Crítica | The End of the F***ing World - 1ª Temporada - Uma Road Trip Inusitada

Crítica | The End of the F***ing World - 1ª Temporada - Uma Road Trip Inusitada

 

A Netflix se tornou conhecida, principalmente, em razão de suas produções originais - séries como House of Cards, Orange is the New Black e até a cancelada Sense8, sem falar, é claro, nas séries da Marvel, garantiram que o canal de streaming fosse fixado no imaginário popular e, por um bom tempo, atrelou o nome da companhia à qualidade (até a vertiginosa queda de algumas dessas produções, claro). Um dos melhores aspectos do serviço, no entanto, é o seu conteúdo licenciado, que também acaba recebendo o selo Netflix Original - obras que, possivelmente, acabariam não chegando por aqui, ao menos não tão cedo, como Better Call Saul, Star Trek: Discovery e, agora, The End of the F***ing World. Em outras palavras, são seriados, filmes ou animações que não tiveram um pingo de envolvimento do canal em seu desenvolvimento, sendo apenas trazidos para o Brasil (e outros países do mundo) pela gigante do streaming.

Esse mais recente seriado - ou minissérie - produzido pelo Channel 4, que já nos trouxera, há alguns anos atrás, a fantástica e injustamente cancelada Utopia, acompanha dois jovens problemáticos, enquanto eles viajam pela Inglaterra como verdadeiros foras-da-lei. Alyssa (Jessica Barden, de O Lagosta) é uma garota que está cansada do mundo ao seu redor e odeia pessoas que se encaixam nas "bizarrices" do mundo moderno. Já James (Alex Lawther, de Black Mirror) acredita ser um psicopata e, justamente quando está pensando em matar um ser humano, Alyssa aparece em sua frente - sendo a candidata perfeita, ele decide passar tempo com a menina. Tudo acaba mudando quando ela o convence de irem em busca do pai da garota.

Há um forte "quê" de perversidade que preenche a narrativa de The End of the F***ing World - o que já é deixado bem claro pelo título da série, baseado em quadrinhos de mesmo nome por Charles S. Forsman. Através de constantes narrações em off sabemos o que se passa na cabeça dos dois personagens centrais, recurso esse que acaba sendo indevidamente utilizado em determinados pontos, mas que, em outros, revela ser essencial para a constituição do humor negro do seriado. Com esse voice over as inseguranças desses personagens são evidenciadas ao espectador, que aprendem importantes detalhes, os quais, em outro caso, acabariam não tomando conhecimento. Não somente James e Alyssa são aprofundados por meio desse recurso, como a própria relação dos dois, a tal ponto que passamos a enxergar um como indispensável ao outro.

 

Naturalmente que essa escolha criativa de Jonathan Entwistle, criador, co-diretor e co-roteirista da série ajuda a gostarmos mais desses dois indivíduos que acompanhamos, mas não sentimos como se fosse algo forçado a nós, já que a construção da personalidade desses dois personagens evidencia que não há qualquer preocupação em nos fazer gostar deles.

James, ao que tudo indica, é um psicopata e não um carismático como Hannibal - ele simplesmente acata as decisões de Alyssa, da maneira mais passiva possível, sem demonstrar qualquer emoção. Já Alyssa tem a necessidade constante de irritar ou fazer todos à sua volta a odiarem, provocando absolutamente tudo e todos, inclusive um sujeito muito suspeito que decide dar carona aos dois - é como se a personalidade da protagonista de Girlboss fosse elevada à décima potência.

Claro que muito se deve à atuação tanto de Jessica Barden quanto de Alex Lawther. A primeira nos entrega uma personagem que, a todo e qualquer momento, está prestes à explodir - mesmo com seus constantes xingamentos (que ganham um toque especial em razão do sotaque carregado da atriz) ela parece, verdadeiramente, reter muito dentro de si, o que nos leva ao péssimo ambiente familiar da personagem e o relacionamento abusivo de sua mãe com o marido, ponto que a motiva a fugir. Já Alex vive o retrato das emoções reprimidas, do trauma, fruto do passado, quando ainda criança, de James. No fim, entendemos plenamente o que motiva os dois e porquê são daquela maneira, o que nos faz, naturalmente, passar a gostar deles.

Evidentemente os dois criam personagens que se completam, atuando como válvulas de escape um para o outro, o que apenas torna a relação entre os dois mais engajante e divertida, ou tensa, dependendo do momento em que estamos. Durante toda a série, porém, o humor negro continua, por mais que, em dadas situações, o drama tome conta do primeiro plano, sem que um prejudique o outro, eles se misturam, sem causar estranheza ao espectador.

 

Seguindo a estrutura clássica de road movies há, claro, o aumento dos problemas enfrentados pelo jovem casal. O que antes funcionava como uma espécie de período sabático, ganha assustadoras proporções, o que garante o aprofundamento dos indivíduos retratados. Por não se pautar em constantes twists, a obra não trai a construção de seus personagens - os problemas apresentados são orgânicos e diretamente ligados à jornada de cada um deles. Tal aspecto permite que o seriado fuja da previsibilidade, do início ao fim - primeiro por não se importar em agradar o espectador, segundo por entender o que é necessário para que essa viagem seja, literal e metaforicamente, concluída. Tudo isso faz com que enxerguemos a série como uma grande jornada de cura para os dois jovens, um enfrentamento daquilo que eles tanto temem e que tanto prejudicara suas vidas até esse momento.

É justamente esse foco quase que exclusivo nos dois personagens centrais, que, quando interrompido por uma trama policial, acaba quebrando nossa imersão - um problema claramente da narrativa, que insere um elemento estranho dentro da trama. Veja, durante os primeiros episódios, até praticamente a metade da temporada, permanecemos juntos de Alyssa e James, nos distanciando brevemente através de curtos inserts que dialogam com o pensamento ou falas dos personagens. Quando uma dupla de policiais, então, é subitamente inserida na trama, há um certo choque, pois quebra a identidade que a narrativa construíra até então. Não que toda essa subtrama policial seja desnecessária, muito pelo contrário, mas faltou um maior cuidado para que essa fosse inserida organicamente, especialmente considerando que a construção das duas policiais que acompanhamos, de fato, não importa muito para todo o enredo. Uma diminuição de foco nessa trama paralela, portanto, seria bem-vinda, por mais que ela se relacione diretamente com o restante do texto.

Esse ponto, felizmente, não nos afasta das qualidades apresentadas em The End of the F***ing World uma série que se destaca pela orgânica combinação de humor negro e drama, que muito bem lida com importantes questões questões psicológicas de seus personagens, como o trauma, relacionamentos abusivos e mais. Trata-se da obra quase ideal para provar o quanto o ambiente familiar pode afetar os jovens que ali convivem - mas não apenas isso, é uma bela série sobre a cumplicidade e, no fim, sobre o amor, que, de fato, pode salvar os outros da verdadeira tragédia. Mais uma vez, pois, a Netflix prova que não devemos ignorar seu conteúdo licenciado, que conta com verdadeiras pérolas, profundamente relevantes à nossa atualidade.

The End of the F***ing World (Reino Unido, 2017)

Criado por: Jonathan Entwistle
Direção: Jonathan Entwistle, Lucy Tcherniak
Roteiro: Charlie Covell, Jonathan Entwistle (baseado nos quadrinhos de Charles S. Forsman)
Elenco: Jessica Barden, Alex Lawther, Steve Oram, Jayda Mitchell, Wunmi Mosaku, Gemma Whelan, Christine Bottomley, Navin Chowdhry, Jonathan Aris, Barry Ward
Emissora: Channel 4, Netflix
Episódios: 8
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 25 min.


Crítica | Fargo – 2ª Temporada

Crítica | Fargo – 2ª Temporada

Quando foi anunciado que Fargo, um dos melhores e mais divertidos filmes dos irmãos Joel e Ethan Coen, viraria uma série de TV, imediatamente torci o nariz. E isso aconteceu novamente após eu mergulhar de cabeça no universo desenvolvido por Noah Hawley com o FX, acertando em cheio com personagens, situações e eventos que conversam com o filme dos Coen, mas que têm vida própria. Foi, de longe, a melhor produção televisiva de 2014, e ainda me entristece ver que nenhum canal brasileiro adquiriu os direitos para distribuição. Shame on you!

Emmys, Globos de Ouro e outros prêmios depois, Hawley se viu no desafio de continuar sua história única com uma segunda temporada. Assim como Nic Pizzolato com sua badalada True Detective, o showrunner optou pelo formato de antologia, então a trama desta nova temporada acontece isoladamente da primeira, ainda que traga uma clara conexão: se passa na década de 70, explorando a juventude de um dos personagens envelhecidos. Esse personagem é Lou Solverson, vivido por Keith Carradine no primeiro ano, e agora por Patrick Wilson como sua versão mais jovem.

Dessa vez, a trama tem início quando somos apresentados à Família Gerhardt, uma organização influente na Dakota do Norte que começa a se desequilibrar com o repentino derrame do patriarca, Otto (Michael Hogan). Assim, a liderança do grupo passa a ser disputada pela esposa, Floyd (Jean Smart) e os três filhos: o esquentado Dodd (Jeffrey Donovan), o “urso” Bear (Angus Sampson) e o caçula Rye (Kieran Culkin). Quando Rye tenta demonstrar sua maturidade, assim como fechar um negócio importante, ele acaba deixando três mortos em um restaurante. É aí que entra Lou e seu parceiro/sogro Ted Danson (Hank Larsson) para investigar o caso, ainda envolvendo o casal Peggy e Ed Blumquist (Kirsten Dunst e Jesse Plemmons), que tentam encobrir a morte acidental de Rory, atropelado por Peggy na estrada. Além disso, a situação com os Gerhardt só piora com a iminência de uma guerra de famílias criminosas.

 

Trama Intrincada

Muita coisa, não é? Nas mãos de uma equipe menos habilidosa, esta segunda temporada de Fargo estaria fadada ao fracasso. Felizmente, Noah Hawley é um sujeito muito inteligente e talentoso. A quantidade de linhas narrativas e personagens é muito bem amarrada pela equipe de montagem, que ora equilibra diversos eventos em um único episódio (como no primeiro, Waiting for Dutch) ou concentra seus preciosos minutos em uma situação alarmante, como no excelente Rhinoceros, que envolve a gangue dos Gerhardt tentando invadir uma delegacia.

Em decorrência do excesso de situações, o departamento de montagem inteligentemente aposta no uso recorrente de telas divididas, até mesmo para dois personagens em um mesmo local; como quando Ed e Peggy conversam dentro do carro, mas cada um foca sua atenção em um elemento distinto – revelando um uso inteligente desse recurso gráfico tão esgotado. É uma verdadeira aula de como se usar a tela dividida, que aqui alcança o nível de estudo de personagem, e trago novamente um exemplo simples mas efetivo: Em uma tela, temos um personagem em closeconversar ao telefone em uma cabine, na outra, temos um plano aberto deste voltando para seu carro logo após dita conversa. É quase como se a tela com o close nos permitisse observar a dúvida crescente dentro do personagem, ao mesmo tempo em que caminha com sua escolha tomada.

Por esses e outros motivos, essa segunda temporada de Fargo talvez seja a série em que um binge watching é mais do que recomendável, já que o intervalo semanal certamente provoca uma quebra no ritmo construído.

Nem de longe tenta replicar a fórmula da primeira temporada, apenas casualmente nos remetendo à Lester com a situação do casal Blumquist, no sentido de ter alguém tentando encobrir um assassinato. E ao contrário do personagem de Martin Freeman, Ed e Peggy são sujeitos ingênuos e sem muito brilhantismo, mas com muito carisma e ambição – especialmente da Peggy de Kirsten Dunst, que é uma das muitas personagens que vai revelando um traço feminista fortíssimo ao longo da história, merecendo destaque sua catarse espiritual em uma cena que é digna de Um Homem SérioE ainda que tenha um papel limitado, Cristin Millioti (agora imortalizada como a Mãe de How I Met Your Mother) faz bem mais do que uma mera dona-de-casa como a esposa de Lou, comprovando sua inteligência ao encontrar uma pista importante ou a coragem ao não demonstrar o menor desespero ao encontrar sua casa arrombada; sua reação é simplesmente apanhar um rifle no armário e vasculhar os cômodos com suave calmaria.

 

Heróis e Anti-Heróis

Já aproveito a deixa para falar da espetacular Jean Smart, na pele da sábia Floyd Gerhardt. Sob diversas acusas de não conseguir liderar a família “por ser uma mulher”, Floyd é uma das mais fascinantes personagens da série, especialmente por seu habilidoso planejamento para manter seus rivais afastado, que logo revela-se um calculismo sem igual. E eu disse calculismo? Esperem só para conhecer Ohanzee Dent, o silencioso e mortal capanga de Dodd Gerhardt, que é tão inteligente e perigoso como Anton Chighurn em Onde os Fracos Não têm Vez, mas capaz de momentos de calmaria inimagináveis; como quando interrompe uma chacina apenas para pedir um corte de cabelo e revelar uma faceta inesperada.

Outro antagonista memorável é o Mike Milligan de Bokeem Woodbine, um gângster de Kansas City que planeja acabar com os Gerhardt. Um sujeito imprevisível, educado, sanguinário e capaz de recitar os trechos literários mais improváveis, e Woodbine domina cada segundo de participação com uma performance calma e cortês – diferente do cortês de um Hans Landa, por exemplo -, sem transformar Mike em uma figura cartunesca. Claro, seus capangas gêmeos e mudos são extremamente caricatos, mas é um toque sutil, e também um leve ode à dupla de capangas da primeira temporada.

Ora, com tantos personagens de conduta duvidosa, quem é a bússola moral da série? Definitivamente é Lou Solverson, vivido aqui por um inspirado Patrick Wilson. Simpático e aparentemente inofensivo, a performance de Wilson se mostra fascinante quando vemos o lado bad ass de Lou, como ao enfrentar sozinho toda a família Gerhardt em um impasse. Sua relação com o sogro/parceiro Hank Larsson (o eficiente Ted Danson) também é interessante, e não é difícil imaginar um backstory no qual o veterano provavelmente apresentou o parceiro para sua filha. Por último, mas não menos importante, o comediante Nick Offerman tem alguns momentos verdadeiramente brilhantes como Karl Weathers, amigo pinguço de Lou que acaba demonstrando um surpreendente heroísmo em Rhinoceros; e o discurso completamente embriagado de Offerman é o suficiente para que seu personagem se destaque como um dos pontos altos da temporada.

Bem, fica evidente que 5 vagas em cada categoria de atuação do Emmy é pouco para o elenco de Fargo, não?

 

WTF?!

Visualmente, mantém a proeza da primeira temporada. A fotografia aposta pesado na luz natural das paisagens geladas de Minnesota e as Dakotas, ao passo em que traz interiores geralmente aconchegantes com uma iluminação quente; a mansão dos Gerhardt é a exceção, já que o ambiente pouco iluminado constantemente passa uma atmosfera de prisão, simbolizando o próprio estado da família. A atenção aos detalhes também é genial, como o sutil momento em que Floyd acaricia a parede marcada com as medidas de crescimento dos filhos ou como quando um personagem fala ao telefone em uma cabine de vidro onde vemos o desenho de um jogo da forca inacabado – servindo como um ótimo foreshadowing para o destino deste determinado personagem.

As súbitas explosões de violência – tensas ou cômicas – também marcam presença aqui, e de formas distintas de acordo com a exigência narrativa. Por exemplo, em Loplop, uma bizarra situação de refém garante humor negro genuíno com uma simples negação por comida – seguida por uma reação nada convencional – ou o impecável The Castle, que traz uma cena de ação primorosa ao enfim fazer com que as diferentes tramas se enfrentassem em um feroz tiroteio. A segurança de Hawley é tão grande que este último episódio resolve se iniciar com um narrador aleatório (revelado posteriormente como a voz de Martin Freeman, o protagonista da primeira temporada) que apanha um livro e acompanha os eventos como se fossem parte de uma fábula violenta; não é apenas um grande exercício de estilo, mas também um artifício inteligente para relembrar alguns motivos e tentar encontrar uma síntese da personalidade de suas personagens, em especial a jornada de Hanzee.

Então, temos aquele elemento que deixou todo mundo maluco. Grande spoiler, pule o próximo parágrafo se preferir.

Logo no primeiro episódio, um dos personagens avista nos céus aquilo que, à primeira vista, parece ser um OVNI, enquanto no episódio seguinte temos uma narração de Guerra dos Mundos de H.G. Wells e diversas outras pequenas referências a uma possível participação alienígena no seriado. E quando finalmente a série nos presenteia com respostas (ou algo parecido), é uma sensação absolutamente inebriante; uma série que pode literalmente apostar em tudo. É, no mínimo, ousado que esse flerte com a ficção científica aconteça de maneira tão espontânea e funcione dentro da história.

 

Obra Prima da Televisão

Por fim, é obrigatório comentar a impecável trilha sonora incidental escolhida por Hawley. Se a série carrega o espírito dos Coen, a coletânea musical é digna de Tarantino; o primeiro episódio já se encerra magistralmente com um cover de “Didn’t Leave Nobody But the Baby” (também apresentada em E aí meu Irmão, Cadê Você?) cantado pelo próprio Noah Hawley! Um momento absolutamente inebriante é a despedida inesperada de uma dos personagens na imensidão de uma floresta, acompanhada por “Danny Boy”, de Lisa Hanning, ou quando descobrimos o destino de uma carinhosa personagem com a triste melodia de “Sylvia’s Mother”, de Dr. Hook e The Mother. Outros hits da década de 70 incluem “On the Run”, do Pink Floyd, uma escolha sensacional para o intenso confronto em The Castle e “Gettin it Back”, do Cymande, para uma tensa construção de suspense. Recomendo fortemente irem atrás da trilha, e ofereço um ótimo guia, aqui.

Sem medo de apostar em elementos fantásticos ou narrativas complexas, a segunda temporada de Fargo é uma sucessora digna para sua excelente estreia no ano passado, com a imbatível capacidade de nos surpreender, chocar e, mais importante, refletir. Revela-se uma obra magistral e que certamente deixou os Irmãos Coen orgulhosos.

Fargo – 2ª Temporada (Fargo: Season 2, EUA – 2015)

Showrunner: Noah Hawley
Diretores: Michael Uppendahl, Noah Hawley, Randall Einhorn, Jeffrey Reiner, Keith Gordon, Adam Arkin
Elenco: Patrick Wilson, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Jean Smart, Ted Danson, Kieran Culkin, Cristin Millioti, Jeffrey Donovan, Angus Sampson, Michael Hogan, Zahn McClarnon, Bookem Woodbine, Nick Offerman, Rachel Keller, Bruce Campbell.
Emissora: FX

Episódios: 10
Gênero: Comédia/Drama
Duração: 50 min

https://www.youtube.com/watch?v=UKIIJ3Zn_1E


Crítica | Star Wars: The Clone Wars (A Série Completa) - Animação que melhora com o tempo

Crítica | Star Wars: The Clone Wars (A Série Completa) - Animação que melhora com o tempo

Até 2003 a franquia Star Wars nunca havia se sustentado na televisão, com algumas poucas séries e especiais tendo sido feitos desde a estreia de Uma Nova Esperança. Desses podemos citar o especial de natal tenebroso e o seriado dróides, duas obras que servem muito bem como resumo de toda a tragédia na qual a saga criada por George Lucas fora transformada na televisão. Isso mudou com Clone Wars, o desenho animado criado por Genndy Tartakovsky que serviu como tie-in de A Vingança dos Sith, desenho esse que herdou muito de Samurai Jack, tanto na arte, quanto na estrutura de sua narrativa. Foram poucos episódios, porém, que fecharam de forma redonda toda a guerra que seria, de fato, encerrada no Episódio III. 

Simplesmente deixar passar o sucesso dessa animação, contudo, não faz bem para os bolsos e George Lucas, claro, viu uma nova oportunidade de lucrar em cima desse mesmo período da saga. Eis que surge The Clone Wars, que transforma os característicos traços de Tartakovsky em computação gráfica, nos contando novas histórias focadas, principalmente, em Anakin Skywalker, Ahsoka e Obi-Wan. Cada capítulo de vinte e dois minutos, aproximadamente, nos apresenta um diferente evento dessa longa guerra. Não se enganem, porém, já que determinados episódios não trazem nada do conflito da República contra os Separatistas, preferindo aprofundar os diversos personagens que dão as caras ao longo do seriado.

O grande problema de The Clone Wars é a forma como seus episódios foram lançados, em ordem não-cronológica, algo que, felizmente, foi corrigido posteriormente através de uma lista publicada no site oficial de Star Wars, que conta com a ordem cronológica certa. Portanto, para o desavisado, assistir a animação será um verdadeiro suplício, já que alguns arcos vão soar completamente malucos, desconexos, sem falar na aparição de personagens que já morreram em um ponto anterior da história. Portanto, se ainda não assistiu o desenho e o intenciona fazer, recomendo fortemente que o faça seguindo a ordem cronológica – a experiência será absurdamente melhor.

Isso, contudo, não quer dizer que tudo mudará da água para o vinho, pois a série conta com outros evidentes problemas, especialmente nas duas primeiras temporadas. Era bastante claro que essa era uma obra despretensiosa, que foi ganhando maiores proporções com o tempo. Enxergamos isso claramente pelas tramas mais infantis e pouco engajantes dos primeiros anos. Conforme o tempo passa, porém, uma maior sensação de urgência é passada e mortes de personagens de destaque começam a ocorrer, tornando essa uma guerra de verdade e não somente uma troca de raios coloridos. O escopo das Guerras Clônicas se torna muito maior e o humor que toma conta das primeiras temporadas é reduzido, aparecendo somente como alívio cômico em ocasiões específicas.

Quando chegamos na segunda metade da terceira temporada, portanto, sentimos uma mudança brutal na narrativa, que passa a trabalhar com personagens secundários recorrentes e arcos maiores e mais sombrios, alguns dos quais atuam como uma bela adição ao cânone de Star Wars, lembrando que The Clone Wars faz parte das histórias “oficiais” após a compra da Lucasfilm pela Disney. Com narrativas mais refinadas e ousadas, o seriado começa a, verdadeiramente, nos prender, ainda que, vez ou outra, apareçam alguns capítulos tediosos, que se apoiam na infantilidade das primeiras temporadas. É preciso ressaltar, também, a inclusão de ótimos novos personagens à franquia, como a própria Ahsoka (por mais que não faça o menor sentido Anakin jamais mencioná-la depois), o caçador de recompensas Cad Bane e, claro, Rex o soldado clone que acompanha Skywalker na maioria das missões.

Um dos pontos altos da série é justamente a forma como os roteiros trabalham a relação entre esses vários personagens. Com o tempo sentimos a cumplicidade existente entre Anakin e Rex, ou a amizade de Obi-Wan com seu aprendiz, que é muito melhor trabalhada que nos próprios filmes. Além disso, enxergamos claramente o amadurecimento de Ahsoka, que retornaria em Rebels, anos mais tarde. Fora isso, o desenho ainda traz de volta elementos praticamente desperdiçados por Lucas nos três filmes prelúdio, como o icônico Darth Maul, que aparece em alguns dos melhores arcos da animação. O próprio conde Dooku é visto como uma ameaça maior aqui, mesmo que sem a voz imponente de Christopher Lee.

Tudo isso é coroado com um belo trabalho de animação, que se sustenta até os dias de hoje, por mais que tenha apresentado claros sinais de evolução de 2008 até 2015. O traço de Tartakovsky é respeitado e, embora os movimentos não tragam a mesma fluidez da animação tradicional que vimos em Clone Wars, não há como reclamar de como esse desenho foi elaborado, trazendo algumas memoráveis sequências que o tornam muito superior à toda trilogia prelúdio (ainda que consideravelmente inferior à sua contraparte em 2D).

The Clone Wars, por duas temporadas e mais alguns episódios soltos, é uma verdadeira provação, feita somente para os maiores fãs de Star Wars, que precisam resistir a tentação de desistir por causa dessas tragédias iniciais que tomam conta da animação. Quando chegamos à terceira temporada, porém, nossos esforços são recompensados e ganhamos uma série digna de fazer parte do novo cânone. Pode não contar com todo o teor artístico de Genndy Tartakovsky, mas nos entrega algumas boas histórias que enriquecem a saga criada por George Lucas. Uma pena que, no seu auge, ela tenha sido cancelada, nos deixando com um final que não encerra tudo da maneira que deveria.

Star Wars: The Clone Wars  (EUA, 2008-2015)

Showrunner: Dave Filoni
Direção: Steward Lee, Brian O’Connell, Kyle Dunlevy, Giancarlo Volpe, Danny Keller, Bosco Ng, Dave Filoni, Rob Coleman, Justin Ridge, Jesse Yeh, Duwayne Dunham, Dave Bullock, Atsushi Takeuchi, Robert Dalva, Walter Murch
Roteiro: Henry Gilroy, Drew Z. Greenberg, Scott Murphy, Christian Taylor, Steven Melching, Katie Lucas, Chris Collins, Matt Michnovetz, Brent V. Friedman, Paul Dini, Dave Filoni, Eoghan Mahony, Daniel Arkin, Charles Murray, George Krstic, Steven Long Mitchell, Craig W. Van Sickle, Cameron Litvack, Bonnie Mark, Jose Molina, Melinda Hsu Taylor, Brian Larsen, Craig Titley, Julie Siege, Jonathan Rinzler, Tim Burns, Kevin Campbell, Kevin Rubio, Bill Canterbury, Jen Klein, Andrew Kreisberg, Wendy Mericle, Ben Edlund
Elenco: Tom Kane, Dee Bradley Baker, Matt Lanter, James Arnold Taylor, Matthew Wood, Corey Burton, Ashley Eckstein, Terrence ‘T.C.’ Carson, Catherine Taber, Ian Abercrombie, Phil LaMarr
Duração: 129 episódios de aprox. 22 minutos.

https://www.youtube.com/watch?v=CNuohZpigZY

Leia mais sobre Star Wars


Crítica | GLOW - 1ª Temporada - Uma Verdadeira Viagem no Tempo

Crítica | GLOW - 1ª Temporada - Uma Verdadeira Viagem no Tempo

Os anos 1980 contam com uma mágica especial, que torna seus filmes facilmente distinguíveis – basta assistir um trecho de determinada obra que já sabemos automaticamente a década na qual fora feita e isso ocorre não somente em razão de figurino, ambientação ou trilha sonora e sim a atmosfera criada pela narrativa, que tornam produções como Conta ComigoKaratê Kid, Um Tira da Pesada, Os Aventureiros do Bairro Proibidodentre muitos outros, tão apaixonantes. Baseada na liga feminina de luta livre ou wrestling, que estrelou sua própria série televisiva nos anos 80, GLOW, mais nova série original da Netflix, consegue resgatar esse clima com exatidão.

A série, que se passa em 1985, acompanha Ruth Wilder (Alison Brie), uma atriz que não consegue um papel e, vivendo em Los Angeles, encontra-se no fundo do poço. É nesse momento que ela descobre um projeto inusitado de série de televisão. Não demora muito para ela, então, começar a fazer parte de GLOW (Gorgeous Ladies of Wrestling) e, mesmo sem saber nada sobre wrestling ela se dedica integralmente ao programa. Enquanto isso, ela, as outras mulheres, o diretor e o produtor precisam superar as dificuldades que surgem no meio do caminho, envolvendo brigas pessoais, problemas monetários e mais, tudo enquanto aprendem detalhes sobre essa luta teatral.

Criado por Liz Flahive e Carly Mensch, com produção executiva de Jenji Kohan, criadora de Orange is the New BlackGLOW é uma deliciosa mistura de drama e comédia, nos moldes dos melhores filmes oitentistas. Essa não é uma série para morrermos de rir, apesar de, com certeza, conseguir trazer boas risadas. A preocupação das criadoras/showrunners claramente é a de desenvolver suas personagens e elas conseguem fazer isso sem o menor problema, dedicando alguns capítulos a focos distintos e problemas variados, a tal ponto que, no fim, conhecemos a fundo quase todas as garotas que fazem parte desse grupo.

Tanto Flahive quanto Mensch não sabiam absolutamente nada sobre wrestling quando começaram a desenvolver a história e o processo de aprendizado por que passaram é transposto para a tela, algo enxergado claramente nos episódios iniciais que buscam nos mostrar os elementos básicos dessa luta, mencionando figuras famosas como Hulk Hogan a fim de nos situar com maior exatidão nesse período específico. É interessante observar como a imagem do wrestling é desconstruída e o que enxergávamos como ridículo no início da temporada, passamos a entender como um grande teatro cômico com o passar dos episódios – novelas exageradas recheadas de lutas encenadas.

Em todo esse processo de criação é fascinante observar como as personas do ringue são criadas, baseando-se em estereótipos que estabelecem uma divertida metalinguagem – dentro da história da série tais padrões são utilizados a fim de realizar críticas à sociedade e fora dela também. Basta pegar Debbie/Liberty (Betty Gilpin), por exemplo. No ringue, ela é a personificação do american way of life e, fora dele, ela é uma mulher que fora traída, que abandonara seus sonhos para constituir a família. Dentro disso, é evidente que a maior temática é o empoderamento feminino, com todas lutando para fazerem o programa dar certo e não por acaso o nome do diretor é Sam Sylvia (Marc Maron), um homem que foge do sistema por meio de suas produções inusitadas, filmes b, com críticas escrachadas.

Tudo isso, porém, não seria possível sem esse elenco dedicado, formado quase que integralmente de atrizes. Em especial o trabalho de Alison Brie deve ser louvado. Tendo sido coadjuvante em séries como Community e Mad Men, ela finalmente ganha seu merecido protagonismo, entregando-nos uma personagem extremamente real, com quem conseguimos nos identificar e que representa a luta da mulher para se estabelecer, por conta própria, no mundo. Brie é carismática ao extremo, garantindo drama e humor à narrativa em parcelas iguais, verdadeiramente transformando-se em sua persona do ringue quando necessário – de uma figura fragilizada em razão dos “baques” da vida, no início da temporada, ela realmente se encontra, fazendo desta uma verdadeira história de superação.

Claro que não poderíamos deixar de comentar sobre a magistral seleção de melodias oitentistas, que vão desde You Make me Feel (Mighty Real), de Sylvester, até Rock you Like a Hurricane, dos Scorpions. Aliadas ao design de produção, com figurinos e cenários cuidadosamente produzidos, somos jogados de cabeça nos anos 80, com direito a sequências de montagem, mostrando a evolução das personagens que colocarão um sorriso no rosto de qualquer um apaixonado pelos filmes da época. Em determinados pontos somos tão imersos nessa narrativa que até esquecemos a década que nos encontramos na realidade. Por vezes, porém, essa imersão é quebrada em razão de certa repetitividade de conflitos entre as personagens, mas nada que comprometa consideravelmente nosso aproveitamento da série.

GLOW é, portanto, uma grande homenagem a esses filmes de outrora, resgatando de forma impactante a atmosfera oitentista, nos entregando drama e comédia nas doses certas. Com excelente design de produção, atuações envolventes, um visual imersivo e trilha sonora memorável, a inusitada série de Liz Flahive e Carly Mensch se estabelece como uma obra realmente viciante, que nos faz querer assistir tudo de uma vez, mesmo com seus leves tropeços no meio do caminho. Assim como inúmeros longa-metragens dos anos 80, não há como não se divertir com GLOW.

GLOW – 1ª Temporada (EUA, 2017)

Showrunner: Liz Flahive, Carly Mensch
Direção: Jesse Peretz, Phil Abraham, Kate Dennis, Sian Heder, Melanie Mayron, Claire Scanlon, Tristram Shapeero, Lynn Shelton, Wendey Stanzler
Roteiro: Liz Flahive, Carly Mensch, Rachel Shukert, Kristoffer Diaz, Emma Rathbone, Nick Jones, Jenji Kohan, Sascha Rothchild
Elenco: Alison Brie, Betty Gilpin, Sydelle Noel, Marc Maron, Ellen Wong, Britney Young, Britt Baron, Kimmy Gatewood, Rebekka Johnson, Sunita Mani, Marianna Palka, Gayle Rankin, Kia Stevens, Jackie Tohn, Chris Lowell
Emissora: Netflix

Episódios: 10
Gênero: Comédia
Duração: 30 min


Crítica | Star Wars: Clone Wars (2003) - Obra-prima animada

Crítica | Star Wars: Clone Wars (2003) - Obra-prima animada

Até hoje não entendo o que motivou a Disney a descanonizar a animação Clone Wars, criada por  Genndy Tartakovsky e George Lucas. A série é o tie-in ideal entre Ataque dos Clones e A Vingança dos Sith, com o último capítulo terminando exatamente no início de Episódio III. Mesmo a arte característica do famoso animador que trabalhara no Cartoon Network serviu como base da animação em CGI realizada em 2008 (essa sim foi canonizada). Claro que nada impede que nós próprios consideremos Clone Wars como a transição desses dois filmes da franquia Star Wars, mas ainda assim fica aquele desgosto em relação a escolha da empresa.

O seriado é composto por dois volumes. O primeiro nos traz vinte episódios de três minutos cada, que eram exibidos entre a programação do canal de origem. Essa primeira parte foca quase que integralmente na batalha por Muunilinst, o país sede do clã bancário, um dos principais jogadores do lado dos Separatistas. Acompanhamos aqui inúmeras pequenas histórias, algumas focadas nas tropas de elite dos Clones, os Arc-Troopers e outras nos jedi em si. Vale ressaltar que, a fim de nos trazer um escopo maior da guerra, Tartakovsky nos entrega alguns episódios em planetas separados, jogando uma luz sobre a confecção dos sabres de luz, que os outros mestres jedi estavam fazendo no momento e nos proporcionando a primeira aparição de General Grievous.

Já o segundo volume conta com uma maior elipse temporal, após vermos a cerimônia que torna Anakin Skywalker um cavaleiro jedi, somos levados diretamente para os momentos que precedem A Vingança dos Sith, com a invasão de Coruscant e o sequestro de Palpatine. Skywalker e seu mestre, Obi-Wan, contudo, estavam do outro lado da galáxia. Aqui vemos o último teste de Anakin, que deve lidar com sua verdadeira natureza mais uma vez.

A genialidade de Clone Wars já pode ser vista desde os trechos iniciais do desenho. A começar pela jogada ousada de seu criador, que constrói os episódios quase sem qualquer diálogo. Claro que a curta duração impede uma conversa extensa entre os personagens, mas Tartakovsky contorna isso muito bem através de cenas de ação emblemáticas, cada uma muito diferente da outra e que alavancam a narrativa para a frente. Sem a necessidade de didatismo, ele cria uma história simples, fluida e engajante, que aborda diferentes aspectos desse universo criado por George Lucas.

É curioso notar como muitos dos acontecimentos daqui repercutem no terceiro filme dos prequels. Um exemplo bem claro disso é Grievous, que tem seu peito amassado por Mace Windu, o que provoca a sua constante tosse na obra que continua o desenho. De fato, o General que vemos aqui é infinitamente mais ameaçador do que aquele dos filmes ou da série de 2008. Aqui ele não falha a qualquer momento, chegando a conseguir extrair o Chanceler da capital da República mesmo esse sendo guardado por clones e jedis. O equilíbrio de poder é estabelecido dos dois lados – enquanto Grievous se mantém um forte vilão, Yoda, Windu, Anakin e Obi-Wan se provam mais de uma vez ao longo do desenho, através de capítulos que nos trazem umas das melhores lutas da franquia, com direito a Mace destruindo droides de batalha a socos.

Evidente que o trabalho de animação desempenha um papel crucial aqui. Genndy tem como clara inspiração sua obra anterior, Samurai Jack, que fora, infelizmente, cancelada. Os traços mais quadrados marcam a forte identidade visual do seriado, ao mesmo tempo que respeitam a fisionomia dos atores que desempenharam o papel de cada um dos personagens que vemos aqui ilustrados. Não é só isso, porém. Todos os movimentos, sejam na terra, sejam no espaço, são extremamente fluidos e vemos aqui cenas de ação fantásticas, que exploram todas as possibilidades da animação tradicional. O apoio no CGI é mínimo e aparece somente em determinados momentos, bastante pontuais. Ainda assim, o estilo utilizado nessas ocasiões é o cel-shading, que mescla o 3D com o traço a mão, passando a impressão de que tudo é feito efetivamente na base do papel e caneta. Isso tudo é coroado pelo trabalho de cores realizado, que muito bem representa a disposição de cada personagem – a luta de Asajj Ventress, que fora introduzida pela primeira vez aqui, contra Anakin é uma prova disso, com a luz dos sabres azul e vermelhos refletindo sobre o rosto dos personagens.

Ao longo desses vinte e cinco episódios entendemos mais o que as guerras clônicas representaram dentro do universo de Star Wars e Tartakovsky consegue fazer isso de forma sucinta e completamente engajante. Não há como não se apaixonar por cada um dos capítulos dessa animação, que nos entrega algo muito superior a qualquer um dos filmes prequels, com histórias dinâmicas e bem interligadas. Clone Wars deveria ter sido canonizada e representa praticamente um episódio novo dentro da série de filmes, sendo indispensável para qualquer fã dessa galáxia muito, muito distante.

Star Wars: Clone Wars (EUA - 2003)

Direção: Genndy Tartakovsky
Roteiro: Bryan Andrews, Darrick Bachman, Paul Rudish, Genndy Tartakovsky
Vozes originais: Corey Burton, Terrence Carson, Anthony Daniels, Grey DeLisle, John DiMaggio, Tom Kane, Mat Lucas, André Sogliuzzo, James Arnold Taylor
Duração: 20 episódios de 3 minutos e 5 episódios de 15 minutos.


Crítica | Aquaman: Os Outros - Levando o personagem a sério

Que me desculpem os fãs do personagem, mas Geoff Johns tornou Aquaman um personagem a ser levado a sério. E não levante essa sobrancelha para mim. Você também já fez piada com o sujeito que cavalga golfinhos, mas o ponto é justamente esse: quero ver você rir com essa fase do Rei de Atlântida da DC. No arco Aquaman: Os Outros, publicado recentemente pela Panini no Brasil, o homem da camisa laranja chuta bundas. Para valer!

Seguindo a estrutura iniciada em Os Abissais, Geoff Johns mantém o seu padrão de trabalho com personagens da DC – expandir sua mitologia pessoal para explorar as possibilidades que o personagem oferece. Nesse aspecto, não é exagero dizer que Johns se encontra em uma categoria, ali junto com Kurt Busiek e Mark Waid, de escritores que não apenas escrevem super-heróis, mas os entendem de verdade. Ele sabe criar os desafios para manter o interesse na figura do herói, mas sem de alguma forma diminuí-lo ou quebrá-lo.

Quem acompanhou a fase do escritor em Lanterna Verde, um personagem com uma mitologia já muito vasta e rica, viu como o escritor a expandiu ainda mais, com tremenda qualidade. Era natural que com um personagem como o Aquaman – que apesar de clássico, nunca recebeu a atenção devida entre os grandes escritores – fosse surgir um trabalho digno de destaque no meio dos super-heróis. O mais curioso é que, quando se descreve a trama, pode-se pensar em uma história padrão de um personagem menor, insossa e escrita às pressas. Mas calma lá, amigo leitor. Dê uma chance ao Peixoso de Johns.

Uma relíquia de grande poder foi roubada e a personagem Kahina foi morta no processo. Aquaman, ao investigar o ocorrido com a ajuda de Mera e do Professor Shin, descobre que o Arraia Negra estava envolvido. Ao desenvolver a trama, Johns nos revela que, muito antes da era dos heróis, Aquaman havia feito parte de uma equipe informal de heróis conhecida como Os Outros, detentores de artefatos de imenso poder. Logicamente, Arraia Negra está atrás desses artefatos e cabe a Arthur Curry e seus companheiros correr contra o tempo para impedir o vilão de encontrar os artefatos e, consequentemente, causar um imenso estrago com eles.

Aquaman: Os Outros

Eu disse, a trama parece boba. Mas é aquela velha história – coisas simples, na mão de quem sabe o que está fazendo, ainda pode render bons frutos. E Johns é uma dessas pessoas. O que parece uma estrutura narrativa simplista, é na verdade um background para se desenvolver aspectos do personagem que sempre estiveram ali, mas nunca foram bem explorados. Exemplo disso é o jogo narrativo que o autor faz – parcimoniosamente, importante frisar – entre eventos correntes e momentos do passado do Aquaman, não apenas tornando o personagem mais complexo, mas também seus coadjuvantes.

Talvez o vislumbre mais contundente disso é a maneira como seu relacionamento com o Arraia Negra sai aprofundado desse volume. É como se nós nunca, de fato, tivéssemos visto esses personagens em conflito e o porquê de eles serem inimigos. Fazer com que um personagem septuagenário – que, incidentalmente, completou 75 anos em 2016 – pareça novo ao público é a marca de um bom escritor. O amigo leitor mais crítico pode questionar se um personagem inserido dentro do contexto dos Novos 52 pode prestar. Não é que estejamos defendendo essas porcarias de reboots. Essa história poderia muito bem ter sido escrita em qualquer outro momento da história recente do personagem. Mas às vezes as mudanças de ares editoriais funcionam para alguns personagens que tendem a ficar relegados a um segundo plano – mesmo motivo pelo qual é difícil trabalhar medalhões como o Superman, fadado há muito tempo a arcos apenas medianos.

Ou não – se pode dizer que apenas quem dá a sorte de cair nas mãos de Johns, como o Laterna e o Aquaman, acaba se dando bem. Mas mesmo esses dependem da boa inspiração desses sujeitos. Meu ponto é: no momento em que estão os super-heróis, no geral, é uma roleta russa. Toda vez que uma nova equipe criativa assume, pode vir algo genial como pode vir uma porcaria, com a última superando a primeira em quase uma chance a cada dez.

Deixando o azedume de lado, também temos que mencionar outro trunfo do arco – a arte de Ivan Reis. Embora ainda se debata para oferecer uma arte que se destaque em meio aos grandes desenhistas, não se pode dizer que Reis não cumpre expectativas. Muito pelo contrário. Seu traço busca o mesmo tipo de perfeccionismo – embora os prazos não permitam que se equipare – daquele que vemos nos desenhos de Bryan Hitch. Com um imenso volume de elementos em cada quadro, Reis supera uma recorrente dificuldade de muitos desenhistas – tornar a imagens ricas sem polui-las. A transição de ambientes também é feita com clareza e riqueza de detalhes, não fazendo com que a tour do Aquaman e seus amigos ao redor do mundo pareça algo genérico. E não poderíamos deixar de destacar um dos elementos que mais chamam a atenção na HQ: os visuais dos personagens. O próprio visual do Aquaman já carrega uma leve mudança, fundindo as escamas do uniforme clássico à ideia de uma armadura dourada, notabilizando a nobreza e ao mesmo tempo o heroísmo do personagem. Alterado sem ser desfigurado. Ponto para Reis.

Aquaman: Os Outros

A cereja do bolo é o vilão, Arraia Negra. Um visual limpo, simples, mas ameaçador. A mistura da narrativa criativa de Johns e o aspecto impactante do traço de Reis formam um inimigo a se temer. Particularmente, sempre achei que os vilões do Aquaman sofrem do mesmo mal do personagem – são todos meio bobos. Mas nas mãos da dupla, nós temos realmente um embate definitivamente interessante.

A crítica que se pode fazer em relação a arte está na colorização e na arte-final; mal de praticamente toda HQ de continuidade contemporânea, salvo raríssimas exceções, elas simplesmente não se entendem. A arte final tenta contemplar os detalhes e a riqueza dos desenhos de Reis, mas simplesmente não se encaixa com as cores, que, como sempre, são chapadas e com focos de luz estranhos. É como se essa parte dos artistas quisesse que tudo pareça realmente muito artificial, tirando um pouco do impacto dos desenhos de Reis. Não que isso seja absolutamente prejudicial, mas o leitor mais calejado sabe que dá para fazer coisa muito melhor.

Não obstante, ainda no campo da crítica, os valores pedidos aqui pela editora local. Simplesmente estão em completo desacordo com a realidade do leitor. Sabemos dos custos envolvidos, mas dá para ser mais barato. É claro que, sendo um arco digno de lembrança do personagem, ele merece o melhor tratamento possível, mas fato é que, por mais que Aquaman: Os Outros seja interessante, ele ainda depende do contexto de Os Abissais para ser completamente compreendido, e as consequências de Os Outros, obviamente, se estenderá para os arcos subsequentes. Ou seja, é paulada atrás de paulada no bolso do amigo leitor – que faria inveja até ao Negan – se ele quiser ler a bagaça inteira. E poupem-me do cinismo do argumento “as mensais estão aí para isso”. Tem que optar entre diminuir a qualidade do volume para abaixar o preço ou socar o valor lá em cima e entregar um negócio de luxo? Abaixa o preço.

Afinal de contas, nem todos nós somos lordes dos nossos próprios impérios submarinos para ficar esbanjando por aí.


Crítica | Authority Vol. 1 - Mude ou Morra

Quando a Segunda Guerra terminou, foi criada a ONU, um acesso à comunidade global para resolver seus problemas sem uma outra pancadaria generalizada. Dentro da ONU, diversos órgãos foram criados para cuidar de temas específicos, aí incluso o famigerado Conselho de Segurança, com a presença dos cinco países mais militarmente relevantes ao término do conflito. A ideia era haver um grupo que debatesse quando era necessário, decidindo os procedimentos de qualquer tipo de intervenção militar em qualquer parte do globo. Basicamente, determinando quando eles fariam o que fosse necessário para garantir os “direitos” das pessoas envolvidas em um conflito. O que quer que se possa dizer sobre o sucesso ou o fracasso desse órgão, trata-se, objetivamente, de um grupo de pessoas que você não conhece, nem nunca viu, com o poder de decidir se é necessário ou não mandar sua cidade pelos ares. Tudo para garantir os seus “direitos”.

Authority

Desde a criação do Superman como o “herói do povo” em 1938, os super-heróis sempre foram uma forma de catarse e/ou extrapolação da realidade. Uma hora ou outra, alguém ia trazer ao mundo das máscaras e capas a ideia de como seria um grupo de poder quase ilimitado, agindo arbitrariamente para nos salvar de ameaças externas ou internas, mesmo que isso custe a destruição de algumas cidades inteiras e alguns milhares de vidas. Pois bem, depois de tentativas mal sucedidas de outra editoras (uma delas extinta, felizmente), a Panini relançou agora no Brasil o encadernado do grupo criado pelos geniais Warren Ellis e Bryan Hitch, explorando essa assustadora ideia: The Authority.

Authority

Warren Ellis

O grupo foi criado a partir dos restos de outro grupo, o Stormwatch, um produto típico e característico do selo Wildstorm. O título seguia a linha de sucesso (ao menos de início) proposta pela Image de Todd McFarlane e Jim Lee no início dos anos 90: descerebrado, com ação e violência exageradas, mulheres hipersexualizadas e cores chapadas, esse modelo se desgastou rapidamente, capengando já no final da década, junto com as próprias editoras, e sustentando-se apenas nos títulos de maior sucesso, como Spawn. Assim, era hora de novas reformulações, ou enfrentar a degola. Para a felicidade dos fãs da série, o gênio em ascensão Ellis, no seu período mais prolífico, assume o título a partir do #37, então uma pequena revolução aconteceu. Não que o Stormwatch ainda tenha ido muito longe, mas os sobreviventes do grupo migraram para a visão mais radical do roteirista.

Authority

O mais interessante sobre a proposta política explorada por Ellis em The Authority, nos dois primeiros arcos apresentados neste primeiro volume, Sob o Círculo e Transnaves, é que eles foram lançados em 1999, ou seja, antes dos ataques de 11/9 em Nova York. Então, quando vemos o grupo comandado por Jenny Sparks, cuidadosamente batizada de “o espírito do século XX”, invadindo deliberadamente nações estrangeiras ou simplesmente apagando-as do mapa, sob a desculpa de “defender a humanidade”, é inevitável celebrar a genialidade e a capacidade de observação política do autor. De certa forma, Ellis capturou o zeitgeist perfeito do mundo real, onde um planeta política e culturalmente polivalente já havia dado a entender que o neorrealismo estava correto, e no final das contas um governo mundial era praticamente impossível. Inclusive no mundo dos super-heróis, onde o posicionamento passivo e reativo de super-grupos – como a Liga da Justiça – não se sustentava em um mundo onde calamidades surgiam na mídia moderna todos os dias a granel.

Authority

A comparação com a Liga da Justiça não é feita levianamente. O Authority de Ellis é, na verdade, uma metáfora sócio-política da Liga, mas sob a forma de uma faculdade crítica ostensiva, nem um pouco sutil. O escritor proporciona um excesso de liberdade de ação ao seu super grupo que acaba se tornando muito mais natural e fluido, diante do prisma da realidade representado por órgãos como o Conselho de Segurança da ONU e da Guerra do Iraque perpetrada por Bush. Pois dentro do contexto dos super-heróis, exige muito mais imaginação e esforço de crença para acreditar que um homem capaz de devastar cidades inteiras de criminosos sozinho, como o Superman, vai se limitar a sorrir e mandá-los para a cadeia, do que acreditar que ele vai de fato devastar essa cidade sozinho, garantindo a “segurança” dos “inocentes”, como o autor nos mostra nos dois arcos do encadernado. É a revolução dos super-heróis de Moore e Miller nos anos 80 levada ao extremo por Ellis no final dos anos 90. Se os Watchmen de Moore estavam a sombra da sua máxima opus Quis custodiet ipsos custodes?o Authority de Ellis diz simplesmente “Foda-se essa porra toda.”

Authority

Isso fica muito bem representado na subversão sutil representada pelos componentes do grupo. Jenny Sparks, a líder, é uma pessoa profundamente dedicada a defesa e salvação do mundo. Mas sua posição, que deveria pressupor um humanismo acentuado, acaba revelando na personagem um utilitarismo que beira a frieza. Matar alguns milhares para salvar milhões? Sem problema. Interferir diretamente na soberania dos países para garantir a “segurança” do planeta? É com ela mesma. Sparks é uma espécie de mistura de Kenneth Waltz, teórico do neorrealismo, com Peter Singer, filósofo utilitarista: fazer o que é necessário para “garantir o bem maior”, e a única maneira é possuindo um poder de fogo superior a todos os outros.

Falando nesse poder de fogo, ele cobre todas as bases: tem magia (o Doutor), tem tecnologia (a Engenheira), tem agentes sutis (o Meia-Noite e Swift) e tem força bruta (Apolo e Jack Hawksmoor). Além dos protagonistas, há também o veículo/quartel-general deles, a Balsa. Um recurso criativo e divertido criado por Ellis para facilitar o deslocamento do grupo que age em escala global, a Balsa flutua pelo chamado “plano devachânico”, estando ao mesmo tempo em todos os lugares e nenhum. Todos os adidos são usados com eficiência por Sparks na defesa do mundo, mas claro que, se o poder de fogo é imenso, os danos colaterais também são. Apolo, um análogo do Superman, é usado como uma bomba nuclear; onde ele luta, nada fica em pé. Isso importa para o Authority? Desde que o resultado pretendido seja alcançado, nem um pouco. Se nós aplicássemos a escala F, criada por Adorno para medir níveis de fascismo, individualmente em cada personagem, talvez os resultados não fossem grande coisa. Mas como grupo, eles estourariam a medida.

Authority

Apolo, aliás, que também apresenta outra das deliciosas subversões colocadas por Ellis nos seus personagens. Embora isso só tenha se tornado explícito posteriormente, na fase do Authority comandada por Mark Millar e Frank Quitely, Apolo e Meia-Noite, um óbvio análogo do Batman, já dão indícios nesse primeiro volume do seu relacionamento homossexual, o que se pretende ser uma singela afronta a esses ícones da virilidade americana. Como colocar John Wayne e Clint Eastwood para dar uns amassos. Mas como o foco desses primeiros arcos é mais político e militar, esse é apenas um detalhe implícito.

Outros não são. Junto com a pintura étnica deliberadamente preconceituosa e maniqueísta de Kaizen Gamorra, terrorista enfrentado pelo grupo no primeiro arco, e a “nobre” cultura europeia imperialista de estrupro do déspota de uma Terra alternativa, nos tornam muito clara a mensagem de Ellis: a visão que a cultura ianque-europeia sustenta de outras culturas ao redor do mundo, e a política ultraconservadora escolhida por americanos e europeus para lidar com elas – mantê-las submissas a sua própria visão de mundo ou destruí-las. Um cara como Fukuyama, teórico ultraconservador moderno, ou apenas um racista imbecilizado como Bolsonaro, devem ler Authority aplaudindo as escolhas do grupo e a visão propositalmente dualista da HQ de pé, enquanto Ellis ri em algum lugar.

Authority

Bryan Hitch

Toda essa profusão de detalhes não seria possível sem a caneta precisa de Brian Hitch. O desenhista, conhecido pelos seus atrasos e a demora na conclusão das páginas, aqui já nos demonstrava porque vale a pena espera-lo. Cada página é um quadro, onde as minúcias e detalhes pontuais estão espalhados as pencas, o que dá a proposta narrativa ousada de Ellis toda a dimensão e profundidade visual que ela merece. Seja nas ilustrações de combates apoteóticos em larga escala, seja nos combates individuais regados a tripas e sangue, ou tão somente das expressões e emoções dos personagens, seu desenho – naquela época, com uma influência maior de Alan Davis – é sempre sóbrio e claro e, quando necessário, épico e ostensivo na mesma medida. Desde quando Authority foi lançado, Hitch mantém o mesmo padrão cinematográfico e evoluiu no detalhismo realista, observado também no seu maior sucesso Os Supremos. Não é exagero dizer que ele talvez seja um dos melhores desenhistas da atualidade, fazendo do relançamento de Authority uma boa oportunidade de conferir o seu talento*.

*(Também publicamos um vídeo onde Bryan Hitch comenta seu processo de criação da narrativa!)

Authority

Sobre o encadernado em si, alguns elogios e uma consideração. A Panini nos entrega um volume com capa cartonada e papel de alta qualidade, o que é uma decisão compreensível e acertada, porque mantém a qualidade da visualização dos quadros e, ao mesmo tempo, mantém um preço acessível. Embora a edição da Devir fique um pouco mais bonita na estante, o fato de a edição da Panini ser mais barata sem perder a qualidade de impressão é bastante piedosa com o bolso do amigo leitor. A única ressalva é que, como se trata de uma edição longe das bancas a um tempo, seria interessante se ela viesse com mais extras. O encadernado conta apenas com um board de Hitch. Mesmo assim, nada de grave e vale o preço pedido.

Authority, quando foi lançado, causou um breve abalo no mundo dos quadrinhos. Nunca antes havia sido mostrado, de maneira tão bem feita, como a existência um grupo de heróis extremamente poderosos afetaria a geopolítica do planeta. Isso nos faz – objetivamente – refletir sobre a concentração de poder nas mãos de certos grupos ou certas pessoas que existem no mundo real. Assim como muitos políticos e órgãos globais, o Authority deseja ser a mudança que torna o mundo melhor e mais seguro.

E sua mensagem é clara: nós somos a autoridade superior. Mude ou morra!

Via: Formiga Elétrica


Crítica | Star Wars Rebels: 1ª Temporada - Uma grata surpresa da Disney

Crítica | Star Wars Rebels: 1ª Temporada - Uma grata surpresa da Disney

O investimento da Lucasfilm na televisão está presente desde a excelente minissérie Clone Wars, criada por Genndy Tartakovsky, que atua como ponte entre os Episódios II e III – estou desconsiderando Ewoks, Droids e o assustador Holiday Special pois todos queremos esquecer disso. O sucesso do desenho, exibido no Cartoon Network, rapidamente gerou uma sequência espiritual, também de mesmo nome, mas dessa vez em animação 3D. O resultado, contudo, não chegou aos pés do original e demorou anos até encontrar sua linguagem ideal e, em seu ápice, foi cancelado após a compra da Lucasfilm pela Disney. A nova dona dos direitos de Star Wars, porém, não deixou de lado a TV e nos trouxe Star Wars Rebels.

Um olhar distante, de alguém que não tenha apreciado o mais recente Clone Wars poderia acabar afastando essa nova série de sua lista do que assistir. O novo desenho, todavia, é essencialmente diferente de seu predecessor, em praticamente todos os aspectos. A começar pelo período retratado. Fugimos, enfim, da nova trilogia e caminhamos em direção ao material clássico – estamos, agora, no período do Império, cinco anos antes dos eventos de Uma Nova Esperança, escolha que muito bem se encaixa com o novo projeto da Lucasfilm, em investir nessa parte do universo criado por George Lucas.

O segundo aspecto que nos chama a atenção é a forma como o cenário mais amplo permanece mais distante. Enquanto em um tínhamos as Guerras Clônicas, aqui temos apenas um grupo de rebeldes tentando machucar o Império da melhor maneira que conseguem. Mas eles não são importantes, como era o caso de Anakin ou Obi-Wan, são apenas um bando de “ninguéns” que, pelas suas ações na série, portanto, começam a chamar a atenção.

A trama gira em torno de Ezra Bridger, um jovem órfão que acaba se juntando a um grupo de rebeldes, composto por Hera, Kanan, Sabine, Zeb e o problemático droide astromech Chopper. Não demora muito para que o menino descubra que Kanan é, de fato, um jedi e rapidamente ele embarca em uma jornada para seguir o caminho da Força. Sob a batuta de Dave Filoni, como showrunner da série, Rebels possui um ritmo delicioso de se assistir.

Primeiramente investe seus primeiros capítulos apresentando mais a fundo cada um dos personagens principais, criando relações entre eles e nos trazendo boas risadas com um humor que atinge desde adultos a crianças. As diferentes missões, a principio pequenas e que gradualmente ganham uma proporção maior, aumentam a sensação de urgência do desenho, que culmina com a aparição do Inquisidor, já nos primeiros capítulos. Atuando como o principal antagonista da temporada, o Sith representa a sensação de perigo ausente nos stormtroopers, esses são utilizados muitas vezes como alívio cômico, muito similarmente ao que vemos na trilogia original.

Aparentemente desconexos, os episódios, de fato, contam com uma sutil coesão interna. Um elemento apresentado em um capítulo é posteriormente trabalhado, nos criando a nítida percepção de estarmos assistindo uma aventura contínua, não fragmentada, muito embora cada história, em geral, seja fechada nos vinte minutos de exibição. Dessa forma, somos presos, episódios atrás de episódios, praticamente forçando um binge-watching até chegarmos no fim.

Para mais profundamente prender nossa atenção, Rebels ainda traz de volta alguns icônicos personagens. Esses, contudo, são sabiamente deixados como coadjuvantes e são organicamente encaixados dentro da trama estabelecida. Não irei estragar a surpresa de quem aparece neste primeiro ano, mas espere ser surpreendido positivamente, especialmente considerando a ótima caracterização e dublagem utilizada. Já entrando neste ponto, não há como não tecer elogios a todo o trabalho sonoro empregado na série. Todas as vozes contam com personalidade e desempenham importante papel na construção de cada um dos personagens – ninguém em Rebels soa como uma peça fora do tabuleiro, todos contam com seu específico papel dentro do roteiro. Além disso, a utilização dos efeitos sonoros clássicos traz uma imediata nostalgia a qualquer fã da franquia, dos sons dos Tie-fighters até os Walkers imperiais.

Não poderia, é claro, deixar de mencionar o trabalho de Kevin Kiner na trilha sonora, que faz bom uso dos temas compostos por John Williams em toda a franquia, além de trazer algumas melodias novas. Kiner cria excelentes variações de músicas emblemáticas, expandindo os paralelismos que a série cria com a trilogia original. Além disso, o compositor sabe dominar as expectativas do espectador e deixa para os momentos certos a aparição das mais clássicas faixas. A construção do humor, muito presente em diversos pontos da temporada, naturalmente, ganha uma clara ajuda de Kevin, devo aqui citar a variação da Marcha Imperial em tom comemorativo, que certamente colocará um sorriso no rosto de qualquer fã.

Mas, dito isso, como fica a animação em si? Devo dizer que este foi um dos aspectos que mais me surpreendeu. Ed Caspersen, que também trabalhara em Clone Wars, introduz uma mescla do 3D com a animação tradicional nos traçados. O tom mais cartunesco é evidente, mas isso funciona muito bem não só para atrair o público mais jovem, como para garantir uma maior identidade visual para cada personagem. Esse visual, ainda não consegue esconder a qualidade das texturas, especialmente dos prédios e veículos. A limpeza dos rostos dos personagens centrais ainda cria uma interessante oposição com o Inquisidor, este portando traços mais ameaçadores e um maior detalhamento na pele, revelando a influência do Lado Negro em sua constituição. Na movimentação o desenho também não deixa a desejar, nos trazendo bastante fluidez e cenas de combate que contam com uma nítida aceleração, aumentando a sensação de urgência sem perder a atenção do espectador.

A Força está com Star Wars Rebels, um desenho que certamente prende audiências de todas as idades. O espirito da trilogia original foi devidamente resgatado aqui, abrindo caminho para uma nova exploração desse rico universo. Com um roteiro coeso e engajante, a série nos deixa com positivas esperanças para essa nova fase de Star Wars, nos prendendo do início ao fim e nos deixando com fortes arrepios na cena final da temporada. Que venha a segunda temporada!

Star Wars Rebels – 1ª Temporada (EUA, 2014)
Showrunner:
 Dave Filoni

Direção: Vários
Roteiro: Vários
Elenco: Taylor Gray, Vanessa Marshall, Freddie Prinze Jr., Tiya Sircar, Steve Blum, David Oyelowo, Phil LaMarr, Ashley Eckstein, Stephen Stanton, Jason Isaacs
Duração: 450 min.


Crítica | Star Wars: Herdeiro do Império (Dark Horse Comics) - A Definitiva Continuação de O Retorno de Jedi

A mais importante obra do Universo Expandido de Star Wars, Herdeiro do Império, recebeu, quatro anos depois do lançamento original, sua adaptação em quadrinhos pela Dark Horse Comics, como fora o caso com todos os filmes da franquia. Ao contrário desses, contudo, estamos falando de uma transposição do puro texto para a imagem e, considerando que o universo criado por George Lucas surgiu no cinema, trazer uma representação visual para um romance de tal importância dentro da franquia não seria algo totalmente inimaginável. De fato, a adaptação é considerada por muitos dos fãs como sendo tão boa quanto o livro original, mas não cabe a mim tecer comparações e sim analisar a obra como algo que se sustente por si só.

Cinco anos após a batalha de Endor, a Nova República ainda está em formação. Luke começa a ter dúvidas acerca do caminho que trilha enquanto Leia está grávida de gêmeos, sendo Han Solo, é claro, o pai. A relativa tranquilidade que paira na galáxia, porém, está prestes a ser abalada – O Grão Almirante Thrawn retorna do espaço profundo e decide tomar as rédeas da luta do Império decadente contra a Rebelião. Exímio estrategista, ele conta com um intrincado plano para destruir a Nova República e os Skywalkers, plano este que envolve uma criatura capaz de bloquear a utilização da Força.

O roteiro de Mike Baron é sábio em manter uma grande fidelidade ao material original, visto que esse conta com uma linguagem bastante cinematográfica. De certa forma, o que temos nessa adaptação da Dark Horse é uma espécie de storyboard. Baron consegue transpor para as páginas dos quadrinhos toda a emoção das palavras de Timothy Zahn e trazer toda a força do texto base. Mais que tudo, porém, ele é bem-sucedido em retratar Thrawn, definitivamente o ponto alto do livro e um dos mais importantes personagens de Star Wars fora dos filmes. Enxergamos o vilão como se ele estivesse, a todo e qualquer momento, diante de um tabuleiro de xadrez. Ele pensa cuidadosamente em todas as suas ações, seja dentro ou fora da nave, nos fazendo, aos poucos, nos apaixonarmos por ele.

O interessante é como o antagonista se diferencia daqueles que vieram antes dele, Darth Vader e o Imperador – enquanto esses traziam uma nítida emoção na maneira como agiam, Thrawn é frio e calculista, ele analisa tudo com cautela antes de agir e sempre parece estar certo de seus atos, não por arrogância como era o caso de Palpatine, mas pelo tempo que gastara estudando seu inimigo. Isso, evidentemente, cria uma tensão constante no leitor, que enxerga os heróis como moscas presas em uma gigantesca teia de aranha – estão presos e não tem ideia de tudo o que o Grão Almirante tem planejado.

Mas Herdeiro do Império vai muito além de seu vilão. Chega a ser impressionante, como diferentes focos são trabalhados de forma a não prejudicar a fluidez da narrativa. Ora acompanhamos Leia em Kashyyyk, ora vemos Luke tendo de lidar com Mara Jade, outra ótima adição para o universo da franquia, que tira um pouco a galáxia do preto e do branco, mostrando como a queda do Império afetou as pessoas não somente de formas positivas. Digno de nota também, é o fato de termos aqui, pela primeira vez, uma representação visual de Coruscant, visto que a capital do Império e agora da Nova República não fora mostrada nos filmes até A Ameaça Fantasma.

Na arte, Olivier Vatine e Fred Blanchard também não deixam a desejar. Há uma evidente identidade no traço da dupla, que sabiamente decide não se apoia de forma exagerada nos filmes. A expressividade de cada personagem é garantida, ao mesmo tempo que os trechos com maior ação são retratados de uma forma que seja fácil de entender, sem a necessidade de que muitos quadros sejam utilizados para descrever uma ação. Há uma boa harmonia entre o texto e a imagem e um organicamente se apoia no outro, nos trazendo uma leitura bastante dinâmica, que permite que avancemos de página em página bem rapidamente.

No fim, a adaptação da Dark Horse Comics de Herdeiro do Império é uma ótima pedida não somente para quem não leu o livro, como para aqueles que o fizeram e desejam ver os icônicos personagens do romance fora de suas imaginações. Temos aqui uma equipe artística que sabe perfeitamente a linguagem com a qual estão lidando e, portanto, não ficam à sombra do livro base ou até dos filmes que o precederam.

Star Wars: Herdeiro do Império (Star Wars: Heir to the Empire, EUA – 1995)

Roteiro: Mike Baron (baseado no livro de Timothy Zahn)
Arte: Olivier Vatine, Fred Blanchard
Cores: Isabelle Rabarot
Letras: Ellie DeVille
Arte da capa:  Mathieu Lauffray
Data de publicação original: outubro de 1995 a abril de 1996
Editora (nos EUA): Dark Horse Comics
Editora (no Brasil): Panini Comics
Páginas: 160