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Crítica | Piquenique na Estrada

E se a uma espécie de vida inteligente extraterrestre simplesmente visitasse a Terra, deixasse os traços de sua passagem e fosse embora? O ser humano, como é, certamente estaria pronto para decifrar todos os menores detalhes deste contato. Mas será que seu intelecto, isto é, sua linguagem e teorias que supostamente regem no universo estariam preparadas para tal feito? O quanto que essa torre a que damos nomes (civilização, cultura, ciência…) não está pronta para desmoronar como se fosse feita de cartas?

A natureza de um objeto celeste que caiu em 1908, na Sibéria, na cidade de Tunguska, ainda é fruto de debates. O evento causou uma grande explosão, deixando milhares de quilômetros de devastação – e de dúvida. Tão longevo e influente, ainda que não tão citado, o acontecimento inspirou Incidente em Tunguska, do quadrinista Pedro Franz, de seus melhores trabalhos, que termina com uma frase perfeita para epigrafar Piquenique na Estrada: “Toda construção é uma possibilidade de ruína”.

“Incidente em Tunguska”, de Pedro Franz

A partir desta premissa da fragilidade da civilização e do confonto com o mistério, Arkádi e Boris Strugátski, dos mais famosos autores de ficção científica da URSS, originaram o livro, publicado em 1977, após seis anos de imbróglios com os censores soviéticos.

Na Terra de Piquenique, seres extraterrestres visitaram rapidamente o planeta e deixaram resíduos de sua passagem em seis diferentes áreas – cenários que praticamente anteviram o desastre em Chernobil. Além de estranhos artefatos alienígenas, muitos de função desconhecida, as chamadas Zonas quebram, em determinados espaços, as regras básicas da Física, como uma pequena área circular em que a força da gravidade é várias vezes maior.

Obviamente, as Zonas atraem muitas pessoas, sejam turistas, pesquisadores do governo ou mesmo contrabandistas, cada um com seus próprios interesses. O protagonista do romance, Redrick Schuhart, é um stalker, pessoas que arriscam suas vidas para conseguir melhores condições para sua família, trabalhando tanto para o mercado negro, quanto para cientistas ligados ao governo.

Dividido em quatro partes, com perspectivas e narradores diferentes, o livro busca imitar um movimento de internalização, representando a influência da Zona (invisíveis, tal qual uma força radioativa de natureza incompreensível para a tecnologia humana) nos corpos e nas mentes de quem a enfrenta. Influência esta que se manifesta no plano físico, além do psicológico, por exemplo, com a volta de mortos à vida e com as mutações genéticas em filhos de stalkers.

Os irmãos Arkádi (à esq.) e Boris Strugátski, autores de “Piquenique na Estrada”.

Começamos com uma narrativa de Red, em primeira pessoa, mais novo, com sua mulher, mas sem sua filha, ainda trabalhando com o departamento científico estatal. Em sua incursão por uma Zona, protagonista alude para uma mitologia de treinamento dos stalkers, assim como deverá lidar com as consequências (às vezes, mortais) da busca pelo conhecimento e pela satisfação dos desejos, ainda que com a melhor das intenções.

Um dos grandes méritos do romance é a construção do ambiente e descrição das situações de maneira sintética, apelando para o impressionismo dos efeitos, assumindo as fronteiras da linguagem e da lógica. Ao assumir essa posição, o livro faz do “ser humano” o seu tema.

Esses aspectos que aparecem tão bem ao longo das três partes que acompanham Red, são racionalizados, porém, na penúltima parte, da perspectiva de outro personagem. Nela, a ação dá lugar a um longo diálogo, com ares de filosofia, afetando o ritmo da narrativa. Por outro lado, é um momento para os autores deixarem marcada sua oposição a certas hipóteses sobre a vida extraterrestre menos desesperançosas. Impossível não notar aí uma oposição ao percurso evolutivo dos sinais-monolitos de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Felizmente, esta ode ao destino fatal da incompreensão, é recheada de suspense, sustos e humor ácido na medida certa.

“Stalker” (1979), de Andrei Tarkovski

Pouco tempo depois da publicação do livro, os autores escreveram o roteiro para Stalker, filme de Andrei Tarkovski. Brilhante, como é toda a filmografia do diretor soviético, o longa traz a premissa e o universo da obra original, mas traz uma narrativa bem mais austera, sóbria e metafísica. Já a série de jogos de FPS S.T.A.L.K.E.R focou justamente no universo, suas armadilhas, artefatos e monstros. Enfim, cada obra em si é uma experiência bem diferente e satisfatória à sua maneira.

Depois de trazer Stanislaw Lem (Solaris) e Yevgeny Zamyatin (Nós) de volta para os catálogos das livrarias, a editora Aleph acerta mais uma vez em cheio com Piquenique na Estrada. Que venham mais títulos do Leste Europeu – e mais dos mestres Strugátski.

Piquenique na Estrada (Пикник на обочине, URSS – 1977)

Autores: Arkádi e Boris Strugátski 
Editora: Aleph
Edição: 1ª edição de 2017
Gênero: Ficção Científica
Pgs.: 320

Redação Bastidores

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