Crítica | Alice Através do Espelho
No último texto que dediquei aos filmes Mogli, apontei como a Disney iniciou a febre dos remakes de contos infantis já vistos em suas clássicas animações. O pontapé inicial se deu com Alice no País das Maravilhas, filme de 2010 e último grande sucesso financeiro do excêntrico diretor Tim Burton. Mesmo faturando 1 bilhão de dólares com o último filme, estranhamente a Disney não encaminhou a sequência logo de imediato como qualquer outro estúdio teria feito na sede de lucrar mais uns bilhões de bilheteria. Foram necessários seis anos inteiros para que enfim Alice Através do Espelho chegasse aos cinemas.
Após algum tempo trabalhando como capitão do navio de seu pai, explorando as rotas mercantis entre Inglaterra e China, Alice retorna ao Reino Unido para descarregar as mercadorias e rever sua mãe. Chegando lá, descobre que terá de ir a um baile de gala oferecido pelo seu ex-pretendente e também dono da frota. Porém, novamente seu destino é alterado. Ao reconhecer Absolem, Alice o persegue até acabar entrando dentro de um espelho que a leva, mais uma vez, ao País das Maravilhas.
Dessa vez livres do reinado sombrio da Rainha de Copas, os amigos de Alice estão preocupados com o estado de saúde do Chapeleiro Maluco que insiste em acreditar que sua família esteja viva, apesar dos eventos dos filmes anteriores terem comprovado o contrário. Sem sucesso em convencê-lo do trágico destino de seus familiares, Alice parte em busca do auxílio de Tempo para tentar viajar de volta ao passado a fim de salvar a família Chapeleiro da dolorosa morte causada pelo Jaguadarte, além da vida do próprio amigo que se encontra sem forças para viver.
Linda Woolverton, uma das mais tradicionais roteiristas da Disney, retorna à função para trabalhar novamente com os personagens criados por Lewis Carroll, porém muito se engana quem pensa que a adaptação de Alice no País dos Espelhos seja fiel. O trabalho de Woolverton segue a linha do texto anterior: totalmente livre para a criação. Porém, apesar do estúdio apostar na imaginação da roteirista, ela entrega um roteiro hot pocket – o básico do mais básico, porém divertido e passageiro.
Não há grandes esforços para construir essa história. O destaque principal fica por conta do uso da viagem do tempo que Alice realiza com o auxílio de um aparato do pseudo-antagonista Tempo. Além disso, o tom mais light e menos sombrio do que visto no filme de Burton tornam a fita muito mais agradável para o público geral. Linda sabe injetar energia na história toda vez que é necessário. Ou seja, ao menos três reviravoltas grandes conseguem mudar o rumo da narrativa a levando para lugares até mesmo inesperados em uma seleta cena, rapidíssima, mas corajosa por inferir um contraste tão vibrante entre o mundo real cru com o da imaginação impossível do País das Maravilhas.
Entretanto, mesmo com essa guinada curiosa em um dos twists, Woolverton pesa demais no uso de clichés que acabam tornando o filme deveras previsível, além da verborragia expositiva que insiste em explicar muitas coisas óbvias – Alice é quem mais explica o filme para a platéia. Muitas relações entre personagens novos não conseguem fugir disso e muitos dos outros se comportam mesmo como meros coadjuvantes. O desenvolvimento na jornada, feito de modo adequado, se restringe única e exclusivamente ao drama familiar da Rainha de Copas com a Rainha Branca. Mesmo o arco do Chapeleiro e sua família ser a força motriz do filme todo, é um tanto desconfortável isso se resolver com certa facilidade, tudo em um passe de mágica. Com ele, há ao menos um exercício dramático interessante sobre o uso narrativo de um item ligado à infância do personagem – ainda que dê origem a mais um conflito cliché.
O drama das duas rainhas irmãs também não foge de uma estrutura já conhecida ou até mesmo um questionamento comum: “Se você tivesse a oportunidade de voltar no tempo, impediria a existência de algum tirano genocida? ”. Obviamente, por se tratar de um filme infantil, isso é bem apaziguado e misturado com humor. Ainda com a temática interessante nesse núcleo, às vezes, é melhor deixar histórias de origem debaixo dos tapetes. O que Woolverton traz para explicar a motivação da maldade da Rainha de Copas é, digamos, esfarelado.
Aliás, os problemas de motivação existentes no primeiro filme são praticamente resolvidos aqui. Alice, Rainha de Copas, Chapeleiro Maluco, Rainha Branca e Tempo possuem motivos, mesmo que fracos, para agirem em favor do avanço da narrativa. Tempo, infelizmente, é um personagem fraco, de uma nota só, ainda que a interpretação do sempre caricato Sacha Baron Cohen dê energia para sua perseguição tresloucada contra Alice.
O roteiro é bastante contraditório nas repetitivas frases que ele profere sobre ser imortal quando nitidamente, ao longo do filme, ele vai perdendo forças. Pode até ser encarado como uma ironia ou um discurso debochado sobre arrogância, porém como o personagem não aprende durante a jornada, é difícil defender o tratamento raquítico. Aliás, é bizarríssima a realocação da Rainha de Copas nessa aventura depois de ser banida no filme anterior. Woolverton não tem muito interesse em explicar isso para o público.
Com Alice, o tratamento se restringe mesmo aos problemas restringidos ao mundo real. Há uma boa temática de libertação feminina, além de Wasikowska finalmente abandonar suas expressões de “mosca morta” tornando sua Alice uma boa anfitriã principal para acompanharmos a razoável e divertida história.
Tomando o lugar de Tim Burton na direção, a diferença de tom trazida por James Bobin é sentida imediatamente. Sua ação é mais imaginativa, a câmera tem papel mais participativo e criativo, a atmosfera é mais leve, os personagens são menos afetados principalmente a Rainha Branca e o Chapeleiro Maluco os tornando mais agradáveis e relevantes dentro do filme. Os enquadramentos são ricos sabendo muito bem preencher a presença massiva do chroma key que traz vida ao País das Maravilhas.
Se aproveitando dessa jornada pré, durante e pós reinado da Rainha de Copas, Bobin, o fotógrafo Stuart Dryburgh e o desenhista de produção Dan Hennah acertam em cheio no visual impecável desse filme. Desde a concepção sombria repleta de arquitetura gótica abarrotada de relógios no palácio de Tempo até aos tempos áureos de um País das Maravilhas mais alegre, vivo e colorido. Destaque, claro, para a mesa do chá, agora impecável como se deveria ser com doces e bolos fartos, pratarias lustrosas e porcelana refinada fugindo da concepção derrotista e deprimida de Burton. Essa atenção aos detalhes com o visual e direção de arte é o que realmente elevam o filme. Mesmo que Dryburgh não arrisque criar metáforas visuais que fujam do básico, é louvável a paleta de cores tão diversificada, além da iluminação mais inspirada utilizando de contraluzes demarcadas para criar verdadeiras planos “pintados” na tela – exemplo disso é onde Tempo controla os relógios de “vida” de cada cidadão do mundo mágico.
Bobin também trabalha com mais elegância as questões de ponto de vista quando Alice altera de tamanho na jornada. Aliás, há até mesmo um caríssimo plano-sequência durante o explosivo clímax do filme que consegue ilustrar bem o senso de urgência, aventura e mágica perpetrado no fim da jornada. Já a lendária figurinista hollywoodiana Colleen Atwood marca presença mais uma vez com figurinos e chapéus diversos para incrementar ainda mais a intensa experiência visual que este filme é.
Porém, até mesmo o departamento técnico artístico consegue falhar. Isso se dá por conta do desperdício do bom design dos ajudantes de Tempo. Ao decorrer do filme, eles se aglomeram no intuito de auxiliar seu mestre, porém há certa assombração vinda de outros objetos motorizados que se transformam em robôs golem. É algo que, infelizmente, não foge do mau cliché que parece condenar essa fita.
Massacrado lá fora, a recepção de Alice Através no Espelho foi mal-humorada demais. O filme peca pelo uso de clichês em demasia, na falta de interesse confeccionado para uma história que já fora vista muitas vezes antes considerada, então, manjada por muitos espectadores. É sim um produto reembalado, porém repleto de carisma. A direção de Bobin e a adequação menos excêntrica desse mundo funcionou para mim tornando a experiência de assistir ao filme algo bastante divertido e agradável. Porém, mesmo assim, o roteiro fraco tira o brilhantismo técnico. Para as crianças, não deixa de ser uma ótima pedida, afinal se trata de um entretenimento rápido, fácil e inofensivo. E muito expositivo.
Crítica | Jogo do Dinheiro
Dinheiro, dinheiro e dinheiro. O cinema americano está dedicando atenção especial para filmes de temáticas econômicas, muitos deles inspirados pelo crash de 2008. Assim como Margin Call, O Lobo de Wall Street e A Grande Aposta, O Jogo do Dinheiro se baseia nas histórias de corrupção dos banqueiros do distrito financeiro. Porém, ao contrário dos outros, Jodie Foster, diretora do filme, mistura a grande história de conspiração com o ambiente televisivo. Uma mistura de Rede de Intrigas com os filmes já citados.
George Clooney vive George Clooney – como de costume em seus papéis. Dessa vez se vestindo como Lee Gates, um apresentador caricato e sensacionalista que oferece dicas econômicas para investidores em potencial a entrar na bolsa de valores. Dando uma dica errônea para seus telespectadores comprarem ações de uma empresa que leva 800 milhões de dólares de prejuízo do dia para a noite, Lee vê sua vida ficar de cabeça para baixo quando um de seus aconselhados invade o estúdio durante o programa ao vivo, armado de um colete-bomba, ameaça explodir e matar todo mundo reivindicando que o CEO da empresa que ele comprou ações esclareça como aquilo ocorreu tão rapidamente. Nisso, Gates e sua diretora Patty Fenn têm que lidar o sequestrador enquanto a polícia maquina uma operação de resgate.
Há forte presença de Aaron Sorkin no roteiro do trio Linden, DiFiore e Kouf. Entretanto, os três não são Sorkin. Investindo muito em diálogos rápidos que trazem à tona as características dos personagens principais, o trio enfatiza as relações humanas entre sequestrado e sequestrador ante o plano superior do acontecimento – embora Foster lance imagens diversas do público reagindo ao programa conforme o filme progride.
A narrativa se concentra consideravelmente somente em um ambiente para avançar a história, mas ainda se trata de uma aventura de múltiplos protagonistas. Acompanhamos as ações dos policiais e dos bastidores do programa centrado em Patty e suas tentativas de conter o sequestrador, contatar o CEO da empresa, além de investigar a “conspiração” da bolsa de valores.
O potencial da história seria mesmo tremendo. O argumento é excelente, este Dia de Fúria do sequestrador força alguma simpatia, sua motivação é clara, porém não fosse o texto abarrotado de clichês do novo século aliado de maniqueísmos baratos vindos do ativismo de Foster, teríamos algo relevante. A começar, os três personagens que são trabalhados não fogem do básico em termos de concepção e desenvolvimento: o apresentador arrogante cheio de si, caricato, divorciado, rico, de olhar viciado, representação de tudo que há de errado no mundo que tem seus olhos “abertos” diante da incredulidade de uma sociedade doente; a diretora, mulher de meia idade, solteirona, workaholic, rígida, mestre no que faz, mandona, vencedora de prêmios de jornalismo, integra que já desgosta de seu jornalista, mas que subitamente retoma a simpatia diante do temor de perder a vida e o amigo, além do clássico loser tapado, pobre, de família cruel que toma medidas drásticas para conseguir uma declaração de culpa do CEO da sua empresa – mesmo assim, ainda acontece certa expiação de culpa nas ações de Kyle, o sequestrador.
Nesse jogo tão pobre, enviesado de relações humanas, Foster consegue criar a tensão necessária para te manter acordado. Com o carisma de Clooney, nos afeiçoamos mais ao ator do que com o personagem, mas no caso, funciona para que a apreensão surja no espectador. Além disso, há um bom ritmo de reviravoltas que sempre ocasionam em algum momento inspirado para a direção do filme, além de muitas delas tentarem quebrar os clichês de situações de filmes desse gênero. Sim, um filme que tem personagens clichês que sofrem reviravoltas que visam quebrar a previsibilidade que essas histórias sofrem – um paradoxo! Entretanto, depois de muitas lágrimas, suor e desespero, a reviravolta que dá origem ao terceiro ato é tão absurda, tão conveniente com a causa do sequestrador que praticamente implora pela sua suspensão de descrença.
É nesse momento que o filme de Foster deixa de ser filme para se tornar peça panfletária das causas que ela apoia. Há quem goste de filmes peças de propaganda, mas também há quem procura apenas por um bom entretenimento alheio às ideologias de seus realizadores. Para o azar do filme, eu não gosto. Mas fica a observação.
Para solucionar rápido esse conflito impossível e totalmente utópico, os roteiristas e a diretora pouco se importam em oferecer algo original. Metem logo uma dupla de hackers a la Matrix que conseguem informações do mais alto sigilo dentro da deep web. Uma muleta de roteiro horrorosa, um deus ex machina dos mais vergonhosos dão origem ao clímax que mais se assemelha ao fim de um episódio corriqueiro de Scooby Doo. Além disso, por um motivo qualquer dentro do filme, ela elabora uma má imagem para o núcleo dos policiais nova-iorquinos os julgando despreparados. Uma crítica aberta, porém, graças aos céus, feita somente na imagem. Aliás, essa grande mensagem da autora se concentra muito na forma do filme, já que pouco é de fato falado. Porém, duvidando da inteligência dos seus espectadores, ela também frisa uma sentença definitiva, imperativa, em meio a outras durante uma sequência que aglomera a repercussão jornalística que evento gerou.
Aliás, como não poderia deixar de ser, ela encaixa o já clássico “retrato de uma sociedade doente, vazia, corrupta, egoísta, de valores tortos e narcisista” ao fim. Mesmo manjado, é possível fazer coisas maravilhosas com esse tema, como Taxi Driver e O Rei da Comédia, porém, mesmo sabendo conduzir corretamente a técnica de um filme cheio de firulas contemporâneas que tenta (e falha) ter sua própria identidade, Foster não é um Martin Scorsese. Até mesmo o grande fotógrafo Matthew Libatique entrega o mais básico em termos de cinematografia seguindo a tendência dos filmes acinzentados, opacos, dessaturados das luzes amplamente difusas.
Apesar de um roteiro tão razoável, da mensagem enviesada conduzida com a mão pesada da diretora, Jogo do Dinheiro é um filme que consegue entreter – muito se deve também a sua curta duração. O humor é acertado, a relação do sequestrado com seu captor é interessante, além do cenário disso acontecer em um curto espaço de tempo em um programa televisivo transmitido ao vivo ser original. A condução pode ser atrapalhada, as atuações cumprem o básico, além de nos incutir certo sentimento de essa obra seja bastante vazia, porém, mesmo que sem intenção, Foster consegue nos oferecer uma mensagem que está acima de sua visão.
Caso não tenham notado, esse é o primeiro lançamento de um filme original para as telas de cinema no ano de 2016. Somente no fim de maio que recebemos algo que foge das adaptações de livros, histórias em quadrinhos e videogames, de sequências, spin offs, reboots e remakes. Se isso já não é um atestado que a criatividade nessa arte está na beira do precipício, não sei mais o que é. Ironicamente, o Money Monster é quem traz essa triste realidade.
Crítica | Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos
Pelo jeito, o que a Blizzard construiu solidamente ao longo de décadas, Duncan Jones conseguiu abalar negativamente com apenas 123 minutos de filme. A produtora de games já originou obras que realmente ameaçavam seu convívio social dentro da nossa realidade. Pergunte ao seu amigonerd quanto tempo foi gasto jogando Diablo II ou III, Starcraft, Warcraft, World of Warcraft ou até mesmo agora com Overwatch. Certamente a resposta será bem dramática: “muitas e muitas horas! ”. A Blizzard faz isso como ninguém, além de contribuir muito para mecânicas de jogos, lançar ou firmar novas tendências como MMORPGs, micro transições, pacotes de expansões, patchs, fora o cuidado excepcional com o universo particular de cada uma de suas criações. O detalhamento narrativo e estético também sempre foi notável. Era comum aguardarmos ansiosamente pela próxima cinematic bem dirigida com animações de ponta para nos deleitarmos de tamanha perfeição técnica e criatividade de mitologia trazida a tona pelas histórias dos games.
Quando finalmente o tão aguardado filme inspirado nas obras da Blizzard chega aos cinemas, prometendo trazer a mesma qualidade vista nos jogos para a sétima arte, praticamente tudo dá errado. Mesmo contando com tamanho material base e de auxílio criativo da própria produtora, Warcraft: O Primeiro Encontro Entre Dois Mundos falha rigorosamente. O erro do filme é o mesmo de tantas outras obras inspiradas em videogames: trazer o jogo para as telas. A questão, que ninguém parece querer sacar, é trabalhar esses universos em prol de uma narrativa verdadeiramente cinematográfica.
O plot desse filme era justamente ideal para conseguir fazer o famigerado gênero de adaptações de videogames finalmente ter seu filme de glória. O roteiro de Duncan Jones, também diretor, e de Charles Leavitt é inspirado diretamente nos acontecimentos de Warcraft: Orcs & Humans mesclando algumas alterações ou referências com outros jogos da franquia. Através de uma magia de sangue chamada Vileza, o xamã orc Gul’dan abre um portal para outro mundo: Azeroth, reino dos humanos, anões e elfos. O objetivo é conquistar as terras inimigas para que os orcs encontrem um novo lugar para morar já que seu próprio mundo foi destruído. Para reagir contra a legião invasora de orcs, o rei Llane e seu melhor comandante, Lothar, partem em busca do Guardião de Azeroth, o grão-mago Medivh, para auxiliar na grandiosa batalha que determinará o futuro do reino.
O texto de Warcraft se assemelha muito com a técnica utilizada por David Goyer e Chris Terrio em Batman vs Superman. Temos outro exemplar do novo blockbuster que havia comentado na análise do filme de super-heróis. Entretanto, por ser o primeiro longa de um projeto expansivo de franquia cinematográfica, a história trazida por Duncan Jones parece querer dialogar somente com o nicho dos fãs e jogadores do game – nem é preciso dizer o quão grave isso é. Uma coisa é trabalhar com personagens já muito bem conhecidos no imaginário popular, além de ambos contarem com vasta gama de obras cinematográficas. Outra é não se preocupar em situar o material desconhecido para um público inédito em potencial na mitologia dessa história repleta de personagens, conceitos, situações, entre diversas outras coisas. É justamente esse o maior erro do filme: ele não se preocupa em estabelecer sua mitologia, seu universo, sua lógica.
Se você não conhecer bem esse cosmo pop assim como eu, é muito provável que fique perdido entre tantas idas e vindas entre os núcleos narrativos divididos por orcs e humanos. Jones não se preocupa em explicar muito bem boa parte de seus personagens, suas histórias, passado, tradições e, em alguns casos, suas motivações. Tudo é vomitado em tela apostando, equivocadamente, já no conhecimento prévio do espectador.
Logo, a apresentação da grande maioria dos personagens é prejudicada. Isso atinge a tão estimada relação de afeição entre personagem-espectador. Isso aqui é posto completamente em escanteio. Somente o drama de Durotan, o orc líder do clã Lobo do Gelo, consegue emplacar os únicos bons momentos do filme. Aliás, muito disso se deve à atuação do péssimo elenco que disputa em quão canhestro cada um consegue ser – destaque para os terríveis Ben Foster e Travis Fimmel. No momento que percebemos que a atuação de Tobby Kebbel, ator que encarna Durotan sob muitos efeitos de maquiagem via CGI, e a dos outros orcs digitais é melhor que a do elenco presente em carne e osso, as coisas se tornam ainda mais bizarras para este filme e também para a direção de Duncan Jones que, aparentemente, estava se lixando para o elenco. Ao menos, mesmo sem qualquer desenvolvimento, o vilão Gul’dan é ameaçador, um indivíduo desprezível capaz de usar quaisquer meios para atingir os fins perversos que ele busca.
É algo tão tosco que em determinado momento, quando o filho de um personagem morre, o ator que interpreta o pai permanece impassível como um segurança de shopping quebrando a lógica dos planos que vieram antes o exibindo com olhares de profundo ódio para o assassino de seu filho. Fora isso, toda a diegese da cena também não colabora. Jones escolhe planos bizarríssimos nesse momento, além de recorrer a pior computação gráfica apresentada no filme inteiro.
Voltando à narrativa, tudo acontece com extrema rapidez, porém, ao mesmo tempo, percebemos que o miolo de história é extremamente raso. Algumas situações são dilatadas até o limiar do possível. As constantes idas e vindas, principalmente de Medivh, acabam irritando após algum tempo, além de ser um recurso podre para tentar enganar o espectador a respeito do escopo “grandioso” da obra quando na verdade a transição de cenários se limita a cinco ou seis.
Fora isso, há toda a previsibilidade da trama. Isso afeta muito o núcleo Medivh, Lothar e Khadgar. A principal reviravolta do longa também não é bem elaborada, não há a menor motivação ou sequer uma explicação para o que ocorre no clímax. Além disso, muitas vezes os personagens optam por escolhas burras e sem sentido sendo a mais notória a que ocorre no fim do filme. Ao mesmo tempo que é algo triste, é interessante notar como o filme desanda de vez a partir de seu segundo ato.
Já fracassando em estabelecer sua mitologia no primeiro ato – um adendo aqui, seria muito adequado o uso de um cliché para solucionar esse problema: a clássica introdução animada acompanhada de um narrador over expondo a história de modo apropriado; o restante da obra não consegue desenvolver os personagens ou nutrir a importância narrativa deles assim como seus níveis de poder. Por exemplo, o alívio cômico do longa, o mago de passado porcamente explicado, Khadgar, é um dos seres mais poderosos e importantes para o desfecho do conflito urgente do clímax. O mesmo se dá com o rei Llane, além da relação amorosa desastrosa entre Garona – uma orquisa mestiça cuja origem contradiz o slogan do filme, e Anduin Lothar. Aliás, tudo que envolve Lothar é envolto por uma atmosfera de preguiça já que o personagem é bastante expositivo.
Para economizar espaço, somente Durotan se salva com um trabalho satisfatório dentro do seu núcleo mostrando um herói do lado antagonista, apesar de contar também com reviravoltas estúpidas que vão do nada ao lugar nenhum. Jones até sabe que o trabalho com todos eles é falho, pois boa parte do elenco é descartada com facilidade algo que pode ser julgado até mesmo como corajoso, porém, como a morte de boa parte deles não tem a menor relevância no nosso emocional, trata-se de mais uma das milhares de falhas que o longa possui – inclui-se nessa conta diversas soluções a la deus ex machina. Aliás, o grandiosíssimo defeito é o filme não acabar em si mesmo. Sim! A história termina com um gancho expressivo para o improvável próximo longa.
Certas verdades na indústria do cinema são tabus, mas não deixam de ser verdades: há diretores que não prestam para dirigir um blockbuster nato. Saindo do ótimo Lunar e do bom Contra o Tempo, havia certa expectativa em ver como Duncan Jones dirigiria seu primeiro filme de orçamento estratosférico, além de ser o principal lançamento do ano para a Universal que apostou todas as suas fichas no resultado final dessa adaptação. Conferindo, infelizmente, ficou óbvio que Jones funciona melhor em filmes menores.
A começar, Jones adota a linguagem televisiva da mais simplória para um grande épico como este. Muitas cenas são elaboradas somente com câmera parada em incessantes jogos de campo e contracampo para diálogos insossos que, por vezes, conferem um ar de fan movie para uma produção milionária. Estranhamente, Jones não inventa absolutamente nada. O filme é quadrado na forma que chega a doer nosso consciente ao imaginarmos as tremendas possibilidades que tinha para ser algo tão brilhante quanto Senhor dos Anéis, no que tange a forma obviamente. A fotografia não colabora apenas cumprindo sua função atmosférica de ambientação já que Jones é incapaz de criar alguma simbologia ou metáfora visual que seja de fato relevante.
Já nos enquadramentos, as composições são adequadas – o que não quer dizer que sejam belas. De fato, muitas vezes não são graças algumas escolhas muito esquisitas de posicionamento de câmera, além da enorme dificuldade em movimentá-la. Um filme de 2016 com características técnicas de 1940 quando as câmeras pesavam quase que uma tonelada é algo absolutamente bizarro ainda mais para um longa feito em grande maioria com auxílio de computação gráfica. É algo tão gritante que nem ao menos há um bendito plano sequência nele inteiro. Pouquíssimas vezes que Jones usa a câmera como uma peça criativa de fato quase que restritas às cenas que acompanham os voos do belíssimo hipogrifo construído digitalmente.
Outros problemas já tangem a licença poética do longa. Jones deixa entendido através de jogos básicos de pontos de escuta que os orcs falam um idioma diferente que os humanos, porém, mesmo em cenas destinadas a essa conversa com direito até a tradução simultânea, ele interrompe o dialeto ‘orquês’ no meio da cena, voltando para o inglês que acompanha as sequências dedicadas ao núcleo orc. Porém, nesse momento, é uma escolha muito equivocada. Aliás, problemas de licença poética assim como de suspensão de descrença são constantes principalmente no que tange à honra orc e sua relação de trapaça com a Vileza. Também não fica claro se é através da magia negra que os orcs adquirem a coloração esverdeada visto que Durotan e outros comparsas de seu clã possuem pele esbranquiçada.
É justamente nesse design de produção do núcleo orc que a técnica do longa consegue brilhar um pouco. Os efeitos dedicados aos monstros são impressionantes nas cenas voltadas com mais atenção a eles. Seus acampamentos têm inspiração direta do videogame. O cuidado com detalhes é tanto que até a orquisa Draka, esposa de Durotan, possui grossos pelos de barba que ficam suados de tempos em tempos. Nisso, é algo realmente bem feito. Já nos quebra paus massivos que tomam conta do terceiro ato, as coisas são mais toscas ao tentar mimetizar à animação dos anos 1990 característica dos confrontos traduzidos pelos gráficos do jogo. O uso recorrente disto é feio, apesar de servir como homenagem.
Já no design de Azaroth, tudo é mais seguro, básico, sem grandes criações ou ornamentos. Genéricos até. Isso vai desde as reluzentes armaduras dos guerreiros até a túnica de toalha que Khadgar usa. Sobre a ação do longa, Jones tenta impressionar pela violência gráfica sempre omitida pelos limites de enquadramento, afinal ainda é um filme PG-13. Para solucionar a censura, aposta no uso de sangue orc verde escuro e em muita sonoplastia de ponta que traz sons cristalinos de ossos quebrando ou de crânios esmagados. Uma solução que confere o tom bruto, pesado, cheio de presença sem mostrar a violência explícita apesar de vermos vários cavalos e cavaleiros sendo arremessados contra árvores ou rochas.
Embora no começo seja divertido assistir os embates monumentais entre orcs e humanos, a pancadaria começa a cansar pela repetitividade da ação também prejudicada pelo já citado medíocre trabalho de câmera. Evidentemente quem mais se prejudica é o clímax que também não traz nada de novo no front nos termos de ação. Na batalha que Jones tinha chance de brilhar, opta por encerrar tudo rapidamente com uma baita resolução anticlimática. Aliás, é muito estranho como ele parece ter jogado fora tudo que aprendeu com os filmes anteriores no que se trata de construção de clima. É tudo tão apressado, histérico, canastrão, tosco, que é impossível ser afetado por qualquer coisa que ele propõe – a decupagem também é poucas vezes pensada para tanto e quando é, permanece quadrada. Detalhe para a fracassada interpolação de duas lutas simultâneas durante o clímax interminável.
Em Warcraft, nem mesmo a música de Ramin Djwadi se salva. Em mais uma decisão muito dúbia de Jones, o bom tema principal ocupa praticamente todas as cenas de ação mesmo que Djawadi tenha composto mais de uma hora de trilha orquestrada original para a obra. Quando escutamos os violinos violentos e os trombones pesados entoando o ótimo ritmo da composição pela milésima vez, é impossível permanecer indiferente. Jones consegue o mais improvável em uma obra cinematográfica: ser igual, quadrado, até mesmo no uso das músicas disponíveis.
Nessa bizarra obra que parece querer conversar somente com um mundo – o dos fãs, Duncan Jones consegue sim entregar algo plenamente consumível. Com certeza todos nós já vimos filmes piores que Warcraft, porém o longa por si só consegue ser lamentável com erros notórios e muita preguiça no que tange o conteúdo assim como a forma do filme. Transformar um universo tão rico quanto este que a Blizzard criou ao longo de décadas em uma obra tão estéril e genérica é algo que realmente foge dos campos da lógica. Se ainda assim for conferir ao longa, certamente terá alguma diversão, verá uma história mal contada, um universo porcamente estabelecido que pouco se preocupa com o espectador comum, irá conferir cenas de ação repetitivas permeadas por computação gráfica inconstante. Não foi dessa vez que os videogames tiveram seu alvorecer merecido no cinema. Por enquanto, ainda se trata de um gênero “Garona”.
Amaldiçoado por uma maré de filmes que variam entre péssimos a ruins.
Crítica | O Poderoso Chefão: Parte II
Poucas continuações têm o impacto de O Poderoso Chefão: Parte II. Aliás, pouquíssimos filmes são complexos, ricos e completos como O Poderoso Chefão: Parte II, uma obra densa e que traz em cada frame de seus 200 minutos uma justificativa para que seja considerado um dos melhores da História da Cinema, e que Francis Ford Coppola é um gênio como poucos.
Mais uma vez assinada por Coppola e o autor Mario Puzo, a trama aqui se divide para mostrar dois períodos distintos: de um lado, temos a continuação direta aos eventos do original, trazend0 Michael (Al Pacino) cada vez mais poderoso como o Padrinho da família Corleone, precisando arriscar um valioso acordo quando sofre um violento atentado que revela a existência deu um traidor em sua organização. Do outro, vemos a humilde origem de Vito Corleone (Robert De Niro) como um imigrante da Sicília, e os pequenos passos que vai dando para montar seu império mafioso em Nova York.
Um dos fatores centrais para o brilhantismo de O Poderoso Chefão: Parte II reside na audaciosa decisão de Coppola em fazer não apenas uma sequência, mas também uma prequela, que, mesmo jamais conversando diretamente entre si (o que seria impossível, claro), servem para definir e contrastar os personagens que as protagonizam. Tanto pela escala quanto pelo maravilhoso trabalho de design de produção, não seria um absurdo dizer que são na verdade dois filmes – de época – diferentes costurados entre si, um mérito todo da primorosa montagem de Barry Malkin, Richard Marks e Peter Zinner, trinca que divide bem o ritmo das narrativas e as une com transições belíssimas, sempre provocando o efeito de que pai e filho “se encaram” durante a fusão das cenas.
Tal estrutura, nos permite estudar o quão diferentes são Michael e Vito.
Em um dos flashbacks, Vito encara imóvel o sofrimento de seu filho diante de uma pneumonia. Quase escondendo o rosto nas mãos ao mesmo tempo em que é incapaz de fazer algo para socorrê-lo ou mesmo segurar suas lágrimas (em uma atuação sutil e contida de De Niro), Coppola já estabelece de forma belíssima e de partir o coração os motivos que levam o personagem a agir ilicitamente, e que também justificam a ação violenta que Vito será forçado a tomar a seguir. E mesmo depois do brutal assassinato de Don Fanucci (uma cena magistral que por si só merece uma análise isolada), o diretor nos faz lembrar o que move Vito ao mostrá-lo caminhando pela multidão por um longo plano, até encontrar sua família e carinhosamente se juntar a ela; abraçando o recém-nascido Michael, e praticamente falando ao espectador que é tudo pela família. Cinema puro, onde as imagens transmitem muito mais do que o que se vê.
Já Michael revela-se sedento por poder, ainda que também aja para proteger sua família, ainda que aquela formada por mafiosos aparente lhe interessar mais. Mesmo que eventualmente se renda a instintos sombrios e imperdoáveis, Michael é também vítima do seu tempo, um que é muito mais complexo e sujo do que aquele mais ingênuo e menos organizado habitado por Vito, 40 anos atrás. Eu me pergunto se Vito seria capaz de manter seu negócio próspero durante a Guerra Fria, e também mantendo sua posição contra o tráfico de drogas.“Não é fácil ser o filho”, diz Michael para seu irmão Fredo (John Cazale) em certo ponto. Até sob as lentes do diretor de fotografia Gordon Willis, Michael é um ser humano muito mais sombrio, sempre banhando-o com escuridão.
Na pele das figuras opostas, temos um intenso Al Pacino e um cuidadoso Robert De Niro. Pacino impressiona com a quantidade de emoções que consegue transmitir ao mesmo tempo, como se Michael estivesse constantemente prestes a explodir; e quando o faz, tal como na brutal discussão com sua esposa Kay (Diane Keaton, coadjuvante de luxo), vemos tudo o que o ator é capaz de fazer. Já De Niro é eficaz ao preservar os maneirismos e trajetos do Vito de Marlon Brando no original, mas tem a oportunidade de tomar o personagem para si ao explorar ainda mais a paixão deste por sua família – com jestos simples, como aquele analisado alguns parágrafos acima – e divertir-se com pequenos momentos que antecipam quem este irá se tornar: como não se arrepiar na primeira vez em que Vito solta o icônico “farei uma oferta que ele não vai recusar?”.
Claro que além dos dois, temos um elenco coadjuvante sobrenatural. Além dos retornos de Robert Duvall, John Cazale, Diane Keaton e Talia Shire, temos a valiosa adição de Michael V. Gazzo como Frank Pantangeli, divertido e escandaloso mafioso italiano que diversas vezes surge como um bem vindo alívio cômico e o veterano diretor do Actor’s Studio Lee Strasberg, um dos responsáveis pela proliferação do Método Stanislavski nos EUA, na pele do gângster Hyman Roth, que já impressiona pela fortíssima presença de cena.
Outro importante “coadjuvante” que sempre ameaça tomar a produção para si é o fantástico trabalho de Nino Rota e Carmine Coppola na trilha sonora original, que adota o tema icônico do primeiro filme quase como um hino religioso, fornecendo ainda mais impacto a cenas operáticas.
Eu poderia passar horas falando sobre O Poderoso Chefão: Parte II e as palavras continuariam a sair sem interrupção. O filme de Francis Ford Coppola é um grande clássico que explora com maestria todas as ferramentas únicas que a Sétima Arte disponibiliza, resultando em algo verdadeiramente único. Se é ou não superior ao primeiro filme é uma questão de preferência, mas na minha humilde opinião é facilmente um dos melhores filmes de todos os tempos.
Crítica | O Homem nas Trevas
Já é recorrente nos meus textos como destaco que a cara dos diretores de Hollywood vem mudando de alguns poucos anos para cá. Já tivemos a onda francesa trazida por Luc Besson – grande maioria de cineastas medíocres, dos diretores vindos após um pseudo-sucesso de filmes indie para dirigirem imediatamente grandes blockbusters que geram muita controversa. Agora com O Homem nas Trevas e Quando as Luzes se Apagam, o mercado das majors volta os olhos para os diretores de curtas metragens que viralizaram na web.
Esse não é o primeiro de Fede Alvarez que já havia assumido o projeto do remake de Evil Dead – A Morte do Demônio. Tendo impressionado com o resultado acima da média do longa, tanto em crítica quanto na bilheteria, não houve perda de tempo na Sony para encaminhar um segundo projeto para o diretor que apresenta melhorias na técnica enquanto comete os mesmos erros na narrativa.
O roteiro de Fede Alvarez traz as situações atípicas que ele tanto gosta. Se inspirando claramente no clássico Um Clarão nas Trevas, filme de 1967 que rendeu uma indicação ao Oscar para Audrey Hepburn, acompanhamos o trio de ladrões gatunos especializados em furtos qualificados.
A chance do esquema perfeito logo surge quando descobrem a existência de uma indenização milionária que um velho cego recebeu após uma grande tragédia. O maior problema do grupo é o fato do cego raramente sair de sua casa, mas incentivados pela quantia massiva de dinheiro, decidem prosseguir com o golpe. Porém, ao contrário do que pensavam, não é o velho que está preso na casa com eles, mas sim eles que se encontram presos com o cego psicopata.
Assim como em Evil Dead, Alvarez investe bastante no trio protagonista nos minutos iniciais do longa. Aliás, essa primeira parte é que segura firmemente nosso interesse, além de cravar a promessa não de um filme bom, mas um excelente longa de terror – possivelmente o melhor do ano. É particularmente curioso como Alvarez, também diretor, aproveita muito do poderio de sua encenação para pautar as motivações de cada um dos integrantes do trio de bandidos.
Verdadeiramente, apenas Rocky – Jane Levy retomando a parceria com Alvarez – possui força para impulsionar os atos criminosos. Money e Alex também são trabalhados, mas não recebem tanta atenção quanto Rocky. Importante lembrar que se tratam de motivações clichês: ganância, paixão e desejo de fuga, mas que dentro da proposta do filme, são adequadas.
Alvarez também pede certo conhecimento extra fílmico do espectador para dar melhor embasamento para sua trupe de ladrões. Toda a narrativa se passa em Detroit, a maior cidade-fantasma dos Estados Unidos. Logo, toda a problemática de criminalidade e desemprego é abordada. Outro elemento curioso, é a dinâmica do grupo se baseando em jurisdição legal para nunca cumprirem sentenças longas na cadeia, caso fossem pegos. Tudo é muito bem justificado nesse primeiro ato.
Quando enfim partimos para a invasão na casa do cego, a lógica e coerência interna ainda são respeitadas. E tão logo o conflito com o Cego, criando o jogo de gato e rato que guiará o filme inteiro, se estabelece. Sem apelar para fantasmas, aliens ou monstros, Alvarez traz o maior algoz do terror: a maldade humana. Para isso, ele lança uma balança moral tornando o Cego alguém tão torpe quanto os assaltantes já que o homem tem completo domínio da geografia da residência, tocando o terror nos assaltantes.
Já que rapidamente Alex e Rocky são definidos como heróis da desventura, a balança moral pesa mais para as maldades que o velho comete – são reveladas pouco a pouco. Como a maior parte do restante do filme não contém diálogos, Alvarez torna a sua direção em um elemento fantástico e muito competente utilizando até mesmo um excelente plano sequência para situar o ambiente interno da casa.
A palavra que define a obra é: tensão. Alvarez sustenta a montagem e toda a encenação para provocar agonia com um suspense indescritível de tão bem feito que é. Muito do que ele realiza até merece ser estudado, pois é o melhor trabalho que vejo em décadas. Ainda mais se levarmos em conta a constante sensação claustrofóbica causada pelos corredores apertados da casa.
O diretor recebe seus louros a não abusar com sustos fáceis ou nem mesmo por telegrafar os jump scares com a movimentação da câmera ou da trilha musical excelente de Roque Baños. Aliás, todo o aspecto de mixagem e edição de som é impecável com os ruídos, grunhidos e barulhos que a casa faz. Esse destaque sonoro é justamente importante por conta dos personagens evitarem fazer quaisquer sons para evitar serem pegos pelo Cego que os caça. Ou seja, um verdadeiro gato-mia mortal.
Enquanto Alvarez mantém sua direção bastante sólida até o fim, o texto do filme começa a entrar em declínio após uma reviravolta no meio da projeção. Reviravolta que busca inspiração no filme franco-canadense Mártires de 2008. O problema é que dela se originam todos os problemas do filme, já que não havia necessidade da inserção daquela problemática – a ideia de um cego caçando três ladrões em sua casa já é ótima o suficiente para sustentar o filme que é relativamente curto.
A partir disso, Alvarez passa a cometer os mesmos erros presentes em seu Evil Dead: o completo excesso de reviravoltas sucessivas que nos cansam tremendamente. É um negócio tão rápido que me provocou justamente o inverso do efeito que ele busca infligir em nós no filme inteiro: passei a ficar relaxado por não me importar mais com o destino daqueles personagens. As ações do antagonista, apesar de terem motivação, simplesmente não respeitam mais a limitação crucial de sua deficiência. Assim, toda a credibilidade do texto realista e redondo vai para o ralo, apesar dos esforços de Stephen Lang em atuação muito competente mimetizando olhares vazios e outros tiques quase imperceptíveis para seu personagem deficiente.
O festival de reviravoltas questionáveis não para por aí. Tentando injetar nova vida ao filme, Alvarez até chega ao absurdo de ressuscitar personagens que estavam claramente mortos através de justificativas insanas. O diretor toma caminhos dúbios ao abordar o cinema trash da vertente de Wes Craven que mal conversam com a atmosfera estabelecida no começo da narrativa.
Dentre todos os fatos e inúmeras reviravoltas transcorridas no longo clímax, Alvarez sacrifica completamente a lógica do filme em prol da surpresa. Porém, esse breve momento fugaz de estupefação, esvai-se a partir do momento que temos uma reflexão até mesmo superficial de tudo aquilo que o roteirista apresenta. Para mim, é um custo muito alto que tira a potência do marco que esse longa poderia ter sido não fosse as más escolhas tomadas.
Apesar destes excessos de vaidades cometidos pelo diretor/roteirista, O Homem nas Trevas é um dos melhores exemplares que o gênero recebeu desde Invocação do Mal 2. A tensão é exaustiva, cada respiração dos personagens tem importância crucial, a história é ótima, atuações competentes, além de todas as maravilhas técnicas trazidas pela ótima fotografia de Pedro Luque e do desenho sonoro, incluindo aqui a trilha musical.
Fede Alvarez até tenta criar uma ironia final semelhante à de Taxi Driver, mas consegue apenas criar um ótimo filme de terror – o que já é um feito por emplacar dois bons filmes na carreira.
O Homem nas Trevas (Don’t Breathe, EUA – 2016)
Direção: Fede Alvarez
Roteiro: Fede Alvarez e Rodo Sayagues
Elenco: Jane Levy, Dylan Minnette, Daniel Zovatto, Stephen Lang
Duração: 88 min
Crítica | Anomalisa
Charlie Kaufman desapareceu. Um dos roteiristas mais interessantes do fim do século passado e da própria história do cinema sumiu após dirigir e escrever Sinedóque, Nova Iorque. Ninguém sabe exatamente o que levou Kaufman a ficar nesse hiato criativo por longos oito anos até agora com o lançamento de Anomalisa. Este, que não é nada mais que uma das melhores animações que pude conferir em minha vida.
Kaufman traz a história de Michael Stone que viaja à Cincinatti para dar uma palestra sobre seu novo livro. Entre o desinteresse pelo mundo e a banalidade da estadia no hotel, Stone escuta a voz que pode mudar sua vida. Desesperado para encontrar essa fagulha de esperança em tirar seu cotidiano do tédio, ele busca pela dona da voz apaixonante. Rapidamente sua busca é concluída. Ele enfim encontra Lisa, a mulher que pode devolver a paixão à sua vida.
Quem lê a sinopse pode pensar que o filme se trata apenas de uma história de amor banal, simples como qualquer outra, mas na verdade está muito enganado. Os filmes de Kaufman possuem a estranheza típica, um quê de extraordinário que simplesmente engajam as histórias de modo poderosíssimo. Assim como em Adaptação, Quero Ser John Malkovich ou Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Anomalisa possui a bizarrice autoral do roteirista.
O que Kaufman traz aqui é um verdadeiro estudo de personagem como há tempos eu não via. Em meio a tanta simplicidade em diálogos mundanos que capturam a banalidade de situações cotidianas – das quais facilmente o espectador se identificará, acompanhadas do humor delicado do artista.
Como sempre quebrando a barreira do texto, o incomum se dá também no campo visual e sonoro do filme. Isso revela por si só como a direção de Kaufman e Duke Johnson é muito bem pensada, pois dentro do contexto do filme, faz absoluto sentido. Após alguns minutos de projeção, naturalmente, o espectador atento se perguntará se está ficando louco ao notar coisas que variam do sutil para o estranhamento completo.
Nesse momento, caso não tenha visto o filme, talvez não valha a pena continuar a leitura, pois para analisar de fato esta belíssima obra, é preciso contar um pouco das características do longa, mas nenhuma revelação do enredo será abordada.
Entre os diálogos circunstanciais e realmente sem importância que Stone tem com outros personagens, percebemos, pouco a pouco, que eles têm a mesma voz. Sim, homens e mulheres, soam iguais na voz suave e constante de Tom Noonan que dubla todo mundo, menos Lisa e Michael. Passado o estranhamento, admito que abri um sorriso maravilhoso ao perceber isso, mas logo depois dei outro ainda maior quando notei que não só a voz do restante dos personagens é igual – os rostos andrógenos também são presentes em todos eles. Admito que essa sacada brilhante me fez ter arrepios, pois é algo muito incomum termos um trabalho tão próprio de direção e roteiro que agregue tanto à construção do personagem assim como para a mensagem do filme.
É brilhante, pois isso explica a natureza do estado de espírito de Michael. Nosso protagonista é um cara chato, cansado de tudo, entediado, indelicado, seco e antissocial. Ele simplesmente quer que o mundo se exploda junto com toda a chatice inerente ao convívio social. Para Michael, todos são peças iguais, superficiais, imbecilizantes e tediosas. Todos são descartáveis com vozes e faces desinteressantes.
Nisso, entra a competência da dublagem de Tom Noonan. Mesmo mantendo a voz calma e tranquila, Noonan confere lapsos de vida que fogem um pouco da monotonia em alguns personagens mais importantes como a ex-namorada de Michael, Bella, e sua esposa. Algo que por si só, já tornam a figura do protagonista ainda mais complexa, pois tudo, absolutamente tudo foi raciocinado meticulosamente em Anomalisa.
Por conta disso, a escolha por retratar a história via animação em stop motion faz ainda mais sentido e se tomarmos ainda mais o sentido poético da realização, o filme se torna realmente uma pérola. A animação realmente era o modo mais sutil para empregar esse jogo de faces e vozes iguais.
Entretanto, toda essa complexidade introspectiva do longa pode até mesmo desmotivar alguns. Felizmente não é o caso. Kaufman realmente está compelido a fazer o máximo no limite do aceitável para que o espectador compreenda o que ele quer dizer com seu novo filme. Não se trata de exposição gratuita, mas de diálogos bem inseridos que revelam o âmago de seus personagens.
No começo se dá principalmente pelo contraste de Michael, um indivíduo único, em contraponto com personagens semelhantes. Depois, com cenas muito importantes como o encontro entre o protagonista e a sua ex-namorada – aqui Michael começa a ter que lidar com a realidade que ele criou para si mesmo. Ou então na cena que ocorre após um banho quando Michael se encara no espelho.
Então finalmente entra Lisa e o filme se transforma. Com Lisa, Kaufman e Johnson finalmente apresentam a primeira personagem com características marcantes. Seu rosto é único, sua personalidade é viva e colorida e sua voz diferente que é ressaltada diversas vezes por Michael – dublagem excepcional de Jennifer Jason Leigh. A partir das cenas destinadas a desenvolver o relacionamento dos dois, conhecemos um novo Michael.
Um protagonista totalmente diferente do que víamos até então. Nas conversas entre os dois, Kaufman tem a oportunidade de reforçar características que julga importantes e também para explicar o título do filme.Entretanto, conhecendo o trabalho do roteirista, o espectador já pode até esperar uma grande virada poderosa nesse núcleo romântico.
Mais especificamente na técnica da direção, a dupla se sai muitíssimo bem. A animação dos bonecos é absolutamente fenomenal. Um nível de perfeccionismo tão assustador que não vemos nenhuma deformação nos moldes ou nos tecidos durante as cenas como é comum ocorrer no stop motion. Até mesmo em cenas muito movimentadas que contam com mais personagens, é possível ver todos se movimentos vividamente em segundo plano ao cuidar de suas próprias vidas e fazerem suas ações. Aliás, os próprios bonecos possuem gama tão vasta de expressões faciais e corporais que chegam a virar um estuda da anatomia humana.
Além da animação, temos a criação dos moldes de cenário e de objetos de cena. Tudo é minuciosamente inserido nos pequenos cenários. Desde o cuidado com o taxímetro, as gotas de água em um vidro embaçado, nas ranhuras do gelo, no detalhe da porcelana da boneca oriental, da caixinha de lenços de um homem pego em um momento íntimo, no carpete, nos botões dos controles remotos, nos fios de cabelo e nas peças de vestiário.
Fora isso, o design de produção também insere alguns elementos ditos em diálogos como objetos de cena tornando todo o universo ainda mais crível. Não só a animação que é fluida, mas também a movimentação da câmera quase sempre sutil – raros momentos onde os diretores optam por movimentos mais energizados.
Aliás, o tratamento da câmera também agrega à narrativa já que ela é a prática do exercício do ponto de vista e escuta de Michael. Sempre vemos e acompanhamos o protagonista durante o longa inteiro – com exceção de uma cena que ajuda a elucidar melhor essa mesma questão do ponto de vista. Nisso, os enquadramentos e movimentos quase sempre tem apenas a função descritiva da ação. Belos e banais. Até mesmo há alguns planos sequência para explicitar isso como quando Michael sai do seu quarto para buscar gelo no corredor.
Entretanto, quando Lisa entra no filme, a câmera passa a ser mais poética. Os diretores fazem enquadramentos mais apurados e repletos de significado – principalmente os closes fechadíssimos na expressão de Michael enquanto ele admira Lisa com olhares que pulsam paixão e vida. É realmente muito belo poder observar essa alma que encarna os bonequinhos do filme. A movimentação dos personagens também passa a compor ainda mais a narrativa. Com Michael ficando menos corcunda e carrancudo ou nos gestos muito contidos, defensivos e inseguros de Lisa.
Também é inteligente o modo que os dois trabalham com a ironia presente no texto de Kaufman. Além da profissão de Michael ser completamente o avesso de quem ele é e o motivo da viagem para Cincinnati, me encanta a escolha do encontro da nova paixão da vida do protagonista ser logo em um hotel. Veja, a escolha é funcional, mas certamente confere uma metáfora excelente, afinal um hotel é, por natureza, um local bem impessoal, sem características verdadeiramente autenticas ou próprias das pessoas que transitam por ele. É um lugar constante, repetitivo que segue padrões e rotina em diversos quartos idênticos. Ou seja, nada diferente do modo que Michael vê as pessoas ao seu redor. Um lugar tão descartável quanto os outros. Porém, logo no meio do padrão, surge Lisa! Por essa interpretação, novamente, o nome do filme, Anomalisa, se torna ainda mais relevante. Aliás, com uma aliteração é fácil tirar uma Mona Lisa dentro deste título. Novamente, mais um acerto para a mente perspicaz de Kaufman.
Para completar, os dois diretores ainda utilizam a fotografia do filme à favor da narrativa. Seguindo a escola clássica da iluminação de três pontos – que sempre oferece um contraste belíssimo no jogo de luzes e sombras, os diretores escolhem formar o clímax do filme, a principal reviravolta, com base na iluminação – o som é igualmente importante para a cena.
É sem dúvida a cena mais poderosa do longa inteiro que merece muito ser analisada quando o filme sair de cartaz. Eu mesmo terei o prazer de escrever uma interpretação dela, mas acredito que a competência dos dois diretores é tão grande que será impossível não compreender o que ocorre.
Anomalisa realmente mereceu toda a atenção dedicada ao filme durante suas passagens em festivais pelo mundo inteiro. É um dos melhores filmes que vi em minha vida. Conta com o brilhantismo da técnica cinematográfica sempre à favor da narrativa trazida pelo roteiro tão delicado de Charlie Kaufman. O longa é muito relevante em sua mensagem poderosa. Tamanha é a força que acredito ser impossível não nos sentirmos um pouco mal ao reconhecermos como temos tanto em comum com Michael Stone, um personagem histórico.
Além da história bela, há a animação de encher os olhos e a dublagem fantástica do trio que constituem o elenco. É um filme que passa voando de tão bem pensada que é a cadencia do ritmo e no progresso da história. Talvez, minha única ressalva, seja que há certa pressa para fechar o longa e o arco de Lisa, porém acredito que isso não chegue nem perto de tirar a relevância dessa obra-prima.
Anomalisa marca o retorno de Charlie Kaufman. E também é um marco para o cinema que aborda o tema complexo da depressão.
Crítica | Voando Alto
Filmes de esporte, tirando raríssimas exceções, são para um público de nicho. Tão especializados que muitas vezes possuem suas fórmulas próprias de narrativa assim como os diversos filmes de comédia romântica. Em sua grande maioria, temos um fracassado, um underdog desacreditado superando todas as adversidades para provar seu valor. Voando Alto não foge disso, mas é inegável a energia e carisma que esse longa possui.
Acompanhamos a história, parcialmente verídica, de Michael “Eddie” Edwards, um rapaz que desde de que se conhece por gente tem o sonho de virar um atleta olímpico. Tendo arriscado diversas modalidade enquanto criança, Eddie quase desiste de seu sonho após muitas investidas de seu pai que sonha em ter um filho gesseiro, assim como ele. Porém, ao observar alguns garotos praticando downhill na pista de gelo de sua cidade, Eddie decide que não será gesseiro ou um atleta olímpico, mas sim um atleta das Olímpiadas de Inverno.
Após treinar por anos sua prática com downhill, Eddie sofre mais uma desilusão, o destino parece sempre conspirar contra ele, pois um dos representantes do Comitê Olímpico de Londres não fica nada impressionando com o desempenho do rapaz. Diz a ele para desistir de seu sonho. Porém, Eddie é obstinado. Sabendo que o downhill não o levará a lugar algum, ele parte para uma jornada na Alemanha em busca de aprender a modalidade mortal do Salto com Esqui para participar das Olímpiadas de Inverno de Calgary em 1988.
Centrado no conflito já muito manjado do idealista underdog e fracassado em conquistar um sonho praticamente impossível para sua realidade, o roteiro de Sean Macauley e Simon Kelton, assim como Eddie, reconhece todas as suas limitações para retratar essa história. E isso eu aplaudo. Filmes honestos que tem essa autoconsciência, em abraçar seu verdadeiro potencial no limite do possível. Eles sabem da dificuldade em lançar algo estupidamente único e excepcional com o material que trabalham aqui. Logo, a escolha em abraçar a natureza de feel good movie não poderia ser melhor. Já tivemos um caso muito similar em 2014 com o abarrotado de clichês e fórmulas de roteiro Uma Aventura Lego. Ainda assim, a animação da Warner conquistou um público vasto, incluindo a mim.
Com Voando Alto não é diferente. O filme traz uma bela história de superação extremamente divertida, além de ser um drama competente quando requisitado. Apesar de ser um roteiro muito agradável, ele sofre, inevitavelmente, de suas limitações e também por conflitos bastante genéricos com os dois personagens que ele trabalha. O núcleo de Eddie é que o de fato é. O personagem tem carisma, seu amadurecimento é sentido no longa, as reviravoltas funcionam, sua motivação nos convence. Ele apenas não foge da estrutura clássica dessa linha. Logo, não há surpresas – é previsível ao extremo. Você saca todo o caminho que o longa percorrerá minutos antes dos acontecimentos se desdobrarem. Sabe exatamente onde Eddie triunfará ou falhará. Com quem criará laços afetivos onde o roteiro investirá tempo de tela ou com os diversos personagens simplórios, incluindo os pseudo antagonistas, que ele dedicará seletas cenas.
Já com seu treinador, o ex atleta arrogante Bronson Peary, as coisas se tornam um pouco mais complicadas. Como todo esse núcleo narrativo é fictício, os roteiristas, mesmo podendo ousar um pouco mais, se limitam em se basear em outro estereótipo – o alcoólatra fracassado que usa a bebida como escapismo de seus próprios demônios vindos de seu breve momento de glória arruinado por si próprio no passado. Convenhamos, não é preciso pensar muito para encontrar personagens assim em diversas outras obras audiovisuais ou de narrativa clássica. Cria-se pouco com Bronson e ainda por cima, o personagem auto explica seu próprio conflito, algo que é considerado muito precário dentro das artes por conta da exposição desnecessária. Porém ainda é um personagem de fácil afeição. Muito disso vem diretamente da atuação apaixonada de Hugh Jackman que traz uma singela variação do tipo Wolverine. A natureza rabugenta, pessimista e pouco ortodoxa raramente dá errado, logo é óbvio que Jackman, já acostumado ao papel, sabe muito bem o que fazer, mas agora trabalhando melhor sua comédia.
Quem realmente brilha aqui é Taron Egerton, um rosto que você verá muito nos próximos anos, pois o rapaz está se tornando o novo queridinho de Hollywood e do cinema britânico por conta do sucesso estrondoso de Kingsman. Egerton não somente retrata o excêntrico Eddie, mas vive o personagem de fato. Pesquisando um pouco sobre Eddie, é inegável como o ator encarnou essa figura curiosa. A sobremordida, a mandíbula travada, o olhar ingênuo e pequenino, a expressão corporal contida, o sorriso torto, tudo está lá! É mágico ver um ator tão novo se dedicar a um papel que praticamente ninguém daria bola. Egerton torna Eddie em um protagonista muito divertido, um herói cheio de confiança e auto estima que nos conquista com poucas cenas e nos emociona com competência no clímax de sua história. A união com Jackman também enriquece pelo contraste, além de trazer características desconhecidas por muita gente sobre o esporte.
Na direção temos o completo desconhecido Dexter Fletcher, mas mesmo com essa aparente inexperiência, Fletcher conduz o filme com mão firme. Muito disso também vem da parceria acertada com a produção de Matthew Vaughn, um dos melhores diretores do Reino Unido.
Ele sabe manipular o clima de seu filme, ora dramático, ora de comédia, mas sempre com tom muito leve. Estabelece ciclos que vem desde a infância do personagem seja nas montagens divertidas do garoto “praticando” diversas modalidades olímpicas, na bonita relação com sua mãe ou no leve antagonismo com a figura amargurada de seu pai. Já no que tange à decupagem das cenas de ação, ele consegue capturar imagens do esporte através dos mais diversificados olhares. É de verdadeira riqueza visual quando vemos os atletas saltarem. Pontos de vista diversificados, câmeras subjetivas, travellings laterais ou frontais, panorâmicas, planos abertos, plano fechados, closes, planos detalhes e até mesmo um pseudo plano sequência para denotar a ação libertadora que um personagem supressivo assume em determinado momento – um dos melhores, aliás.
A preocupação dele com a linguagem visual é algo a ser observado, mas sua encenação raramente sai do óbvio, além de trabalhar com poucas metáforas visuais. Mas no geral, em cenas mais comedidas, é tudo muito adequado e correto. Ele respeita a linguagem clássica. Outros dois fatores que Fletcher brilha intensamente é no uso da montagem, principalmente nas de treinamento, e da música original absolutamente maravilhosa de Matthew Margeson.
Margeson se inspira nas batidas clássicas de 1980 repleta de sintetizadores e percussões características. Há, inclusive, certa vertente influenciada pela trilha histórica de Vangelis em Carruagens de Fogo. Não há um tema ruim, é tudo cheio de energia e de um otimismo fantástico. A música realmente eleva o filme ao refletir tão bem o espírito leve de Eddie, a águia. Nisso, entra o clímax onde todas as áreas do filme convergem com tanta sintonia que é impossível não se emocionar. Fletcher usa e abusa da preparação de expectativa, da orquestra do espetáculo, de diversos slow motions para dilatar a cena, elabora reaction shots de todos que assistem ao salto de Eddie, captura closes do herói em seu esforço digno de Ícaro e eleva a música, perfeita, ao último volume. O resultado disso tudo é de um magnetismo tão belo que nos envolve completamente. Prendemos a respiração, não piscamos, completamente vidrados, para ver Eddie concluir seu salto com sucesso.
Nas duas sessões em tive o prazer de conferir o longa, pude ter esse privilégio de ver algo tão belo dessa arte. De poder contemplar não só a glória da cena, mas como os outros espectadores tendo o mesmo êxtase, essa catarse tão rara, que o filme estava provocando em mim. Capturar completamente nossa atenção, nos trazer para um universo mágico cheio de vida e emoções genuínas que podem faltar no nosso cotidiano e pequenos dramas corriqueiros. Um momento realmente poderosíssimo que por si só já faz valer o ingresso.
É impossível ficar indiferente à Voando Alto. Mesmo com todos os seus clichês declarados, estereótipos e a previsibilidade de sua trama que trabalha na margem da segurança, o filme tem tamanha força em sua forma bem-sucedida de levar a emoção de seus espectadores às alturas. Algo que pouquíssimas obras conseguem de modo tão verdadeiro como este aqui provoca. Um ótimo divertimento que se relaciona muitíssimo bem com a história de vida de Eddie, a águia. Não é o melhor filme do gênero, assim como ele não era o melhor atleta, mas certamente é cheio de espírito tanto quanto seu protagonista sonhador apaixonado pelo esporte. No fim, nesta proposta tão honesta vinda de seus realizadores, o que realmente vale é a experiência nada menos que fantástica que esse filme nos oferece, além de uma belíssima lição de vida que serve para diversos prismas: nunca ser maior que a montanha.
Crítica | Star Trek: Sem Fronteiras - Um verdadeiro episódio de Jornada nas Estrelas
Foi um caminho difícil até chegarmos a Star Trek: Sem Fronteiras, filme que é lançado no ano em que a famosa criação de Gene Roddenberry completa 50 anos de existência. Pra começar que o filme mal foi aprovado pela Paramount após a recepção morna de Além da Escuridão: Star Trek, que também contou com a saída de J.J. Abrams para dirigir o novo Star Wars e provocou um pequeno caos na produção. A direção foi passada ao roteirista Roberto Orci, que então saiu do projeto após desavenças com o estúdio, que por sua vez apostaram em um novo roteiro assinado por Simon Pegg e Doug Jung e na presença de Justin Lin na cadeira de diretor. Receita para o desastre?
Muito pelo contrário.
Estamos diante do melhor blockbuster de 2016.
A trama começa com a promessa do final do anterior em levar a tripulação da Enterprise em uma viagem de 5 anos para explorar novos mundos e mapear o desconhecido. Nesse cenário, encontramos o capitão James T. Kirk (Chris Pine) questionando o propósito de seu trabalho e refletindo sobre como o Universo é infinito e qual seria sua função em uma missão tão... sem fim. A pacífica missão transforma-se em um pesadelo quando a Enterprise é atacada pelo misterioso Krall (Idris Elba), que destrói a nave e os faz cair em um planeta desolado onde deverão lutar pra sobreviver e descobrir as intenções cruéis de seu agressor.
É uma premissa que foge radicalmente da proposta dos anteriores para se manter algo mais isolado e simples, o que justifica o fato de tantas pessoas clamarem que esse é o filme cujo formato mais se assemelha à clássica série de televisão. A situação crítica permite que passemos muito tempo com os personagens, e o roteiro de Pegg e Jung é inteligente por formar diferentes "duplas" e separá-las em diferentes pontos do planeta para que possamos testemunhar uma interação não muito explorada nos anteriores. Kirk acaba com Chekov (Anton Yelchin), Spock (Zachary Quinto) e Magro (Karl Urban) têm uma divertidíssima jornada, Uhura (Zoe Saldana) e Sulu (John Cho) acabam presos com o restante da tripulação e Scotty (Pegg) acaba encontrando a misteriosa guerreira Jaylah (Sofia Boutella), que transforma-se na nova aliada do grupo.
Essa separação funciona muitíssimo bem, com todo o elenco afiado e entrosado de maneira ainda mais perceptível do que nos longas anteriores, e também permite um equilíbrio muito maior de seus personagens; ninguém fica ofuscado aqui, e ainda há espaço de sobra para que Sofia Boutella faça de sua Jaylah uma das mais interessantes e divertidas figuras desse novo reboot. Porém ainda temos o foco um pouco maior em Kirk e Spock, ambos com subtramas pessoais que questionam se devem ou não permanecer em seus respectivos cargos e a responsabilidade que o futuro traz à tona. Spock principalmente, ainda mais levando em conta a reviravolta dramática que. Já devem imaginar o que é, considerando o falecimento de Leonard Nimoy, que, aliás, ganha uma belíssima e sutil homenagem aqui - assim como todo o elenco da série original.
O roteiro de Pegg e Jung, talvez por apostar nessa trama simples, mostra-se incrivelmente redondo e inteligente. Não temos furos e as aparentes coincidências (como o fato de o planeta desolado trazer uma antiga nave da Federação) vão revelando-se parte de um plano maior à medida em que a trama avança, e tudo faz sentido aqui. Cada reviravolta funciona maravilhosamente bem, e o espectador não se sente trapaceado pois o roteiro da dupla trabalha de forma eficiente com foreshadowings e a construção lógica dos acontecimentos; Spock e Uhura comentarem sobre um colar específico é um diálogo sem muito valor até o momento em que a jóia adquire uma função valiosa dentro da narrativa. Até mesmo a infame motocicleta que assombrou os fãs nos trailers tem uma participação crível aqui.
Mas a grande surpresa fica a cargo de Justin Lin. Confesso que fiquei desconfiado com a contratação do responsável pela maioria dos filmes da série Velozes & Furiosos, e minha descrença só aumentou com pavoroso primeiro trailer do longa - tanto que optei por afastar-me de todo o restante do marketing até assistir ao filme. Pois bem, Lin inesperadamente revela-se um diretor ainda mais talentoso e à vontade com o material do que o próprio J.J. Abrams. As cenas de ação ganham mais intensidade e funcionam por sua inventividade com uma enxurrada de excelentes efeitos visuais que ajudam a construir uma escala maciça que eu não via há um bom tempo, vide a espetacular sequência na qual a Enterprise é brutalmente despedaçada pela armada de Krall ou o embate contra as "Abelhas" do antagonista ao som contagiante de "Sabotage", do Beastie Boys. Impossível não sentir os pelinhos do braço se arrepiando...
A câmera de Lin passeia majestosamente e criativamente explora cada canto da Enterprise digital e a espacialidade das batalhas através de travellings, panorâmicas e ângulos inusitados, conseguindo até mesmo inovar em territórios que eu podia jurar que Abrams já havia explorado por completo. Por exemplo, quando a Enterprise dispara em velocidade de dobra, era de costume que acompanhássemos o trajeto da nave no interior da dobra, mas Lin posiciona sua câmera na lateral do percurso, criando um belíssimo efeito onde a nave parece percorrer um verdadeiro oceano de estrelas. O diretor só peca quando temos combates corpo a corpo, onde sua câmera torna-se maluca demais e os cortes do quarteto de montadores apostam na incompreensão. Felizmente, são poucos.
Nos quesitos de produção, é uma obra impecável. Os já mencionados efeitos visuais são de primeira linha e funcionam muitíssimo bem dentro das elaboradas cenas de ação, que explora com criatividade as possibilidades de teleporte e hologramas, diga-se de passagem. As maquiagens e o design das criaturas também são de se espantar, desde uma tripulante da Enterprise que traz uma verdadeira réplica do facehugger do Alien como cabelo (não vejo a hora de ver um Hot Toys disso) até o visual ameaçador de Krall e seus companheiros, que são capazes de preservar a performance de seus atores - especialmente Idris Elba, que ainda é beneficiado pelo fato de seu personagem sofrer mutações na aparência.
Aliás, Krall é um assunto curioso. Não vou entrar em spoilers, mas temos aqui um vilão que começa de forma esquecível e representa os pontos fracos do longa sempre que a montagem nos leva até ele, sendo memorável apenas de aparência. Porém, seu arco e história tornam-se consideravelmente mais interessantes quando aprendemos sua real identidade e intenções, dando força não só a seu arco, mas também ao de Kirk quando tem-se o debate acerca de identidade. Porém é algo que acaba subdesenvolvido e que soa como uma reciclagem de temas do anterior, que contava com um antagonista muito mais marcante na forma do Khan de Benedict Cumberbatch.
Star Trek: Sem Fronteiras é o melhor filme da franquia reboot que J.J. Abrams iniciou em 2009, surpreendendo pela eficiência de sua narrativa simples e o cuidado imenso com seus personagens cada vez mais fascinantes. É uma aventura genuína com bom humor, tensão, drama e tudo o que um bom filme do gênero pede. Um dos melhores do ano, sem dúvida.
Obs: O 3D é bem usado e não compromete, mas a tela IMAX definitivamente deve ser a escolhida do espectador para a melhor experiência.
Star Trek: Sem Fronteiras (Star Trek Beyond, EUA - 2016)
Direção: Justin Lin
Roteiro: Doug Jung e Simon Pegg, baseado na criação de Gene Roddenbbery
Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Zoe Saldana, Simon Pegg, Karl Urban, Anton Yelchin, John Cho, Idris Elba, Sofia Boutella
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 122 min
https://www.youtube.com/watch?v=M3UPP4X2mf8
Crítica | Pets: A Vida Secreta dos Bichos
O que os brinquedos fazem quando você não está presente? Opa, brinquedos não, mas seus bichinhos de estimação. A Illumination Entertainment se consagrou no mercado graças a febre histérica que se tornou sua franquia Meu Malvado Favorito, principalmente por conta do sucesso absurdo que os minions fizeram entre o público. Como era de se esperar, Chris Meledandri, produtor máximo da Illumination, não apostaria o futuro de sua produtora apenas no sucesso de Gru e seus ajudantes amarelados. Agora ele mira para outros bichinhos fofos: cães, gatos, coelhinhos, enfim, nossos adorados bichos de estimação.
Com base nessa proposta muito similar ao mote do clássico Toy Story, o roteiro do trio Ken Daurio, Cinco Paul e Brian Lynch responde essa questão: o que nossos bichinhos fazem quando saímos de casa? Nisso, somos apresentados a Max, o cãozinho da simpática Katie. Sua rotina é muito tranquila seguindo a filosofia que muitos cães seguem: “como é bom ser um cachorrinho”. Vivendo muito bem, toda vez que Katie sai para seu trabalho, ele se reúne com os seus amigos, outros pets que vivem no condomínio: Mel, Chloe, Buddy e Gidget.
Após mais um dia como qualquer outro, vê sua vida ficar de cabeça para baixo depois que Katie apresenta seu novo “irmão”: o gigantesco e bobalhão Duke. Já encarando a situação com animosidade, sem a menor vontade de dividir o território, Max tenta deixar claro que não deseja a companhia de Duke. Ele, ao bisbilhotar a conversa e descobrir os planos de seu colega, decide tentar se livrar de Max. Nesse jogo complicado para definirem quem é o macho-alfa da casa, acabam se acidentando e se perdendo em Manhattan. Agora, sem a ajuda de ninguém, terão de colocar as diferenças de lado para tentarem retornar a casa.
Para quem já está muito acostumado com os longas de Meu Malvado Favorito, certamente não irão se surpreender muito com Pets, pois, na essência, carregam tudo o que uma produção Meledandri oferece: humor fácil, animação estupenda, visual belo e histórias surreais. Logo, é difícil cobrar algo além da margem de segurança que o produtor/autor está acostumado a fazer. A maior explosão criativa acontece realmente no começo do longa. Trata-se do trecho que virou um longo trailer mostrando os que os bichinhos fazem em casa quando os donos saem.
Além das piadas serem mesmo ótimas e inteligentes, há o uso inspirado de alguns recursos audiovisuais recorrentes durante o filme como os jump cuts. Quando enfim partimos nessa aventura pseudo road movie que os problemas começam a surgir. Os personagens, todos eles, encantam rapidamente no começo do filme, pois carisma é o que não falta para a turma.
Porém, a vasta maioria dos bichinhos não consegue crescer narrativamente. Os bichos coadjuvantes como Chloe, Mel e Buddy são facilmente esquecíveis já que os roteiristas apostam muito pouco com eles. O mesmo aflige os protagonistas, mas em menor escala. Max e Duke rendem bons momentos com as adversidades. Há até mesmo uma tentativa de criar um passado para Duke que só consegue render problemas, afinal é uma passagem inteira de filler que surge após uma sequência muito esquecível envolvendo salsichas e alucinações.
Pior, essa revelação importante para Duke não é o ponto decisivo que deveria ser para a ajustar a relação problemática dos dois cães. Praticamente ao longo do filme inteiro, os roteiristas falham em criar e transmitir algum senso de verdadeira amizade entre os dois. Nisso, eles também não capricham muito em unir bem a história que assume dois pontos de vista distintos que acaba por tomar rumos absurdos diversas vezes culminando no inacreditável clímax. Tudo é solucionado com extrema rapidez e facilidade. Parece que o trio roteirista se auto presenteia com uma carta branca para abusar das conveniências narrativas por conta de utilizarem um filme animado com bichinhos.
Porém, isso não significa que não façam um trabalho razoável. Os picos de humor fornecidos por Gidget, Tiberius e o coelho psicótico, Snowball, tornam a experiência muito divertida – ainda que o antagonismo do coelho seja repetitivo contando com desfecho deveras previsível. Obviamente, não restam apenas esses estímulos de humor ao longa. A dupla de diretores, Chris Renaud e Yarrow Cheney sustentam o longa com muita tranquilidade. É um fato: assistir a Pets é um grande prazer.
O filme certamente não exige quase nada do espectador buscando sempre tornar a experiência na mais divertida possível. Logo, o filme passa voando. Mas no que tange ao trabalho efetivo de encarar criativamente a direção de cinema, a dupla apresenta notória preguiça. A começar, os enquadramentos não fogem do padrão expositivo para a ação muito bem animada. Na verdade, em praticamente nenhum momento, os dois utilizam quaisquer recursos cinematográficos para evocar sentimentos ou criar metáforas visuais. São sempre enquadramentos muito banais.
Com as cenas de ação, o mesmo ocorre. Obviamente, é corretamente montada e decupada, porém persiste nesse marasmo criativo que tange o visual do longa. Uma pena não utilizarem os belíssimos efeitos de iluminação de modo mais inspirado. Mesmo que seja um filme tão quadrado, o visual encanta por sua beleza impressionante. As cores são vibrantes, as texturas fidelíssimas e animação, absolutamente espetacular. Difícil um longa animado de um estúdio tão renomado pecar nos quesitos técnicos. Apenas destaco que qualquer espectador que estiver familiarizado com as raças dos cães que ilustram o filme, certamente perceberá os vícios, trejeitos e expressões similares com às dos bichos da vida real. E claro, esbanjam fofura.
Assim como em Minions, a dupla de diretores tem a mania de interromper passagens da narrativa para inserir esquetes cômicos completamente alheias ao filme, nunca verdadeiramente a favor da história. Não é algo que chega a incomodar, afinal a Illumination é um estúdio especializado em humor slapstick bem feito – algo particularmente difícil de fazer. Aqui até mesmo arriscam com o nonsense que trazem as passagens mais engraçadas do filme. Também, há piadas baseadas em estereótipos que sempre funcionam. Por exemplo, o desespero de Gidget ao amargurar o destino brega de uma personagem exagerada de uma novela mexicana. Aliás, esses pequenos momentos que exploram o cotidiano dos animais são as pérolas mais valiosas deste filme.
Quem chama bastante atenção na obra é Alexandre Desplat com sua trilha musical efervescente que bebe muito na fonte do jazz trazendo à tona um espírito a la Woody Allen para os diversos enquadramentos que passeiam nos monumentos nova-iorquinos. Ele não fica restrito apenas ao jazz. Desplat gosta de trabalhar com tons mais românticos ao longo do filme, trazendo uma de suas trilhas mais orgânicas e diegéticas que ajudam muito a favorecer a encenação também clássica dos diretores.
Pets: A Vida Secreta dos Bichos é mais uma boa animação da Illumination que continua a apostar em histórias simples e caricatas. A ideia principal é uma das melhores que já pintaram nos cinemas animados em anos apostando no carisma de bichinhos tão próximos de nós. Uma pena que os rumos escolhidos não tornem esse longa em uma peça verdadeiramente memorável, o restringindo apenas como um bom passatempo muito divertido e esteticamente belo.
Crítica | Nerve: Um Jogo Sem Regras
Por mais que seja um fenômeno mais fácil de ser observado em seriados televisivos, o cinema, de tempos em tempos, busca retratar manias e obsessões da sociedade contemporânea a seu lançamento. Entre distopias, utopias e filmes pautados na realidade, o forte teor crítico sempre esteve presente e a juventude geralmente é o alvo predileto. Não é preciso buscar muito longe para pegarmos exemplares de grandes filmes que retratam certa parcela problemática de jovens: Aos Treze, KIDS e até mesmo Spring Breakers.
Nerve: Um Jogo sem Regras é o mais recente deles, porém, com uma diferença primordial: não se trata de um filme depressivo. O roteiro de Jessica Sharzer adapta o livro homônimo de Jeanne Ryan no qual acompanhamos a desventura de Vee, uma típica adolescente tímida encarando as dificuldades rotineiras do colegial envolvendo fama, namoro e dúvidas acerca do futuro.
Tudo muda quando ela é encorajada por suas amigas a jogar Nerve, um game da vertente do clássico “verdade ou desafio”, só que sem a parte da verdade. Sendo um jogo proibido, toda sua comunidade se baseia no anonimato – menos aqueles que decidem ser os ‘Jogadores’ que devem cumprir os desafios perigosos que os ‘Observadores’ enviam através do app de smartphone. Após alguns desafios bobos, Vee une forças com outro jogador, Ian. Juntos, tentarão chegar à grande final onde o vencedor recebe toda a quantia de dinheiro que os observadores oferecem como incentivo para realizarem os desafios.
Como já tinha observado anteriormente, a onda do roteiro de Nerve é justamente capturar o fenômeno da internet e das tantas idiotices propagadas através dela como a realização de desafios mortais aliada à de mortes causadas por vaidade – como as muitas geradas pelo uso indevido de paus de selfie ou até mesmo pela distração causada com a realidade conectada dos smartphones.
Romantizando esse elemento, sua crítica social é subjetiva, algo a se louvar, já que não se trata de obra panfletária. O que realmente importa aqui é a jornada de Vee durante suas 24 horas jogando Nerve. Então, nisso, o filme cumpre bem seu papel ordinário, afinal trata-se de uma aventura típica de mudança abrupta de rotina – uma adaptada “jornada do herói” de Joseph Campbell aliada à diversos clichês de filmes survival game e de obras inspiradas na adolescência.
Graças ao texto ágil, as coisas se desenrolam bem contando com diversas reviravoltas para manter seu interesse aceso durante a projeção. Aliás, a própria protagonista, apesar de cliché, é uma personagem crível e interessante graças à atuação de Emma Roberts e de sua interação com Dave Franco que interpreta Ian. Nesse núcleo, se desenvolve o romance obrigatório destas produções que dá margem para o desenvolvimento dos conflitos que visam engrandecer ambos.
No limite da proposta de Nerve, o trabalho com os personagens principais é satisfatório, apesar de previsível, além de certamente você ter visto algo similar com filmes que nem mesmo saíram dos cinemas. Os coadjuvantes basicamente não têm outra função senão estender o filme ou servirem como muletas para resolverem os conflitos máximos do roteiro. É justamente nisso que Nerve pode se perder dependendo da sua expectativa, o enredo.
A narrativa estabelece bem as regras do jogo de modo didático e expositivo – aliás, exposição é o que não falta nos diálogos fáceis. A partir disso, a narrativa inteira fica telegrafada já que é fácil sacar qual será o conflito que desencadeia o clímax. Os conflitos de personagens secundários também não são tratados com qualquer importância, principalmente o de Liv com Vee que toca diversos temas pertinentes: o da pseudo popularidade, da inveja, das amizades superficiais, da histeria, entre outros. A resolução vem apenas com um diálogo digno de Meninas Malvadas. Uma pena. O mesmo se repete com os outros.
Até mesmo as soluções que o roteiro busca são fáceis e pouco embasadas jogando no artifício da benevolência de hackers conhecidos pelo amigo de Vee. Já com o antagonista da trama, também há uma inesperada mudança de índole nada justificada dentro da trama, apenas para trazer algum choque para o espectador. O festival de absurdos do clímax não para por aí. Resolve o filme, mas certamente não é crível de forma alguma. Aliás, é bem similar com a proposta de Vidas em Jogo, clássico de David Fincher que também aposta em resoluções absurdas e fantásticas no clímax. Ao menos, o trabalho é bem feito em unir motivações e backstory entre o casal protagonista com o antagonista principal.
A dupla de diretores Henry Joost e Ariel Schulman surpreendem positivamente com Nerve visto que ambos saíram de filmes anteriores de Atividade Paranormal. Sendo verdadeiramente o primeiro trabalho com câmera de narrativa clássica, era bastante óbvio presumir erros de decupagem e enquadramento. Surpreendentemente, nada disso acontece. Eles só impressionam com escolhas muito interessantes de planos com pontos de vista inusitados.
Espere ver muita coisa através do ponto de vista de câmeras de smartphones e de telas de outros dispositivos eletrônicos. Aliás, o filme já começa com todo o enquadramento fixado no desktop do computador de Vee enquanto observamos ela interagir com diversas redes. Nisso, diversas características pertinentes à personagem são mostradas em tela – ótima técnica de narrativa. É algo que vem diretamente do pioneiro Amizade Desfeita que se passa inteiramente através do desktop dos personagens. Também é recorrente o uso de algumas inserções animadas nos enquadramentos que remetem as redes sociais.
Logo, toda essa relação eletrônica e interação de redes sociais com transmissões ao vivo estabelecem um excelente jogo de voyeurismo que é relativamente explorado. Nisso, também o longa se destaca pela mobilidade da câmera que praticamente nunca fica estável dialogando diretamente com a noite intensa vivida por Vee. Os estímulos visuais não ficam restritos ao bom trabalho de câmera. A excelente fotografia cheia de neons de diversas cores confere vida noturna extraordinária para o visual do filme – certamente um de seus pontos mais altos.
Enfim, os diretores pensaram bastante para guiar o longa com leveza e diversos estímulos visuais certeiros que não são distrativos, mas que agregam a todo momento na narrativa e na mensagem que tentam transmitir com Nerve. Outra herança vinda da experiência de Atividade Paranormal é a excelente construção de atmosfera e tensão através do jogo inteligente de planos na decupagem – ordinários na técnica, mas sempre muito eficientes. Destaque para o clímax do núcleo com Liv.
Nerve é uma pequena pérola do cinema desse ano, apesar de se pautar em tantos clichês fáceis para resolver sua trama intrigante. Traz excelente visual acompanhado de uma trilha musical ótima quase constituída exclusivamente com músicas licenciadas. É uma experiência bastante divertida, de espírito leve e com uma mensagem social muito pertinente ao nosso tempo que deveria levar muita gente a pensar nas besteiras cotidianas cometidas por alguns seguidores a mais. Afinal, a fama vale tudo?