin Lin – dirigiu os quatro filmes anteriores a este, é trocado pelo talento inegável do malaio James Wan.
Desta vez, a trupe de Dominic Toretto (Vin Diesel) e Brian O’Conner (Paul Walker) é procurada pelo irmão mais velho de Shaw, vilão do filme anterior. Deckard Shaw (Jason Statham) está com sede de vingança e não poupará esforços para destruir Toretto e sua gangue.
Como é evidente, a história – que nunca foi um forte da série, assume seu papel completamente banal, apenas para inserir os heróis em situações explosivas e cheias de ação ao redor do mundo. Para facilitar o progresso da narrativa, o roteirista Chris Morgan insere uma ajuda considerável de um departamento de segurança dos EUA chefiado pelo Mr. Nobody encarnado pelo ótimo Kurt Russell.
Obviamente, um roteiro desses nunca é pra ser levado a sério. Absurdos como Deckard Shaw sempre aparecer muito bem armado em todas as cenas de quebra-pau, desconsiderando completamente o local do planeta que os protagonistas estejam, além dos inúmeros clichês – o software de vigilância “Olho de Deus” é mais uma cópia da invenção apresentada em O Cavaleiro das Trevas.
De resto, Morgan continua a martelar em pontos como “família”, “força” e “união”. Não insere nada de novo seguindo o costume de seus roteiros preguiçosos. Porém, com a infeliz tragédia que levou Paul Walker à morte, toda superficialidade do texto ganha uma carga emocional mais densa – levando em conta que ele ainda não tinha finalizado suas gravações quando morreu. Mais sinistro e mórbido, é notar que muitas frases, proferidas pelo seu personagem, envolvem temas como a morte e despedidas.
Isso levou a um desafio técnico inédito para o Audiovisual. Como gravar o restante das cenas sem um personagem vital a trama? Modelando digitalmente o rosto de Walker e inserindo digitalmente nas faces dos irmãos do ator. O resultado dos esforços da WETA – famosa pelos efeitos em Planeta dos Macacos, é assombroso. É muito difícil distinguir quais cenas que Walker gravou ainda quando vivo e as realizadas por computação gráfica. Entretanto, claro que com um olhar mais atento, é possível sim distinguir as cenas.
Ironicamente, esta é a melhor atuação de Walker em toda a franquia. Quem simplesmente não melhora e não tem o menor talento pra coisa é Vin Diesel e Michelle Rodriguez. Seus personagens não têm carisma. São chatos e extremamente enfadonhos. Perto deles, Sylvester Stallone vira um Daniel Day Lewis. O que realmente importa é o físico e os dois são muito bons de briga – um ponto alto do filme é a luta entre Rodriguez e a lutadora de MMA Ronda Rousey.
Por outro lado, o espectador se diverte com a performance já conhecida de Jason Statham, interpretando ele próprio, naturalmente. Infelizmente, Dwayne Johnson tem menor participação, porém quando entra em cena, o filme ganha um novo vigor.
Muitos dos pontos positivos também devem a direção muito competente de James Wan. Nome muito conhecido pelo gênero de terror – dirigiu Jogos Mortais, Sobrenatural e Invocação do Mal, Wan assume pela primeira vez a direção de um filme de ação e, para aumentar o desafio, de uma franquia imensa e consagrada.
Se ainda restavam dúvidas, ele prova de vez que é um dos nomes mais promissores de Hollywood. As sequências de ação envolvem uma estratégia de filmagem muito complexa, mas tudo é gravado com maestria – halo jump dos carros e as cenas em Dubai são exemplos nítidos disso. O espectador não se perde no meio dos tiroteios, intensas lutas corporais e perseguições em alta velocidade. Para quem acha simples, Michael Bay ainda não aprendeu a fazer isso em seus Transformers e Wan conseguiu de primeira. Além disso, parece ter se inspirado nos ótimos filmes “testosterona” Operação Invasão de Gareth Edwards para as lutas.
Porém, mesmo cumprindo muito bem seu papel, Wan não se arrisca muito. Não incorpora praticamente nada do suspense que é acostumado a trabalhar e também se rende a muitos cortes rápidos durante a montagem das cenas de ação. Isso resulta sempre no alívio da tensão para o espectador que já sabe que depois de sete filmes, os protagonistas nunca estão em perigo real. Algumas vezes, ele ousa com um plano sequência ou um movimento de câmera incomum.
Abrindo uma nova trilogia, Velozes e Furiosos 7 consegue o pódio de melhor filme da franquia. O exagerado e ridículo ainda caminham de mãos dadas, porém o que antes era brega, estúpido e irritante, vira algo engraçado e divertido. A franquia finalmente parou de se levar a sério e isso me parece muito promissor. As corridas voltam por breves momentos, assim como a sexualização exacerbada das mulheres que trajam roupas minúsculas.
O que infelizmente tirará o brilho dos futuros filmes será a ausência de Paul Walker. O desfecho/tributo para o ator foge do previsível e torna algo que seria piegas em algo belo. Uma comoção genuína que pode acometer até mesmo quem não é fã da série como eu. Um adeus que é algo diferente por não se tratar de um adeus a um personagem, mas sim a alguém que até pouco tempo atrás estava se divertindo gravando filmes de ação com seus amigos, tirando suspiros de fãs apaixonadas e garantindo amor e sustento para sua família. Também é sabido que nossos atores favoritos acabam virando, de um jeito ou de outro, nossos amigos, mesmo que sejamos totalmente desconhecidos para eles.
E como todos sabem... Amigos nunca dizem adeus.
Velozes & Furiosos 7 (Furious 7, EUA - 2015)
Direção: James Wan
Roteiro: Chris Morgan
Elenco: Vin Diesel, Paul Walker, Dwayne Johnson, Michelle Rodriguez, Tyrese Gibson, Jason Statham, Ludacris, Kurt Russell, Ronda Rousey, Nathalie Emmanuel, Jordana Brewster
Gênero: Ação
Duração: 137 min
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Crítica | Velozes & Furiosos 5: Operação Rio
Brian e Mia conseguem resgatar Dominic da prisão mais uma vez. O grupo foge para a cidade do Rio de Janeiro no Brasil. Lá, eles arranjam problemas com o criminoso mor da cidade, Reyes, que agora quer suas cabeças a todo custo. Dominic, Brian e Mia convocam parceiros de aventuras passadas para ajuda-los em um último golpe – roubar todo dinheiro de Reyes. Enquanto isso, um grupo de operações especiais liderado por Hobbs, o policial mais implacável do mundo, tenta recapturar Dominic e seus amigos.
Tuning, onde está você?
O roteiro de Chris Morgan se consagra pela construção das cenas de ação e de algumas piadinhas (comédia escatológica a parte), já em narrativa e pesquisa é uma tragédia. Ele conta com quatro segmentos agitados memoráveis – a perseguição no luxuoso trem (!!!!) que cruza o “famosíssimo” deserto brasileiro, a fuga in the Favela’s (porque os personagens não chamam de slums?), o quebra pau entre Diesel e The Rock e o clímax original que cai no clichê em seu desfecho.
Os problemas e as falhas do roteiro são inúmeros. Dominic (o personagem protagonista) evidencia no inicio do filme que eles estão falidos e sem um tostão no bolso. Então, como estes seres bestiais conseguem muito dinheiro para financiar o plano acéfalo do grupo? O roteiro não se incomoda em responder. Ele também não faz questão de lembrar o espectador o que aconteceu nos filmes passados para situa-lo melhor na trama – é necessário assistir os outros filmes da série – tampouco explica a ressurreição de Han. Além de não citar o paradeiro final do tão polêmico chip e como os “favela’s heroes” de Reyes sempre aparecem do nada.
É vergonhoso ver como o Brasil é retratado por Velozes 5. Ele insinua que nossas terras “há 500 anos” foram invadidas pelos espanhóis que foram derrotados pelos indígenas (queria ter tido essa aula de História). Então, os portugueses chegaram e por meio do escambo, dominaram o Brasil e seu povo selvagem. Ele é carente de cenas que passam no Rio, sempre preferindo cenas na Batcaverna de Vin Diesel. Fora que, segundo ele, toda polícia do Rio (sem exceção) é corrupta além de ter vários Dodges Challengers na garagem.
“This is Brasil”, a cena que ilustra este célebre frase é simplesmente constrangedora lançando a imagem de que todo brasileiro está exageradamente armado pronto pra guerra. As nossas mulheres também não foram esquecidas. Todas com pose de “Maria gasolina” trajando roupas calientes sendo que uma aparece com a farta bunda pra fora em close. Após uma cena tão sensual, sexual e física como esta fica difícil aceitar que a magrelo-cadavérica Gal Gadot consegue seduzir o mafioso Reyes em um piscar de olhos. Não posso esquecer-me da menção honrosa em que várias mulatas aparecem seminuas enquanto trabalham numa “empresa” de lavagem de dinheiro.
Morgan destruiu a alma da série que eram os tunings fantásticos e os ‘rachas’ alucinantes. Com este filme ele assume descaradamente o subgênero (assalto/policial) que a série vai tomar. Até mesmo quando reapresenta os personagens para o espectador, copia a fórmula inteligente e original de Onze Homens e Um Segredo. O único ‘racha’ do filme inteiro é sem graça, rápido e muito menos memorável. O roteirista também é perito em criar situações que debocham as leis da física. Por exemplo, quando Hobbs cospe cacos de vidro na plateia ou quando Dominic e Brian pulam de um carro em uma queda-livre de mais de 100 metros de altura em direção à água. Meus caros, se algum de vocês tentarem pular sem a posição adequada na água em uma altura de 100 metros, seu corpo virará um purê de ossos e carne, além da morte lenta e aguda que o suicida sofre. Claro, sem mencionar as malditas frases de efeito que o texto possui que ele faz questão de enfatizar por meio de alguma expressão de outro personagem.
Placas tectônicas
A atuação do elenco do filme se resume a exibir seu bolo de carne ou gordura mais atrativo – leiam-se aqui peitos, bundas, bíceps, tríceps. Vin Diesel tem dificuldade absurda em construir expressões faciais. O cara se esforça tanto para fazer um sorriso que fica com uma cara sapo cururu troncudo mal humorado. Não há pontos positivos ou negativos na atuação de Diesel – ele simplesmente não sabe atuar e nunca vai saber. Seus pontos fortes são: fazer cara de mau enquanto atira nos antagonistas, ser um bandido boa-praça, dirigir excepcionalmente bem e ser uma montanha colossal de músculos.
Sempre achei Paul Walker um dos piores atores de todos que conheço, entretanto tive uma surpresa neste filme. Aqui, sua atuação se mostra muito mais madura e interessante. Ele deixou as expressões de pateta para outras que realmente explicitam a preocupação do personagem em relação à sobrevivência do grupo. Tyrese Gibson e Ludacris conseguem proporcionar um carisma aceitável em seus personagens com tiradas cômicas. Sung Kang volta como o falecido Han e como sempre sua atuação é a melhor graças ao seu timing perfeito e seu carisma inestimável. Dwayne Johnson ou The Rock é o segundo melhor ator do filme. Seu personagem desperta o interesse do espectador pela determinação do ator em capturar todos criminosos que trombarem contra ele.
O português Joaquim de Almeida aposta na caricatura e no jeito canastrão de seu personagem assemelhando-se muito a antagonistas de filmes de ação oitentistas. Gal Gadot, Don Omar, Tego Calderon, Elsa Pataky, Matt Shulze e Jordana Brewster completam o elenco sem grandes inovações ou surpresas. Não preciso nem comentar a ausência de atores brasileiros no elenco do filme, portanto o português falado em cena é simplesmente ridículo e causador de risos de constrangimento. Detalhe para o “Parëm, eläs estón ‘com migo’!”.
1% de arte
O cinegrafista Stephen F. Windon é capaz de fazer uma modelagem de luz muito boa como ficou provado na série The Pacific, mas em Velozes 5 não devia estar muito inspirado. Várias imagens ficam sem um tratamento mais artístico na iluminação, exceto aquelas que passam no esconderijo de Vin Diesel. Ele apela muitas vezes para os GPGs – grandes planos gerais, que mostram um pouco da bela cidade do Rio de Janeiro sem se esquecer das imagens impactantes do amontoado de casinhas na favela.
A única cena que a fotografia torna-se absolutamente excelente é o rápido segmento do ‘racha’ em que ele utiliza desfoques naturais com um plano genial de uma vidraça embaçada pelo sereno da madrugada. Também o constante ritmo das cores azul e vermelho misturado com a movimentação frenética das câmeras dá um dinamismo impressionante a cena, além do importante auxilio dos carros cinematográficos. Nesta parte, é possível reconhecer toda identidade visual que a franquia construiu. Porém, seu trabalho não merece elogios porque ele é existente apenas nesta cena. Às vezes, tem a boa vontade e a inteligente sacada de manejar tremulamente suas câmeras – mais conhecido como “câmera nervosa”, em momentos que o grupo liderado por Diesel passa por maus bocados. Outras vezes, combina o movimento com muita poeira no meio dos tiroteios garantindo uma imagem mais forte, densa e física.
Os efeitos visuais conseguem colar os ‘backgrounds’ da cidade do Rio de Janeiro nas locações na Costa Rica com maestria. Porém, qualquer brasileiro consegue identificar coisas que não existem na cidade como a fictícia ponte onde ocorre o absurdo clímax. É muito normal realizar filmagens em uma cidade alegando ser outra. Por exemplo, Toronto é a Nova Iorque dos cinemas devido o baixo custo de produção e facilidade de fechar ruas.
Sai a Bossa Nova, entra o funk…
A música original é de Brian Tyler. Suas composições tentam ter um gingado brasileiro lotado de batidas fortes de tambores, alguns apitos e de vez em quando algumas distorções eletrônicas. Sua trilha na maioria das vezes dispensa os violinos, mas quando utiliza cria músicas surpreendentes e viciantes como o tema principal do filme, sendo esta digna dos filmes do James Bond. As músicas originais cumprem muito bem sua função, deixando o espectador tenso o suficiente além de anima-lo em toda cena em que aparece. Destaque para a música da perseguição nas favelas.
A trilha licenciada também é muito boa e aqui a música nacional marca presença. Não espere encontrar Tom Jobim ou Caetano Veloso em um filme desses. Aqui quem domina é Marcelo D2 com a melhor canção do longa – “Desabafo/ Deixa eu dizer”. Então já deu para notar que o Hip-Hop brasileiro é muito presente no filme. Entre os artistas, estão MV Bill, Obando e Black Alien. Os funks ‘proibidões’ também aparecem em dados momentos. “Danza Kuduro” é utilizada em uma cena um pouco inadequada deixando-a completamente deslocada com o contexto da imagem.
Esqueceram o significado do “velozes”…
Justin Lin é o diretor da franquia desde Desafio em Tóquio. Ele mudou completamente o rumo da cinessérie com o roteirista Chris Morgan abandonando descaradamente o diferencial dos filmes que eram as corridas para incrementar tiroteios nervosos. Na há duvidas que o diretor realiza todas cenas de ação com uma facilidade fantástica. Elas funcionam muito bem mantendo um ritmo agradável, mas o problema não reside nestas seletas cenas e sim no filme todo.
Seu auxilio na edição do filme não se mostrou nem um pouco eficiente. O filme tem um ritmo muito irregular – muito papo furado para pouca ação. Graças à audácia do diretor optar por uma metragem absurda para um filme de ação (2 horas e 10 minutos), não carece de cenas movimentadas, mas é difícil esperar por outra, devido às longas pausas. Nestas pausas, ele fica num marasmo chatíssimo e infinito. Quando ele finalmente dá pistas de que vai acontecer o primeiro ‘racha’ do filme, Lin corta abruptamente a cena deixando o espectador indignado e possesso de raiva.
Além destes graves problemas do manejo do ritmo do longa, ele insiste que seu filme não acabe nunca. Ou seja, quando o espectador começa a notar que a projeção está no fim, o diretor garante mais alguns minutos no desnecessário epílogo antes dos créditos finais que também são interrompidos para mais uma cena.
Clube dos Furiosos
Não recomendo Velozes e Furiosos 5 nem para o meu pior inimigo. O filme é arrastado, lento e retrata o povo brasileiro com certa “peculiaridade”. Suas poucas qualidades não superam seus muitos e desprezíveis defeitos. Se você é um fã de carteirinha da série, é necessário que você assista e é muito provável que encontre um bom entretenimento. Mas se você nunca ouviu falar desta franquia, passe longe. Se pensa que vai encontrar muitas corridas com carros tunados, também sairá decepcionado.
Se a intenção do longa era deixar o espectador tão enfurecido como Vin Diesel no barraco com The Rock, posso afirmar que ele consegue… E muito.
Velozes e Furiosos 5 (Fast Five, EUA - 2011)
Direção: Justin Lin
Roteiro: Chris Morgan, Gary Scott Thompson
Elenco: Vin Diesel, Paul Walker, Jordana Brewster, Tyrese Gibson, Ludacris, Matt Schulze, Sung Kang, Gal Gadot, Dwayne Johnson
Gênero: Ação, Aventura, Crime
Duração: 130 minutos
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Especial | M. Night Shyamalan
M. Night Shyamalan é um artista extremamente peculiar. Após ser transformado em objeto de chacota, o diretor retornou à boa forma com o excelente Fragmentado, filme do qual não conseguimos parar de falar sobre. Para comemorar o lançamento de seu novo filme e do renascer artístico, fizemos um extenso especial sobre a carreira do diretor. Todo o conteúdo está aqui nesse post! Esperamos muito que tenham gostado do nosso trabalho.
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Artigo | A Estética de Fragmentado
Obs: texto longo e repleto de spoilers. Não leia o artigo até assistir a Fragmentado.
Cinema pode não parecer, mas é algo complicado. Não é à toa que diversas pessoas dedicam o tempo de uma vida para compreender suas evoluções, movimentos e padrões estéticos de cada realizador dentre diversos cineastas. Para ter seu nome cravado no imaginário popular de cinema da mais alta qualidade é preciso muito mais do que apenas o zeitgeist do momento.
É preciso ter um domínio estético tão poderoso a ponto de alguém parar, pensar e apontar: “ei, isso aqui é extraordinário”. Por sorte, o Cinema é agraciado com muitos nomes de realizadores extraordinários que fizeram por merecer tornar seus nomes como referências de padrões estéticos. Kurasawa, Hitchcock, David Lean, Renoir, Trouffaut, Godard, Fellini, Bergman, Sergio Leone, Kubrick, Fincher, Nolan. Somente para citar alguns de fácil associação para qualquer cinéfilo.
M. Night Shyamalan, apesar de colecionar desafetos com fãs graças a alguns fracassos de bilheteria e crítica que realmente são indefensáveis vide Fim dos Tempos, consegue ser um dos nomes mais promissores para figurar o rol dos grandes artistas que contribuíram para a evolução estética do cinema. Isso tudo se torna ainda mais forte com o lançamento de Fragmentado.
Shyamalan tem esse quê especial que instiga a nossa curiosidade. Mesmo para quem não deve ligar muito por cinema, deve ter visto alguma de suas obras e ter fixado o nome do diretor indiano em seu inconsciente. “Bora lá ver o novo Shyamalan? ”, pergunta esta que praticamente vendeu suas obras-primas e seus desastres. E, ainda errando tanto, Shyamalan está aí, em plena glória – hoje, mais do que nunca.
O que realmente nos leva de volta aos filmes dele? Certamente não é a bendita reviravolta que todo mundo acha que é a sua principal característica como autor – isso é apenas a cereja no bolo. O que Shyamalan realmente consegue, e com muito sucesso, é ser um ferrenho realizador com noções estéticas muito inerentes ao seu estilo. Esse presente desde seus filmes mais baratos até as grandes produções hollywoodianas.
O que raios é estética?
A estética é uma palavra antiga, datada por volta de 1750. Antes era dita como a ciência dos sentimentos. Hoje, a ciência do belo e da arte em geral. Mas para o cinema, o termo é ainda mais específico dizendo respeito a traços fundamentais que fazem do cinema, o Cinema.
Resumindo, trata-se de movimento, mobilidade do ponto de vista, sequencialidade e a característica definidora do Cinema: a montagem – esses pontos são definidos por diferentes teóricos como Eisenstein, Metz, Deleuze, etc. Toda essa junção de fatores permitem a poética do cinema que conta também com técnicas de outras artes como o Teatro, Literatura e Fotografia. Sem querer desmerecer, o Cinema é a forma mais potente de expressão artística presente na história do homem.
E com o diretor certo, essa magia torna-se na mais crua e chocante realidade.
A Câmera Caneta
Não demora nem cinco minutos para Shyamalan chamar atenção para seu trabalho de câmera. Na segunda cena da obra, em um raro momento (sim, raro), a câmera de Shyamalan assume o ponto de vista subjetivo de Kevin (para facilitar, chamaremos todas as personalidades desse modo, menos a Besta). É o único momento do filme no qual temos essa relação de identidade da câmera se fundindo ao protagonista. O mais legal disso tudo é a sensação que essa encenação transmite para o espectador: apreensão profunda. Estamos no olhar do predador espreitando suas presas. É um foreshadowing de câmera: a primeira enunciação da Besta selvagem que será liberada no terceiro ato.
Logo depois, a relação da câmera com Kevin se altera. Agora ela é aliada do personagem, centrando a ação em primeiro plano acompanhando as meninas se divertindo dentro do carro enquanto revela, sutilmente, que algo mais grave acontece em terceiro plano. A câmera se movimenta em clara provocação ao espectador já ser fisgado pelo mistério, se segurando ao máximo para não revelar quem sentará no banco do motorista situado fora-de-campo. O trailer abaixo contém muitas das cenas que comentei e das quais vou comentar ainda. É importante assistir e memorizá-lo bem.
Quando finalmente Shyamalan decide revelar a presença de Kevin no carro, não a faz de modo trivial e banal. Concentra os esforços com o magnetismo de uma breve montagem baseada somente no olhar de Casey reparando no lixo jogado ao chão através do retrovisor e já sacando completamente que entrou em uma situação perigosa – a presa que já reconhece más situações por conta de seu histórico de abusos sofridos na infância que são revelados aos poucos por flashbacks.
Nisso, Kevin aparece pela 1ª vez e as outras duas meninas só se dão conta disso com um considerável atraso em relação a Casey. Isso é de suma importância, pois já nos primeiros 4 minutos da obra, Shyamalan consegue transmitir para o espectador aspectos vitais para o funcionamento da narrativa sem aquela embromação textual.
A imagem e a encenação já definem: Casey é esperta, uma sobrevivente nata. Claire e Marcia são desatentas, normais, frágeis e não sabem dimensionar o perigo real. E Kevin/Dennis que possui misofobia – aversão a sujeira (característica que também usada contra ele logo nas próximas cenas). Poder absoluto de concisão.
Até que a morte as separe.
Estabelecendo as Regras
O prólogo se distingue totalmente do restante da linguagem que Shyamalan apresentará no restante do filme, em sua maioria, para as cenas no subsolo, no covil escondido onde Kevin reina supremo assim como Gump reinava em seu porão em O Silêncio dos Inocentes.
Após os créditos iniciais, Casey desperta e continua evoluindo sempre através da montagem e da relação de seu olhar com o redor. Ela repara no banheiro limpo, no certo cuidado do captor e apenas dá a dica para Marcia se sujar quando Kevin a separa do grupo.
Um dos enquadramentos apresentados aqui tem suma importância: um plano aberto conjunto que apresenta as meninas divididas em um Split screen feito pelo desenho do cenário. Casey está no lado esquerdo enquanto as outras duas meninas estão no lado direito, divididas pela simetria proporcionada pelo corte na parede.
Shyamalan quase nunca abandonará essa divisão explícita na parede. É uma das maiores dicas que o diretor oferece para sua platéia.
Isso infere algo imediato: o destino das meninas já está traçado para coisas ruins. O plano funciona como um foreshadowing, uma pista do que irá acontecer na narrativa. Nesse jogo, o espectador atento pode presumir:
- Casey vive e as garotas morrem.
- Garotas vivem e Casey morre.
O destino das meninas é dividido desse modo sem qualquer chance de alteração. Ou é um, ou é outro. E pela construção da introdução do filme, já é bem fácil sacar quem sobrevive a Besta no final.
A partir desse plano, algo sumário já é definido: o enquadramento, em maioria, manda na encenação. Ou seja, raramente Shyamalan movimentará o enquadramento para acompanhar a ação dos personagens. No máximo, há aqueles macetes bê-á-bá da linguagem como travellings ou zooms in ou out para conferir dinamismo de cena ou para elevar a tensão.
O Covil de Dois Níveis
Para entender, portanto, esse estilo de Shyamalan, é preciso compreender ao menos uma das três escolas estéticas que mandam na grande maioria da cinematografia dos diretores de cinema.
A de Shyamalan é a corrente da “composição” como nomeada por Daniel Moreno. Isso é explicado nos parágrafos acima: Shyamalan fixa o enquadramento e pronto. Cria sua relação de diálogos através de espelhamentos bastante simétricos dos planos anteriores. Isso já é notado quando ele insere somente uma porta bem no meio do enquadramento enquanto o plano anterior exibia as garotas divididas com um grande espaço as separando. Quando Kevin surge, o mesmo ocorre: ele fica exatamente no meio do quadro "preenchendo" esse vazio.
Dennis, Hedwig ou Patricia. Absolutamente todos sempre ficam, em algum momento, no centro do quadro. Seja nessa situação ou em outras como na cozinha ou no quarto de Hedwig.
Isso se repete quando Dennis, Patricia e Hedwig entram no quarto. Todos eles ficam na porta enquadrada no meio do quadro. O porquê disso é aberto a diversas interpretação. Eu vejo alguns como principais:
- Ele é o principal obstáculo das meninas para a liberdade iluminada ao fundo do terceiro plano.
- Ele também é a lacuna que separou aquele grupo para sempre. As garotas permanecem divididas seja pela inteligência para lidar com a situação, seja com a divisória no enquadramento, seja pelo assassinato das meninas.
O único modo de escapatória é forçar um jogo de manipulação contra Kevin e a única que saca isso é Casey. Quando Hedwig aparece, o ordenamento visual é levemente alterando quando a garota abandona sua cama, localizada nos cantos para ir, pela primeira vez, para o centro do quarto e, porventura, do enquadramento.
A câmera de Shyamalan para certas cenas se comporta de modo diferente. "Pousa" no rosto do ator elaborando uma relação íntima, de confidências ou conexão mental. Esse tipo de enquadramento causou um frisson em 1991 com 'O Silêncio dos Inocentes', clássico de Jonathan Demme.
Nisso, Shyamalan aproxima a estética de sua câmera com a de Jonathan Demme em diversos filmes de sua filmografia – por exemplo, O Silêncio dos Inocentes. A câmera não se comporta como uma subjetiva, mas se torna uma observadora muito próxima dos personagens que por milímetros não quebram a quarta parede.
Ali, abre-se uma relação de confidências. O interessante é que enquanto o plano é concentrado em Casey, a garota chega próxima de encarar a câmera. Porém, quando surge o contraplano, mostrando Hedwig, o personagem desvia totalmente o olhar para o eixo da câmera. Isso muda aos poucos, com o protagonista ficando cada vez mais centralizado e próximo da objetiva – mais próximo até do que Casey. Em pouco tempo, ele começa a chorar. Casey consegue encantar a serpente somente com seu discurso e, tão logo, a câmera passa a trabalhar para potencializar a ação.
O plano conjunto que marca o clímax da intensa cena.
Para fechar a cena brilhantemente decupada, há um plano conjunto mostrando pela primeira vez o sequestrador com as meninas em quadro. As outras duas estão desfocadas, completamente acuadas, já também conferindo aspectos fantasmagóricos para suas figuras. Em primeiro plano, Casey e Hedwig se encaram. Há uma conexão forte entre ela e as identidades de Kevin que somente é revelada ao final.
Depois do clímax da cena apontado por esse enquadramento, Hedwig se livra da hipnose. Volta ao centro máximo do enquadramento, a câmera se afasta de Casey, a abandonando, e Hedwig foge as trancando novamente.
As garotas, revoltadas, decidem fugir de modo não tão brilhante e a câmera aponta isso as tratando com bastante frieza, retornando aos ditames da decupagem estabelecida em cenas anteriores. É justamente na fuga que finalmente temos um movimento de câmera que será recorrente em diversas cenas do filme.
Aqui que Shyamalan finalmente desnuda sua estética revelando a profunda inspiração em Stanley Kubrick. Sim, isso mesmo. A estética de Shyamalan bebe muito do que Kubrick proporcionou para o Cinema.
Shyamalan & Kubrick
Ao longo de Fragmentado inteiro, Shyamalan adotou um comportamento de câmera muito similar ao que Kubrick praticava em sua filmografia. Aqui, em especial, há forte correlação estética com O Iluminado.
Perceba, temos enquadramentos centrais que comandam a encenação – em Fragmentado há maior quantidade desses em relação ao clássico de Kubrick – e não o contrário como ocorre em diversos filmes de Hollywood. Por diversas vezes, a relação da câmera com os atores quase chega a quebrar a quarta parede do mesmo modo que ocorre em O Iluminado.
E agora, com a fuga de Claire, a opção de gravar a personagem correndo através de um corredor infindável com o auxílio de uma steadicam, o cumprimento a Kubrick torna-se inegável. A simbologia da imagem é tão forte que com pouca reflexão já é fácil associar essa fuga com a de Danny durante o clímax de O Iluminado no labirinto do Hotel Overlook.
Shyamalan quer tanto que você perceba isso que o mesmo movimento é retomado em pontos chaves da obra como no clímax. Esse movimento da câmera invisível fantasma entre os corredores é presente em diversos pontos de O Iluminado também, como nas cenas dos percursos de Danny com seu triciclo nos corredores estranhos do hotel.
É importante falar um pouco sobre os nítidos contrastes entre a primeira vez que o corredor aparece com a última. Na primeira, Claire nitidamente é a mais despreparada. Foge com desespero e age por instinto: se esconde em um armário, uma reação natural de alguém em pânico. O problema é que ela fracassa rapidamente por conta da obviedade de seu plano. É uma presa fácil.
A câmera basicamente evoca a estranheza de O Iluminado nas cenas dos túneis.
Quando é Casey que foge, já munida de conhecimento e com a escopeta, parte para o mesmo quarto dos armários, mas procura munição para sua arma a fim de eliminar a Besta. Nisso, novamente Fragmentado conversa com O Iluminado.
Here's Johnny!
Na fuga, tanto Casey quanto Wendy buscam refúgio em um espaço confinado. Elas dependem apenas da proteção de uma jaula (Fragmentado) e de uma porta (O Iluminado) que impedem o acesso de seu perseguidor lunático – até mesmo os enquadramentos são muito similares. Ambas portam armas completamente ineficazes para matar seus algozes. E eles conseguem quebrar as barreiras com facilidade. Dúvida da semelhança gritante? Basta comparar as imagens acima e abaixo desse parágrafo.
Here's the Beast!
Em Fragmentado, Shyamalan opta por resolver o conflito de um modo bastante condizente com o que estava construído até então – repare que a relação íntima da câmera com Casey e Hedwig se repete com algumas sessões de Dennis com a terapeuta com leves alterações. Seja pelos contrastes entre as garotas, seja pelo trabalho da câmera e do áudio, Shyamalan já vinha preparando o terreno para apresentar um final corajoso que foge do óbvio.
Os três porquinhos
A estética do filme pode sim conversar muito com O Iluminado, porém, também vejo que a narrativa é uma ótima alegoria para contos ou fábulas: no caso, vou me atentar apenas às semelhanças da narrativa de Fragmentado com o conto dos três porquinhos que imagino que vocês já conheçam bem.
Os primeiros porquinhos se dão terrivelmente mal quando o Lobo assopra suas casas até desmoroná-las. Suas fundações são fracas assim como Claire e Marcia são: tem ideias equivocadas que refletem total imprudência diante o tamanho da ameaça (uma tenta fugir e outra parte para o confronto atacando Patricia por trás). O discurso sobre força e fragilidade é expressado por esse contraste tremendo entre as personagens.
Quem tem medo do Lobo Mau?
Assim como no conto, as duas morrem e são devoradas pela Besta. Casey seria o terceiro porquinho nessa história. A garota já é preparada, toma ações inteligentes para contornar sua situação, confronta o inimigo de modo cerebral: suas fundações são firmes e fortes assim como a casa de tijolos do porquinho.
Claro que por se tratar de um filme completo e não uma história infantil, Shyamalan dá a substância necessária para justificar essa tremenda força psíquica da personagem elaborando um confronto cerebral e físico que corresponde com as forças antagonistas – Casey tem que definir estratégias rapidamente contra diversas personalidades da mente quebrada da Besta para sobreviver.
E há muito do Lobo na Besta, principalmente na escolha estética do olhar de Shyamalan para revelar em detalhes a transformação física de Kevin sob essa identidade – uma transformação digna de representações assustadoras de homens virando lobisomens.
O Cinema que ousa dizer seu nome
Pouco a pouco, Shyamalan deixa seu filme mais solto permitindo maior mobilidade a câmera conforme seu filme e seu assunto deixa de ser tão restrito a um lugar ou conforme as amarras da Besta vão se afrouxando.
Também existem conexões muito fortes entre Fragmentado e O Silêncio dos Inocentes, seja na narrativa ou na estética. Entretanto, isso é um assunto muito bem-vindo para outro momento, já que esse artigo está consideravelmente extenso. O que eu gostaria de provar aqui com esse artigo é que Shyamalan não é nenhum imbecil. Esse cuidado estético no primeiro ato da obra consegue potencializar e já preparar o terreno de diversas reviravoltas da narrativa anteriormente apontadas pela imagem.
Ainda há diversos elementos relevantes para falar neste filme como o quarto de Hedwig, cheio de brinquedos ou pelúcias de animais selvagens que já dão a dica sobre o Zoológico ou até mesmo sobre a encenação inteligente que revela o plano de Dennis em se disfarçar de Barry para a terapeuta antes mesmo da revelação ser exposta em texto.
Não é algo ordinário nos filmes de hoje cada vez mais massificantes, feitos às pressas com diversas equipes desmanteladas ao redor do mundo para entregar as obras em deadlines absurdas de apenas 1 ano de produção efetiva até o lançamento comercial.
É por conta de Fragmentado e do cuidado e carinho de Shyamalan com seu filme que ainda temos respiros revolucionários – esse lance da conexão do filme com outra obra anterior é algo absolutamente inédito para o cinema hollywoodiano – que ousam fugir do padrão enlatado e inócuo que a indústria só tende a seguir com cada vez mais afinco.
Shyamalan prova que apenas com um orçamento muito modesto, nomes desconhecidos, uma carreira que já era considerada arruinada por diversos sabichões da crítica e “gurus” da cultura, é possível fazer do cinema novamente Cinema.
Entre eles, acredite, há uma enorme diferença. E nós andamos precisando muito de filmes com estéticas tão apuradas e inteligente como essa que Shyamalan nos ofereceu aqui.
Especial | Power Rangers
Queríamos fazer algo especial de verdade para o lançamento de Power Rangers nos cinemas. Basicamente, todo o conteúdo do site foi alinhado para comemorarmos a volta dessa sensação dos anos 1990 que fora tão importante para a nossa infância. E, com muito orgulho, anunciamos que sim. Realmente acredito que fizemos um ótimo trabalho juntando diversos textos de tantos temas que envolvem o seriado nostálgico. Confira todo o nosso material original sobre Power Rangers logo abaixo! Para ler as matérias, basta clicar no título de cada uma delas.
Artigos
UMA ANÁLISE COMPARATIVA DAS VERSÕES DE 1995 VS. 2017
CINE VINIL #01 | LADO A: PORQUE AMEI POWER RANGERS
CINE VINIL #01 | LADO B: PORQUE ODIEI POWER RANGERS
Críticas
CRÍTICA | POWER RANGERS
CRÍTICA EM VÍDEO | POWER RANGERS
Listas
OS 10 MELHORES POWER RANGERS VERMELHOS
AS 5 MELHORES TEMPORADAS DE POWER RANGERS
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OS 10 PIORES MONSTROS DE POWER RANGERS
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OS 10 MELHORES MEGAZORDS DE POWER RANGERS
7 JOGOS INESQUECÍVEIS DOS POWER RANGERS
OS 10 MELHORES RANGERS ESPECIAIS
OS MUITOS RANGERS QUE TOMMY OLIVER ASSUMIU
5 ITENS QUE TODO FÃ DE POWER RANGER PRECISA CONHECER
OS 10 MELHORES TOKUSATSUS
Artigo | As Conexões de Fragmentado com Corpo Fechado
Spoilers!!! DUH!
A sensação do momento é o renascer completo do diretor M. Night Shyamalan (Corpo Fechado) com Fragmentado. Caso você tenha caído de para-quedas nesse artigo sem ter visto ao filme ainda, recomendo dar uma rápida passadinha no cinema e voltar diretamente para cá para caçarmos juntos tais características. Caso você já tenha visto ao filme e ainda não entendeu aquele final cabuloso, fique tranquilo que a gente também já explicou aqui.
Agora, se já sabe do que estamos falando, é hora de tirar o elefante da sala e começar a falar além do óbvio sobre como Fragmentado está conectado a Corpo Fechado, com direito a citações diretas ao Senhor Vidro e David Dunn. Porém, há muito mais que isso! Há algumas similaridades repletas de sutilezas que tornam-se óbvias depois de ver os dois filmes em sequência.
Pôsteres
Sim! Ambos os pôsteres dos dois filmes compartilham semelhanças óbvias. A principal delas são as rachaduras que as artes possuem. Somente com o pôster, Shyamalan já indicava que Fragmentado estaria ligado a sua obra anterior. Quando alinhados, até mesmo as rachaduras encaixam! Brilhante.
Kanye West
Kanye West é uma recorrente em Fragmentado. O porquê disso tudo vem por conta da música Though The Wire na qual o cantor referência Corpo Fechado com a letra: “Unbreakable, what you thought they called me Mr Glass”. Unbreakable é o título original de Corpo Fechado e Mr. Glass é o apelido que Elijah Price, antagonista do filme, recebeu na infância.
Para responder a homenagem, Shyamalan torna Kanye West o artista favorito de Hedwig, uma das 23 personalidades de Kevin em Fragmentado.
Música
A música tema estupenda de Corpo Fechado, “Visions” toca sutilmente na última cena que as personalidades de Kevin conversam entre si. Na cena final, na qual Bruce Willis faz uma ponta, o tema fica ainda mais alto para o espectador mais atento reconhecer imediatamente.
Kevin em Corpo Fechado
Muito se discute se Kevin realmente aparece em algum momento de Corpo Fechado. Alguns especulam que ele apareça nesta cena aqui:
Mas levando em conta informações dadas na narrativa de Fragmentado, por exemplo, o fato de Kevin ser zelador do zoológico por 10 anos, além do tempo diegético ocorrer em 2016, é difícil crer que o garotinho que aparece no filme anterior, situado em 2000, seja de fato Kevin. Mas a mágica continua.
Pai de Kevin em Corpo Fechado
A infância e vida de Kevin foram arruinadas por conta dos abusos físicos que sofria de sua mãe neurótica, insana e, possivelmente, viúva. A possibilidade do pai de Kevin ter morrido no acidente de trem que marca o começo de Corpo Fechado é extremamente alta e mais alta ainda é a chance dele ser o último homem que morre no hospital. Vale a pena revisitar o filme somente por esta cena.
A Busca Pela Identidade e os Trens
Ambos os filmes são, antes de tudo, um manifesto pela busca da própria identidade e propósito na vida. Isso vale para Elijah, David e para as personalidades de Kevin que sejam ser reconhecidas pelo mundo ao redor. Em Corpo Fechado, o vazio existencial de Elijah e David são preenchidos quando enfim descobrem quem eles são no mundo e um para o outro: vilão e herói fadados a se combaterem até o fim exatamente como nos quadrinhos tão admirados por Mr. Glass.
Após muita negação, David só assume sua identidade de herói depois de ir até um depósito onde o que restou trem está guardado e se confrontar com a realidade dos destroços: ninguém sobreviveria àquele acidente sem ao menos sofrer ferimentos graves.
Diante dos escombros, uma memória suprimida vem à tona: a do grave acidente que sofreu em sua juventude. Nisso, David percebe que nem mesmo na colisão de seu carro, acabou ferido enquanto sua namorada havia quebrado uma perna.
Ou seja, na trama de Corpo Fechado, o trem tem dupla importância: revela o herói para o vilão e, posteriormente, revela o herói para si mesmo. Catarse dupla.
Já em Fragmentado, quando Patricia, Dennis, Hedwig e todas as identidades de Kevin partem para libertar a Besta, novamente há a importância do trem definida. A Horda se dirige a uma estação de trens tão deserta quanto o galpão onde David encontrou seu verdadeiro eu.
Ali, Kevin faz uma homenagem a seu pai, deixando uma flor no chão demonstrando um raro momento de afeto genuíno. Ou ele estaria agradecendo o catalisador da catarse para liberar a Besta. É ambíguo e funciona. Dentro do vagão silencioso, finalmente a Besta é libertada e surge disparando para sua glória sanguinária.
O interessante que esse êxtase é comum para David também. Assim que aceita sua identidade, David parte para uma movimentada estação de trem e deixa as pessoas esbarrarem nele para descobrir algum malfeitor a fim de finalmente cumprir seu papel. Já a Besta, corre para finalmente assassinar suas vítimas, marcando a primeira vez que o corpo de Kevin matará alguém.
Colocando as cenas lado a lado, até mesmo a estética do filme consegue criar contrastes profundos absolutos. Enquanto a epifania de David resulta em uma câmera bastante movimentada e elegante aliada a um tema que eleva sua figura como um verdadeiro herói, em Fragmentado há exatamente o contrário: a câmera se esconde do protagonista.
Os planos congelados, estáticos e distantes revelam um medo anormal da câmera, assim como a escolha dos pontos de vista quase voyeurísticos para não revelar sua presença para a criatura. É como se a própria câmera temesse pela sua própria vida durante o retorno do vilão para sua morada.
Os títulos e a Promessa do conflito
A tradução de Unbreakable no Brasil para Corpo Fechado não funciona muito como contraste para Fragmentado. Mas no original, os títulos revelam-se totalmente antônimos. Inquebrável vs Fragmentado. Os títulos também conversam diretamente com a natureza definidora dos protagonistas. Também repare na tipografia muito similar nos pôsteres.
Quando colocados lado a lado e pelo final de Fragmentado, temos a promessa do conflito agora muito aguardado: David Dunn vs. A Horda e Mr. Glass.
Isso abre um campo repleto de especulações aqui no qual é fácil se perder com tantas possibilidades. A mais óbvia delas é que a Besta somente mata aqueles que são 'perfeitos', que não são quebrados como ele é. Então como ele matará alguém que inquebrável como David Dunn? Outra especulação mais que bem-vinda é oferecida pelo breve diálogo que Dunn tem com a mãe de Elijah no final de Corpo Fechado: “Há sempre dois tipos de vilões: o soldado que luta com o herói com seus próprios punhos. E a verdadeira ameaça: o arqui-inimigo genial que luta com a mente.”.
Já imagino que tenham captado. Elijah e Kevin podem fazer a dupla perfeita para destruir David. Elijah, com o corpo destruído, conta apenas com sua mente para arquitetar planos terríveis para quebrar o espírito do herói. Enquanto Kevin, de mente destruída e fragmentada, conta com a força física absurda da Besta para quebrar David na porrada.
Por enquanto é isso. Esse não será o último artigo dedicado a Fragmentado. Ainda teremos mais um nessa semana. Por isso, fique atento e retorne ao site para ler mais conteúdo sobre esse filme e muito mais!
Crítica | A Visita
Na nova Hollywood dos anos 1990, lar de Quentin Tarantino e Tony Scott, outra pessoa ganhava destaque absurdo com um nome de exotismo encantador: M. Night Shyamalan. Emplacou de vez logo dois clássicos: O Sexto Sentido e Corpo Fechado. Depois, decaiu um pouco a qualidade, mas ainda trazia bons filmes como Sinais e A Vila. Pois desde então, Shyamalan morreu para mim. Uma má fase que vinha desde A Dama na Água para chegar no ápice da porcaria em 2013 comDepois da Terra. Na época, eu ficava intrigado. Como um diretor que fez apenas dois ótimos sucessos continuou tendo chances em Hollywood com diversos filmes ruins e fracassos de bilheteria? Não faço ideia. Talvez Shyamalan tenha parte com forças sobrenaturais, porém é inegável que, finalmente, ele entregou algo satisfatório. Aleluia!
Esta incrível pequena surpresa se chama A Visita. Novamente, Shyamalan trabalha com crianças e as envia diretamente para agradável casa da vovó e do vovô. Entretanto, os irmãos Becca e Tyler nem imaginam as bizarrices que o casal de simpáticos velhinhos faz depois das 21:30. E a melhor saída para os dois é se trancafiar no quarto e rezar para a semana da visita passar o mais rápido possível.
Este é um dos filmes mais autoconscientes de Shyamalan dos últimos tempos. Isso é ótimo. Ele finalmente se tocou que seu nome virou sinônimo de obras esdrúxulas e não mais de arte renomada. Aqui, ele segura bem as pontas ao finalmente abraçar a simplicidade. Desde o formato escolhido para a filmagem até a própria narrativa.
Aqui se trata de um mockumentary. Ou seja, é um falso documentário. O filme justifica muitíssimo bem a escolha do formato que muitos podem confundir com found footage. Não é o caso. Becca é uma aspirante a cineasta e tem vontade de gravar a estadia na casa dos avós em uma tentativa de reconciliar os senhores com a sua mãe. É uma busca pela conciliação. O que é algo belo neste filme: as relações familiares.
Rapidamente nos sentimos ligados aos dois irmãos simpáticos que trocam provocações e traquinagens de tempos em tempos. De fato, muitas vezes A Visita não parece ser um filme de terror e sim de comédia tamanha a qualidade das piadinhas entre os irmãos. Porém, apesar da comédia pender para o ridículo às vezes, não pense que é porque Shyamalan voltou a ficar descerebrado. Isso é proposital para gerar o contraste forte pelo sempre presente twist, a reviravolta final e derradeira, característica autoral do trabalho do diretor. Como na maioria das vezes, ela é forte, seca, chocante e cruel. Eu fiquei verdadeiramente surpreso como há tempos não ficava – parecia aquelas senhoras fofoqueiras que assistem às novelas e se surpreendem com as reviravoltas mais dúbias. Aliás, até mesmo o twist do longa é simples e pode ser previsível para mentes mais cínicas que a minha.
Além da simplicidade, o longa nos cativa pela boa dinâmica de enredo. As coisas acontecem rápido. Em poucos minutos vemos a Vovó fazer umas loucuras assustadoras pela casa. Ainda que muitos desses momentos de tensão da primeira hora do filme sejam razoáveis e clichês, Shyamalan compensa com uma encenação satisfatória, timing certeiro e ótima ambientação sonora. É uma pena que nas primeiras três noites as coisas sejam muito parecidas e que realmente não apresentem ameaça alguma para os protagonistas.
Aliás, a câmera aqui é um personagem. A encenação se concentra no jogo de duas câmeras EOS C300 da Canon – já se trata de câmeras profissionais de cinema, as que aparecem em vídeo, menos robustas, são trucagem. Os irmãos empunham as câmeras e filmam tudo que vem pela cabeça, na teoria, pelo menos. É evidente que de fato os atores mirins não filmam porcaria nenhuma e que as cenas são dirigidas pelo Shyamalan acompanhadas da refinada fotografia de Maryse Alberti que trata a luz com muita delicadeza refletindo um ambiente ao mesmo tempo acolhedor, bucólico, nostálgico e assustador.
Como crítico, é complicado analisar a fotografia claramente trabalhada profissionalmente para dar a impressão que pertença a um mockumentary caseiro feito por uma garotinha de treze anos (na diegese). Dessa vez, tomo como licença poética, pois a luz tem aparência naturalista (apesar de não ser) e se comporta amadoramente quando o texto exige. Então, para mim, se trata de um ótimo trabalho de cinematografia. O único porém que eu acho completamente absurdo são as constantes passagens de foco que a câmera faz quando supostamente não há ninguém as manuseando. É algo que quebra a diegese e incomoda. Entretanto, as passagens de foco realmente são necessárias para guiar o olhar do espectador e auxiliar no visual da cena. Enfim, é algo preciso, mas que incomoda por não ser justificado de maneira competente.
Shyamalan falha ou acerta apenas com o Vovô e a Vovó, seja intencional ou não, o filme sai enfraquecido ou se torna brilhante – depende do ponto de vista que você escolher, afinal nós nunca conhecemos de fato os personagens. O diretor elabora sim alguma humanidade nos dois esquisitões muito bem interpretados por Deanna Dunagan e Peter McRobbie. Durante o filme, nós vemos pouca interação significativa entre os jovens e os avós, porém, se pensarmos bem, isso é justificado no final mesmo que deixe a desejar um pouco. O que talvez decepcione é a falta da presença da atmosfera ameaçadora para os dois jovens durante boa parte do filme. Apenas durante os trinta minutos finais que a coisa pega fogo e ali Shyamalan mostra porque era considerado o novo Hitchcock nos anos 1990. Claro, lhe falta a sutileza de outrora, mas o trabalho de tensão e do jogo de cena que explora as bordas dos enquadramentos em vez de simplesmente jogar a ação na cara do espectador, é algo delicioso de se assistir.
Até mesmo há apresentações de algumas reflexões sobre a terceira idade, de modo bem-humorado, claro. Sei que o filme não se propunha a isso, mas em determinada cena, acompanhamos o ponto de vista dos avós. Ali, teria sido uma ótima oportunidade para incrementar mais a relação do avô com a avó deixando esse conhecimento restrito apenas para os espectadores, por algum tempo. Na teoria do cinema e do suspense, geralmente quando nós sabemos de algo que os protagonistas ainda não sabem, a tensão se eleva e passamos a ficar mais aflitos.
O diretor também faz auto referencias certeiras. Aqui, a encenação de algumas passagens lembra momentos marcantes de O Sexto Sentido e Sinais. Também há um evidente cuidado para construir a atmosfera seja com alguns establishing shots ou pelo próprio trabalho do design de produção com a casa dos avós. Aliás, importante citar o ótimo rendimento que Shyamalan teve com seus atores mirins Olivia DeJonge e Ed Oxenbould. Ele nasceu para trabalhar com crianças.
A Visita marca, enfim, o retorno de Shyamalan à boa forma. Não é um longa excepcional de suspense ou algo significativamente importante para o gênero. Na verdade ele não apresenta nada de novo, mas sim uma exibição de como Shyamalan aborda o Suspense com um formato relativamente novo. Se trata apenas da forma mais pura de cinema – a do entretenimento despretensioso, simples e divertido. Assistir a esse filme é uma tarefa gostosa e, acredite, eu estava muito pessimista e carrancudo antes da sessão. Além disso, é ótimo ver que Shyamalan está tomando jeito – espero que continue assim por um bom tempo. Se você gosta de filmes sobre gente esquisita com um bom suspense, alguns sustos baratos (jump scares) e boas piadas, está aí uma ótima pedida para o fim de semana.
No fim das contas, A Visita rende uma boa visita ao cinema.
A Visita (The Visit — EUA, 2015)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Olivia DeJonge, Ed Oxenbould, Deanna Dunagan, Peter McRobbie, Kathryn Hahn, Samuel Stricklen, Jorge Cordova.
Duração: 93 minutos.