Crítica | Game of Thrones - 1ª Temporada

A HBO sempre foi conhecida por sua ambição. Do sucesso estrondoso de crítica de Família Soprano e A Sete Palmos até produções avassaladoras como Band of Brothers e Roma, a emissora de TV fechada é uma das responsáveis por conferir aspecto cinematográfico à telinha e forçar a competição a igualmente igualar seu jogo e apostar ainda mais em tramas originais e desafiadoras. Porém, nada poderia preparar o mundo do entretenimento para o hit sem precedentes que vinha pelo horizonte. Começava o reinado de Game of Thrones.

A série é uma produção caríssima que adapta a saga literária Crônicas de Gelo e Fogo, do americano George R. R. Martin. Ambientada na fictícia e medieval terra de Westeros, acompanhamos as intrigas políticas e os jogos de interesse que movem os personagens desse universo, todos interessados no poder absoluto e na conquista do imponente Trono de Ferro. Logo somos apresentados à Família Stark, guardiões do Norte e habituados ao inverno, o patriarca Ned (Sean Bean) é surpreendido pela chegada do Rei Robert Baratheon (Mark Addy), seu velho amigo que o recruta para um cargo importante como seu braço direito (ou, no caso, Mão do Rei) após a morte misteriosa de seu antecessor. Um dos homens mais honrados de Westeros, Ned é casado com Catelyn (Michelle Fairley) e pai de Robb (Richard Madden), Bran (Isaac Hempstead Wright), Sansa (Sophie Turner), Arya (Maisie Williams), Rickon (Art Parkinson) e o bastardo Jon Snow (Kit Harington).

Robert mantém uma aliança matrimonial com a Família Lannister, os mais ricos e influentes dos Sete Reinos. Ao seu lado, temos a nada confiável Rainha Cersei (Lena Headey), seu irmão Sir Jaime Lannister (Nikolaj Colster-Waldau) e os filhos Joffrey (Jack Gleeson), Tommen (Callum Wharry) e Myrcella (Aimee Richardson). Claro, temos também o anão Tyrion Lannister (Peter Dinklage), cujo desprezo que sofre de sua família só não é maior do que sua sabedoria.

Do outro lado do mar, acompanhamos outra narrativa fundamental para o desenrolar dos eventos: Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e seu irmão Viserys (Harry Lloyd) sobreviveram ao massacre de sua outrora poderosa família ancestral e agora planejam tomar o poder de volta com a ajuda do brutal exército Dothraki, liderado pelo ameaçador Khal Drogo (Jason Momoa).

Acrescente alguns dragões e a crescente ameaça de uma raça de criaturas glaciais e você tem Game of Thrones. Mas é justamente pelo motivo contrário que a série adaptada por D.B. Weiss e David Benioff surpreende: o fator humano. O grande barato desse mundo criado por Martin é por nos levar a um lugar que fora tocado pela magia e grandes realizações: dragões voaram por ali, mas foram extintos. Batalhas heróicas foram travadas por homens imponentes, agora todos moribundos e gordos. Ouvimos histórias arrepiantes sobre um Inverno que durou dezenas de anos e despertou criaturas sombrias, mas nunca temos um vislumbre sobre isso.

Esse setting torna o mundo de Westeros mais realista, e garante uma trama muito mais política e engenhosa do que, digamos, O Senhor dos Anéis (sem desmerecer o trabalho de J.R.R. Tolkien, claro), aproximando a estrutura da série e seu desenrolar de acontecimentos com algo mais perto de House of Cards ou The West Wing. Esse crédito vai todo para Martin e os produtores "D&D"; o primeiro por criar figuras tão carismáticas e apaixonantes, a dupla por lhes garantirem diálogos maravilhosos e um elenco perfeito - vale apontar que esta primeira temporada é uma adaptação muito fiel do primeiro livro da série.

Ao longo de 10 episódios de aproximadamente 1 hora, temos um ritmo favorável e uma sequência de eventos lógica e que entretém, com raríssimos momentos de "barriga" ou fillers de história. Claro que a narrativa protagonizada por Daenerys mal interage com a trama maior envolvendo as famílias em Westeros e o Trono de Ferro, mas é uma história contada com excelente precisão e que o espectador entende ser o mero começo de algo gigantesco; sendo realmente empolgante quando os primeiros sinais do retorno de um mundo místico e mágico possam estar em andamento. Você sabe, Rainha dos Dragões. Khaleesi e Dracarys. É divertido e genial ver como D&D foram trazendo diversas pistas sobre o destino de Daenerys, desde um inofensivo banho quente até o aparecimento de um crânio gigantesco de dragão.

Mas é mesmo com o núcleo familiar que a série se sobressai. Principalmente, é claro, com o excepcional Peter Dinklage que dá vida ao anão Tyrion Lannister de forma inebriante e digna de todos os prêmios que sua performance vem colecionando desde 2011. Seus diálogos são maravilhoso e a imponência e sagacidade do ator ao proferi-los transformam o caçula Lannister em um personagem clássico quase que instantaneamente

No núcleo Stark, Sean Bean garante uma presença agradável e leve como Ned Stark, sendo uma figura clássica de herói de bom coração pelo qual adoramos torcer - e que vibramos quando inesperadamente é jogado em uma batalha. Os arcos de seus filhos acabam misturados ao longo da temporada, mas garantem um ótimo trabalho de Richard Madden e Sophie Turner, mas é mesmo a jovem Maisie Williams e o novato Kit Harington quem roubam a cena - seja por suas atuações, seja pelo carisma de seus personagens.

Voltando aos Lannister, a irmã Cersei também se beneficia de textos memoráveis, que ganham força com a performance cínica e traiçoeira de Lena Headey, sempre uma figura que sabe muito mais do que aparenta - o que a torna friamente ameaçadora e calculista. O irmão Jaime também revela-se um antagonista asqueroso, praticamente a versão sombria e fanfarrona do Príncipe Encantado, e Nikolaj Colster-Waldau nitidamente se diverte com essa figura maliciosa. E ainda que tenha tido pouco destaque nessa primeira temporada, Charles Dance oferece uma amostra de sua masterclass na pele de Tywin, o patriarca da família Lannister. Já é um leão que mostra-se afiado nesse final de temporada.

A começar pela audácia de matar seu protagonista (se você não tinha recebido esse spoiler ainda, já passou da hora) antes mesmo da conclusão da temporada. A decapitação de Ned Stark em Baehlor foi a confirmação de que estávamos diante de uma série sem medo de tomar rumos sombrios e garantir um senso de perigo e alarmismo presentes até agora, na atual sexta temporada. Tal reviravolta também consagra o Joffrey do excelente Jack Gleeson como um dos vilões mais odiados e sanguinários de todos os tempos.

Então chegamos ao motivo de Game of Thrones ser tão marcante na História da Televisão: sua escala. Rodada em mais de 5 países, a série faz uso de lindas paisagens na Islândia, Espanha, Marrocos e diversos outros ambientes naturais para criar um mundo vasto e imersivo, ao passo em que os preenche com um design de produção  fascinante e figurinos que oferecem uma diversidade histórica e cultural (GOT transita entre o medieval clássico e até algo mais contemporâneo, no mix perfeito de realismo e fantasia) até os efeitos visuais que são mais ambiciosos do que qualquer coisa que já vimos na televisão. Isso porque a primeira temporada é mais centrada em ação visceral, trazendo uma computação gráfica pontual aplicada em duplicação de figurantes e preenchimento de cenários.

A ação também tem momentos primorosos, com destaque especial para o momento no qual a vida de Tyrion deve ser decidida em um julgamento de combate entre dois lutadores sobre uma portinhola que periga uma queda livre vertiginosa ou quando Khal Drogo enfrenta um espadachim com as próprias mãos - com resultados nada bonitos, diga-se de passagem. Obviamente, é decepcionante que o grande clímax da temporada tenha sido cortado por motivos de orçamento (Tyrion desmaia na batalha e só voltamos quando este acorda), mas é uma decisão que D&D jamais fariam novamente... 

Game of Thrones representa um dos passos mais ousados e grandiosos que a televisão já deu, criando um universo gigantesco e complexo com um orçamento incrível se considerarmos sua escala de produção. Mas ainda que seus cenários e locações sejam estonteantes, é mesmo na inteligência e criatividade de seus personagens e na imprevisibilidade da história que a série encontra sua maior força.

E não seria exagero dizer que a televisão americana se divide entre Pré-GOT e Pós-GOT.

Game of Thrones – 1ª Temporada (Idem, EUA – 2011)

Criado por: David Benioff, D.B. Weiss
Direção: Alan Taylor, David Petraca, David Nutter, Alik Sakharov, Neil Marshall
Roteiro: David Benioff, D.B. Weiss, George R.R. Martin, Bryan Cogman, Vanessa Taylor
Elenco: Peter Dinklage, Emilia Clarke, Kit Harington, Sophie Turner, Nikolaj Coster-Waldau, Richard Madden, Maisie Williams, Charles Dance, Lena Headey, Michelle Fairley, Rose Leslie, Alfie Allen, Isaac Hempstead-Wright
Emissora: HBO
Gênero: Ação, Fantasia, Drama
Duração: 60 min

https://www.youtube.com/watch?v=BpJYNVhGf1s

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Crítica | Bórgia, de Alejandro Jodorowsky

O papa Alexandre VI, ou Rodrigo Bórgia (1431 – 1503), passou à História como uma persona que pede um neologismo para ser descrita. “Caligulesco “parece ideal, já que ao pontífice são creditados inúmeros atos de corrupção e devassidão, o que torna difícil a separação entre fato e lenda. Claro que seus vários filhos comprovam algo destas afirmações, sendo dois deles tão conhecidos quanto o pai no que diz respeito a uma vida de excessos de todos os tipos: Cesare e Lucrécia. Ao primeiro, inclusive, Maquiavel dedicou O Príncipe, sua obra mais famosa.

Vale uma reflexão sobre o legado deste clã. Em um contexto de poder e prestígio totais da Igreja, outros papas não desfrutaram de sua posição de maneira semelhante? Claro que sim, mas quem ficou com a posição de pior de todos foi Bórgia. Apenas mais um entre vários, é possível que a associação com Maquiavel, cujo trabalho é frequentemente mal interpretado e alvo de sofismas, tenha contribuído para isso, obscurecendo o florescimento das artes durante sua gestão. Enfim, o ambiente opulente e altamente sexualizado destas figuras históricas é um cenário rico para uma imaginação como a de Alejandro Jodorowsky, contando com a arte exuberante de Milo Manara.

Bórgia é uma série de quatro álbuns que transporta o leitor para a “corte” de Alexandre VI. Publicado entre 2005 e 2011 no Brasil pela Conrad, cada volume se ocupa de um recorte específico da trajetória de ascensão, apogeu e queda. São eles em ordem, Sangue Para o Papa, Poder e Incesto, As Chamas da Fogueira e Tudo é Vaidade. Mesmo com toda violência e perversão que sabemos fazer parte deste caminho, a Jodorowsky não interessa um retrato histórico fiel ou revisionista. O chileno prefere imaginar esse pano de fundo como um parque de diversões sensorial para quem folheia essas páginas, sem a necessidade de jornadas dramáticas definidas para seus protagonistas.

O que o torna absolutamente bem sucedido nesta proposta é a arte de Manara. Compondo os quadros da HQ com o detalhismo extremo e a maestria que lhe é comum, ele ainda é responsável por uma colorização que emula as pinturas do Renascimento. Com texto e arte trabalhando em perfeita sinergia, Bórgia consegue um ar sutilmente fantástico e onírico, chocando vez por outra com alguma cena mais forte ou um fato estranho que desafia nossa interpretação.

A intenção do roteirista, aproveitando todos os recursos que seu ilustrador dispõe, parece ser tocar naquele voyeurismo mórbido e mais ou menos perverso que todo ser humano tem, em maior ou menor grau. Mesmo fugindo da fidelidade histórica, Rodrigo, Cesare e Lucrécia são representados como seres vivos pulsantes, além de fascinantes, chamando nossa atenção pelo comportamento desregrado. O atrativo vem justamente da curiosidade em torno de quão longe vai essa loucura, nunca frustrando o leitor que os acompanha.

Contando com aparições do próprio Maquiavel e Leonardo Da Vinci, os quatro volumes de Bórgia nos dão acesso a uma realidade alternativa, situada em algum lugar entre a veracidade histórica e as lendas envolvendo esse sobrenome. Eis um caso em que a mídia de quadrinhos mostra sua versatilidade como arte, já que não sofre com as limitações que uma obra audiovisual eventualmente encara. Se pararmos para pensar, essa visão levada ao cinema poderia muito bem culminar em um filme apelativo e esquecível. No traço de Manara, transformou-se em algo imortal. No mínimo.


Crítica | Game of Thrones - 2ª Temporada

Game of Thrones estava destinada a ser o grande fenômeno da televisão contemporânea. Apenas dois dias após a estreia da primeira temporada na TV, a HBO já renovou a série para um segundo ano, mantendo os showrunners David Benioff e D.B. Weiss no comando e injetando um orçamento ainda maior para a continuidade da história. Com isso, os 10 novos episódios de Game of Thrones mantém o mesmo nível de produção e qualidade de história de sua temporada anterior, seguindo de perto a adaptação do segundo livro de George R.R. Martin.

A trama desta segunda temporada começa imediatamente após os eventos da primeira, com o nascimento dos pequenos dragões de Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) e a continuação de sua jornada pelo deserto. As longas caminhadas acabam colocando-a de frente com a civilização de Qarth, onde Dany e seus companheiros aprenderão importantes lições sobre liderança e confiança, e a aspirante à Rainha dos Sete Reinos testa seu conhecimento como Mãe dos Dragões. Do outro lado do mapa, o rei Joffrey Baratheon (Jack Gleeson) segue seu mandato cruel e sádico, com a indefesa Sansa Stark (Sophie Turner) sendo mantida como refém e sua futura esposa, mas a situação muda quando Tyrion Lannister (Peter Dinklage) retorna para Porto Real com o cargo valiosíssimo de Mão do Rei - para total desespero de Joffrey e sua mãe, a Rainha Cersei (Lena Headey).

Mas o grande motte da temporada é centrado na Guerra dos Cinco Reis. Com a notícia da real paternidade de Joffrey - fruto de uma relação incestuosa entre Cersei e seu irmão Jaime (Nikolaj Coster-Waldau) - diferentes líderes de Casas ao longo dos Setes Reinos lutam para reivindicar o Trono de Ferro. O mais forte deles é Stannis Baratheon (Stephen Dillane), irmão do falecido Robert (Mark Ady) e que usa de sua crença na feiticeira Melisandre (Carice van Houten) e sua devoção ao Senhor da Luz. Paralelamente, o jovem Robb Stark (Richard Madden), proclamado como Rei do Norte, e sua mãe Catelyn (Michelle Fairley) continuam sua revolta para vingar a morte de seu pai e destronar os Lannister em uma campanha que ganha apoio de todo o Norte.

Os outros Reis no conflito incluem Balon Greyjoy (Patrick Malahide), Lorde das Ilhas de Ferro e pai de Theon (Alfie Allen) e Renly Baratheon (Gethin Anthony) como Rei do Jardim de Cima. E ainda que não faça exatamente parte da Guerra, Jon Snow (Kit Harington) segue como patrulheiro da Guarda Noite, que tenta lidar com um crescente ataque de selvagens do outro lado da gigantesca parede de gelo da Muralha, que são liderados por uma figura que se proclama Rei Além da Muralha.

Quem quer ser Rei dos Sete Reinos?

Como bem observado aqui, resumir a mera sinopse de uma temporada de Game of Thrones é uma tarefa que toma tempo e muita organização, justamente as duas características que melhor definem o desenrolar da produção da série. Ao longo de suas 10 horas de duração, D&D são capazes de contar uma história complexa de forma clara e concisa, com todas as diferentes linhas narrativas movendo-se à seu próprio ritmo, assim como a distribuição de personagens em diferentes ambientes. Claro, alguns acabam ganhando mais destaque do que outros - no que diz respeito à Guerra dos Cinco Reis, acho difícil que alguém tenha ligado para os núcleos de Renly e Balon, até porque a série dedica muito mais tempo e eventos interessantes aos de Stark, Lannister e Baratheon.

Aliás, a introdução de Stannis é uma das novidades mais fascinantes da segunda temporada. Não só por Stephen Dillane oferecer uma performance perfeita como um homem que nitidamente balanceia a inteligência de um líder com a fúria impaciente de um sujeito que fora enganado, soando como um Jason Statham mais maduro no processo, mas também pelas relações que mantém com seus dois grandes aliados: Melisandre e Sir Davos Seaworth (Liam Cunningham), um cavaleiro desonrado que agora serve como seu conselheiro. Tudo com Davos sugere uma camaradagem admirável, com ambos os personagens oferecendo belos contrapontos a cada um, mas é tudo mais interessante quando Carice van Houten está em cena; ainda mais pelo antagonismo que ela acaba friccionando entre o trio. Com sua beleza hipnotizante, a atriz holandesa faz de Melisandre uma figura sinistra e nada confiável, com ações que parecem saídas diretamente de um filme de terror - vide o inesquecível momento em que Melisandre da a luz a uma criatura medonha, como arma para os inimigos de Stannis.

Os núcleos dos Reis restantes oferece sua parcela de momentos memoráveis, uns mais que os outros. Tudo o que acontece com Renly e o Jardim de Cima é esquecível, mas serve para apresentar personagens importantíssimos, como a maliciosa Margaery Tyrell (Natalie Dormer) e  a valente cavaleira Brienne de Tarth (Gwendoline Christie), enquanto o fio condutor de Balon raramente avança a trama, apenas servindo para provocar uma crucial mudança de comportamento e lealdade em Theon, e introduzindo sua irmã, Yara Grejoy (Gemma Whelan). Essa questão com Theon oferece uma das grandes reviravoltas da temporada, com o personagem traindo Robb e tentando tomar Winterfell para si próprio, o que resulta na fuga desesperada de Bran (Isaac Hempstead-Wright), Rickon (Art Parkinson) e Hodor (Kristian Nairn) da cidade, e um desfecho um tanto apressado para seu ataque - mas cujas consequências serviram para mudar o rumo dos Stark para sempre.

Fogo no Mar

Já quando o assunto é Joffrey Baratheon e Porto Real, temos um dos grandes ápices da segunda temporada. A fim de livrar a população do reinado altamente inapropriado e maléfico do Rei, Tyrion tenta usar de toda sua influência como Mão para moldar os eventos à sua vontade, agindo verdadeiramente para fornecer uma sociedade melhor e criar uma imagem benéfica para a Família Lannister. Claro, isso inclui travar uma pequena guerra contra sua irmã Cersei, onde temos momentos de grande brilhantismo em roteiro e direção, como a acalorada discussão em que Lena Headey se ajoelha para ficar no mesmo nível de seu irmão anão, rendendo também momentos inacreditáveis em termos de performance. Ver a figura diminuta de Peter Dinklage triunfando sobre todos  com o poder de sua lábia - a técnica para descobrir qual de seus servos é um traidor é genial - e diretamente atacando e ofendendo a figura mimada e perversa de Joffrey é de um verdadeiro deleite.

Mas nada realmente supera o grande acontecimento da temporada, que marca também a primeira grande batalha da série: a Baía de Blackwater. Dirigido por Neil Marshall, o 9º episódio da temporada (batizado justamente de Blackwater) finalmente culmina no avanço de Stannis sobre Porto Real, trazendo consigo um exército poderoso e uma frota marítima perigosa, o que deixa os Lannister buscando um contra-ataque à altura. Ambientado ao longo de apenas uma noite, e desviando todo o foco para o combate, temos aqui um grande exercício atmosférico e de ação, com Tyrion assumindo a primeira linha de combate e entregando um dos discursos motivacionais mais poderosos desde que Mel Gibson desbravou-se em Coração Valente.

As imagens escuras da noite são preenchidas com flechas de fogo que cortam o céu, assim como os excelentes efeitos visuais que criam a gigantesca explosão verde do Fogovivo e a frota de navios de Stannis, além da ótima condução no violento combate pelas ruas desertas da cidade. Porém, um dos fatores que acaba impactando ainda mais é quando encontramos Sansa, Cersei e outras civis escondidos do confronto, tal como a decisão extrema que a Rainha quase toma durante os segundos finais do episódio; que despede-se com estilo ao nos apresentar pela primeira vez à canção "The Rains of Castamere", um dos símbolos da Casa Lannister.

Das Terras do Gelo e da Neve

Quando afastados do núcleo da Guerra dos Cinco Reis, admito que nem tudo funciona.

Ver Arya Stark (Maisie Williams) tornando-se uma guerreira ainda mais letal é divertido, assim como os icônicos personagens com quem cruza pelo caminho (especialmente o enigmático Jaqen H'ghar), mas sua trama central, em fuga dos Lannisters, acaba fadada a repetições e uma ausência de grandes eventos. Isso sem falar no sonolento núcleo de Daenerys em Qarth, que só é beneficiado com um incidente incitante nos episódios finais - envolvendo o sequestro de seus dragões - e até lá, temos personagens bizarros e altamente caricaturais, como Xaro Xhoan Daxos (Nonso Anozie) e a grande maioria de seus habitantes. E mesmo que o clímax ali tenha um design de produção fabuloso e saiba brincar com a psique da personagem em uma cena onírica, é um tanto embaraçoso ver o "momento épico" de Dany e seus dragões feito de forma tão capenga. Felizmente, esses quesitos técnicos seriam melhorados nas temporadas seguintes.

Porém, as coisas são mais interessantes com Jon Snow. Beneficiado pelas magníficas locações de gelo na Islândia, a partir do momento em que Jon é enviado em uma expedição tortuosa para encontrar membros perdidos da Patrulha, a trama se engrossa de forma maravilhosa. E fica ainda melhor quando o Stark bastardo encontra a selvagem Ygritte (Rose Leslie), jogando-o num jogo de inimizade e um claro interesse amoroso que se desenrola de forma divertida, ao passo em que ele é incubido de infiltrar-se entre os Selvagens e descobrir mais sobre o Rei Além da Muralha. Mas, claro, o núcleo oferece o excelente clímax da temporada com a primeira revelação dos temíveis Caminhantes Brancos, criados em um misto impressionante de maquiagem e efeitos digitais, em uma cena simples, mas grandiosa, onde um exército de mortos vivos atravessa uma nevasca em direção à Muralha.

Mesmo que não tenha um arco tão satisfatório quanto sua incrível primeira temporada, Game of Thrones retorna em um ano forte e maduro, aumentando a complexidade de suas narrativas e aprofundando ainda mais seus excepcionais personagens. É também nessa temporada onde a série definitivamente alcançou um nível cinematográfico, que só continuaria a se expandir ao longo dos anos.

Game of Thrones - 2ª Temporada (Idem, EUA - 2012)

Criado por: David Benioff, D.B. Weiss
Direção: Alan Taylor, David Petraca, David Nutter, Alik Sakharov, Neil Marshall
Roteiro: David Benioff, D.B. Weiss, George R.R. Martin, Bryan Cogman, Vanessa Taylor
Elenco: Peter Dinklage, Emilia Clarke, Kit Harington, Sophie Turner, Nikolaj Coster-Waldau, Richard Madden, Maisie Williams, Charles Dance, Stephan Dillane, Carice van Houten, Lena Headey, Gwendoline Christie, Natalie Dormer, Michelle Fairley, Rose Leslie, Liam Cunningham, Alfie Allen, Isaac Hempstead-Wright
Emissora: HBO
Gênero: Ação, Fantasia, Drama
Duração: 60 min

https://www.youtube.com/watch?v=-FlwtEFmb-M

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Crítica | Game of Thrones - 3ª Temporada

Todos os conhecedores e admiradores da obra de George R.R. Martin estavam empolgadíssimos para isso. A terceira temporada de Game of Thrones adaptaria a primeira metade do terceiro livro da saga, A Tormenta das Espadas, e isso significa dar vida a alguns dos melhores momentos já concebidos por Martin, e também levar o seriado da HBO a cantos ainda mais obscuros e grandiosos. Com isso, em 2013 vimos David Benioff e D.B. Weiss entregarem uma temporada ainda melhor e mais impactante do que a anterior

A trama começa após a assustadora aparição dos White Walkers além da Muralha, com Sam Tarly (John Bradley) e alguns dos Patrulheiros da Noite mal sobrevivendo a um ataque de mortos vivos em plena nevasca. Enquanto isso, Jon Snow (Kit Harington) segue como infiltrado no grupo dos Selvagens, acompanhado pela bela Ygritte (Rose Leslie) enquanto ela o leva para conhecer o Rei Além da Muralha, Mance Rayder (Ciáran Hinds), que reúne um gigantesco exército formado por homens, mulheres, criaturas e gigantes para atacar a Muralha e recuperar seu direito sobre o Norte. E por falar nele, acompanhamos a fuga de Bran (Isaac Hempstead-Wright), Rickon (Art Parkinson), Hodor (Kristian Nairn) e Osha (Natalia Tena) pelas perigosas florestas da região, à medida em que Bran vai explorando sua recém-descoberta habilidade como warg e encontra os irmãos Jojen e Meera Reed (Thomas Brodie-Sangster Ellie Kendrick). Por fim, temos a campanha de Robb Stark (Richard Madden) para destronar Joffrey (Jack Gleeson) e conquistar o Trono de Ferro, algo que pode ser prejudicado por seu repentino casamento com a enfermeira Talisa (Oona Chaplin).

Já em Porto Real, a situação fica complexa com Tyrion (Peter Dinklage) perdendo cada vez mais sua influência, ainda mais após sua transição de Mão do Rei para Mestre da Moeda, fazendo com que ele e sua irmã Cersei (Lena Headey) disputem cada vez mais a atenção e admiração do pai, Tywin (Charles Dance), agora atuando como o novo Mão e dedicando todo o seu tempo ao governo e no preparo do casamento de Joffrey Baratheon; que unirá a casa Lannister com a dos Tyrell, na forma da bela Margaery (Natalie Dormer), que traz sua influente avó Olenna (Diana Rigg) como conselheira e mentora durante sua estadia, além de aproximar-se de Sansa Stark (Sophie Turner) a fim de descobrir a real natureza do jovem Rei.

E, claro, temos Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) enfim avançando com seus seguidores e dragões cada vez maiores para conseguir um exército, algo que ela encontra na forma dos Imaculados. Paralelamente a isso, Brienne de Tarth (Gwendoline Christie) segue com sua promessa à Catelyn Stark (Michelle Fairley) de levar o prisioneiro Jaime Lannister (Nikolaj Coster-Waldau) de volta para os Lannister a fim de negociar a libertação de Sansa (Sophie Turner) e a desaparecida Arya (Maisie Williams).

Trabalhando a partir de uma premissa cativante, Weiss e Benioff começam a desenvolver aqui uma das coisas mais difíceis que alguém envolvido em dramaturgia é capaz de fazer: mudar a percepção do público diante de certos personagens. No ano 3 da série, personagens que gostávamos tornam-se difíceis de defender, enquanto outros que começaram como seres absolutamente repugnantes vão ganhando um lugar especial em nossos corações.

O grande exemplo dessa guinada radical acontece com Jaime Lannister. Em um estado completamente deplorável se compararmos com sua postura nobre e sofisticada da primeira temporada, o cavaleiro surge aqui com o cabelo ensebado e a face barbuda sempre suja de terra ou lama; mas nenhuma dessas irregularidades mantém sua sagacidade apagada, visto que o personagem está constantemente provocando sua captora, Brienne. Quando Jaime brutalmente tem sua mão direita decepada por um grupo de mercenários, vemos a habilidade de George R.R. Martin em "matar seus personagens mas mantê-los vivos", já que essa mutilação retira de Jaime a sua maior força: o combate.

Perdido de sua maior habilidade, é como se Jaime renascesse a partir daí, e a performance de Waldau em demonstrar a profunda infelicidade e raiva do sujeito ao absorver tudo isso é fascinante. Jaime passa a tornar-se uma pessoa melhor, mais altruísta e leal depois de tudo isso, tal como vemos na incrível sequência do episódio The Bear and the Maiden Fair, onde - depois de ser salvo por mensageiros de seu pai - ele retorna para seus captores a fim de resgatar Brienne, jogada numa arena para combater um urso com nada mais do que uma espadinha de madeira. E confesso que ver essa ação tão nobre de um personagem outrora tão ríspido foi mais impressionante do que o fato de ver um urso de verdade sendo usado em uma cena tão perigosa.

Trono Manchado de Sangue

No outro viés, vemos como Robb Stark vai cada vez mais tomando decisões erradas. Um personagem que entrara numa guerra ousada por um motivo cego acaba cada vez mais cegado por suas próprias ambições pessoais, e também pelo romance apaixonado pela bela Talisa - é até compreensível, ainda mais considerando que no livro os personagens são muito, muito mais jovens. Todo esse comportamento praticamente prevê o trágico destino de Robb, algo que Martin oferece como uma cruel reação na obra original, e que Weiss e Benioff trazem com todo o peso necessário naquela que provavelmente é a cena mais lembrada pelos fãs das Crônicas de Fogo e Gelo: o Casamento Vermelho.

Mantendo a tradição de o nono episódio ser o mais marcante da temporada, The Rains of Castamere trouxe os últimos momentos de Robb Stark da forma mais trágica possível. Selando uma aliança com a casa de Walder Frey (David Bradley) através do casamento de um de seus tios maternos com uma das filhas do patriarca, o sujeito arma uma armadilha terrível ao formar uma aliança com os Lannisters, levando a uma massacre sangrento de todos os aliados de Stark na cerimônia. David Nutter retrata essa matança com uma atmosfera opressora e tons quentíssimos de cor, chocando pela violência ao trazer um soldado esfaqueando a barriga de Talisa ou pelo grito horrorizado de Michelle Farley ao ver a morte de seu filho diante de seus próprios olhos. Vale mencionar também como não tivemos nenhuma música ou som durante os créditos finais, sendo esse silêncio uma forma de exacerbar ainda mais o horror visto ali.

Por falar em horror, a terceira temporada de Game of Thrones traz mais um exemplar de imagens pesadas, mas dessa vez falhando miseravelmente. Em uma espécie de Jogos Mortais de Westeros, acompanhamos o traidor Theon Greyjoy (Alfie Allen) sendo mantido prisioneiro do cruel Ramsay Snow (Iwan Rheon), que lhe oferece algumas das piores e mais impiedosas torturas dos Sete Reinos, como punição por sua tentativa de dominar Westeros. Claramente, trata-se de um personagem que desprezamos em virtude de suas ações traiçoeiras na temporada anterior, mas acompanhar um núcleo inteiro dedicado apenas à tortura física e psicológica do personagem é um puro show de exibicionismo. É violência apenas para chocar, e temos até uma reviravolta inútil ;onde Theon tem a possibilidade de fuga, apenas para ser revelada como um "jogo dentro de um jogo" de Ramsay.

Prazeres Violentos

Voltando à Porto Real e ao melhor personagem da série, Tyrion Lannister, as coisas realmente não são tão fascinantes quanto o jogo político do sábio anão na segunda temporada, mas temos nossa parcela de momentos memoráveis. A começar pela antológica cena no qual temos uma reunião do conselho com Tywin, onde o jovem Lannister faz questão de arrastar de forma mais barulhenta possível uma cadeira para que possa sentar de frente para seu pai e sua irmã, Cersei - um perfeito exemplo de uma cena excepcionalmente bem dirigida, sendo movida pelo som e a montagem concentrada nas reações de todos presentes à mesa.

É também quando temos uma amostra mais poderosa e imponente do Tywin de Charles Dance, que rigidamente procura uma forma de colocar sua Casa em ordem, arranjando para que Cersei case-se com Loras Tyrell (Finn Jones) e Tyrion acabe herdando o casamento com Sansa que Joffrey deixara para trás; um ótimo momento que ainda termina com os dois irmãos à mesa sendo "castigados" por uma escultura do leão da família Lannister, quase como se os observasse em vergonha.

As coisas ficam piores para Tyrion (mas melhores para a carga dramática) quando ele é forçado a casar-se com Sansa, rendendo uma das melhores performances de Dinklage quando ele usa do álcool para suportar a festa de casamento. Embriagado, ele inconscientemente desafia Joffrey e testa sua paciência, assim como a de seu pai e irmã, e ainda toma a decisão correta ao não fazer nada com Sansa em sua noite de núpcias. Pois além do senso moral de Tyrion, ele também mantém um romance secreto com a prostituta Shae (Sibel Kekilli), o que rende alguns momentos belos e dolorosos para nosso querido Lannister.

E por falar em romances inusitados, vamos até Além da Muralha para voltar a acompanhar a perigosa missão de Jon Snow. Toda a dinâmica de antagonismo entre o bastardo Stark e a selvagem Ygritte vai sutilmente evoluindo para um dos mais sinceros e divertidos romances da série, pegando aquele velho arquétipo do soldado infiltrado que acaba encantando-se por uma integrante do povo que ele deveria destruir. Felizmente, tanto Martin quanto os showrunners conseguem fugir dos clichês, oferecendo a Snow um romance que jamais ilude a ele ou ao espectador com a ideia de um final feliz.

Ainda nesse núcleo de Jon infiltrado nos Selvagens, aprendemos mais sobre a figura fascinante de Mance Rayder, com Ciáran Hinds dando-lhe o retrato apropriado de um homem que acredita ser um profeta, unindo diferentes facções e povos selvagens sob sua liderança. Em uma jornada para invadir a Muralha e levar suas forças para os Sete Reinos, acompanhamos a longa caminhada dos exércitos de Mance pelas paisagens geladas e belíssimas da Islândia. Um dos grandes destaques fica para o episódio 6, The Climb, acertadamente entitulado em nome da escalada que Jon, Ygritte e os demais fazem por uma gigantesca parede de gelo, rendendo um beijo entre o casal que abraça toda a beleza e epicidade da velha Hollywood ao trazê-los sob a beira do penhasco em um plano abertíssimo com um belo nascer do sol ao fundo. É como dizem: o brega que é bom.

Dracarys!

Prejudicada pelo núcleo mais monótono da temporada anterior, finalmente vemos aqui Daenerys Targaryen realizando ações mais interessantes. Firmando-a novamente como uma das personagens mais fortes da série, temos aqui sequências memoráveis da Filha da Tormenta usando - literalmente - seu poder de fogo para alcançar seus objetivos, como na ótima cena em que ela negocia com o proprietário do exército dos Imaculados. A partir daí, os showrunners inserem mais núcleos com a jovem aprendendo a arte da negociação, dando-lhe figuras importantíssimas na forma da conselheira Missandei (Nathalie Emmanuel), do general Verme Cinzento (Jacob Anderson) e de seu potencial interesse romântico/sexual, Daario Naharis (o péssimo Ed Skrein, que felizmente seria substituído na temporada seguinte).

Mantém-se nessa mesma linha até o fim da temporada, o que oferece à Dany algumas habilidades como estrategista de guerra - especialmente durante a tomada de uma cidade com a ajuda do grupo Segundos Filhos -, ainda que não seja exatamente uma grande progressão narrativa. Porém, a conclusão de seu arco, e também da temporada, com a cena em que Daenerys liberta uma cidade de escravos e é ovacionada por todos eles em uma roda de braços esticados e gritos da palvra "Mhysa", é uma das mais belas e poderosas do seriado; sendo também um primor para o compositor Ramin Djawadi e sua linda trilha para o momento.

No geral, foi mais um ótimo ano para Game of Thrones. David Benioff e D.B. Weiss lideraram uma equipe de diretores e roteiristas excepcionais, lidando com maestria com algumas das maiores criações de George R. R. Martin, além de continuar mantendo a escala épica e cinematográfica para uma série de TV, e o mais importante: nos apresentando cada vez mais a diferentes facetas de seus maravilhosos personagens.

Game of Thrones - 3ª Temporada (Idem, EUA - 2013)

Criado por: David Benioff, D.B. Weiss
Direção: David Minahan, David Benioff, David Nutter, Alik Sakharov, Michelle McLaren, Alex Graves
Roteiro: David Benioff, D.B. Weiss, George R.R. Martin, Bryan Cogman, Vanessa Taylor
Elenco: Peter Dinklage, Emilia Clarke, Kit Harington, Sophie Turner, Nikolaj Coster-Waldau, Richard Madden, Maisie Williams, Charles Dance, Stephan Dillane, Carice van Houten, Lena Headey, Finn Jones, Gwendoline Christie, Natalie Dormer, Michelle Fairley, Rose Leslie, Nathalie Emmanuel, Liam Cunningham, Alfie Allen, Isaac Hempstead-Wright, Alfie Allen, Jacob Anderson, Iwan Rheon, Ciáran Hinds, Ed Skrein, Thomas Brodie-Sangster, Ellie Kendrick
Emissora: HBO
Gênero: Ação, Fantasia, Drama
Duração: 60 min

https://www.youtube.com/watch?v=wfSXhMzWoA4

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Pedro Pascal diz que Game of Thrones mudou sua vida

Crítica | Game of Thrones - 4ª Temporada

Se os fãs achavam que Game of Thrones havia dado tudo de si com o gancho horrendo e trágico do Casamento Vermelho na terceira temporada, eles não sabiam o que estava por vir com a quarta temporada; com exceção dos leitores dos livros, sorrindo de ponta a ponta pelo conhecimento do rumo dos eventos. Dada a complexidade e volume de A Tormenta das Espadas, o quarto ano da série adaptaria a segunda metade desse livro e, por virtude, D.B. Weiss e David Benioff acabariam deixando alguns dos arcos mais saborosos da obra de George R.R. Martin para esse ano.

E foi assim que nós tivemos a melhor temporada da série da HBO até agora, de longe.

A série começa com os Lannister aproveitando a esmagadora vitória contra os Stark durante o Casamento Vermelho, com Jamie Lannister (Nikolaj Coaster-Waldau) enfim retornando para sua família em Porto Real e lutando para recuperar sua habilidade como espadachim e Lorde Comandante da Guarda Real, ainda adaptando-se à sua mão dourada. Mesmo decepcionado com o estado de seu filho, Tywin Lannister (Charles Dance) segue mantendo a ordem e organizando os preparativos para o grandioso casamento real entre o Rei Joffrey (Jack Gleeson) e Margaery Tyrell (Natalie Dorner), enquanto Cersei (Lena Headey) resiste às ordens de seu pai e Tyrion (Peter Dinklage) segue com seu romance proibido com Shae (Sibel Kekilli) enquanto sofre cada vez mais pressão, dessa vez com as ameaças do recém-chegado Príncipe Oberyn Martell (Pedro Pascal), um jurado inimigo dos Lannister que planeja uma vingança.

Já Jon Snow (Kit Harington) mal sobrevive após abandonar os Selvagens e deixar uma furiosa Ygritte (Rose Leslie) para trás, tendo agora que lidar com a burocracia da Patrulha da Noite e tentar convencê-los do iminente ataque de Mance Rayder (Ciáran Hinds) e sua legião. Isso fica um pouco mais possível quando ele ganha o inesperado cargo de Senhor Comandante, o mais alto cargo dos Patrulheiros. Do outro lado, o arco de Arya Stark (Maisie Williams) fica mais interessante quando a jovem Stark é obrigada a viajar ao lado de Sandor Clegane, o Cão (Rory McCann), que fogem de saqueadores e caçadores de recompensa que estão atrás dos dois - e também Brienne de Tarth (Gwendoline Christie) e seu escudeiro Podrick Payne (Daniel Portman), enviada por Jaime para encontrar Arya e levá-la em segurança. Já o debilitado Bran (Isaac Hempstead-Wright) segue com Hodor (Kristian Nairn), Jojen (Thomas Brodie-Sangster) e Meera Reed (Ellie Kendrick) para encontrar respostas sobre sua nova habilidade como warg, buscando pelo mítico Corvo de Três Olhos.

Finalmente, longe de tudo e todos, temos o arco de Daenerys Targaryen (Emilia Clarke). Com uma massa gigantesca de escravos libertos e um exército poderoso de Imaculados, além do auxílio do grupo dos Segundos Filhos liderados por Daario Naharis (agora Michiel Huisman) e seus três dragões gigantescos, a jovem rainha agora avança para Meereen, uma das maiores cidades escravagistas de Essos, na intenção de libertá-la e continuar expandindo sua influência como grande conquistadora.

O Povo contra Tyrion Lannister

Que temporada mais fantástica. Você sabe que está diante de algo especial quando o episódio de abertura consegue atingir um nível excepcional, pois o retorno de GoT sempre foi considerado algo morno - especialmente nas duas temporadas seguintes. Porém, com uma direção requintada de D.B. Weiss e um roteiro primoroso do mesmo e David Benioff, Two Swords faz um trabalho memorável ao oferecer uma passagem de tempo discreta e que eficientemente nos apresenta a esta nova fase da série, começando com algo muito raro na série: uma cena pré-créditos, que aqui situa a posição avantajada dos Lannister ao trazer Tywin derretendo a imponente espada Ice de Ned Stark (Sean Bean) para dar origem a duas novas lâminas de aço valiriano; uma ação altamente simbólica e que perfeitamente situa o contexto do quarto ano.

Tal construção segue-se com perfeita maestria, e logo no segundo episódio, The Lion and the Rose, temos mais um grande choque que torna-se o mote da temporada: o assassinato do impiedoso Joffrey em seu casamento, envenenado misteriosamente pelo líquido em sua bebida. É um evento que surge como uma justiça poética para o espectador, que enfim sente-se vingado ao acompanhar o merecido fim de um dos piores e mais cruéis vilões da televisão americana, e todo o clima de mistério a lá Agatha Christie após sua morte é algo executado com maestria por Alex Graves, que seria responsável pela grande maioria dos episódios dessa temporada. E se na segunda temporada tínhamos uma cantoria heróica do The National para "The Rains of Castamere", este episódio inteligentemente traz uma versão melancólica e fúnebre da mesma canção, agora pelo grupo Sigur Rós - que também tem uma pequena participação na cena do casamento.

A partir daí, temos a definição concreta do arco de Porto Real na quarta temporada. Sansa Stark (Sophie Turner) foge da cidade com Mindinho (Aidan Gillen), revelado como o conspirador para o assassinato do rei, levando a jovem Stark a fim de protegê-la e evitar qualquer suspeita. Isso deixa Tyrion como o grande acusado pelo crime, sendo trancafiado nas masmorras por Cersei e obrigado a esperar por um longo processo que levará o restante da temporada inteira para resolver-se. Mas não enganem-se ao pensar que isso é um grande filler, já que o nível do trabalho de roteiro de todos os envolvidos é primoroso. A começar pelos ótimos diálogos entre Tyrion e Jaime, onde finalmente vemos o segundo abraçar ainda mais a persona nobre e admirável que vinha adquirindo na temporada anterior, rendendo momentos intimistas onde os dois comentam memórias da infância e estabelecem um forte elo, onde Jaime verdadeiramente preza pela vida de seu irmão.

A narrativa caminha então a um dos mais bem escritos e executados momentos da série, que toma grande parte do episódio The Laws of God and Men. Nele, Tyrion é julgado por suas acusações diante de praticamente todo o reino, enfrentando seu pai como réu e a rainha Cersei como principal acusadora, enquanto Jaime luta para selar um acordo nos bastidores a fim de poupar sua vida. Tudo dá errado quando Shae é chamada para testemunhar contra ele, e o texto de Bryan Cogman aqui é excepcional ao trazer toda a raiva que Tyrion vinha guardando diante das injustiças de toda a sua vida e finalmente explodi-las ali mesmo, gritando como "não matou Joffrey, mas como adoraria o ter feito". Talvez seja o ápice absoluto do impecável trabalho de Peter Dinklage em toda série, que merecia ter levado todos os Emmys só por essa cena incrível, onde o anão mé capaz de manter uma cordialidade inacreditável mesmo quando - literalmente - manda todos à merda e exige um julgamento por combate, na maior forma de desafio à seu pai.

E antes de continuarmos a análise dos eventos em Porto Real, é preciso uma pausa para falarmos de Oberyn Martell. Um dos personagens coadjuvantes mais adorados e populares da série, Pedro Pascal oferece ao Víbora Vermelha um aspecto exótico e sensual que acaba tornando todas as suas cenas um atrativo à parte, começando por sua bárbara introdução quando conhecemos seu lado psicopata ao ameaçar dois soldados Lannister em um bordel. Logo depois descobrimos o passado e a motivação de seu personagem, na cidade para vingar a morte de sua irmã pelas mãos dos Lannister, em um diálogo ameaçador e que nos apresenta a um discreto e memorável tema musical de Ramin Djawadi, que brinca com cordas orientais e guitarras para criar algo tão exótico e digno do personagem. Mas o Príncipe é essencial para o arco de Tyrion quando ele se oferece para ser seu representante no julgamento por combate, em uma bela cena onde novamente vemos uma poderosa nuance de Dinklage ao mal acreditar na proposta de Martell.

Isso nos leva à melhor cena da temporada e também um dos melhores momentos de ação de toda a série: a luta central que batiza The Mountain and the Viper, quando Martell enfrenta o bruto Montanha (o gigantesco Hafþór Júlíus Björnsson) no julgamento pela vida de Tyrion. É simplesmente uma aula de como se enquadrar e montar uma luta, com Alex Graves oscilando entre planos médios que nos deixam próximos do combate e planos aéreos que valorizam a riqueza do design de produção, que apresenta uma arena típica dos gladiadores romanos, e também pela diferença de coreografia dos dois lutadores; sendo o Montanha uma força colossal e desajeitada, enquanto Oberyn traz agilidade e movimento em seus diversos saltos e cambalhotas; exacerbados pela montagem precisa e intensa - mas graças aos planos fixos de Graves, a ação nunca torna-se incompreensível pelos cortes rápidos, mas sim mais intensa. E claro, nem precisamos nos lembrar do trágico desfecho da luta, que rende um dos momentos mais imperdoáveis e violentos da série, quando Oberyn é derrotado por seu próprio orgulho; em uma conclusão que definitivamente explodiu nossas cabeças.

A condenação de Tyrion acaba levando a temporada para um de seus eventos mais chocantes, como visto no season finale The Children - um excelente título, diga-se de passagem. Nele, Jaime quebra todas as regras e ajuda seu irmão a fugir de sua morte declarada, conspirando com Varys para libertá-lo das masmorras e guiá-lo para uma passagem secreta que o tirará de Porto Real. Porém, Tyrion acaba encontrando no caminho labiríntico das instalações o quarto de seu pai, onde Shae está em sua cama... Isso entristece o jovem Lannister, que violentamente sufoca sua ex-amante e acaba enfrentando Tywin em uma cena poderosa, onde o filho aponta um mortal arco e flecha para o pai, completamente desarmado enquanto está sentado na privada. Uma conclusão inebriante para um arco tão forte e intenso, que nos despede com Tyrion fugindo de Porto Real escondido em caixas de um navio.

Quem vigia os vigilantes?

Só por todos esses inacreditáveis eventos em Porto Real, a quarta temporada de Game of Thrones facilmente assumiria o posto de melhor ano da série até então. Porém, nossa alegria só aumenta ao perceber que esse mesmo cuidado e precisão também está presente nos outros arcos, que apresentam uma melhora considerável de suas ações anteriores.

A começar por Jon Snow, um personagem que cada vez mais ganha mais camadas, tanto de personalidade quanto de roupas, já que o posto de Comandante da Patrulha da Noite lhe garante ainda mais uma longa capa preta. A dinâmica de Jon tentando convencer os teimosos chefes militares da organização é interessante, ainda mais quando o jovem acaba obtendo uma posição de poder maior, estabelecendo um conflito forte com Alliser Thorne, um dos personagens que mais deu dor de cabeça para Snow durante a primeira temporada, e que servirá como um elemento decisivo para a temporada seguinte.

Quando a inevitável batalha entre os Patrulheiros e os Selvagens finalmente chega em The Watchers on the Wall, temos o retorno de Neil Marshall (que havia comandado o outro episódio inteiramente centrado em batalha, Blackwater) para registrar um dos maiores e mais espetaculares episódios da série até então. Com todos os 50 minutos voltados para o núcleo da Muralha, vemos a vasta legião de seguidores de Mance Rayder iniciar um ataque violento, trazendo até mesmo alguns gigantes para garantir a entrada no recinto - sendo a cena do túnel, onde um dos gigantes vai quebrando o portão de ferro enquanto três patrulheiros apavorados recitam o juramento à Patrulha da Noite um dos pontos altos de todo episódio. Marshall até consegue trazer um belo plano sequência que acompanha diferentes lutas e embates dentro do pátio da Muralha, que ganha um belo visual graças às cores azuladas da noite contrastadas com o amarelo das tochas e fontes de luz.

É aí também que atingimos um dos clímaces mais dramáticos para os personagens, quando o reencontro entre Jon e Ygritte dá-se em plena batalha. A jovem Selvagem é morta por um jovem patrulheiro, partindo o coração de Jon e rendendo um belíssimo plano onde ele segura seu corpo em meio a toda a violência e morte que contempla o fundo. A morte de Ygritte torna-se ainda mais impactante por, em um dos primeiros episódios da temporada, a jovem ter assassinado os pais desse garoto durante um ataque a uma vila, forçando-o a seguir sozinho e acabar juntando-se à Patrulha da Noite. É uma grande ironia e, de certa forma, uma justiça poética, do tipo que só George R.R. Martin é capaz de entregar dessa forma.

As Crianças

Outros arcos com menos tempo também foram capazes de entregar ótimos momentos. Quando voltamos à fuga de Sansa Stark, vemos que Mindinho planeja levá-la para sua tia Lysa Arryn (Kate Dickie) a fim de formar uma aliança e casar Sansa com o mimado Robin (Lino Facioli). É também quando aprendemos todas as reais intenções de Baelish, que está obcecado em conquistar o Trono de Ferro e também perigosamente atraído por Sansa. No episódio Mockingbird, temos uma reviravolta memorável quando o lorde assassina Lyra ao empurrá-la de um profundo poço para os céus, imediatamente nos remetendo ao duelo que salvou Tyrion durante a primeira temporada.

Já a durona Arya garante momentos divertidíssimos graças à sua ótima dinâmica com Clegane. Lidando com o fato de que o antigo Cão de Caça de Joffrey fora um de seus alvos em sua lista imaginária de morte, é uma inimizade crescente e que vai rendendo momentos onde os dois são forçados a trabalhar juntos para sobreviver, como na hilária sequência do frango no bar ou quando a dupla é atacada por canibais. É bom também ver o amadurecimento de Maisie Williams como atriz, que rende ainda o inesperado momento onde os dois chegam no Ninho da Águia para encontrar Lysa, que naquele ponto já havia sido assassinada. A reação de Arya? Uma explosão de risada. Uma gargalhada imensa de uma pessoa que parece não acreditar na quantidade de desgraça e má sorte que a vem seguindo por todos esses anos, e Williams merece aplausos por essa reação incrível e completamente fora do padrão.

Mas um dos grandes destaques desse arco é quando a linha narrativa de Arya e Clegane surpreendentemente cruza-se com a de Brienne e Pod em The Children. Temos aí um conflito de interesse e questões de confiança, já que Clegane tem certeza de que a cavaleira está ali para levá-la de volta aos Lannister onde será executada, sem saber a realidade de que Brienne planeja levá-la para segurança. A negociação acaba falhando e temos aí mais um exemplar de pancadaria incrível, com as forças brutas de Clegane e Brienne enfrentando-se em uma das brigas mais realistas e violentas da série, que rendem um duelo de espadas, orelhas sendo arrancadas na mordida e uma Gwendoline Christie absolutamente surtada quando inicia uma sucessão de socos e jabs para derrotar o Cão de Caça. Que luta, meus amigos.

Já o pequeno Bran e seus amigos seguem para a misteriosa jornada em direção ao Corvo de Três Olhos. Tudo culmina na sequência verdadeiramente apavorante do season finale, quando o grupo é atacado por criaturas conhecidas como Wights, parte do exército de mortos vivos do Caminhantes Brancos. Formados principalmente por esqueletos sinistros com fiapos de roupas e tripas ao redor de seus ossos, é uma cena que nos remete muito ao fantástico trabalho de stop motion do veterano Ray Harryhausen, e Alex Graves novamente é capaz de criar suspense e terror através de sua mise en scène criativa, além de nos trazer o nobre sacrifício de um dos personagens.

Destruidora de Correntes

Finalmente, chegamos ao arco cada vez mais próximo de Westeros de Daenerys Targaryen. Tendo libertado escravos e conquistado um valioso exército de Imaculados, a Rainha dos Dragões agora planeja um ataque à cidade de Meereen, onde visa libertar todos os escravos e assumir sua primeira posição de poder político. É o primeiro teste da jovem como uma líder, já que logo após sua conquista, o sistema econômico da cidade começa a decair fortemente, e diversos comerciantes e até escravos vão até a pirâmide da rainha para pedir o retorno da escravidão.

O roteiro explora diversas questões pertinentes onde o reinado de Daenerys é falho, especialmente no crescente descontrole de um de seus dragões, Drogon. Quando um destes inesperadamente queima os filhos de um fazendeiro, a personagem é posta diante de um imenso dilema, e é forçada a trancafiar seus queridos filhos em um calabouço. É um sacrifício, e vemos ali um dos melhores momentos de Emilia Clarke no papel, quando Daenerys luta para conter as lágrimas enquanto a gigantesca porta de pedra fecha-se sobre as criaturas digitais gritando.

Além disso, o círculo pessoal de Daenerys sofre mudanças interessantes. A relação com Daario Naharis torna-se mais íntima, com o mercenário tornando-se seu amante, para total desesperto e angústia de Jorah Mormont (Ian Glein), que nunca de fato teve sua paixão pela jovem rainha declarada, mas sempre foi evidente. E a situação não melhora para o nosso querido Cavaleiro da Friendzone, já que chega ao conhecimento de Daenerys um fato muito específico da primeira temporada, que o cavaleiro exilado tinha sido enviado em uma missão para espionar os primeiros passos de Targaryen e reportá-los para Robert Baratheon, uma função que ele abandonara a muito tempo. Mas não foi o bastante para Daenerys, que exila o cavaleiro, seu grande aliado desde o início. Definitivamente foi um ano de testes para Daenerys, mas conseguimos ver como essas ações crescem seu desenvolvimento e amadurecimento.

A quarta temporada de Game of Thrones é um grande deleite. Traz alguns dos melhores momentos de toda a série, sempre testando os limites de seus personagens e forçando-os a tomar decisões difíceis, ao mesmo tempo em que aumenta a escala do espetáculo e ajuda a tornar a produção da HBO um acontecimento lendário. A melhor temporada da série, e uma das melhores da História da Televisão.

Game of Thrones - 4ª Temporada (Idem, EUA - 2014)

Criado por: David Benioff, D.B. Weiss
Direção:  Alex Graves, D.B. Weiss, Alik Sakharov, Michelle MacLaren, Neil Marshall
Roteiro: David Benioff, D.B. Weiss, George R.R. Martin, Bryan Cogman, Vanessa Taylor
Elenco: Peter Dinklage, Emilia Clarke, Kit Harington, Sophie Turner, Nikolaj Coster-Waldau, Maisie Williams, Charles Dance, Stephan Dillane, Carice van Houten, Lena Headey, Finn Jones, Gwendoline Christie, Natalie Dormer, Rose Leslie, Nathalie Emmanuel, Kristofer Hivju, Pedro Pascal, Diana Rigg, Liam Cunningham, Alfie Allen, Isaac Hempstead-Wright, Kristian Nairn, Alfie Allen, Jacob Anderson, Iwan Rheon, Ciáran Hinds, Michiel Huisman, Thomas Brodie-Sangster, Ellie Kendrick, Daniel Portman, Kate Dickie, Lino Facioli,
Emissora: HBO
Gênero: Ação, Fantasia, Drama
Duração: 60 min

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Crítica | Incal, de Alejandro Jodorowsky

Como visto no documentário Duna de Jodorowsky, as ideias que teve o artista para adaptar a obra de Frank Herbert para as telonas era tão grande, que só pode chegar à realidade no papel, num gordo volume de storyboard, todo desenhado pelo seu parceiro, o quadrinista francês Moebius. Ideias grandiloquentes que circulam desde a época, influenciando toda uma geração em termos de cinema e design relacionado à ficção científica. Para o alívio de Jodorowsky, pelo menos, Duna acabou chegando às telonas no irregular longa de David Lynch. Impossibilitado de colocar seu sonho em película, voltou-se no início da década de 80 à possibilidade de reformular todo o trabalho feito em arte sequencial. Muito dessa primeira incursão é o que encontramos sintetizado em Incal.

Trata-se da segunda obra que Jodorowsky trabalha com Jean Giraud. A primeira havia sido a capsular narrativa Os Olhos do Gato. O tamanho não dava espaço para grandes ambições, e por isso mesmo é tão bem sucedida em seus limites. Agora, nessa primeira série – que depois desembocaria em outras continuações, a última sendo concluída em 2014 –, trabalha-se com um enredo mais completo. Ainda assim, de estrutura muito simples – muito menos complexo do que pinta o senso comum ao se deparar com uma iconografia distinta. Felizmente, a narrativa não é conduzida como uma exposição de símbolos, como é a A Montanha Sagrada (1973), ainda que eles apareçam em abundância pela história.

Incal conta a história de um detetive de quinta categoria, John Difool, que tromba com um ser morinbundo numa rede de esgotos e recebe dele o misterioso artefato que dá nome ao quadrinho. John entra, então, porque assim quis o destino, como procurado por uma grande quantidade de grupos que querem apossar-se do Incal. Ao tentar esconder o objeto no estômago de sua gaivota de estimação, vendo que Deepo começa a falar e profetizar, o protagonista começa a tomar consciência dos grandes mistérios encerrados na peça. Sozinho, porém, o desleixado herói não conseguirá escapar. Por isso, alia-se à uma série de personagens: o grande soldado Metabarão (cuja arvore genealógica seria traçada depois em A Casta dos Metabarões, com Jodorowsky e Juan Giménez), o andrógeno Solune, a rebelde Tanatah e seu assistente Matador, além da belíssima Animah.

Não fossem os quadros de Moebius, a obra não seria citada entre as mais influentes do gênero. Essa criatividade lúbrica do desenhista, que se alastra pelas páginas é, sem dúvidas, o que garante a boa mistura de um universo complexo, estranho e ainda muito familiar. Inclusive, em relação à outros universos de ficção científica, é em Incal que Moebius faz um trabalho bem palatável, com momentos de beleza estonteante mesmo quando há poucos detalhes. No caso, vale apreciar as cores originais da obra (da maneira como saiu, no Brasil, no volume único Incal Integral, e não nos três encadernados anteriores, com uma pasteurizada pintura digital). É um momento distinto, em que as cores revelam outra exuberância da arte de Moebius, até mais cartunesca, diferente do seu detalhismo característico, em preto e branco.

Das hipérboles, hoje mais típicas, de uma sociedade futurista e distópica em que se misturam seres de toda a galáxia, Incal constrói sátiras predominantemente políticas, sobre a organização social, as autoridades e cultos. O contraponto, a iluminação, é obtida através da transcendência proporcionada pelo Incal aos protagonistas. Nessa mistura de um tom leve e outro mais místico reside o maior defeito do quadrinho, o de não saber construir curvas suaves entre eles. Nessas incômodas protuberâncias, o roteirista atesta sua dificuldade ainda de construir uma narrativa de todo coesa. Incal é muito importante, mas não é a obra mais madura dos seus autores.

Nos nomes, já se anunciam boa parte do conteúdo da história. John Difool mistura John Doe (o nosso Zé-Ninguém) com o Louco (o Fool, primeiro arcano maior do baralho de tarô), indicando um personagem em iniciação, próximo de cair no “abismo” da vida. Não por acaso, a narrativa começa acompanhando essa queda de John no Beco dos Suicidas, desencadeando uma série de mortes. É arremessado por soldados em busca do Incal, como parte de um interrogatório. Chega lá, porém, porque entrou em contato com o Incal após escoltar, por uma boa quantia em dinheiro, uma aristocrata por uma zona de puro bacanal.

Partindo disso, seguimos uma narrativa essencialmente linear em que John é desafiado a traçar um novo caminho para sua vida. Porém, como é de sua natureza medíocre como detetive “classe R”, recusa novas perspectivas até o fim, mesmo após tantas experiências místicas.

No final, diferente de seus colegas, que sacrificam-se pelo destino imposto pelo Incal (In Call, o “chamado interior”), John sobrevive como indivíduo, “testemunha eterna”, “a gota que nunca se funde no oceano” – como o chama o Jovem Tempo, em direta referência à star child (além-do-homem) de 2001 - Uma Odisseia no Espaço. Difool segue, então, seu destino mítico como um “tolo”, num eterno e cíclico início. Recusa se fundir ao mundo, atitude contrária à de Motoko ao final de Ghost in the Shell. Assim, Incal encontra um encerramento adequado, que casa bem com o tom menos filosófico e mais lúdico.


Review | Spider-Man 2: The Game

Todo lançamento de um filme do Homem-Aranha sempre foi acompanhado de um game licenciado. Provavelmente por esse caráter puramente mercadológico, a maioria dos produtos entregues pela Activision não foram da maior qualidade, visto que sua intenção estava mais voltada para acompanhar a estreia de seu respectivo filme, e não mergulhar em um experimento artístico e criativo como outras franquias de game mais inovadoras. Porém, se Homem-Aranha 2 acabou tornando-se o melhor filme do personagem em 2004, os deuses atenderam os pedidos dos fãs, e Spider-Man 2: The Game, seguiu à risca o sucesso do longa e acabou entregando o melhor game do Cabeça-de-Teia já feito, além de um dos melhores exemplares na categoria de super-heróis.

O jogo de 2004 segue os mesmos eventos e linha narrativa do filme de Sam Raimi, com Peter Parker (dublado por Tobey Maguire, veja só), lidando com as dificuldades da vida como Homem-Aranha e buscando uma forma de balancear sua vida dupla, ao mesmo tempo em que novos vilões, especialmente o Doutor Octopus (Alfred Molina, reprisando seu papel) aparecem para infernizar sua rotina e colocar suas responsabilidades em xeque. Claro, toda a trama do filme ganha mais recheio e subtramas para tornar o game mais longo, trazendo personagens como a Gata Negra, Rino, Mysterio e o Shocker à mistura de antagonistas.

Que maravilha é este jogo. Mesmo que já tivessemos tido algumas adaptações competentes e divertidas com o personagem, mais notavelmente nos dois exemplares para Playstation 1 e Nintendo 64 no início dos anos 2000, foi só com Spider-Man 2 que tivemos a real noção do que é ser o Homem-Aranha. Muito disso está ligado ao fato de termos, pela primeira vez, um mundo aberto sandbox para controlar o herói, oferecendo ao jogador um mapa extenso e bem interativo de uma Nova York reduzida, mas cheia de surpresas - com a possibilidade de cruzar até a Ilha da Liberdade e escalar a estátua da Lady Liberty um dos pontos altos. Os imponentes arranha céus de Manhattan também garantem uma experiência memorável, com um real senso de vertigem ao escalar a estrutura gigantesca do Empire State Building e dar verdadeiros "mergulhos" pela cidade.

Aliás, em termos de mecânica, tivemos a mudança mais relevante de toda a história dos games do Aranha: o sistema de swinging. Sempre tivemos aquela jogabilidade estranha onde o herói soltava suas teias para cima, literalmente no céu, para poder se balançar, gerando um movimento contínuo e praticamente artificial. Aqui, os desenvolvedores apostam em algo mais realista e dependente da física do ambiente, com o Aranha disparando suas teias em prédios e objetos para poder se movimentar, e os analógicos e gatilhos do controle são decisivos para direcionar e ajustar a intensidade do swinging do herói; garantindo assim uma experiência muito mais imersiva e que realmente passa a impressão de estar se balançando pelos prédios de Nova York. É simplesmente incrível, e o efeito continua orgânico até hoje, mesmo 13 anos depois de seu lançamento - e é bom ver como a mecânica foi evoluída em games como The Amazing Spider-Man 2, que ousou ao colocar cada lado do controle como um braço do personagem.

Em termos gráficos, é evidente que o jogo tenha envelhecido bem mal. Todos os personagens são quadrados e sem expressões faciais alternantes, o que é uma pena considerando que Maguire, Molina e Kirsten Dunst reprisam seus papéis dos filmes aqui, e também é curioso que o gráfico tenha sofrido uma considerável piorada após o resultado do game do primeiro filme. Só melhora em algumas cutscenes selecionadas, que recriam cenas como o experimento de Octopus, a introdução de Mysterio ou o grande clímax da narrativa. A textura e chapa da cidade também ganha um pouco mais de vida, sendo realmente bonito observar o skyline de Nova York durante a noite, e as cores acompanham as mudanças de forma eficiente.
Mas confesso que esse gráfico fraco não interfere na jogatina. A mecânica excepcional contribui para que todas as missões oferecidas pelo jogo tornem-se divertidas e absolutamente viciantes. O sistema de combate traz o agora famoso estilo de "refletir e revidar", sendo possível também usar o sentido aranha do protagonista para deixar o tempo mais devagar e calcular melhor os golpes, algo que viria a ser exacerbado à perfeição pela franquia Batman Arkham. 

 

Quando temos duelos com vilões como Rino e Dock Ock, essa tática é elaborada com o jogador tendo que usar a força dos inimigos como vantagem, seja prendendo os tentáculos de Octopus com a teia ou desviando das chifradas poderosas do Rinoceronte para estonteá-lo. Shocker também ganha esse tipo de abordagem, mas com algumas interações mais criativas do ambiente para tornar as lutas mais dinâmicas e desafiadoras, especialmente por suas habilidades de choque. Porém, é mesmo com o ilusionista Mysterio que os realizadores abusam mais da criatividade, oferecendo níveis que parecem ter inspirado Christopher Nolan a desenvolver seu A Origem, onde temos o herói protagonizando lutas em cenários giratórios com inimigos que variam entre palhaços armados, drones alienígenas e até doppelgangers deformados de si mesmo; em uma verdadeira viagem psicodélica pelos truques do vilão. Temos uma casa de circo, um teatro em chamas e até um memorável desafio pela Estátua da Liberdade, e todas essas missões só aumentam a vontade de ver o personagem ganhando as telas do cinema.

As missões paralelas também são primorosas. Quase como na franquia Grand Thef Auto, o jogador tem a possibilidade de completar diversas quests, desafios e outras ativididades em paralelo à narrativa principal, sendo necessário atingir uma certa quantidade de pontos para continuar progredindo a narrativa. Diversos crimes vão aparecendo no mapa, sempre com pedestres aleatórios ajudando o Aranha a encontrar problemas como assaltos, roubos de carros armados, incêndios e até mesmo barcos afundando no rio - sem falar no balão de uma criança que sempre acaba se perdendo entre os prédios. Mas nada supera a side mission mais impagável do game: atuar como entregador de pizza! Seguindo a ideia do segundo filme, temos desafios onde corremos contra o tempo para entregar pizzas em diferentes pontos da cidade, requerindo também cuidado para não estragar a comida durante as cambalhotas e balançadas pela cidade. Ah, velhos tempos...

 

No quesito história, o jogo segue bem todos os pontos do roteiro de Alvin Sargent, ainda que apresse e resuma diversos eventos a fim de garantir um ritmo mais intenso - a transformação de Dock Ock carece de todo o desenvolvimento e humanismo de sua versão cinematográfica, mas é compreensível por estarmos o game todo do ponto de vista do Aranha. Porém, graças à inclusão da Gata Negra, o jogo nos leva a alguns insights muito interessantes da mitologia do Aranha, trazendo a adorável dinâmica entre os dois vigilantes de forma enigmática e instigante, e o fato de termos diversas narrações em off de Parker onde ele simplesmente fala sozinho e reflete sobre os acontecimentos ajudam a colocar o jogador ao seu lado - sendo um plus o fato de termos Maguire como a voz original. Em determinada fase do game, estamos apenas nos balançando pelos prédios e seguindo a Gata Negra, sendo acompanhados pelos pensamentos de Peter acerca de Mary Jane, Harry Osborn e sua própria dúvida quanto a ser ou não o Homem-Aranha. Nada como uma exposição bem escrita e bem colocada para matar horas de silêncio durante o gameplay.

Não há dúvidas: este é o melhor jogo do Homem-Aranha já feito até hoje. Revolucionário em sua mecânica imersiva, o game da Activision deu uma liberdade imensa e uma experiência completamente imersiva aos jogadores, que puderam ter um gostinho de como é ser o Homem-Aranha e se balançar pelos prédios de Nova York. Ainda que imperfeito e um tanto datado, é uma conquista valiosa.

Spider-Man 2: The Game (EUA – 2004)
Desenvolvedora: 
Activision, TreyarchThe Fizz FactorVicarious Visions, Aspyr Media, Backbone EntertainmentDriver-Inter, Ltd.

Gênero: Aventura
Plataformas: Playstation 2, Nintendo Gamecube, GameBoy Advance, PC


Crítica | Mob Psycho 100

Crítica | Mob Psycho 100

(Esse texto contém spoilers)

Em um mundo em que existem seres sobrenaturais “há aqueles que lutam todos os dias para conceber esperança em meio à escuridão caótica”. No universo de Mob Psycho 100 existem os “paranormais”. Nos primeiros segundos da série, somos inseridos numa luta grandiosa, de um ser humanoide como se absorvido pelas trevas batalhando contra uma vasta fauna de monstros enormes. Esse prólogo deslocado é seguido da apresentação de Reigen Arataka, um pretenso paranormal, um charlatão de primeira, mestre do nosso protagonista, o jovem Shigeo Kageyama, apelidado de “Mob”. O garoto nasceu com grandes poderes psíquicos, que vão desde levitar objetos, dobrar colheres, exorcizar espíritos, até poderes que lhe garantem força e grande capacidade destrutiva. Demonstra estar sempre calmo, suas emoções parecem sempre atenuadas, mas não é frio. Reigen é um humano médio, e, mesmo jovem, mostra saber muito da vida – pelo menos aquela do mundo que acompanha.

Em Mob Psycho 100, seu autor, One – o mesmo de One-Punch Man –, monta um sistema de quebras de expectativa que ultrapassa o mero chiste do seu trabalho anterior. No caso, a jornada do herói apresenta uma alteração na sua estrutura. Não é o caso de um protagonista que se depara com um mentor que vai aos poucos lhe despertar o seu melhor, os seus grandes poderes para derrotar o inimigo. Pelo menos, não na maneira como histórias aventurescas comuns costumam fazer. Shigeo tem um poder imenso, inato, vemos ao longo dos episódios que o drama que ronda as batalhas é absolutamente protocolar. Ele vence seus inimigos com facilidade chegando em seu potencial máximo dos seus poderes psíquicos. Mas, na sua vida de jovem, estudante apaixonado, seus super-poderes não valem nada. Há um vão enorme entre psíquico e psicológico, embora a raiz seja a mesma.

Mob recorre a Reigen acertadamente. Ele é perfeitamente o mestre que o menino precisa, alguém que seja capaz de jogar com a realidade. Caberia aqui a polissemia do verbo to play em inglês. São raros os momentos em que o charlatão se depara com situações que não possam ser resolvidas com as suas habilidades sociais. Até mesmo no frenesi dos últimos episódios, tudo é resolvido com simplicidade, com mera persuasão. E quando há elementos sobrenaturais, isso acontece sem escândalo, sem artifícios. Com os pés fixos no mundo real, trajando seu terno, Reigen materializa seu ceticismo. Esta incredulidade porém, não chega com traços de pura enganação, afinal, seus clientes saem satisfeitos. Reigen, em sua maturidade, com suas ações simples e concretas (o diálogo, as massagens, os retoques no Photoshop) faz exorcismos nada espirituais. Esse é objetivo de Mob.

O garoto da “mob” (multidão, em inglês) aceita seu apelido com gosto porque é consciente de que ele não é nenhum “escolhido”, desejando cada vez mais ser um garoto normal e inteligente como seu irmão mais novo, Ritsu. O caçula, por sua vez, cresceu com grandes frustrações por não possuir os poderes dos irmãos, o que deságua em um dos micro-dramas paralelos da série. É o mesmo tormento dos pequenos poderes que sobem à cabeça do representante da escola (que arma provas falsas contra estudantes dos quais ele não gosta) e como de todo membro da Garra, organização que pretende dominar o mundo. Esse evidente deslocamento social reflete-se desde os mais jovens, até os velhos, com destaque para o líder da 7ª Divisão.

Ele é, em todos os aspectos, um símbolo do complexo de inferioridade: não aceita sua identidade de idoso com seu traje preto, a máscara e a modulação de voz, além de ser nanico, desdentado e infantil – tem algo do desamparo da crianças idosas de Akira. Não consegue simplesmente aceitar que mostrar-se superior através de sua máscara não altera seu caráter imaturo. É o mesmo complexo que afeta os outros palhaços sociopatas da organização maléfica e que acabam derrotados pelos heróis.

Talvez a grande dificuldade de Mob Psycho 100 seja desenvolver sua trama episodicamente, de maneira que não termine como um amontoado de retalhos. Tanto os pequenos como os grandes núcleos da série ganham um fecho digno, mas alguns aspectos se tornam acessórios, ou meros reforços, em de um objetivo maior, muito claro nos últimos episódios da série.

Felizmente, o trabalho do estúdio Bones, responsável, entre outros, por animes como Fullmetal Alchemist: Brotherhood e Soul Eater, em termos visuais é soberbo. É uma mescla muito interessante do estilo menos caprichado do mangá de One (já mais trabalhado que em One-Punch Man) com um estilo mais padronizado. Mistura-se a animação rotineira com artes feitas a dedo – como o encerramento –, demonstrando seu excelente apuro visual.

Que venha a segunda temporada, ainda mais caprichada que esta, aproximando grandes temas como poder, identidade e controle de outras perspectivas. Shigeo ainda tem muito a aprender, assim como todos nós.


Crítica | Better Call Saul - 3ª Temporada

Crítica | Better Call Saul - 3ª Temporada

Vince Gilligan e sua rede diretores sempre tiveram uma olha ávido sobre as relações humanos, assim como sobre o ser humano em si. Essa criticidade é fundamental para a qualidade da série Better Call Saul. A explicação é óbvia, a série se equilibra sobre as atuações e o desenvolvimento dos personagens que impulsiona o desenvolvimento narrativo. Veja bem, o interessante de Breaking Bad era como Walter era uma pessoa comum, com seus problemas comuns, mas que devido a um pico de desesperança, se segurava na ideia do tráfico. Saul Goodman não é muito diferente e essa narrativa centralizada nos personagens é o que as duas séries tem de melhor.

A terceira temporada não foge disso. Na verdade, utiliza isso como maior qualidade de seus desenvolvimentos. Se ela não começa bem, morna e até fazendo seu protagonista como um mera coadjuvante visto que Mike roubava as cenas dos primeiros episódio, consegue em sua metade virar a narrativa sem depender da presença de um ou outro personagem mas conseguindo até manter narrativas paralelas de todos os personagens a partir da metade da temporada.

O maior destaque ainda consiste na fotografia. Já estamos acostumados aos belos planos que a série impõe, mas também ao utilizá-los como impulsor da narrativo. Lembra, por exemplo, no primeiro episódio da temporada, quando, sem diálogo nenhum, temos a sequência do desmonte do carro de Mike a procura de algum objeto que pudesse lhe causar problemas. Ao mesmo tempo, no último episódio, a fotografia continua a narrar história visualmente quando vemos o desalento de Chuck perante sua doença e sua consequência inevitável. Para além de elemento narrativo, mas, como bem visto no episódio Slip o enquadramento de Jimmy próximo a cena final, demonstra sua agradabilidade e felicidade ao momento.

Não apenas a fotografia, mas a montagem também merece reconhecimento. Desde Mabel, com a sequência de Mike no desmonte do carro, até também o último episódio na (ou no desmonte, talvez?) destruição da casa, como forma narrativa e em um estilo de uma montagem mais ágil. Equilibra muito bem o ritmo em todos os episódios, alternando bem as narrativas particulares de cada episódio. É majestoso quando temos várias linhas narrativas e a série consegue nos prender em todas sem desbalancear o episódio. Isso é um feito qualitativo da montagem.

O elenco é outro ponto alto da temporada. Tivemos a graça de mais um grande ator retornar, Giancarlo Esposito faz um Gus ainda no começo, resistindo a força impiedosa de Hector Salamanca, ao mesmo tempo, guiado pela racionalidade característica do personagem. Mark Margolis não fica atrás, mais impulsivo em seu personagem, ao mesmo tempo, com uma característica mais intimista.

Jonhatan Banks ainda se mantém com uma atuação exemplar de Mike. Forma um personagem que poderia cair em uma caricatura mal feita de um protagonista de filme de espionagem dos anos 80 cult, mas consegue ir além, consegue dar humanidade ao personagem, sem descaracterizar sua postura. Michael Mando fecha esse núcleo, sendo o que mais cresceu na série. Começa discreto, mas ao longo da temporada seu personagem vai tomando atitudes ao pô-lo em um patamar importante. O ator consegue dar protagonismo a seu personagem na reta final sem precisar de muito tempo em tela. Claro que a direção o favorecia muito, visto principalmente no episódio Slip, onde Nacho executa o plano para matar Hector.

Do outro lado da história, temos um quarteto muito bem entrosados. Chuck e Howard, interpretados por Michael McKean e Patrick Fabian respectivamente conseguem dar o tom à antítese de Jimmy e Kim, Bob Odenkirk e Rhea Seehorn respectivamente. A primeira dupla, pesam com o lado racional, Patrick faz de seu personagem quase um robô, o interpreta como um humano livre de sentimentos, com sua postura sem correta e suas frases sempre bem esquematizadas. O tom de voz que o ator faz é o que caracteriza e simboliza esse personagem.

Como sempre impressionante, Michael McKean mantém a arrogância, com suas caretas e sua postura sempre ereta, porém aliada às esperanças e um tom autocrítico no miolo da temporada. Bob Odenkirk equilibra bem entre Jimmy, na primeira metade da temporada e como Saul, aparecendo na segunda metade. Por fim, o maior crescimento dessa temporada foi em Kim, já que particularmente nunca fui entusiasta de Rhea Seehorn, aqui ela balanceia os sentimentos de culpa após o episódio Chicanery com a característica mútua dos advogados, a racionalidade quase perfeita. O combate de sua consciência devido à racionalidade e de não conseguir medir se foi certo ou errado sua atitude. Como em toda a série, esse combate causa coonsequências que vão além do cansaço mental, mas como vimos em Fall, há a consequência física que foi um conclusivo limiar para seu combate.

Dentre os episódios mais interessantes da série, pode-se destacar dois. O primeiro é Chicanery, com uma narrativa de tribunal, apresenta a execução do plano de Jimmy para a derrubada do irmão. Tem sua importância por justamente impactar três personagens a partir dali, Chuck, que se vê atordoado por uma ilusão que ele reciclou durante a vida; Kim, por não saber se o grau de suas consequências e ao longo da série não se importar muito; e Jimmy, que agora perde sua licença de advogado e cria um alter ego chamado Saul Goodman, que dá nome a série. O segundo episódio é justamente o último, Lantern que dá conclusões às narrativas criadas na temporada e parece deixar uma última consequência rascante para os personagens.

A terceira temporada é superior às outras duas, mantém qualidade técnica mas possui uma narrativa mais interessante que permite todos os personagens e, assim também, seu elenco a um melhor desenvolvimento. Better Call Saul vai se tornando uma série tão interessante quanto sua genitora e, apesar de não ser melhor, vai deixando sua essência própria e sua excelência audiovisual.

Better Call Saul - 3ª Temporada (Idem, EUA – 2017)

Criado por: Vince Gilligan, Peter Gould
Direção: Peter Gould, Minkie Spiro, Thomas Schnauz, Adam Berstein, Vince Gilligan, Keith Gordon e Daniel Sackheim
Roteiro: Gennifer Hutchison, Gordon Smith, Ann Cherkis, Thomas Schnauz, Heather Marion e Jonhatan Glatzer
Elenco: Bob Odenkirk, Rhea Seehorn, Michael Mandon, Michael McKean, Giancarlo Esposito, Jonhatan Banks
Emissora: AMC
Episódios: 10

Gênero: Drama
Duração: 50 min

Confira AQUI nosso guia de episódios da temporada

Escrito por Filipe Gabriel


'1977: Enfield' é o melhor relato possível sobre o Poltergeist de Enfield

Algo que certamente faltava no catálogo sempre expansivo da editora Darkside, especializada em terror, ficção e fantasia, eram os relatos sobrenaturais bem escritos com riqueza de detalhes.

O indicativo de mudanças já era inferido com o lançamento de Amityville e Ed e Lorraine Warren: Demonologistas. Agora com a chegada do ótimo 1977: Enfield de Guy Lyon Playfair, é possível traçar com absoluta certeza que os relatos chegaram para ficar. E não é por menos.

Embalados pela franquia de sucesso da Warner, Invocação do Mal, e do resgate das figuras de Ed e Lorraine Warren investigando o sobrenatural, a aposta segura em explorar esses casos rendeu preciosidades na coleção de qualquer fanático por histórias sobrenaturais.

O que distingue a obra de Playfair das demais foi seu envolvimento direto durante quase todo o período que o poltergeist de Enfield assombrou a família Hodgson por praticamente um ano, todo santo dia. Ao contrário da maioria dos narradores de livros desse tipo, Playfair não demora nada para colocar as cartas na mesa.

O prefácio do livro já é extremamente honesto revelando para o leitor o que ele encontrará na totalidade do relato. Ele avisa que o caso nunca teve solução e que o fenômeno sumiu tão misteriosamente como surgiu na casinha inglesa em 1977.

Também é curioso notar como certa impaciência e cansaço transpõe a escrita do prefácio que foi feito para edições posteriores à da publicação original. Nitidamente é possível sentir como Playfair já está cansado de se sujeitar a todo tipo de questionamento pedante sobre o caso mesmo que haja mais de 30 testemunhas vivas sobre o acontecimento.

E assim como ele, já aviso que o texto aqui não se propõe a desmistificar Enfield ou algo do tipo. Isso também seria uma tarefa inglória, pois Playfair não me parece ser um charlatão em nenhum sentido, mas um autor sério de muito talento. Digo sobre o talento não por conta da fluidez da narrativa poderosa, mas como toda a construção do relato aparenta estar livre de furos – algo que raramente acontece na ficção.

O autor não se contradiz em nenhum momento. Na verdade, ele mesmo se comporta como advogado do diabo colocando o poltergeist em dúvida em diversos capítulos. Assim como muitos outros jornalistas que escreveram sobre o caso, Playfair não perde tempo para logo desvendar se toda a assombração era uma brincadeira das crianças Janet e Margaret. Ele separa com extrema lucidez o que acreditava ser a assombração e o que eram traquinagens.

Também é difícil não pesar a favor de seu relato pela riqueza dos detalhes do seu metódico modo de trabalho. O autor, junto de Maurice Grosse e da sra. Hodgson, coletou em registros diversos basicamente a maioria das ocorrências de fenômenos sobrenaturais na casa. São inúmeros eventos infernais trazidos com clareza para o leitor.

O jornalista até mesmo avisa que a obra pode ficar enfadonha por conta de tanta descrição e repetição de eventos. E, infelizmente, a leitura perde gás considerável nas últimas 30 páginas da obra. Mesmo que a organização dos fatos seja ótima e construa uma narrativa repleta de reviravoltas e novos acontecimentos intrigantes, a “solução” do caso é uma jornada bastante arrastada e sonolenta.

Porém, até chegarmos no declínio da obra, é impossível desgrudar os olhos da história que possui nuances maravilhosas de verdadeiro terror até lampejos humorísticos sobre os espíritos. Também é muitíssimo curioso notar como Playfair tem absoluta propriedade do que fala sobre fantasmas. Não são raras as ocasiões que ele discorre sobre outros casos que encontrou no Brasil em conjunto com outros médiuns. O nome de Chico Xavier é lido diversas vezes conferindo um quê mais interessante para o leitor brasileiro.

A edição da Darkside mantém o pedigree da editora: capa dura, letras serifadas, papel de gramagem superior acompanhados de letras miúdas. Mesmo assim com a fonte permanecendo pequena, a leitura é fácil e agradável. O projeto também incluir algumas das famosas fotos de Graham Morris, o primeiro fotógrafo a registrar em sequência uma atividade sobrenatural. Porém, infelizmente, são poucas imagens e a qualidade da impressão deixa bastante a desejar. O posicionamento da galeria também não é orgânico, mas esse padrão é seguido há tempos por diversas editoras.

Curiosamente, Playfair não chega a mencionar uma única vez a participação dos Warren no caso que fora mesmo bastante pífia – se permaneceram no local por mais de cinco dias, foi muito. Isso pode decepcionar os fãs dos demonologistas, mas deixa todo o caso de Enfield mais orgânico e real pela presença dos interlocutores desconhecidos e diversos outros personagens interessantes que surgem nas páginas.

Essa análise realmente não se propôs a ser um resumo da obra. É bastante óbvio que você vai encontrar o que o livro promete: relatos diversos sobre levitação de objetos, leves possessões, aparições parciais e totais, premonições, etc. Enfield é o pacote completo e, justamente por isso, ficar detalhando seu conteúdo além da conta não é justo com a obra que merece sim sua atenção. Assim como toda boa história de fantasma, a obra não vai te assustar no momento da leitura. Mas basta fechar os olhos para abraçar o sono durante a noite que os relatos de Playfair ganham vívidas e terríveis imagens na sua imaginação.

Esse é o terror que realmente vale.

Obs: ficou curioso? Recomendamos a compra do livro (com desconto exclusivo) aqui!

1977: Enfield (This House is Haunted: The Amazing Inside Story of the Enfield Poltergeist - 1980)

Autor: Guy Lyon Playfair
Editora: Darkside
Páginas: 270