Crítica | Gotham DPGC - Uma pérola escondida nas asas do Batman
A mitologia criada para o Batman é uma das mais complexas e completas da DC até hoje. São tantos personagens e histórias que conseguem sustentar revistas spin off mensais por até mesmo décadas – mesmo que muitas vezes as histórias sejam medíocres. Porém, houve um tempo, não muito distante, que a DC elevou o nível dessas narrativas ao apostar na ideia peculiar de Ed Brubaker e Greg Rucka: e se os policiais do Departamento de Polícia de Gotham tivesse sua própria mensal?
Os personagens que já participavam esporadicamente nas histórias do Batman teriam finalmente seu lugar principal junto aos holofotes da franquia. Por uma decisão surpreendente, a DC autorizou a empreitada dos dois autores já bastante conceituados no campo da nona arte. E foi assim que começou uma das melhores séries que o universo expandido do Batman já recebeu.
Noite Sem Fim
Se há uma série de quadrinhos protagonizando os detetives do DPGC, é evidente que temos Jim Gordon como protagonista, não? Realmente, é um pensamento que muitos leitores de primeira viagem podem ter. Até eu suspeitava que os roteiristas trilhariam esse caminho bastante óbvio. Porém, o que faz Gotham Central ser tão aclamada é justamente sua coragem.
Rucka e Brubaker não optam pelo seguro. Eles fazem cada arco narrativo com um protagonista diferente, de personagens que o leitor certamente possui pouca familiaridade. A história se passa depois de Terra de Ninguém e os eventos cataclísmicos do terremoto são relembrados por todos, assim como a animosidade entre os novos integrantes do Departamento com a figura de vigilante mascarado que o Batman adota. Logo, o conflito inicial que permeia diferentes pontos de vista dos detetives é bastante poderoso.
Ao longo de 40 ótimas edições, temos arcos variando entre 1, 2, 3 e 4 edições para concluir a trajetória de uma jornada sempre intensa e original. Isso ocorre também por conta da animosidade contra o Batman. Por um ranço de nunca terem o trabalho reconhecido, os detetives fazem questão de não solicitarem mais a ajuda do Batman – que intervém vez ou outra de toda a forma.
O primeiro arco, Na Conduta do Dever, é um dos pontapés iniciais mais interessantes que eu já tenha lido na vida, envolvendo um detetive que vê seu parceiro ser estraçalhado em pedacinhos depois do Senhor Frio o congelar. Possuído por ódio, o protagonista da história jura vingança. Aliás, isso que torna Gotham Central tão especial. Os personagens são extremamente vivos e calorosos.
Ao contrário dos vigilantes que tem personalidades um pouco mais estranhas ao cotidiano, os detetives são “gente como a gente”. Tem vidas familiares, problemas financeiros, comem, bebem, se divertem e sofrem, muito. Todos reconhecem que o departamento é corrupto, mas, com exceção de uma história, apenas acompanhamos detetives honestos que tentam trazer mais justiça a uma cidade extremamente violenta.
Observamos um pouco mais da dinâmica de trabalho, das relações entre eles e, claro, o decorrer das investigações. Cada arco poderia ser taxado como “casos da semana” com a participação de grandes vilões da galeria rica do Batman como o Coringa, mas a maioria dos casos tem antagonistas originais ou vilões menores como o Chapeleiro Louco, Doutor Alquimia e Vagalume.
Porém, é impressionante que mesmo esses vilões que dão pouco trabalho para o Batman são desafios monstruosos para os detetives do departamento. Como são investigações, a cadencia de reviravoltas que Brubaker e Rucka escrevem geralmente tem um padrão preciso de pelo menos três por edição, incluindo os poderosos cliffhangers que praticamente te obrigam a ler a próxima histórias – li as 40 edições em questão de dois dias.
Mesmo que tenhamos diversos protagonistas com personalidades bastante distintas, assim como diversas motivações diferentes, além de detalhes particulares a cada um que certamente encantam o leitor, é evidente que a personagem favorita dos roteiristas é Renee Montoya, a investigadora mais conhecida pelos leitores dentro do rol dessa HQ.
Através dela, temos uma jornada complexa através de temas complicados como a homossexualidade, preconceito, abandono familiar e até mesmo depressão e luto. São diversos arcos que temos ela como protagonista, sempre interagindo com seu colega de turno, Cris Allen, outro personagem excelente.
É por meio deles que Brubaker e Rucka conseguem trabalhar histórias importantes que reverberam por quase todas as edições como a narrativa envolvendo o nojento policial Corrigan, o mais corrupto da corporação e detestado por todos os colegas de trabalho. Há elementos pesados e bastante gráficos envolvendo arcos que ele participa.
Aliás, é bem óbvio o motivo de Gotham Central ter ido mal nas vendas, mas sempre ter chamado a atenção dos votantes do prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. Brubaker e Rucka apostam ferrenhamente nos diálogos e mesmo que eles sejam divertidos e interessantes, é inevitável que uma hora a leitura se torne um pouco enfadonha pela falta de ação ou de acontecimentos relevantes nas páginas. Isso é perceptível consideravelmente nas histórias que compreendem o Tomo 3 dos encadernados recém lançados pela Panini: Gotham DPGC: Sob Suspeita.
Porém, não considero isso como um problema verdadeiro de Gotham Central, mas ao juntar as cores e a arte de Michael Lark é fácil ficar desinteressado. Por mais que Lark seja um excelente desenhista que compreende decupagem de ação com muita facilidade, as escolhas estéticas que ele segue por todas as edições são curiosas.
É evidente que os traços grossos e as cores monocromáticas tendem a poetizar o estilo duro e amargo da vida dos detetives, porém ao pegar seis páginas de diálogos dentro da delegacia com os mesmos tons pasteis e diagramação quadrada, a leitura é comprometida assim como o entretenimento do leitor. Também é curioso com Lark quase nunca aposta em desenhos de página inteira e nunca use uma vez sequer as ilustrações de páginas duplas.
Falhas de diagramação para o peso dos acontecimentos também são comuns, pois o tamanho do quadrinho geralmente se altera para acomodar a importância dos eventos das histórias. Esses deslizes são constantes, mas, ao menos, as aparições pontuais do Batman sempre são potentes trazendo o ar realmente único do personagem para cada cenário crítico.
No Cumprimento do Dever
A coleção Gotham DPGC é uma das melhores coisas que a Panini já lançou aqui no Brasil. São 4 edições recheadas de histórias excelentes e arte, no mínimo, competente, mesmo que não agrade tanto aos olhos. Embarcar nas histórias pessoais e profissionais de personagens tão próximos da nossa realidade é uma grande dádiva corajosa oferecida pela DC que, infelizmente, durou apenas 40 edições, tanto para comportar os eventos da Crise Final quanto por respeito do Rucka aos seus parceiros de trabalho. Com Brubaker cominhando para outros projetos, Rucka sentiu que era hora de terminar a jornada exclusiva dos policiais de Gotham City. Em uma despedida dura e triste, os roteiristas entendem com perfeição a áurea sombria de Gotham: uma cidade que vigilantes e bandidos se dedicam aos seus papéis sempre em uma espessa névoa opressiva, deprimente cuja única motivação que os circunda é o trauma do luto.
Gotham Contra o Crime, Gotham DPCG (Gotham Central, EUA, 2002 a 2006)
Roteiristas: Greg Rucka, Ed Brubaker
Arte: Michael Lark
Editora: DC
Edições: 1 a 40
Crítica | A Cor Púrpura - Uma História de Amor Universal
Para começar a falar sobre esse filme especial e sobre o porque ele é tão especial, devemos encarar como ele surgiu na forma de um ponto culminante na carreira de um dos melhores diretores de todos os tempos, o senhor Steven Spielberg, você já deve ter ouvido falar.
Conhecendo o histórico da filmografia do diretor até antes de A Cor Púrpura em 1985, Spielberg era o jovem promissor talento apenas conhecido pelos seus grandes sucessos comerciais, filmes que já fazem parte da memória pop cultural de forma instantânea. Um filme sobre a caça um tubarão monstruoso selvagem serial killer; um onde o François Truffaut e o Richard Dreyfus se comunicam com aliens usando notas musicais; dois filmes sobre um professor arqueólogo porradeiro que caça tesouros e usa chapéu de cowboy; uma história de amizade entre um menino e um ET de poucas e fofas palavras; exemplos bem familiares, não?!
Porém, mesmo tendo recebido tanto sucesso financeiro e elogios das críticas ao longo dos anos com esses filmes, tirando seu enorme deslize com 1941 - Uma Guerra Muito Louca, Spielberg nunca fora visto como um diretor com seriedade artística. Apenas um ótimo diretor comercial com brilhantes habilidades de agradar e conquistar o público, e nada mais que isso. Com certeza era algo que o próprio Spielberg tinha noção, e que apesar da sobriedade amedrontadora presente em sua estreia com Encurralado; e a triste história real do seu subestimado Louca Escapada; sem falar da intensa brutalidade empregada em Tubarão e Indiana Jones: Templo da Perdição; Spielberg sabia que precisava mais do que tonalidades fortes visuais em seus filmes para que ele pudesse comprovar sua maturidade como cineasta, e a sua chave para isso foi a ousada adaptação da amada obra de Alice Walker, A Cor Púrpura.
A trama gira em torno da triste história de vida de Celie (Whoopi Goldberg), uma jovem cujo pai a estuprava ainda na adolescência e depois deu seus dois filhos à venda para outras famílias. E mais tarde, deu a sua mão em casamento para o Sinhô Albert (Donald Glover), um cruel e esnobe senhor de terras que começou a trata-la feito uma escrava, cuidando de seus filhos arruaceiros, tomando conta de sua casa como empregada doméstica e a noite sendo usada como objeto sexual. Até que sua irmã mais nova Netie foge de casa e vai morar com Celie e seu novo marido, onde as irmãs lutam para se manterem unidas até que o Sinhô tenta estuprar Netie que lhe machuca nas partes íntimas, o enchendo de raiva e separando abruptamente ambas irmãs. E com o passar dos anos, Celie vive uma vida de servidão e abusos como sua rotina diária, apenas observando a vida e o tempo dos outros a sua volta passar, sem que nenhuma esperança ou fé lhe sejam possíveis crer. Isso até a chegada da amante do Sinhô, Shug Avery (Margaret Avery) cuja personalidade e sentimentos prometem talvez mudar a vida de Celie.
Uma história de completude dramática complexa e cheia de camadas a se atingir, de fato. Mas esse nem sequer foi o maior desafio para Spielberg como diretor e artista para com a realização de A Cor Púrpura. Apenas tentem se por em seu lugar e imaginem o quadro da situação: Spielberg sendo um homem branco judeu magricelo se propondo a realizar a adaptação de uma obra escrita por uma mulher negra, Alice Walker, que explora um retrato de gerações atrás de gerações de árvores genealógicas familiares, dominadas por uma cultura de subserviência ditadas pela propagação da raiva e o ódio. De brancos para negros, de pais para filhos, de maridos para esposas, de homens para mulheres. A repreensão negra, cultura machista ignorante, a defloração moral do meio familiar e da integridade religiosa. Tudo isso, sendo espelhado nessa pequena comunidade rural negra no Sul dos EUA, que formam o palco da vida de Celie. E foi esse palco, esse quadro e essa história alegórica de uma cultura, que foi a chance de Steven Spielberg mostrar seu alto valor artístico como cineasta.
Apenas imagino o quanto Spike Lee deve ter se contorcido com esse filme, ainda mais depois do mesmo já ter dito que se sentiu ofendido com Amistad, outro divisório filme de Spielberg focado em temas da cultura e história negra. Afinal isso hoje seria visto como um verdadeiro ultraje certo? Um diretor homem branco dirigindo uma história de uma mulher negra, envolvendo a exploração de todas as temáticas sócio-culturais inimagináveis que o rico livro de Walker desmembra de forma soberba. Mas, antes de qualquer outra divagação de identidade étnica por aqui, permita-me de que, antes de qualquer coisa, estamos falando de um dos diretores mais competentes e profissionais de todos os tempos, trabalhando até hoje. Então, no mínimo do mínimo das hipóteses do que poderia acontecer, é que teríamos com A Cor Púrpura uma fiel e respeitosa adaptação da obra de Walker. Mas, graças aos talentos do diretor, temos tudo isso e muito mais, com esta bela história sendo contada por um dos maiores contadores de história do cinema!
A Cor Púrpura de Steven Spielberg!
Um lema recorrente de Spielberg, sempre foi de que se há uma boa história, ela merece ser contada! E ele com certeza fincou isso em prática aqui no seu primeiro longa dito adulto e dramático. Mas embora o material fonte lhe rendesse essas fortes temáticas a serem exploradas, Spielberg não conseguiu escapar de constantes críticas que o perseguem até hoje, sobre sua adocicada da história. Praticamente, amenizando as várias brutalidades impostas à Celie no livro de Walker, e amenização de outros elementos de cunho íntimo (e sexual). E de fato, Spielberg talvez ainda não estivesse maduro o suficiente como diretor para tocar em certos elementos com tanta precisão requerida como Alice Walker tocou no livro. Porém, isso não o impediu de ser absolutamente fiel ao espírito e essência da obra original, sem desvirtuar-la de nenhuma forma aqui.
Ao adaptar a história de Walker a partir de seu ponto de vista como diretor, e colocando o público inteiramente no lugar de observador à partir do olhar de Celie, vemos a história se desenrolar sempre pela ótica de sua protagonista e vemos como Spielberg constrói o universo da personagem, não só como uma visão de mundo do negro americano, mas também a de um mundo matriarcal vivendo na presença da repreensão e violência patriarcal. Uma cultura dominada pelos desígnios ignorantes de falsa superioridade masculina no meio familiar, idéias movidas à crueldade que passam de geração para geração. A história de Celie se torna uma perfeita representação de várias outras tantas histórias similares que alguém já deve ter ouvido ser contada por avós, mães, tios ou tias. Que envolvem essa forma de violência já tão impregnada na natureza humana, onde ambos Spielberg e Walker parecem querer mostrar o berço desta como uma causa colateral do meio em que vivem. Onde a repreensão a comunidade negra, em um país predominantemente branco, se perpetuava firme e forte.
Só nesse meio temático de formato alegórico, já dá pra perceber como Spielberg não desvia seu olhar nem um pouco das ações degenerativas presentes na história. De caráter racial, como quando seguimos Celie em uma simples ida cotidiana na mercearia, onde o vendedor branco trata o cliente branco como alguém da família, e trata a cliente negra com desdém e grosseria; ou como um simples desentendimento verbal ocasiona na violentação e prisão de uma das principais personagens do filme, Sofia (de uma soberba Oprah Winfrey em sua estreia no cinema), em uma cena sufocante e dolorosa, mas precisa em mostrar a sensação abusiva e injusta de uma repreensão racial pública. E de caráter íntimo e familiar representado em, praticamente, tudo de ruim que acontece a Celie.
A cena em que Celie e sua irmã Netie são separadas aos socos e empurrões do Sinhô, é um dos momentos mais crus e dolorosos de se assistir que Spielberg já filmou, onde de cara é quase impossível conter lágrimas de dor. Quando Netie grita em voz seca e derramando lágrimas sem parar: POR QUÊ?! POR QUÊ?! - nos perguntamos a mesma coisa! Por quê tanta maldade?! Por quê tanto ódio?! Isso só se torna ainda mais doloroso por nos sentirmos tão próximos de Celie, com Spielberg nos colocando em seu lugar do início ao fim em seu sofrimento. E permitam-me enaltecer como as duas jovens atrizes, Desreta Jackson como a jovem Celie e Akosua Busia como Netie brilham nessa cena. Com Spielberg nunca deixando de mostrar ser um expert em extrair ótimas performances de atores juvenis.
Por essa forma, de colocar o público aos olhos da protagonista, é porque digo que o filme passa longe de soar piegas ou maniqueísta em suas emoções dramáticas. A partir do momento em que compreendemos como e quem é Celie, sentimos a jovem inocente e pura de coração que é. E Whoopi Goldberg apenas destrói em cena. Pena que a atriz é só meramente reconhecida hoje pelo seu enorme carisma e afiada no humor, e pouco notaram sua grande afinidade com o drama. Dando vida a sua Celie com imensa graciosidade e inocência brilhando em seu olhar (a perfeita personagem Spielbergiana), transmitindo tantos sentimentos em sutis expressões e esboços de sorrisos que falam mais que mil palavras. Nos fazendo sentir todos os seus sentimentos de amor e tristeza, tudo entregue e transmitindo de forma inteiramente verdadeira! E sua jornada de vida se transporta do livro para o filme tal e qual.
O desdobramento de uma personagem passando pelas provações de uma vida sofrida e dominada, que consegue sua libertação, moral e espiritual, movida ao amor e fé que encontra na humanidade flamejante das mulheres presentes na sua vida. Onde Deus é tudo que se forma à sua volta, mas que não consegue enxergar, assim como a cor púrpura, tão presente na vasta natureza e poucos conseguem enxergar. E que, assim como Celie, como nós, só querem ser amados, e é graças ao amor, puro e verdadeiro, que conseguem se fortalecer!
Não é a primeira vez que vemos a natureza sendo usada como uma metáfora visual e alegórica em contrapartida ao que se reflete na construção dos personagens, algo que o diretor sempre buscou beber de seu mestre John Ford. Mas Spielberg tudo isso tão carregado de sentimentos altruístas, como se ele estivesse possuído pelo espírito do bem e do amor, onde é impossível não se encantar em algum momento.
No que se refere à história de Celie, é sua descoberta aos poucos da valorização do que é bom e verdadeiro em um mundo cercado de maldades e injustiças. Que toma forma de uma evolução na valorização íntima com as pessoas de seu meio - as mulheres nesse caso. Apenas note no filme como cada uma das personagens femininas iniciam seus relacionamentos com um conflito causado pela figura do homem - Sofia se enfurecendo com Celie por ela ter dado o mesmo conselho do Sinhô para seu filho Harpo (Willard E. Pugh) de esbofetar Sofia para que ela lhe obedecesse; ou quando Sofia inicia uma luta no bar de Harpo após a sua nova amante Squeak (Rae Dawn Chong) lhe esbofetear, e mais tarde se tornam amigas; ou Shug Every que quando conhece Celie a trata com o mesmo desdém que o seu pai e o Sinhô a tratavam, como uma empregada escrava inútil e constantemente a implicando conotando ela como feia, e mais tarde se tornam confidentes íntimas em uma forte relação de amor e amizade.
Onde cada uma das mulher em volta da vida de Celie se tornam uma força inspirativa para ela em diferentes formas, mas todas movidas pelo mesmo sentimento do amor e da fraternidade. Sofia que não se deixa abalar por nenhuma forma de intimidação, masculina ou não; Shug com seu espírito livre e aberta à amar a todos sem repudia ou preconceito algum; e sua irmã Netie que início preferia morrer do que se separar de Celie, e ao longo do filme mesmo ausente, sua presença se torna quase que espiritual, o amor em volta de Celie. E poderia ser esse amor também a presença de Deus que sempre lhe pareceu impossível e invisível?! Mas é exatamente a força que a permite se levantar após anos de sofrimento e vivendo praticamente como uma escrava.
Infelizmente por esse fator, no engrandecimento da figura feminina em sua união pelos sentimentos e igualdade, em contrapartida ao sofrimento causado pela figura masculina, há quem venha dizer que, tanto no livro quanto no filme, a figura do homem é completamente demonizada, algo que é excuso dizer que não poderia estar mais errado! De fato vemos como principal exemplo o constante sofrimento de Celie vindo do Sinhô, mas ele próprio não é uma figura completamente vilanizada em sua caracterização ao longo do filme. Tanto em ambas as obras, Walker e Spielberg mostram que, mais uma vez, que as figuras masculinas, como o Sinhô e até de seu filho Harpo, e seus atos de cunho machista, são frutos infelizes de um tratamento patriarcal carregado de frieza e ódio, que se propagaram por gerações à fio, com pequenos resquícios que infelizmente ainda podemos encontrar hoje em dia.
E Donald Glover convence em cada centímetro de seu personagem de forma soberba, criando um olhar de cachorro sem dono que vive feliz nas frivolidades da vida, mas desperta um espírito de frieza e intimidação quando impõe ameaça para cima de Celie, mas sempre revelando uma carga de sentimentos frustrados e acabados quando divide a cena com Shug sua paixão, ou seu enraizado cruel e asqueroso pai Senhor Johnson (Adolph Caesar). No final, ele é uma figura tão triste e trágica quanto qualquer outra, mas que não escapa de uma possível redenção. E como um grande ator desses continua subestimado até hoje nunca compreenderei!
O Amadurecimento de um prodígio
Delineações temáticas tão fortes e complexas como essa, transportadas fidedignamente do livro de Walker, que só provam como em A Cor Púrpura foi um grande passo alternativo, mas sempre em frente, na carreira de Spielberg. Mostrando ser muito mais do que só um perito em criar filmes entretenimento de (rica) qualidade para agradar ao público, mas também um diretor com aptidão de contar uma trama adulta e tocar em temas sociais e universais sem aparente dificuldade alguma, e que só viria a crescer nessa sua veia de versatilidade autoral e madura em seus filmes. Sabendo sim dosar aqui muito bem seus momentos dramáticos pesados com seus momentos de leveza, uma marca que quase nunca largou Spielberg de fato, mas que não atrapalha em nada o resultado final aqui.
Afinal sim ele hoje constantemente se arrisca em seus novos projetos, sempre imprevisíveis, e já mostrava querer fazer algo diferente de tudo que já tinha feito antes aqui. Mas não tão completamente diferente quanto você pode pensar. Foi sem dúvidas seu filme mais maduro e adulto até então, mas que ainda continha sua notável assinatura em todos os cantos. Esse é o momento em que os mais críticos e cépticos com o diretor dirão que essa assinatura se refere à amenização do material fonte sendo posto na tela, ou outras constantes críticas que Spielberg sempre foi vítima.
Uma delas sendo a de que ele sempre teve um aparente problema na 'continuidade' de seus filmes. A forma como a narrativa e o ritmo fluem e etc. E ouso dizer que isso é uma forma um tanto preguiçosa de enxergar a forma em que os filmes de Spielberg são construídos. Parecem ignorar o fato de que o dito cujo sempre foi um diretor extremamente visual, deixando muito da composição de sua mise en scene, dos cenários e da conectividade entre as performances de seus personagens, e A Cor Púrpura não é uma exceção a regra! A amarração de continuidade cênica do filme não é feita através de uma certa lógica contínua na narrativa, afinal é a história de uma quase vida inteira sendo contada aqui. E Spielberg deixa que cada momento e cena seja costurada através dos sentimentos que cada cena transmite e amarra uma atrás da outra do início ao fim graças à hábil montagem de Michael Kahn.
Deixando a história de Celie sendo contada através de sutis transições de tempo. Com cada início de um novo capítulo sendo feito através da mudança de estações; uma simples mudança de silhueta na sombra de uma pessoa ou o estado visual da casa ou da icônica caixa de correio que parece se tornar um espectro vivo que traz boas e más notícias - tudo sendo habilmente criado de forma visualmente rica graças a excelente fotografia de Allen Daviau, que dá quase um tom barroco vivo ao visual do filme. Onde as cores são capturadas de forma extremamente exata e rústica, e gritante em saturação por certos momentos, seguindo a exaltação das cores e os planos sempre movimentados e operáticos de Spielberg.
Com o Sul Americano onde Celie e os outros personagens vivem ficando parecido quase que algo falso em suas características visuais. Quase parecendo algo tirado de um storyboard de um filme da Disney, ou na melhor definição, quase fazendo parecer ser um mundo separado do nosso. A Oz, a Tara ou a Casablanca de Spielberg que se torna o palco vivo e quase surreal fantasioso onde os personagens habitam e vivem suas histórias.
Aliás, qual a melhor forma do que contar uma longa história do que se não usando a música?! Pois é, é por isso que insisto em dizer que A Cor Púrpura é, de várias formas, o musical indireto que Spielberg fez! E não sei se é algo que muitos já notaram, mas o Musical sempre foi um gênero que Spielberg sempre flertou em fazer de várias maneiras diferentes ao longo de sua carreira. As ações coreografadas em sincronia e timing de 1941 se inspirava demais nos filmes de Gene Kelly e Fred Astaire; ou a icônica introdução de Indiana Jones: Templo da Perdição que é um perfeito número musical por definição. Enquanto aqui, encontramos vários exemplos de números musicais distintos que Spielberg cria aqui.
Um de forma bem sutilmente escondida como a cena entre Celie e Shug onde a cantora faz a jovem se libertar de sua vergonha e despertar seu desejo sexual, que se desenrola cheia de uma animação nostálgica e infantil em um silêncio quase poético. Ou as duas sequências com músicas sendo propriamente cantadas, uma performada ao belo som de Sister, talvez a canção que melhor simbolize a união feminina das personagens dentro do filme de forma tão alegre e romântica. E a outra se tratando de minha favorita, a belíssima God is trying to tell you something, uma verdadeira e digna sequência musical no "clímax" do filme que serve de grande catarse emocional para a fascinante personagem de Shug Avery, e é possível que te faça escorrer umas lágrimas no meio do grande sorriso esboçado no rosto que essa cena irá você fazer. Não é nenhum John Williams, mas o grande Quincy Jones cumpre o seu trabalho de compositor aqui lindamente!
O Trabalho de um verdadeiro cineasta!
Acredito piamente que um filme como esse nunca seria feito nos dias de hoje. "Porquê não seria um diretor branco e de visão florida a adapta-lo?!" - alguns revoltosos poderão questionar. Não. Apenas por exatamente ter-se presente hoje em dia na indústria, essa constante preocupação de ter representatividade racial e cultural no cinema sendo feita de forma digna, fiel e respeitosa. Optando assim que apenas cineastas negros possam dirigir filmes voltados à temas da cultura negra e apenas cineastas mulheres possam dirigir filmes voltados à temáticas de cunho feminino, e por assim em diante. Um intuito de louvável feito, sem dúvidas, e vários talentos por detrás das câmeras apareceram e receberam devido destaque.
Mas sinto que assim, a busca por um talento de verdade dentro do ramo artístico, e humano, do cinema, se perde aos poucos. Spielberg não precisou ser negro ou mulher para que pudesse contar aqui uma profunda história sobre ambos. Apenas se usou de seu prodígio talento, como grande entendedor de cinema e do espírito humano, para que pudesse contar essa história. Não só sobre a cultura negra e o mundo das mulheres, mas sim a jornada de uma mulher, que lutou as tristezas e sofrimento do seu dia a dia, que aprendeu o que é amor e fé verdadeiras no que é bom que pode ser encontrado no mundo, e para que pudesse um dia novamente reencontrar com sua irmã. Com o seu infinito amor que as permitiu vencer os ódio que as separou, e as fez se unir novamente no final. Exatamente como o mesmo amor com qual o livro foi escrito e esse filme foi feito.
A Cor Púrpura (The Color Purple, EUA – 1985)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Menno Meyjes baseado na obra de Alice Walker
Elenco: Whoppi Goldberg, Donald Glover, Margaret Avery, Oprah Winfrey, Akosua Busia, Willard E. Pugh, Adolph Caesar, Rae Dawn Chong, Desreta Jackson, Dana Ivey, Laurence Fishburne, Leonard Jackson, Bennet Guillory
Gênero: Drama
Duração: 154 min
https://youtu.be/HzGrDgu08r8
Crítica | Dragon Ball - Arco 01: O Treinamento de Son Goku
O primeiro capítulo de Dragon Ball foi publicado na revista Weekly Shonen Jump em 3 de Dezembro de 1984, onde se manteve até 5 de Junho de 1995 – com 519 capítulos. Inspirado no livro chinês do século XVI, A Jornada ao Oeste, Akira Toriyama, desejava criar um mangá nesse tom de aventura/ fábula que também contivesse elementos de kung-fu. Mal sabia o autor que criaria um dos mangás mais famosos da História.
Esta crítica é referente ao primeiro arco do mangá, que vai do primeiro capítulo até o 54º, mais especificamente até o fim do primeiro torneio de artes marciais no qual Goku participa.
Há muitos e muitos anos, longe da cidade, no meio das montanhas, começou uma fantástica aventura. As primeiras palavras que lemos garantem o tom inicial quase de fábula de Dragon Ball. Acompanhamos o pequeno Goku que ainda vivia afastado da civilização. É um menino ingênuo, inocente – característica que se mantém até sua vida adulta. Seu isolamento termina, contudo, quando ele conhece Bulma, a linda (como ela própria gosta de acreditar), jovem e milionária filha do presidente da Capsule Corp. A menina está em busca das lendárias Esferas do Dragão e Goku possui uma delas, a qual se refere como avô.
Logo nas primeiras páginas do mangá podemos observar a simplicidade do texto que se traduz em um hábil contar de histórias. Toriyama poupa palavras, não enchendo seus quadrinhos de inúmeros balões e consegue transmitir suas ideias em grande parte através das expressões faciais evidentes e caricatas dos personagens. Não há também uma desnecessária quantidade de desenhos para descrever uma ação – o autor consegue usar o mínimo e faz isso de forma eficiente, garantindo ao mesmo tempo o entendimento do leitor e a dinâmica da leitura.
Esse primeiro arco já faz uso de toda a comédia vigente em grande parte da obra, que fica mais séria conforme Goku se torna adulto. Apesar das piadas de conotação sexual acabarem cansando após um tempo, é impossível ler Dragon Ball sem ao menos rir uma vez, seja graças à inocência do protagonista ou às situações inusitadas pelas quais ele passa. Uma simples “cena” de pescaria consegue se transformar em uma bem humorada demonstração de kung-fu.
A apresentação dos personagens ocorre de maneira orgânica, sem nunca perder o tom e o ritmo da narrativa. Personagens como Yamcha, Oolong, Kuririn, Pual e Mestre Kame são inseridos através de uma história bem encaixada que, à princípio parece episódica, mas que vai ganhando uma linha coesiva conforme progride. Em termos de prender a atenção do leitor, Dragon Ball não peca, oferecendo ótimos personagens com características bem definidas e ótimas relações entre eles.
A trama avança através de pequenas histórias da busca por cada uma das esferas e atinge o seu ponto alto no totalmente não ortodoxo treinamento de Goku e Kuririn pelo tarado Mestre Kame e o subsequente torneio de artes marciais. Nestes dois vemos a criatividade de Toriyama ganhando vida através de lutas que consistem em bem mais que o simples golpe atrás de golpe. No torneio, cada combate funciona como um jogo de estratégia e a tensão, além das risadas, são garantidas – fechando com chave de ouro o primeiro arco do mangá.
Algo de se notar logo nesses primeiros capítulos de Dragon Ball é não só a progressão dos personagens, como o crescimento da força de Goku. Não só detalhes de sua vida nos são revelados, como fica claro o aumento de seu poder após cada treinamento. Ainda assim, isso não é o suficiente para tirar a tensão em cenas de lutas – mesmo quando o inimigo é evidentemente mais fraco, o autor consegue inserir um elemento que dá desvantagem ao protagonista, como a perda de suas forças quando está com fome.
O arco Treinamento de Son Goku funciona como uma ótima introdução à gigantesca história de Dragon Ball. Repleto de humor, ele detém uma trama mais leve, mas que sutilmente vai se afunilando em uma coesa linha narrativa. São necessárias poucas páginas para prender o leitor na lenda de Goku – é diversão garantida.
Dragon Ball: O Treinamento de Son Goku
Roteiro: Akira Toriyama
Arte: Akira Toriyama
Lançamento oficial: Japão, 1984
Lançamento no Brasil: 2012 (Edição da Panini)
Editora: Panini
Capítulos: 1 – 54
Review | Star Wars: Battlefront II (2005) - O último bom shooter da saga
A franquia originada de Battlefield, Battlefront certamente nos trouxe um dos games mais populares de Star Wars. O primeiro dessa nova série foi um grande sucesso e não demorou muito para que, em 2005, recebesse sua continuação, Battlefront II. Expandindo os conceitos apresentados no jogo original, a sequência nos trouxe diversas novas adições, com um gameplay fluido e divertido que se sustenta até os dias de hoje, certamente o colocando acima do remake moderno, lançado em 2015. Dito isso, o game está longe de ser perfeito, com alguns problemas que podem torná-lo repetitivo em alguns pontos.
Para quem não conhece a franquia, Battlefront II é um game de tiro em primeira e terceira pessoa, que nos coloca no meio de um cenário de guerra, contra inúmeros outros inimigos controlados por computador. O jogo chegou a ser lançado com modo multiplayer, mas como isso é algo praticamente inviável nos dias atuais, em virtude de sua idade, não irei entrar nessa questão. Dito isso, podemos escolher entre a República, os Separatistas, o Império ou a Aliança Rebelde. Cada batalha, é claro, se passa em um dos dois períodos: durante as guerras clônicas ou a guerra civil. Por já nos oferecer essa maior possibilidade de escolha, o game já se coloca em um nível acima de seu recente reboot.
Outro elemento importante que muito o diferencia de Battlefront é a presença de um modo história, que nos leva do final da guerra que dividira a República até os domínios do Império. Durante essas missões controlamos a legião 501 do exército de clones, que se tornaria a mais famosa divisão do exército imperial, conhecida como o punho de Vader (no Universo Expandido, naturalmente). O interessante é que cada uma das fases nos traz diferentes objetivos, permitindo que aproveitemos o modo campanha e não somente passemos por ele a título de curiosidade. Mesmo que, atualmente, não sendo considerado canônico, o game nos oferece um olhar diferenciado sobre esse conturbado período.
O maior destaque de Battlefront II, contudo, é o modo Galactic Conquest, que nos coloca em uma espécie de tabuleiro e devemos dominar planetas da facção rival a fim de exercer completo domínio sobre a galáxia. Após escolher uma das quatro organizações do universo de Star Wars partimos de batalha atrás de batalha, conquistando créditos após cada vitória ou derrota a fim de melhorar nosso exército, comprando novas unidades ou bônus que permanecem durante uma única partida. Recomendo fortemente que o modo seja jogado na dificuldade elite, somente assim algum desafio será oferecido. Isso, porém, não nos afasta da questão que acaba prejudicando o game como um todo: ele é fácil demais e a vitória é praticamente garantida após o jogador se acostumar com os comandos.
Felizmente, cada batalha se diferencia da outra, mesmo que estejamos na mesma fase e existem muitas a serem exploradas, cada uma oferecendo um desafio diferenciado, que pede para uma estratégia diferente. O campo aberto de Geonosis, por exemplo, pede por soldados de maior alcance, enquanto que os claustrofóbicos corredores de Polis Massa requerem que um estrago a curta distância seja empregado – por mais que, quase sempre, esse cenário se torne uma bagunça total em virtude da quantidade de inimigos, aliados e explosões em tela, o que somente o deixa mais divertido, é claro.
Infelizmente, muitas dessas fases não diferenciam alguns de seus fatores dependendo do período escolhido pelo jogador. Em Coruscant, por exemplo, podemos ver naves separatistas e republicanas voando pelo céu, mesmo se estivermos jogando com o Império contra a Aliança Rebelde , demonstrando um evidente descuido dos desenvolvedores quando se trata dos detalhes do jogo. Outro aspecto que faz ele soar extremamente datado são as hitboxes, especialmente quando se escolhe a classe scout (vulgo, sniper). Muitas vezes atingimos uma barreira fantasma muito distante da parede mais próxima, o que pode ser verdadeiramente frustrante. Mas estamos falando, é claro, de um jogo lançado à época do PS2/ Xbox, então não poderíamos esperar muito mais que isso.
Para contornar tais pontos, felizmente, temos a presença de heróis e veículos constantemente nas lutas, o que pode alterar significativamente o campo de batalha. Ainda que alguns desses personagens especiais sejam muito mal desenvolvidos (Palpatine, estou olhando para você), diversos outros contam com habilidades únicas que, se bem empregadas, garantem um toque especial a cada luta. Claro que os heróis acabam surtindo diferentes efeitos no modo Hero Assault, que coloca duas equipes desses icônicos indivíduos da saga uma contra a outra. Além desse modo, temos o clássico capture a bandeira e o padrão conquest, todos podem ser escolhidos no menu instant action, que permite uma bela customização das partidas para que pulemos de jogo após jogo.
Outro erro do game são as batalhas espaciais, que após serem jogadas algumas vezes se tornam extremamente repetitivas e fáceis de se ganhar. Não há desafio algum: basta destruirmos metodicamente cada pedaço da nave do oponente para ganharmos e, a não ser que permaneçamos parados no jogo, a vitória é garantida. Um ponto favorável desse modo é a quantidade de veículos que podemos utilizar, permitindo que voemos em diversas naves que, até então, podíamos apenas observar nos seis filmes da franquia lançados até então.
Battlefront II conta com muitos defeitos e pode soar extremamente datado em determinados pontos. Ainda assim, é uma bela adição ao universo de Star Wars e seus acertos o fazem divertido até os dias de hoje, mesmo duas gerações após aquela de seu lançamento. Por isso não tenho medo de afirmar que estamos falando de um game muito superior à sua contraparte mais recente, que infelizmente pecou em inúmeros aspectos, por mais que se configure como um bom FPS, para quem quer fugir do clássico Battlefield x Call of Duty – estamos falando de uma daquelas exceções que o tecnicamente superior não chega a ser tão engajante quanto seu antecessor menos rebuscado. Para os fãs inveterados dessa galáxia muito, muito distante, um olhar para os games clássicos talvez seja mais apropriado.
Star Wars: Battlefront II
Desenvolvedor: Pandemic Studios
Lançamento: 31 de outubro de 2005
Gênero: Tiro em primeira/terceira pessoa
Disponível para: PC, PS2, Xbox
Review | Final Fantasy - Um dos Games Mais Importantes da História
Final Fantasy foi lançado originalmente para NES em 1987 e foi um dos responsáveis pela popularização do gênero RPG para os videogames. É, sem dúvidas, um dos jogos mais importantes já feitos, tendo influenciando centenas de outros games até hoje.
Concebido inicialmente com o título Fighting Fantasy, o jogo teve seu nome alterado graças à possibilidade de falência de sua desenvolvedora, Square (atualmente Square Enix). Além disso, caso não desse certo, esse seria o último game criado por Hironobu Sakaguchi, que abandonaria a indústria dos videogames. Tão pouco ele sabia que Final Fantasy se tornaria uma das maiores e mais bem sucedidas franquias dos games.
As influências da obra são claramente os RPGs de mesa, especialmente Dungeons & Dragons. Isso pode ser observado desde a criação de personagens, passando pelo desenrolar da história, até o combate em si. Entrarei em detalhes destes elementos posteriormente nesta crítica. Além dos RPGs de mesa, Sakaguchi se inspirou nos videogames Wizardry e Ultima.
Além de Sakaguchi, nesse primeiro game da franquia já participaram importantes nomes e, atualmente, vinculados à franquia. O primeiro é Yoshitaka Amano, que desenha, até hoje, as artes conceituais da série e continua fazendo os logotipos dos games. O segundo, mas definitivamente não menos importante é Nobuo Uematsu, responsável pelas trilhas sonoras de todos os games da franquia (exceto XII e XIII).
Enfim, chegamos ao jogo em si. Final Fantasy inicia com a criação de personagens que permite a escolha de quatro personagens dentre seis classes: Warrior (Fighter), Monk (Black Belt), Thief, Red Mage, Black Mage e White Mage. Cada uma dessas é especializada em um tipo de combate e possui habilidades únicas. A criação de uma equipe equilibrada é essencial. Após darmos o nome para cada um deles, começamos a aventura.
A história inicia com a chegada profetizada dos quatro guerreiros da luz à cidade de Cornelia. Cada um desses heróis possui um cristal escurecido, que devem, ao longo de sua jornada, transformar nos cristais de cada elemento. A aventura começa ao termos que resgatar a princesa de Cornelia das mãos de Garland, um antigo cavaleiro do rei. A partir daí somos levados de missão em missão pelos continentes do jogo, ajudando todos os que precisam, sejam humanos, anões ou elfos.
A progressão do jogo é bastante simples no início, com objetivos bem definidos. A história se mantém simples do princípio ao fim, mas conforme o mundo é aberto para exploração, deixa de ficar claro para onde devemos ir. Os encontros com monstros, que podem ocorrer em qualquer lugar fora das cidades, acabam se tornando repetitivos e irritantes, visto que devemos andar constantemente pelo aberto.
O combate se dá em turnos. Escolhemos as ações de cada um dos nossos personagens e cada um age no instante determinado pelo computador. Em Final Fantasy é inserido um elemento, até então ausente nos videogames: a fraqueza à determinados ataques ou elementos. Cada monstro possui sua vulnerabilidade específica, seja física ou mágica – por exemplo determinada criatura é morta mais facilmente por gelo, ponto que esse que influenciou centenas de outros games dos mais variados gêneros.
Um grande ponto negativo da obra é a quantidade de inimigos que podemos vir a enfrentar por vez, tornando a batalha enfadonha, ao ponto que chegamos a implorar por uma magia que consiga matá-los todos de uma vez. É claro que tais lutas são essenciais para se passar de nível no jogo, mas a sua frequência acaba empobrecendo a dinâmica do game.
Como em qualquer JRPG (RPG japonês), o grinding é essencial. Quanto maior o nível que alcançarmos, mais fácil se torna o jogo. Alguns dungeons e batalhas contra chefes são praticamente impossíveis em níveis mais baixos.
Ao alcançarmos determinado ponto da história podemos avançar cada uma das classes dos personagens. Nos níveis superiores das classes nos são abertas mais habilidades e magias, além de uma mudança na aparência do personagem, o que garante a revitalização da narrativa do jogo, permitindo que nosso engajamento seja recobrado, já muitas horas após o início do gameplay.
Os equipamentos e magias disponíveis devem ser comprados para serem utilizados, diferentemente de posteriores entradas das franquias, nas quais aprendemos certas habilidades. O dinheiro do jogo, gil, é adquirido através das batalhas – quanto maior o nível do inimigo, maior a recompensa, o que nos incentiva a batalhar constantemente, por mais repetitivo que isso acaba se tornando. Cada classe possui armas e equipamentos específicos que podem ser utilizados – um black mage não pode se armar de uma espada, por exemplo, o que torna toda a escolha inicial de classe mais importante.
Não podemos, claro, nos esquecer da emblemática trilha sonora de Nobuo Uematsu, que mesmo em sua versão mais antiga, é fantástica e introduz melodias que percorrerão toda a franquia. Destas podemos destacar o tema de Final Fantasy, o tema dos cristais e a famosa Victory Fanfare, que é tocada ao vencermos as lutas do game em quase toda a franquia. Dessa forma, podemos dizer que a identidade dessa grande antologia foi definida desde cedo, com cada nova entrada honrando o que veio antes, mas sem ter medo de inovar.
Dito isso, Final Fantasy é, sem dúvidas, um jogo de suma importância para a indústria e que merece ser jogado por qualquer fã da franquia ou de RPG que deseje conhecer as origens do gênero nos videogames. Em última análise, contudo, não é um game fácil de se terminar hoje em dia, devido às inúmeras e repetitivas batalhas randômicas e falta de informações para que possamos prosseguir com a história. Estamos falando, é claro, de um jogo lançado há vinte e seis anos e tais defeitos podem ser relevados, tendo em vista seu grau de inovação. Trata-se de uma importante parte da história dos games e que jamais deve ser esquecida.
Caso você tenha interesse no jogo atualmente, existem remakes disponíveis para a PSN, IOS, Android e Windows Phone. O game foi inteiramente refeito, com gráficos, animações e trilha sonora atualizados. O espírito, contudo, se mantém o mesmo.
Final Fantasy
Desenvolvedor: Square
Lançamento: 18 de Dezembro de 1987 (Japão), 12 de Julho de 1990 (EUA)
Gênero: JRPG
Disponível para: NES, MSX, WonderSwan Color, PS, GBA, Mobile, PSP, Wii Virtual Console, PSN, IOS, Windows Phone, Android
Review | Final Fantasy II - As Rápidas Inovações da Franquia
Um ano após o lançamento do primeiro game da franquia, em 1988, foi criado Final Fantasy II. Aproveitando o sucesso de seu antecessor, o segundo jogo apresentou maior ênfase na história e inseriu diversos elementos que continuariam por toda a série, como os chocobos e o personagem Cid, que não chega a ser exatamente o mesmo nas subsequentes entradas, mas detém o mesmo nome.
É importante ressaltar que, no ocidente, FFII somente foi lançado em 2003 para o Playstation. Embora a versão americana estivesse em produção para o NES, ela foi abandonada em virtude do popular Super Nintendo. Em substituição, Final Fantasy IV foi lançado fora do oriente com o nome de Final Fantasy II. Somente na era do Playstation a numeração original foi restabelecida no ocidente. Assim, para não haver confusão: esta crítica é do jogo de 1988.
Ao contrário de seu antecessor, FFII não permite a escolha de classes iniciais e não conta com o sistema de jobs. Isso se dá graças à história mais rebuscada – dessa vez os personagens jogáveis tem um nome pré-definido (que pode ser alterado). Além disso os levels foram abandonados, substituídos por um sistema no qual cada arma e magia possui seu próprio nível, que progridem de acordo com o uso, uma espécie de precursor do sistema observado na série The Elder Scrolls.
Esse novo sistema, infelizmente, gera uma necessidade ainda maior de grinding (batalhar inúmeras vezes), principalmente para melhorar as magias, processo que requisita o uso de cada uma delas durante cada luta. Além disso, espere errar inúmeras vezes os golpes, até que o nível com a arma ou magia tenha se elevado, o que certamente gera muita frustração, especialmente nos momentos mais críticos. O ponto positivo é que o personagem pode ser o que você quiser, já que não são mais presos a classes.
Através de uma cinemática inicial, somos apresentados à história do jogo. Nela, o Imperador de Palamecia começou a conquistar os outros reinos à sua volta, liberando criaturas monstruosas por todo o mundo. Em meio às inúmeras guerras, um exército rebelde surgiu no reino de Fynn. Em pouco tempo, contudo, as forças imperiais invadem a cidade rebelde e os poucos sobreviventes escapam para a cidade de Altair.
É nesse ponto que os heróis do jogo entram. Firion, Maria, Guy e Leon, que tiveram seus pais assassinados pelo exército da Palamecia, estão fugindo de Fynn, quando são emboscados por cavaleiros do Império. Os quatro jovens são rapidamente derrotados, mas são resgatados pelos rebeldes que os levam para Altair. Somente Leon não é encontrado. Nessa cidade de refugiados, conhecem a Princesa Hilda, atual líder da rebelião.
A partir daí nos são dadas missões atrás de missões pela princesa. Com o progredir do jogo tomamos um papel central na rebelião, o que passa a impressão de que, de fato, somos importantes para o desenvolvimento da trama geral. Enquanto avançamos na história, o espaço do quarto membro da equipe é preenchido por um personagem diferente, se encaixando organicamente com a história, o que aumenta consideravelmente a dinâmica da obra e nos deixa um tanto curiosos para descobrir quem vem a seguir.
Final Fantasy II é um jogo evidentemente mais sério e sombrio que seu antecessor. Isso se dá não só pela história, como pela quantidade de mortes ocorridas durante o game e a destruição gerada pelo Imperador da Palamecia. Esse ponto é ressaltado pela melancólica música tema. Nobuo Uematsu, novamente a frente da trilha, apresenta um trabalho fantástico, ainda superior ao jogo original. Em destaque estão as músicas de batalha, o tema dos chocobos e o tema da rebelião, The Rebel Army. Essa última melodia, em tom mais empolgante, funciona como uma dose de esperança dentro de toda a seriedade do jogo, perfeitamente simbolizando a luta pela liberdade, um dos principais temas da obra.
Enquanto alguns problemas do primeiro Final Fantasy são resolvidos, muitos deles ainda se mantêm. A grande frequência de batalhas e a quantidade de inimigos por luta continuam os mesmos, tornando penosa a passagem pelas dungeons e pelo mundo aberto em si. Felizmente, os oponentes foram enfraquecidos, contribuindo para a dinâmica dessas batalhas. O sistema de fraquezas do game original continua e é ainda mais explorado pelos diversos novos monstros inseridos, aumentando a fluidez de cada embate.
Dessa vez nos é oferecida uma maior liberdade na exploração, sendo possível andar por quase todo o mapa desde o início do jogo. Isso, contudo, vem com seus riscos: caminhe para o lugar errado e você irá encontrar inimigos muito mais fortes que você e logo será morto. Portanto, salvar constantemente é recomendável, tendo ainda em conta que dificilmente será possível fugir de uma luta dessas.
Nos diálogos, é inserido um novo sistema de aprender palavras-chave que devem ser utilizadas em determinados pontos da história para progredir nas missões. Além disso, em certos momentos devemos apresentar itens a personagens específicos, para que esse revele o que deve ser feito a seguir. Tal aspecto nos mantém mais engajados à história do jogo como um todo, já que nos obriga a fisgar cada detalhe apresentado pelos NPCs. Naturalmente que a quantidade de diálogos e até mesmo a profundidade deles não chega aos pés dos RPGs de hoje em dia, mas seria injusto cobrar tais aspectos de um game lançado em 1988.
Em relação aos remakes para PSP, Android e IOS, estes apresentam gráficos mais rebuscados, porém ainda usam modelos em 2D. As magias são o único elemento em 3D do game. Infelizmente, muitas delas possuem animações longas demais, que acabam tornando as lutas ainda mais repetitivas. Os controles são bastante simples e funcionam muito bem com cada plataforma, porém com alguns elementos não muito claros. No PSP, por exemplo, é possível passar o jogo inteiro sem saber da possibilidade de abrir um mapa (através dos botões select + círculo).
Final Fantasy II é um jogo de mais fácil aproximação que seu antecessor, porém com detalhes que exigem bastante paciência. Apresenta uma boa história (com um leve deslize no fim), ótimos personagens e horas de jogabilidade, trazendo, desde já, notáveis inovações para a franquia. Definitivamente merece ser jogado por qualquer fã da série e de RPG.
Final Fantasy II
Desenvolvedor: Square
Lançamento: 17 de Dezembro de 1988 (Japão), 08 de Abril de 2003 (EUA)
Gênero: JRPG
Disponível para: NES (Somente no Japão), WonderSwan Color (Somente no Japão), Playstation, GBA, Mobile (Somente no Japão), PSP, Wii Virtual Console, PSN, iOS, Android
Crítica | Piquenique na Estrada
E se a uma espécie de vida inteligente extraterrestre simplesmente visitasse a Terra, deixasse os traços de sua passagem e fosse embora? O ser humano, como é, certamente estaria pronto para decifrar todos os menores detalhes deste contato. Mas será que seu intelecto, isto é, sua linguagem e teorias que supostamente regem no universo estariam preparadas para tal feito? O quanto que essa torre a que damos nomes (civilização, cultura, ciência…) não está pronta para desmoronar como se fosse feita de cartas?
A natureza de um objeto celeste que caiu em 1908, na Sibéria, na cidade de Tunguska, ainda é fruto de debates. O evento causou uma grande explosão, deixando milhares de quilômetros de devastação – e de dúvida. Tão longevo e influente, ainda que não tão citado, o acontecimento inspirou Incidente em Tunguska, do quadrinista Pedro Franz, de seus melhores trabalhos, que termina com uma frase perfeita para epigrafar Piquenique na Estrada: "Toda construção é uma possibilidade de ruína".
"Incidente em Tunguska", de Pedro FranzA partir desta premissa da fragilidade da civilização e do confonto com o mistério, Arkádi e Boris Strugátski, dos mais famosos autores de ficção científica da URSS, originaram o livro, publicado em 1977, após seis anos de imbróglios com os censores soviéticos.
Na Terra de Piquenique, seres extraterrestres visitaram rapidamente o planeta e deixaram resíduos de sua passagem em seis diferentes áreas – cenários que praticamente anteviram o desastre em Chernobil. Além de estranhos artefatos alienígenas, muitos de função desconhecida, as chamadas Zonas quebram, em determinados espaços, as regras básicas da Física, como uma pequena área circular em que a força da gravidade é várias vezes maior.
Obviamente, as Zonas atraem muitas pessoas, sejam turistas, pesquisadores do governo ou mesmo contrabandistas, cada um com seus próprios interesses. O protagonista do romance, Redrick Schuhart, é um stalker, pessoas que arriscam suas vidas para conseguir melhores condições para sua família, trabalhando tanto para o mercado negro, quanto para cientistas ligados ao governo.
Dividido em quatro partes, com perspectivas e narradores diferentes, o livro busca imitar um movimento de internalização, representando a influência da Zona (invisíveis, tal qual uma força radioativa de natureza incompreensível para a tecnologia humana) nos corpos e nas mentes de quem a enfrenta. Influência esta que se manifesta no plano físico, além do psicológico, por exemplo, com a volta de mortos à vida e com as mutações genéticas em filhos de stalkers.
Os irmãos Arkádi (à esq.) e Boris Strugátski, autores de "Piquenique na Estrada".Começamos com uma narrativa de Red, em primeira pessoa, mais novo, com sua mulher, mas sem sua filha, ainda trabalhando com o departamento científico estatal. Em sua incursão por uma Zona, protagonista alude para uma mitologia de treinamento dos stalkers, assim como deverá lidar com as consequências (às vezes, mortais) da busca pelo conhecimento e pela satisfação dos desejos, ainda que com a melhor das intenções.
Um dos grandes méritos do romance é a construção do ambiente e descrição das situações de maneira sintética, apelando para o impressionismo dos efeitos, assumindo as fronteiras da linguagem e da lógica. Ao assumir essa posição, o livro faz do "ser humano" o seu tema.
Esses aspectos que aparecem tão bem ao longo das três partes que acompanham Red, são racionalizados, porém, na penúltima parte, da perspectiva de outro personagem. Nela, a ação dá lugar a um longo diálogo, com ares de filosofia, afetando o ritmo da narrativa. Por outro lado, é um momento para os autores deixarem marcada sua oposição a certas hipóteses sobre a vida extraterrestre menos desesperançosas. Impossível não notar aí uma oposição ao percurso evolutivo dos sinais-monolitos de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Felizmente, esta ode ao destino fatal da incompreensão, é recheada de suspense, sustos e humor ácido na medida certa.
"Stalker" (1979), de Andrei TarkovskiPouco tempo depois da publicação do livro, os autores escreveram o roteiro para Stalker, filme de Andrei Tarkovski. Brilhante, como é toda a filmografia do diretor soviético, o longa traz a premissa e o universo da obra original, mas traz uma narrativa bem mais austera, sóbria e metafísica. Já a série de jogos de FPS S.T.A.L.K.E.R focou justamente no universo, suas armadilhas, artefatos e monstros. Enfim, cada obra em si é uma experiência bem diferente e satisfatória à sua maneira.
Depois de trazer Stanislaw Lem (Solaris) e Yevgeny Zamyatin (Nós) de volta para os catálogos das livrarias, a editora Aleph acerta mais uma vez em cheio com Piquenique na Estrada. Que venham mais títulos do Leste Europeu – e mais dos mestres Strugátski.
Piquenique na Estrada (Пикник на обочине, URSS – 1977)
Autores: Arkádi e Boris Strugátski
Editora: Aleph
Edição: 1ª edição de 2017
Gênero: Ficção Científica
Pgs.: 320
Crítica | Star Wars Rebels - 2ª Temporada - O Crepúsculo da Aprendiz
A primeira temporada de Star Wars Rebels nos apresentou a um pequeno grupo de rebeldes atuando no planeta Lothal que, aos poucos, passaram a fazer parte de um movimento de insurgência muito maior. Encabeçado por Dave Filoni, a série animada fez um ótimo trabalho em expandir o universo canônico de Star Wars, trazendo não só novos e únicos personagens, como um aprofundamento de outros já conhecidos há décadas. A segunda temporada, por sua vez, contava com a tarefa não só de manter o mesmo padrão de qualidade, como o de desenvolver essa história, mostrando quais caminhos inéditos esses já queridos personagens trilhariam.
Iniciado pelo fantástico The Siege of Lothal, esse segundo ano imediatamente altera o status quo do grupo que protagoniza o desenho. Não somente são forçados a deixarem o já citado planeta, como dão de cara com uma ameaça muito maior que o temível Inquisidor que tiveram de enfrentar no ano anterior: Darth Vader. O episódio de abertura, portanto, já mostra que a escala da rebelião assumiu um grau muito maior – suas ações passam a significar muito mais que uma mera pedra no sapato do Império e, ao mesmo tempo que temos essas operações, observamos um evidente crescimento de cada uma dessas personalidades.
Seguindo o exemplo narrativo da primeira temporada, cada capítulo foca em um ou em um grupo de personagens específicos. Ora temos uma trama centrada em Ezra e Kanan, ora em Sabine e Hera e assim por diante. Dito isso, cada um desses episódios explora uma parcela diferente do universo dessa galáxia muito, muito distante. Realizando interessantes conexões com Clone Wars (a versão em CG), Rebels dialoga com o passado desse universo, mais que nunca cita as guerras clônicas e como elas afetam continuamente os acontecimentos presentes. Personagens antigos são trazidos de volta e o mais interessante é como o roteiro faz um esforço para agradar não só as novas audiências como aquelas que acompanharam o outro desenho – nenhum grupo é excluído, ao passo que o entendimento jamais é prejudicado para aqueles que não assistiram o anterior. Mesmo não tendo assistido, contudo, conseguimos nos relacionar com o drama do reencontro de Anakin (agora Vader) com sua ex-aprendiz Ahsoka, momento que automaticamente nos traz lágrimas ao rosto.
Uma preocupação inicial minha em relação a essa temporada foi a inserção de novos inquisidores, temia por uma repetição do que vimos no ano anterior. Felizmente não é isso o que ocorre na obra – cada um desses novos antagonistas traz uma diferente faceta do Império. Seus métodos são diferentes, assim como suas personalidades – ao mesmo tempo um completa o outro de forma orgânica e se mostram, evidentemente, menos poderosos que o grão Inquisidor da temporada passada. Isso não quer dizer, porém, que os perigos que os rebeldes enfrentam são menores. Aqui são testados continuamente em virtude da maior atenção que o Império dispensa a eles, isso sem falar no constante perigo do lado negro que paira sobre os dois jovens Jedi, que devem lutar contra a tentação a todo momento.
Essa questão em específico é muito bem explorada nos capítulos finais, definitivamente um dos melhores de todo o seriado. Esses trazem um icônico personagem do universo de Star Wars de volta, mas pecam por serem a única parte que necessitam de Clone Wars para que tenhamos um entendimento completo – para isso, contudo, basta assistir alguns vídeos no youtube, não é preciso que o espectador passe por todas as seis temporadas da série. A tensão apresentada aqui é gigantesca e traz o planeta Malachor, anteriormente apresentado em Knights of the Old Republic II de forma diferente, para o cânone desse universo. É fascinante aqui como o passado dialoga com o futuro da franquia e abre terreno para inúmeros novos materiais e também para o próprio futuro da animação em questão.
Falando sobre o trabalho dos animadores em si, não há muita diferença para o ano anterior. O design dos personagens se mantém o mesmo, assim como a fluidez de seus movimentos. O que chama a atenção é a identidade da série, como ela se diferencia de outros trabalhos de animação da atualidade. Digno de nota, também, é o trabalho de luz e sombras que muito bem definem o tom das sequências. Malachor é um bom exemplo disso, sendo apresentado na escuridão, muito bem refletindo a história do planeta.
A segunda temporada de Star Wars Rebels se classifica, pois, como mais um grande acerto da Disney, que sabe ampliar o universo de Star Wars ao mesmo tempo que respeita seu passado. As vertentes abertas para o futuro da série são verdadeiramente fascinantes e nos deixam muito ansiosos pelo que está por vir, especialmente após ter assistido o trailer revelado na Star Wars Celebration, que traz do antigo universo expandido da franquia um de seus mais icônicos personagens. Definitivamente a força continua com Dave Filoni e sua equipe criativa.
Star Wars Rebels – 2ª Temporada (EUA, 2015/2016)
Showrunner: Dave Filoni
Direção: Vários
Roteiro: Vários
Elenco: Taylor Gray, Vanessa Marshall, Freddie Prinze Jr., Tiya Sircar, Steve Blum, David Oyelowo, Phil LaMarr, Ashley Eckstein, Stephen Stanton, Jason Isaacs
Episódios: 20
Duração: aproximadamente 22 min.
Crítica | Tarkin - Aprofundando um dos melhores vilões de Star Wars
Importante personagem de Uma Nova Esperança, Wilhuff Tarkin finalmente ganha sua merecida abordagem nas páginas de James Luceno. O Moff Imperial tem sua história aqui contada a fundo em uma narrativa que explora os anos desde a República até os primeiros anos do Império. O autor, já experiente dentro do Universo Expandido de Star Wars, demonstra uma grande familiaridade com toda a mitologia da franquia e consegue nos transportar com exatidão para os eventos que procura narrar, ao mesmo tempo que oferece importantes detalhes que compõem nossa visão do novo cânone estabelecido após a compra pela Disney.
A trama tem início nos anos iniciais do novo sistema de governo criado por Palpatine, Moff Tarkin foi realocado para uma distante base próxima a Geonosis, onde deve supervisionar a construção de uma estação espacial de combate (em outras palavras, a Estrela da Morte) – criando, assim, um vínculo imediato não só com Uma Nova Esperança, como com A Vingança dos Sith. Longe do centro da galáxia, o governador sofre um ataque por um grupo de piratas ou dissidentes e cabe a ele, posteriormente aliado a Darth Vader, descobrir o motivo e as origens desse atentado contra o Império. Uma verdadeira investigação se inicia cujas experiências fazem Wilhuff relembrar o seu aprendizado na juventude, e o que o fizera se tornar o homem que é hoje.
Com essa premissa, Luceno introduz uma narrativa que constantemente oscila entre o passado e o presente e surpreendentemente o faz de maneira orgânica, em nenhum ponto nos sentimos perdidos quando o protagonista mergulha em seu próprio passado em Eriadu, retomando as rígidas provações impostas por sua família que moldaram seu caráter. De pouco em pouco passamos a entender como ele ocupara um cargo de tamanho destaque dentro do Império, que, portanto, explica sua relação com Vader vista no primeiro filme da franquia (em ordem de lançamento). A interação entre esses dois importantes personagens é elaborada aqui de forma fascinante com Luceno inserindo inúmeras suposições por parte do governador em relação ao Darth – ele procura decifrar a expressão que há por trás da máscara e faz isso com uma deliciosa frieza e astúcia.
O autor, detalhista na construção desse universo, utiliza de tudo a seu dispor para criar um quadro realista do cenário galáctico atual, referenciando acontecimentos tanto dos filmes, dos livros, quanto da série animada Clone Wars. Por vezes, essa estratégia acaba constituindo um tiro no pé – um excesso de informações e personagens pode acabar confundindo o leitor, especialmente se este não contar com um profundo conhecimento da mitologia de Star Wars. Tal fator poderia ser facilmente contornado com um glossário ao fim da obra, mas pode ser facilmente substituído por consultas na internet – algo praticamente obrigatório para se ter uma visão completa sobre Tarkin, especialmente quando James se utiliza de nomes de naves ou até mesmo alguns personagens secundários. Por outro lado, ao dispensar extensivas explicações sobre todo e qualquer aspecto abordado em sua trama, ele cria uma nítida fluidez na leitura – pulamos de página após página ansiosos pelo que está por vir. Suas descrições estimulam nossa criatividade e curiosidade. Estamos falando, naturalmente, de um universo inteiramente pautado na transmídia e consultas externas se fazem sim necessárias e não há falta de fontes para termos a visão geral requisitada.
O que talvez seja mais interessante em toda a construção do livro, contudo, é a forma como ele cuidadosamente amplia nossa percepção sobre o Império. A trilogia original dispensa quase que completamente qualquer abordagem política sobre o governo galáctico – ao contrário dos Episódios I, II e III. Somente em Uma Nova Esperança temos alguns vislumbres desse aspecto da franquia através dos diálogos entre o Moff, Vader e outros oficiais na Estrela da Morte. Aqui em Tarkin, todavia, somos levados para a cúpula da galáxia e passamos a entender melhor todo o cenário pós-guerras clônicas. A exploração, o racismo, o totalitarismo desse novo governo, naturalmente espelhando o nazismo, são discretamente trabalhados por Luceno com alguns detalhes inseridos em determinadas frases, mas que contam com enorme peso.
A fim de explorar mais profundamente esse aspecto, o autor ainda divide, pontualmente, alguns trechos de seus capítulos focando-os em outros personagens, como o Imperador, Vader ou até mesmo os antagonistas. Um preciso trabalho de diagramação aqui se faz essencial e cria uma maior distância entre os parágrafos na ocasião de uma mudança de foco narrativo. Já abordando o trabalho editorial eu não poderia deixar de tecer elogios à Aleph, que nos traz a edição brasileira. Cada mudança de capítulo é um verdadeiro deleite, contando não só com páginas de qualidade, como com uma ilustração bem inserida do ataque à Estrela da Morte, que imediatamente nos situa dentro do mesmo universo da trilogia clássica.
Além disso, a tradução por Caco Ishak sabiamente mantém alguns nomes e títulos no idioma original, enquanto alguns outros são traduzidos. Essas traduções, especialmente Pico da Carniça exercem uma poderosa força na construção do livro, há um certo ar de interioridade no nome da nave de Tarkin e isso perfeitamente corresponde às suas origens de Eriadu. Ouso dizer que Pico da Carniça chega a soar melhor que o original Carrion Spike quando inserido dentro desse contexto, que dá muitas faces ao protagonista e, sobretudo, uma gigantesca profundidade.
Com a experiência e a Força do seu lado, James Luceno nos traz a fascinante história do homem que se tornaria Grand Moff, ocupando uma posição de equivalência ao próprio Vader no cenário galáctico. Tarkin é uma obra nada menos que obrigatória para todo e qualquer fã de Star Wars e ajuda imensamente a construir nossa percepção sobre esses tempos sombrios dentro da mitologia da franquia, trazendo o passado e presente de um icônico personagem que, até então, fora muito subutilizado. O novo cânone definitivamente começou com o pé direito.
Tarkin (idem – EUA, 2014)
Lançamento no Brasil: Agosto de 2015
Autor: James Luceno
Ilustrações: David Smit
Tradução: Caco Ishak
Editora: Aleph
Páginas: 368
Crítica | Black Mirror - 4ª Temporada - Um Ano de Altos e Baixos
Nada como acabar o ano se sentindo para baixo, certo?
A Netflix enfim liberou a quarta temporada de Black Mirror, série de antologia de Charlie Brooker que veio a se tornar uma das produções mais adoradas e comentadas da atualidade. Por muito tempo se comparou o trabalho do britânico vencedor do Emmy com a impecável Além da Imaginação, de Rod Serling, no que diz respeito ao conceito de antologias e o teste dos limites da condição humana.
Dito isso, vamos à análise dos novos episódios de Black Mirror!
USS Callister
O ano de 2017 foi bastante significativo para Star Trek, ou Jornada nas Estrelas. O universo criado por Gene Roddenberry ganhou basicamente duas séries – uma oficial, Discovery, e outra, The Orville, que basicamente segue a mesma ideia do seriado sessentista estrelado por William Shatner e Leonard Nimoy.
Aproveitando, certamente, desse novo sopro de ar na franquia, eis que Black Mirror nos entrega um capítulo que utiliza como temática a ficção científica espacial que costumamos ver em Star Trek – não se trata bem de algo passado nesse universo, mas claramente a Netflix fez uso da ideia para atrair os fãs da longeva criação de Roddenberry, especialmente quando, no mesmo ano, foi distribuída pelo canal de streaming, Discovery.
Naturalmente que, tratando-se da série de Charlie Brooker, nada seria tão simples. Essa releitura tecnológica de Além da Imaginação mantém seu foco no “lado negro da tecnologia” e apresenta um mundo no qual pessoas podem explorar o Espaço através de um jogo em realidade virtual, que materializa uma versão de si nesse universo digital. A trama gira em torno do programador desse game, Robert Daly (Jesse Plemons) mostrando o quanto ele não é valorizado dentro da empresa que ele fez crescer.
O roteiro de William Bridges e Charlie Brooker, porém, subverte nossa expectativa ao transformar a vítima em vilão. Enquanto ele é praticamente ignorado em sua empresa – na sua residência ele criou uma versão offline desse mesmo jogo, tendo total controle sobre o que acontece ali dentro. Lá ele desconta suas frustrações em relação aos colegas do trabalho, materializando cópias de cada um deles dentro do mundo virtual, criando inteligências artificiais que sofrem, presas ali dentro, enquanto o programador se comporta como um cruel deus para seu micro universo.
USS Callister, sem dúvidas, contava com muito potencial, podendo explorar a problemática envolvendo a inteligência artificial – pode ela ser considerada vida ou não? Além disso, claramente a trama poderia aproveitar todo o discurso de violência gera violência, lidando com o bullying indiretamente, já que Robert Daly somente é cruel porque outros foram cruéis com ele. Ao invés disso, o texto segue por vias maniqueístas, mesmo que quebre nossas expectativas. Tudo o que ele faz é construir – de maneira bastante superficial – seu vilão, colocando como heroína uma das inteligências artificiais presas no jogo.
De fato, todos os personagens apresentados nesse capítulo permanecem no raso. Bom exemplo disso é a protagonista, Nanette (Cristin Milioti), que somente sabemos que é uma programadora que admira Daly - além disso, nada é oferecido ao espectador. Os outros indivíduos em tela seguem pelo mesmo caminho, ou até pior, não há absolutamente nada que nos faça simpatizar com cada um deles a não ser o tratamento cruel que recebem do principal antagonista.
Não bastasse isso, ao lidar com o universo virtual, o roteiro se esquece quase que totalmente do mundo de fora – os personagens apresentados servem apenas para dar um contexto básico para aqueles que vemos dentro do game. Dito isso, conforme progredimos no capítulo, o mundo “real” é deixado de lado, como se, de fato, não importasse. Ao criar tal pressuposto, o roteiro torna insignificante as conquistas ali dentro, já que não afetam, de maneira alguma, a percepção das pessoas reais acerca da I.A. ou até mesmo a relação dos companheiros de trabalho de Daly com o programador chefe da empresa. Tudo, no fim, é mero entretenimento vazio.
Isso não quer dizer, felizmente, que tudo é dispensável no capítulo. Como homenagem a Star Trek, ele funciona plenamente, especialmente quando, nos minutos iniciais, faz tudo parecer como um episódio da série original, dos anos 1960, utilizando até um formato de imagem diferenciado e filtro envelhecido. Naturalmente que todo o figurino e direção de arte seguem a mesma ideia, criando visuais que nos fazem sentir, imediatamente, como se estivéssemos diante da ponte de comando da Enterprise.
O próprio maniqueísmo, a vilania de Daly seguem o estilo dos antagonistas de Jornada nas Estrelas e Jesse Plemons cria um personagem canastrão que perfeitamente combina com essa ideia. Em essência, o episódio se resume ao bem contra o mal, algo que funcionaria em uma série aventuresca de ficção científica, mas que falha em criar as necessárias discussões típicas de Black Mirror.
Não ajuda, claro, o fato da obra se estender por mais tempo que deveria. Setenta e seis minutos ultrapassa e muito o que seria suficiente para desenvolver a história. Isso fica claro quando a tripulação virtual da Callister viaja para um planeta desértico, apenas para deixar clara a vilania do principal antagonista, algo que já ficara bem claro e antes e que depois torna a ser repetido, cansando o espectador, dilatando nossa percepção da obra como um todo, que, no fim, parece muito maior que o seu, já longo, tempo de duração.
Boas intenções, portanto, não necessariamente fazem um bom episódio, como é bem provado por USS Callister. Embora funcione como grande homenagem a Star Trek (ou mera tentativa de “roubar” os fãs dessa série), o capítulo falha em criar a necessária profundidade para que seja criada a discussão acerca das temáticas levantadas. Mais do que tudo Black Mirror precisa incomodar o espectador e o que vemos aqui é a velha luta do bem contra o mal, não se aprofundando nos engajantes pontos levantados pelo roteiro de Bridges e Brooker. (Guilherme Coral)
Arkangel
Um dos nomes de peso da nova temporada, Jodie Foster embarca na direção do perturbador Arkangel. É um exemplo de Black Mirror raiz, com a premissa básica de uma nova invenção tecnológica mostrando-se danosa para a condição humana, seguindo uma linha similar aos ótimos Queda Livre e Toda a Sua História e, felizmente, o resultado alcançado por Foster e o onipresente roteirista Charlie Brooker é igualmente próximo desses citados.
A trama nos apresenta à Marie (Rosemarie DeWitt), uma mãe superprotetora que, após uma experiência traumática, opta por um tratamento ousado para a segurança de sua filha Sara (Brenna Harding). É o programa experimental Arkangel, consistindo no implante de um chip na mente da criança, e que permite aos pais assistirem e monitorarem todas as suas atividadades em um tablet, desde localização via GPS, acesso ao que a pessoa está vendo e até mesmo um bloqueio de conteúdo inapropriado. A partir daí, vemos todo o crescimento de Sara até uma adolescente, à medida em que Marie fica em conflito com as limitações do aplicativo.
Receita para o desastre, e para que Brooker nos ofereça um pouco da boa e velha depressão pós-episódio. Os melhores episódios da série são justamente os que trabalham em cima de um conceito cyberpunk em um ambiente cotidiano, e como a condição humana está sempre disposta a corromper-se em decorrência do mal uso da tecnologia; o Arkangel definitivamente é uma ideia brilhante, e poderia ser usada para bons frutos, mas aqui é mais um exemplo da paranóia, e Brooker é particularmente feliz em jogar esse conceito para uma relação de mãe e filha. O roteiro traz diversas situações do tipo "e se", e que merecem créditos pela originalidade, tal como a mãe desesperada recorrendo ao tablet para descobrir onde sua filha realmente foi - na clássica desculpa do "vou na casa da amiga, mas na verdade estou com garotos" - e com resultados ainda mais memoráveis e chocantes.
A condução de Jodie Foster também ajuda. Através de um trabalho de composição de quadros elegante, a diretora cria belos enquadramentos que ilustram a relação quase doentia de Marie em relação à sua filha, especialmente naqueles onde a mãe assista a visão da filha pela câmera do tablet - recurso usado também para uma revelação quase assustadora. A construção sutil de Foster também ajuda a nos colocar na atmosfera pesada da história, e que vai ficando cada vez mais intensa à medida em que nos aproximamos do fim, e a câmera de Foster nem precisa recorrer a um recurso mais evidente como shaky cam ou cortes excessivos, trabalhando tudo através de planos abertos e uma paleta de cores essencialmente fria. Aliás, é divertido como o design de produção do episódio apresenta uma visão simplista e eficiente para um "futuro quase distante", com um visual praticamente similar ao nosso, mas com pequenos detalhes na tela de celulares, computadores e até uma lousa de sala de aula para construir um cenário futurista.
Por fim, mas não menos importante, vale destacar a ótima performance de Rosemarie DeWitt, que transparece o drama interno de Marie, e mesmo que suas ações sejam erradas, o espectador é capaz de compreendê-las. A jovem Brenna Harding também faz um ótimo trabalho como a versão adolescente de Sara. (Lucas Nascimento)
Crocodilo
Memórias são coisas poderosas. Amigas ou traiçoeiras, são carregadas de uma subjetividade ímpar que, quando exploradas a fundo - por exemplo, por hipnose -, podem desencadear consequências terríveis tanto para aquele que é analisado quanto para quem analisa. E é exatamente disso que Crocodilo, terceiro episódio da nova temporada de Black Mirror, permite-se mergulhar.
É um fato dizer que a conjuntura completa do quarto ano de uma das séries mais aclamadas da Netflix tenha altos e baixos em um equilíbrio episódico quase assustados, mas talvez seja a iteração dirigida por John Hillcoat a mais oscilante de todas. O diretor, conhecido por sua incrível investida western com A Proposta, talvez pudesse ter optado por uma perspectiva mais endossada de seu estilo aqui, mas preferiu seguir em um caminho mais intimista e definitivamente mais aterrador, criando um diálogo necessário para com a identidade do show em si.
Crocodilo conta a história da frieza humana e do quão longe uma pessoa pode chegar para manter-se a salvo. A narrativa gira em torno de Mia Nolan (Andrea Riseborough), uma proeminente arquiteta que cometeu um homicídio culposo quinze anos atrás com seu ex-namorado Rob (Andrew Gower), atropelando um ciclista. E apesar de terem se livrado do corpo da vítima, os fantasmas do passado voltaram para assombrá-la, levando-a a cometer uma série de atrocidades como forma de preservar sua reputação.
Todo esse thriller psicológico conversa com o tema tecnológico e distópico na figura da corretora de seguros Shazia (Kiran Sonia Sawar) que, utilizando um “relembrador” portátil, descobre que Mia matou Rob, o qual queria escrever uma carta anônima para a família do ciclista, mas foi brutalmente eliminado por um súbito ataque de frustração. E é a partir daí que os medos e as inseguranças da protagonista começam a falar mais alto, insurgindo de modo assustador principalmente pela expressão desolada e angustiada.
Riseborough carrega toda a essência do episódio em uma atuação bem delineada e adornada com ápices muito bem demarcados para a compreensão da sua personagem. Apesar da máscara empreendedora, seus gatilhos retornam em um fluxo inenarrável e que, mesmo com um ritmo frenético, é justificado por sua necessidade de proteger a si mesma e à família que lutou para construir. Entretanto, em um escopo mais geral, a narrativa deixa a desejar por manter-se em uma superficialidade ocasional: não há exatamente uma originalidade a ser buscada dentro do episódio. Tudo parece funcionar como uma amálgama do que já existia nos capítulos predecessores - e ainda que Crocodilo tenha um ciclo finito, não se pode dizer que seus convencionalismos foram postos de modo adequado, usando o mesmo do mesmo para não sair da zona de conforto.
Entretanto, se os grandes deslizes permanecem no roteiro, não se pode dizer o mesmo de sua estética. Hillcoat consegue capturar de modo preciso a atemporalidade do cenário islandês ao mesmo tempo em que utiliza as mudanças de tom nas cenas para conversar com a trajetória da personagem. Ainda que toda a violência explícita dentro da trama não seja justificada, a atmosfera depressiva e sombria é reafirmada pela fotografia gradativamente mais escura e mórbida, mesmo pautada na infeliz redundância imagética. (Thiago Nolla)
Hang the DJ
Romance, por mais anacrônico que possa soar de início, também vem se mostrando uma característica forte de Black Mirror. Com os relacionamentos amorosos tendo se tornado tema de diversos filmes e episódios como San Junipero e Volto Já, Charlie Brooker mira em um aspecto muito relevante e atual com Hang the DJ: aplicativos de paquera.
Na trama, somos apresentados a um programa similar a aplicativos com Tinder e Happn, onde casais são aleatoriamente sortidos e combinados, e os respectivos encontros são determinados por uma duração específica - a qual os participantes são obrigados e cumprir, independente do tempo. Nesse cenário, temos a história de Frank (Joe Coel) e Amy (Georgina Campbell), duas pessoas que se conhecem uma vez, mas que colocam à prova o funcionamento do aplicativo ao tentar estender seu tempo determinado.
É uma premissa que imediatamente nos remete a O Lagosta, comédia de humor negro do grego Yorgos Lanthimos que também apostava em uma seleção aleatória de casais com algum tipo de twist bizarra - no caso do filme com Colin Farrell, o fato de que se transformariam em animais e seriam soltos à natureza caso não achassem um par. Brooker aposta em outro tipo de análise, com os protagonistas questionando se tudo aquilo não passa de algum tipo de simulação, e consegue explorar também aspectos mais intimistas; por exemplo, quando Frank e Amy se reencontram, optam por não olhar quanto tempo o aplicativo os concedeu, mas um deles é logo tentado para tentar descobrir a duração exata - e que, sendo Black Mirror, sempre traz consequências devastadoras para esse tipo de ação.
O texto também explora algumas situações inusitadas, como o fato de que Frank é forçado a ficar 1 ano ao lado de uma parceira que não se mostra nem um pouco compatível, e também ao sugerir através de diálogos espertos, de que vivem em uma sociedade isolada do mundo - em mais uma semelhança com O Lagosta. As performances centrais de Joel Coel e Georgina Campbell também são eficientes, especialmente Coel por ilustrar os conflitos internos de Frank e a insegurança de não saber lidar com uma relação sem saber sua data de validade, em mais um interessante comentário social sobre nosso atual status na era digital.
No fim, o episódio acaba decepcionando pela resolução um tanto batida e que trilha por caminhos que o próprio Brooker já explorou, e o fator surpresa acaba perdido, mesmo que a execução seja admirável - especialmente quando nos é revelado o porquê do aplicativo ter precisamente 99.8% de chance de êxito em encontrar a alma gêmea de seus usuários. (Lucas Nascimento)
Metalhead
O destino definitivo para Charlie Brooker: o futuro distópico, desta vez pra valer, e não como vimos no clássico episódio da segunda temporada. Metalhead se destaca dos outros pelo visual impactante: um preto e branco com contraste forte e um frame rate acelerado que nos faz parecer estar assistindo tudo no modo fast foward, uma característica marcante do diretor David Slade (30 Dias de Noite), que entrega aquele que é disparado um dos episódios mais autorais de toda a antologia; e, ainda assim, um dos mais vazios de conteúdo.
O episódio começa em uma paisagem desolada, com um grupo de pessoas cruzando a estrada de carro. Logo temos o contexto de um mundo devastado onde criaturas robóticas conhecidas como "Cães", caçam e neutralizam humanos perdidos. Basicamente, essa é a trama, onde passamos a acompanhar a luta de Bella (Maxine Peake) para escapar de um Cão e sobreviver.
Só pela premissa já reparamos em como ela é rasa se comparada a todos os anteriores. Não há muitos conceitos a serem explorados aqui, tanto de tecnologia quanto de um universo cyberpunk; aqui, o medo de Brooker já está realizado, e as máquinas caçam humanos sem dó em um ambiente claramente devastado por estas. Por um lado, isso garante que Slade conduza um episódio completamente diferente, quase podendo ser comparado a "O Regresso de Black Mirror", justamente por seguirmos uma jornada desesperada e solitária. O visual nunca nos cansa, ainda que os excessos de Slade em seu frame rate possam distrair, e a tensão é sempre mantida ao máximo, especialmente quando a protagonista encontra uma casa vazia que pode ou não lhe oferecer alguma ajuda de seu perseguidor.
Aliás, muito feliz é a decisão de Slade em optar por um antagonista com aparência tão simples, sendo este o aspecto que o torna tão ameaçador. O Cão definitivamente faz jus a seu nome, com as quatro patas, mas seu casco também remete a um atrópode, e a ausência de uma cabeça - e, subsequentemente, um rosto - o torna ainda mais ameaçador, da mesma forma que o xenomorfo de Alien, O Oitavo Passageiro também assustava por essa omissão. Os efeitos visuais também são de primeira, com os movimentos levemente desengonçados remetendo à técnica de stop motion.
Mas, novamente, todo esse apuro técnico acaba sendo em vão: não há nada sob a superfície de Metalhead. (Lucas Nascimento)
Black Museum
Benditas épocas que tínhamos seriados de antologias sci-fi/terror como Além da Imaginação e Contos da Cripta. Cada episódio contava sua história fechada, com reviravoltas impressionantes que flertavam com o melhor e o pior da imaginação humana. As décadas se passaram e o modo que consumidos entretenimento mudou. Com Black Mirror, a série de antologia mais famosa dessa década, pudemos revisitar o formato a convite de Charlie Brooker em seu mundo cheio de caos de tecnologias futuristas.
Para encerrar essa aguardada 4ª temporada, Brooker decidiu que era hora de fazer uma antologia dentro de sua própria antologia. Um episódio quase metalinguístico visando contar histórias diversas em um menor espaço de tempo enquanto tece uma narrativa maior. Black Museum é uma singela carta de amor de Brooker para os mestres de outrora como Rod Serling, Alfred Hitchcock e John Cassir e, também, para seu próprio trabalho, já que temos o cenário do museu recheado de referências de todos episódios de Black Mirror até então.
Na narrativa, uma garota viaja até um lugar distante onde fica o infame Black Museum de Rolo Haynes, um ex-funcionário de tecnologia medicinal que coleciona diversos protótipos que resultaram em finais violentos ou trágicos para seus usuários. Em uma visita guiada pelo próprio proprietário do museu, a garota descobre segredos terríveis de vidas miseráveis.
Para evitar estragar a surpresa, é melhor comentar superficialmente sobre as boas narrativas que Brooker traz aqui. Estranhamente, a primeira história é mais interessante e criativa, jogando um médico fracassado aceitando a proposta de implantar um neurotransmissor de receptação de sensações dos seus pacientes para conseguir apressar o diagnóstico e salvar mais vidas. Com uma dose de humor negro em todo o episódio, o roteirista apresenta um olhar possivelmente inédito a respeito ao vício e suas consequências drásticas ao introduzir reviravoltas que subvertem as regras do jogo. Simplesmente ótima história que merecia um episódio inteiro somente para si.
Já a segunda narrativa tateia novamente sobre a transferência de consciências já exploradas em San Junipero. Aqui, a rotina de um casal e seu primeiro filho é abalada após a mãe ser brutalmente atropelada, a deixando em um estado de coma permanente. Para salvar a consciência da mulher, o marido aceita dividir seu corpo e sua mente com a consciência da esposa. Brooker faz de tudo para provocar, eficientemente, um sentimento de comédia involuntária devido a situação nada funcional que o casal se encontra – que obviamente terminaria mal de qualquer forma.
De modo bastante previsível e óbvio, o desenlace do episódio não é muito impactante, chegando até mesmo a ser monótono devido a uma eventual falta de interesse para o destino de todos aqueles personagens que necessitavam de mais desenvolvimento para se tornarem marcantes. É aqui que as coisas começam a ficar atrapalhadas em Black Museum nos fazendo pensar que talvez a ideia de uma antologia dentro de uma antologia não seja lá uma escolha brilhante.
Isso se torna evidente no desfecho do episódio, inserindo uma reviravolta para justificar a ida da protagonista até um museu tão decrépito. Ela envolve uma terceira narrativa para o item mais precioso do museu de Rolo Haynes, porém, pelo fato de estarmos tão próximos ao limite de duração da história, Brooker tem o mínimo de tempo para desenvolver esse tal item. Ele é relacionado a um assassinato que não sabemos muito bem a origem ou de suas consequências.
Tudo piora quando surge uma tensão de conflito racial nos minutos finais do episódio, em uma visão muito maniqueísta das partes – algo que, nessa temporada, se tornou um problema temático, pois Black Mirror antes ousava escapar dessa visão binária do storytelling. Como não há espaço para acreditarmos na causa da protagonista e das suas intenções, além de Haynes, carismático narrador das desventuras, não ser nada confiável, temos um festim de exposição que o roteirista usa para tentar gerar empatia.
Mesmo com excelentes atuações, principalmente de Douglas Hodge como Haynes, uma direção firme com mudanças necessárias para cada estilo de narrativa, cinematografia apurada e envolvente, além de uma espetacular direção de arte, Black Museum se torna uma experiência inconsistente pela pressa em tentar surpreender o espectador com uma história muito mal firmada em pouquíssimos instantes. Às vezes, o elemento surpresa pode acabar prejudicando uma boa ideia. Ainda mais uma que teve um excelente começo dentro de um conceito cheio de potencial. Matheus Fragata
Black Mirror - 4ª Temporada (EUA/Reino Unido - 2017)
Criado por: Charlie Brooker
Direção: Toby Haynes, Jodie Foster, John Hillcoat, Timothy Van Patten, David Slade, Colm McCarthy
Roteiro: Charlie Brooker, William Bridges
Elenco: Jesse Plemons, Cristin Milioti, Jimmi Simpson, Michaela Coel, Rosemarie DeWitt, Brenna Harding, Andrea Risenborough, Kiran Sonia Sawar, Andrew Gower, Anthony Welsh, Claire Rushbrook, Joe Coel, Georgina Campbell, Maxine Peake, Letitia Wright, Daniel Lapaine, Douglas Hodge, Alexandra Roach, Amanda Warren
Emissora: Netflix
Episódios: 6
Gênero: Suspense/Ficção Científica
Duração: 50/60 min
https://www.youtube.com/watch?v=5ELQ6u_5YYM