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Crítica | The End of the F***ing World – 1ª Temporada – Uma Road Trip Inusitada

A Netflix se tornou conhecida, principalmente, em razão de suas produções originais – séries como House of Cards, Orange is the New Black e até a cancelada Sense8, sem falar, é claro, nas séries da Marvel, garantiram que o canal de streaming fosse fixado no imaginário popular e, por um bom tempo, atrelou o nome da companhia à qualidade (até a vertiginosa queda de algumas dessas produções, claro). Um dos melhores aspectos do serviço, no entanto, é o seu conteúdo licenciado, que também acaba recebendo o selo Netflix Original – obras que, possivelmente, acabariam não chegando por aqui, ao menos não tão cedo, como Better Call Saul, Star Trek: Discovery e, agora, The End of the F***ing World. Em outras palavras, são seriados, filmes ou animações que não tiveram um pingo de envolvimento do canal em seu desenvolvimento, sendo apenas trazidos para o Brasil (e outros países do mundo) pela gigante do streaming.

Esse mais recente seriado – ou minissérie – produzido pelo Channel 4, que já nos trouxera, há alguns anos atrás, a fantástica e injustamente cancelada Utopia, acompanha dois jovens problemáticos, enquanto eles viajam pela Inglaterra como verdadeiros foras-da-lei. Alyssa (Jessica Barden, de O Lagosta) é uma garota que está cansada do mundo ao seu redor e odeia pessoas que se encaixam nas “bizarrices” do mundo moderno. Já James (Alex Lawther, de Black Mirror) acredita ser um psicopata e, justamente quando está pensando em matar um ser humano, Alyssa aparece em sua frente – sendo a candidata perfeita, ele decide passar tempo com a menina. Tudo acaba mudando quando ela o convence de irem em busca do pai da garota.

Há um forte “quê” de perversidade que preenche a narrativa de The End of the F***ing World – o que já é deixado bem claro pelo título da série, baseado em quadrinhos de mesmo nome por Charles S. Forsman. Através de constantes narrações em off sabemos o que se passa na cabeça dos dois personagens centrais, recurso esse que acaba sendo indevidamente utilizado em determinados pontos, mas que, em outros, revela ser essencial para a constituição do humor negro do seriado. Com esse voice over as inseguranças desses personagens são evidenciadas ao espectador, que aprendem importantes detalhes, os quais, em outro caso, acabariam não tomando conhecimento. Não somente James e Alyssa são aprofundados por meio desse recurso, como a própria relação dos dois, a tal ponto que passamos a enxergar um como indispensável ao outro.

Naturalmente que essa escolha criativa de Jonathan Entwistle, criador, co-diretor e co-roteirista da série ajuda a gostarmos mais desses dois indivíduos que acompanhamos, mas não sentimos como se fosse algo forçado a nós, já que a construção da personalidade desses dois personagens evidencia que não há qualquer preocupação em nos fazer gostar deles.

James, ao que tudo indica, é um psicopata e não um carismático como Hannibal – ele simplesmente acata as decisões de Alyssa, da maneira mais passiva possível, sem demonstrar qualquer emoção. Já Alyssa tem a necessidade constante de irritar ou fazer todos à sua volta a odiarem, provocando absolutamente tudo e todos, inclusive um sujeito muito suspeito que decide dar carona aos dois – é como se a personalidade da protagonista de Girlboss fosse elevada à décima potência.

Claro que muito se deve à atuação tanto de Jessica Barden quanto de Alex Lawther. A primeira nos entrega uma personagem que, a todo e qualquer momento, está prestes à explodir – mesmo com seus constantes xingamentos (que ganham um toque especial em razão do sotaque carregado da atriz) ela parece, verdadeiramente, reter muito dentro de si, o que nos leva ao péssimo ambiente familiar da personagem e o relacionamento abusivo de sua mãe com o marido, ponto que a motiva a fugir. Já Alex vive o retrato das emoções reprimidas, do trauma, fruto do passado, quando ainda criança, de James. No fim, entendemos plenamente o que motiva os dois e porquê são daquela maneira, o que nos faz, naturalmente, passar a gostar deles.

Evidentemente os dois criam personagens que se completam, atuando como válvulas de escape um para o outro, o que apenas torna a relação entre os dois mais engajante e divertida, ou tensa, dependendo do momento em que estamos. Durante toda a série, porém, o humor negro continua, por mais que, em dadas situações, o drama tome conta do primeiro plano, sem que um prejudique o outro, eles se misturam, sem causar estranheza ao espectador.

Seguindo a estrutura clássica de road movies há, claro, o aumento dos problemas enfrentados pelo jovem casal. O que antes funcionava como uma espécie de período sabático, ganha assustadoras proporções, o que garante o aprofundamento dos indivíduos retratados. Por não se pautar em constantes twists, a obra não trai a construção de seus personagens – os problemas apresentados são orgânicos e diretamente ligados à jornada de cada um deles. Tal aspecto permite que o seriado fuja da previsibilidade, do início ao fim – primeiro por não se importar em agradar o espectador, segundo por entender o que é necessário para que essa viagem seja, literal e metaforicamente, concluída. Tudo isso faz com que enxerguemos a série como uma grande jornada de cura para os dois jovens, um enfrentamento daquilo que eles tanto temem e que tanto prejudicara suas vidas até esse momento.

É justamente esse foco quase que exclusivo nos dois personagens centrais, que, quando interrompido por uma trama policial, acaba quebrando nossa imersão – um problema claramente da narrativa, que insere um elemento estranho dentro da trama. Veja, durante os primeiros episódios, até praticamente a metade da temporada, permanecemos juntos de Alyssa e James, nos distanciando brevemente através de curtos inserts que dialogam com o pensamento ou falas dos personagens. Quando uma dupla de policiais, então, é subitamente inserida na trama, há um certo choque, pois quebra a identidade que a narrativa construíra até então. Não que toda essa subtrama policial seja desnecessária, muito pelo contrário, mas faltou um maior cuidado para que essa fosse inserida organicamente, especialmente considerando que a construção das duas policiais que acompanhamos, de fato, não importa muito para todo o enredo. Uma diminuição de foco nessa trama paralela, portanto, seria bem-vinda, por mais que ela se relacione diretamente com o restante do texto.

Esse ponto, felizmente, não nos afasta das qualidades apresentadas em The End of the F***ing World uma série que se destaca pela orgânica combinação de humor negro e drama, que muito bem lida com importantes questões questões psicológicas de seus personagens, como o trauma, relacionamentos abusivos e mais. Trata-se da obra quase ideal para provar o quanto o ambiente familiar pode afetar os jovens que ali convivem – mas não apenas isso, é uma bela série sobre a cumplicidade e, no fim, sobre o amor, que, de fato, pode salvar os outros da verdadeira tragédia. Mais uma vez, pois, a Netflix prova que não devemos ignorar seu conteúdo licenciado, que conta com verdadeiras pérolas, profundamente relevantes à nossa atualidade.

The End of the F***ing World (Reino Unido, 2017)

Criado por: Jonathan Entwistle
Direção: Jonathan Entwistle, Lucy Tcherniak
Roteiro: Charlie Covell, Jonathan Entwistle (baseado nos quadrinhos de Charles S. Forsman)
Elenco: Jessica Barden, Alex Lawther, Steve Oram, Jayda Mitchell, Wunmi Mosaku, Gemma Whelan, Christine Bottomley, Navin Chowdhry, Jonathan Aris, Barry Ward
Emissora: Channel 4, Netflix
Episódios: 8
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 25 min.

https://www.youtube.com/watch?v=vbiiik_T3Bo

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Publicado por Guilherme Coral

Refugiado de uma galáxia muito muito distante, caí neste planeta do setor 2814 por engano. Fui levado, graças à paixão por filmes ao ramo do Cinema e Audiovisual, onde atualmente me aventuro. Mas minha louca obsessão pelo entretenimento desta Terra não se limita à tela grande - literatura, séries, games são todos partes imprescindíveis do itinerário dessa longa viagem.

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