Girlboss tenta ser algo que não deveria ser.
Começar um texto assim parece algo muito duro, mas é isso que a nova série original Netflix nos passa – principalmente para aqueles que já são assíduos acompanhantes da gigante do streaming. Baseado livremente na obra homônima assinada por Sophia Amoruso, a história gira em torno de uma garota que, aos 28 anos de idade, tornou-se multimilionária e comanda, atualmente, uma das marcas de roupa estadunidenses mais rentáveis dos últimos anos.
É interessante dizer que o conteúdo original do serviço supracitado sempre optou pela variedade. Desde seu surgimento, já tivemos dramas políticos (como House of Cards), comédias literárias (Orange is the New Black), ficções científicas (Stranger Things), entre outros gêneros. Recentemente, entretanto, o tato para a realização de uma grande obra audiovisual parece ter sido deixado de lado como forma de atender à demanda crescente para seu catálogo. E, infelizmente, a série produzida por Charlize Theron parece ter sido atingida pelo raio do simulacro tragicômico.
Protagonizado por Britt Robertson, a narrativa nos lembra bastante das sitcoms que se tornaram sucesso a partir da década de 1990, como Seinfeld e Friends. Cada um dos personagens tem a sua característica principal que os torna bem diferentes uns dos outros e que funcionam, na maior parte do tempo, como arquétipos de tipos sociais. No episódio piloto, já somos introduzidos à personalidade irreverente e extrovertida de Sophia, que contrasta de forma harmônica com o jeito mais reservado de seu vizinho, Lionel (a presença muito bem-vinda de RuPaul), e que corresponde à liberdade criativa de Annie (Ellie Reed). Ao longo do capítulo de meia-hora, outros personagens vão surgindo e adicionam camadas de complexidade a uma narrativa que poderia ter tudo para ser a mais sincera e comovente possível.
Entretanto, mesmo com o aviso no início de cada episódio – “recriação muito livre dos acontecimentos reais” – não podemos deixar de nos sentir incomodados com a necessidade muitas vezes equívoca da série em ser “diferente”. A montagem e a história trazem seus tons de dinamismo para o conceito identitário, sem falar nas ótimas quebras de expectativa provindas da marca já conhecida de Kay Cannon (franquia A Escolha Perfeita e Como Ser Solteira). Mas à medida em que o tempo passa, como dito anteriormente, Girlboss deixa o brilho de sua originalidade de lado para se inclinar a outras obras semelhantes.
Os próprios diálogos entregam esse desejo de inclusão em alguma vertente estilística: em vários momentos, vemos flashbacks ou sequências muito bem ritmadas que se baseiam na autoexplicação exacerbada, cuja característica é retirada diretamente de Unbreakable Kimmy Schmidt ou 30 Rock. Sophia e Annie são as protagonistas desses momentos, mas o gênero escolhido para a série – que oscila entre o drama, a comédia e a impossibilidade narrativa – contrasta de forma negativa e começa a se arrastar em direção a um final que obviamente roga por uma continuação.
Além de momentos pontuais, o desenvolvimento da história principal tenta também seguir um modo único, como se estivesse tentando encontrar uma linha reta numa bifurcação. É de se esperar que ramificações narrativas passem a existir uma vez que nos conectemos aos personagens. Mas o time criativo assume que a construção destes laços entre obra e público aconteçam num estalar de dedos – e definitivamente esse é o grande deslize. O aguardado par romântico já dá às caras no terceiro ato do episódio piloto, e lá pela metade da série seu arco é relembrado. Personagens vem e vão como se estivessem apenas numa suspensão transitória de estereótipos – os supostos “conselheiros” da protagonista, diga-se de passagem. Nem mesmo os cameos de celebridades e rostos conhecidos do gênero cômico despertam pontas de interesse nos telespectadores.
A série não é de toda um “desperdício”. É inegável que a direção de arte e o design de produção foram projetados com bastante cautela, resvalando-se na escola kitsch e vintage. Os acessórios e roupas utilizados pelos personagens, com ênfase em Sophia e Annie, são essencialmente chamativas e complementares entre si: dentre as combinações feitas, vemos uma calça jeans skinny ornando com um cinto Gucci e uma jaqueta multicolorida de couro de bezerro do estilo country da década de 1970. Os detalhes por vezes são perceptíveis pela maior parte do público, mas são direcionados a um nicho específico – ou seja, aquela que realmente se interessa pela moda.
Apesar da improbabilidade de eventos de Girlboss, sua pegada histórica é interessante. A série é ambientada no ano de 2006 e mostra a crescente evolução e controle de sites de compra/venda online, como eBay, Amazon, entre outros, bem como a dominação por certos grupos comerciais que desejavam “devorar” os novos empreendedores. Sophia esteve em linha de combate com a maioria deles, e talvez sua história pudesse realmente ter sido mais envolvente. Mas, como já disse, a sucessão de eventos ocorre de modo tão brutalmente exposto que podemos prever o desfecho dos arcos antes mesmo de eles darem indício de começarem.
A jornada do herói é outra característica pobremente explorada na série. Apesar da química entre o elenco e da satisfatória interpretação de Robertson, sua personagem entra em uma viagem de autodescobrimento e maturidade que não segue uma escalada evolutiva, por assim dizer, mas incansáveis parábolas que tornam o acompanhamento dos episódios cansativo e monótono. Aqui, é possível vermos a maioria das características identitárias extraídas diretamente de outras obras do gênero, como o inenarravelmente superior O Diabo Veste Prada: no longa, a personagem Andrea Sachs (Anne Hathaway) passa por altos e baixos para conseguir uma posição de destaque e um reconhecimento no competitivo e assustador mundo da moda; em Girlboss, Sophia passa pelos mesmos obstáculos, mas de forma a resolvê-los através de um senso de humor ácido e sarcástico, banhado por constantes torrentes de irreverência.
Mais uma vez, a ideia aqui é buscar a originalidade; mas tudo é direcionado para o impossível, e a resolução destes arcos de culpa e redenção citados no parágrafo acima não são coerentes o suficiente para torná-la uma obra completa. A nostalgia está no figurino, somente; e ao invés de resgatar os anos 2000 de forma a causar uma aproximação maior com o público, a série deseja se corresponder o máximo possível com a contemporaneidade.
A nova série Netflix tinha tudo para ser ótima. Entretanto, através de metáforas vencidas e de uma história falha, fica oculta pelo brilho de produções audiovisuais semelhantes – mas infinitamente melhores.
Girlboss – 1ª Temporada (Idem, 2017, Estados Unidos)
Criado por: Kay Cannon
Direção: Christian Ditter, Jamie Babbit, Amanda Brotchie, Steven K. Tsuchida, John Riggi
Baseado em: #Girlboss, de Sophia Amoruso
Roteiro: Kay Cannon, Sonny Lee, Jake Fogelnest, Caroline Williams
Elenco: Britt Robertson, Ellie Reed, Johnny Simmons, Alphonso McAuley, RuPaul, Josh Couch
Gênero: Comédia
Duração: 28 min.