Review | For Honor
O ano de 2016 foi agradável para a Ubisoft que conseguiu enterrar os fantasmas que a assombravam desde o lançamento do primeiro Watch Dogs. Seu line-up foi significativo e vendeu bem até mesmo jogos que ninguém apostava muita coisa como The Division. Para começar 2017 com o pé direito, finalmente chega para Xbox One, PS4 e PC o tão aguardado For Honor.
Como na maioria das novas IPs da desenvolvedora, o jogo vem de uma proposta genial. E se, em um território fictício, cavaleiros medievais, guerreiros vikings e tropas samurai fossem vizinhas e guerreassem por séculos a fio sem chance de trégua? Pois é exatamente isso que For Honor propõe aqui.
Pela Glória
Porém, nada disso é injustificado como provavelmente poderia ser feito para outros jogos com ênfase na experiência multiplayer como For Honor é. A estupenda CG inicial serve para estabelecer essa nova mitologia. As três facções entram em guerra por conta de um enorme terremoto que devasta o território, limitando recursos naturais como nascentes fluviais e terrenos para plantações e gado.
Com o desespero, fome e destruição trazidos pela tragédia, a guerra se inicia. Porém, como em todas as guerras, uma hora a matança deixa de ter sentido. Os objetivos se perdem em meio ao ódio e a psicopatia, a guerra perde fôlego. Todavia, a líder da Legião dos Pedras Negras, os cavaleiros medievais, Apollyon, conspira para acirrar ainda mais os ânimos entre as três facções a fim de revelar a verdadeira natureza assassina do homem.
A campanha single player mostra a origem de todo o efeito cascata provocado pelas ações de Apollyon. A história inteira é contada através de 18 fases distribuídas em três capítulos sendo seis fases para cada facção – Cavaleiros, Vikings e Samurais. A construção desse esquema favorece a narrativa, pois cada campanha é interligada pela outra que geralmente oferece o pontapé inicial para as narrativas dedicadas aos vikings e, por fim, aos samurais.
A história é bastante simples servindo apenas como um adendo de luxo para a experiência geral, já que não há mesmo uma narrativa envolvente com grandes personagens. Aqueles que mais aparecem, como Apollyon, se tornam redundantes rapidamente sempre com um discurso chatíssimo sobre “Lobos”, homens que são verdadeiros guerreiros, máquinas de matar ou algum outro sinônimo que tenha a ver com isso.
As boas qualidades dessa história estão restritas no modo óbvio que as campanhas se conectam: com cada facção invadindo o território inimigo criando um ciclo de morte e destruição. Nenhuma delas consegue impregnar uma identidade ferrenha única, apenas trazendo heróis novos e cenários diferentes com desenhos artísticos convenientes para cada reino.
Na primeira campanha focada nos cavaleiros, controlamos um campeão que se revela o personagem mais carismático de todo o jogo. Infelizmente, as cutscenes não colaboram muito, além de uma característica mandatória permear o game inteiro: os personagens principais nunca revelam o rosto. Isso certamente dificulta alguma empatia, porém o senso de justiça do cavaleiro se destaca entre o guerreiro viking saco de músculos e do orochi imperial meio perdido no campo de batalha.
Já nessa campanha, o esqueleto de todas as fases subsequentes é revelado com variações mínimas em sua estrutura. Somos jogados diretamente no campo de batalha com uma quantidade significativa de NPCs – além dos soldados comuns, os seus amigos de história são outros heróis disponíveis no PvP do jogo. Assim, seguimos a receita do bolo: mate alguns inimigos comuns e outros de classe baixa, siga adiante e cumpra algum objetivo como dominar uma área ou sabotar algum instrumento, enfrente inimigos de nível intermediário e mate um chefe ou subchefe de fase. Isso se estende por todas as campanhas.
Somente em algumas fases que há um objetivo variado como perseguir um viking fujão ou defender a integridade de um aríete. Ou no chefe do final de capítulo que oferecem estratégias e desafios distintos com grau de dificuldade acentuado. Aliás, é bom frisar isso, For Honor é um jogo de dificuldade moderada para difícil mesmo em opções de dificuldades mais baixas.
Pelo Sangue
Muito dessa dificuldade vem no domínio e curva de aprendizado da mecânica. Por isso, é uma ótima ideia jogar a campanha inteira para pegar os macetes do jogo antes de se aventurar no multiplayer. O miolo que fundamenta a base da mecânica é o combate viciante de For Honor que nada mais é do que um jogo de luta – sim, você não leu errado. Se não gosta de games de luta é melhor passar longe desse título, pois é improvável que ele mude sua opinião sobre o gênero.
O combate é balanceado e bem fundamentado entre os 12 heróis disponíveis para lutar nas partidas – somente três são liberados de início, é preciso pagar 500 moedas virtuais pelos outros. Por uma boa escolha de game design, durante o modo single player é possível usar mais heróis do que somente o principal da narrativa, já te acostumando com diferentes estilos de gameplay.
Porém, a base é sempre a mesma. O jogo clama para que fiquemos em guarda, com a defesa ativada. Nisso, podemos jogar o direcional direito para os lados ou para cima a fim de bloquear os golpes do oponente que também trabalha com esse mesmo modo para o ataque. Para atacar, é possível quebrar a defesa do oponente ou simplesmente mudar a direção do ataque entre os lados e para cima (sempre atacando o lado que o inimigo não está defendendo). Parece simples, mas não é. Essa mecânica é profunda e exigente para dominá-la, pois é possível organizar combos complexos com contra-ataques, bloqueios imediatos, usar o cenário para eliminar inimigos, misturar ataques fortes com fracos, etc.
Como essa é, basicamente, a alma e essência do jogo, as campanhas de For Honor podem cansar e te deixar decepcionado por conta da natureza de treinamento e narrativa fraca, porém, as visitas nos onze cenários disponíveis mantêm a curiosidade acesa. Além disso, também existem alguns coletáveis simples nas fases para construir novos emblemas ou adquirir mais vantagens para seu personagem no multiplayer.
Jogar o singleplayer é mandatório como já foi explicado diversas vezes, mas não somente pelo treino e pela chance de jogar com outros heróis, mas também de conhecer os mapas do jogo e os atributos espalhados por ele. A cada partida, o herói pode escolher duas de treze vantagens muito funcionais entre habilidades ativas e passivas de cura, defesa, dano, etc. A terceira vantagem fica espelhada no mapa e geralmente são mais poderosas do que as duas de assistência. Importante destacar que essa mecânica só é presente no modo singleplayer.
No multiplayer, cada herói tem 4 habilidades pré-definidas que são liberadas conforme matamos mais oponentes, agregando pontos. Ainda assim, existem as vantagens espalhadas no mapa que já são ativadas assim que adquiridas.
Por Valhalla
For Honor é um jogo consideravelmente equilibrado e justo. Mesmo utilizando heróis mais ágeis e menores como a Pacificadora, é perfeitamente possível enfrentar o samurai gigante Kensei (meu favorito) no campo de batalha. O modo mais equilibrado possível é o que revela o gênero do game: o Duelo.
O Duelo constitui no clássico 1vs1 distribuídos em 5 rounds. Ali, é perfeitamente possível aprimorar sua técnica contra outros jogadores ou com bots – estes, não lhe darão experiência para o herói selecionado. Lembrando que diferentes heróis terão progresso diferenciado – quanto maior o uso, maior será o seu nível no jogo.
Porém, as coisas mudam de aspecto em modos de 2vs2 ou de 4vs4. O modo Luta ou Brawl aborda a opção de luta entre duplas de jogadores que também já fazem diferença na mecânica. Ao ser encurralado por dois ou mais jogadores, a morte é certa. Mesmo que haja um instrumento para mudar a mira entre oponentes, a prática desse sistema muitas vezes é atrapalhada devido ao uso do analógico direito para bloquear e direcionar ataques.
No Eliminação, temos o 4vs4 no qual a morte do jogador é decisiva, sem possibilidade de respawn. O modo Conflito, um dos mais divertidos, é baseado no 4vs4, porém com a adição das legiões de cada lado. A facção que acumular 1000 pontos ganha o jogo podendo eliminar os oponentes em um duelo mortal. A presença dos NPCs nesse modo realmente faz a diferença, além dos mapas serem consideravelmente maiores para agregar toda a batalha.
O último modo é o carro-chefe do jogo: Dominação. Já considerado o favorito dos jogadores, o modo funciona com a dominação do terreno do campo de batalha. É um 4vs4 com a ajuda de bots controlando legiões de soldados mais fracos. O nome é autoexplicativo. Consiste em dominar pedaços do mapa repelindo as forças inimigas até o ponto de origem. Quem somar os 1000 pontos, vence.
São apenas esses cinco modos que constituem o multiplayer de For Honor. Como já explicado, o Duelo geralmente é o mais balanceado, pois, como bem sabe, a internet não tem honra e nem lei. Os jogadores atacam pelas costas ou formam duplas para te caçar, logo é bom manter uma unidade e proximidade com o time assim que a partida se inicia.
Além disso, a comunidade do mapa é orgânica. Todas as partidas vitoriosas beneficiam à facção que você se alia. As consequências de suas conquistas se refletem pela extensão do território dominado por seu time. Quanto maior for a dominação, maiores são as conquistas e benefícios. É um sistema inteligente que motiva o jogador a batalhar por sua facção diariamente – é possível jogar com cavaleiros e vikings mesmo se o seu time for samurai.
Brilho nos Olhos
De certo, a pouca quantidade de modos de jogo pode decepcionar alguns, mas tenha em mente o que foi dito, esse game é de luta. Os cinco modos conseguem atender bem a proposta do jogo, porém torço muito para que a Ubisoft adicione elementos mais originais e pertinentes a identidade de For Honor.
Uma das coisas que mais surpreendem são os gráficos que não foram diminuídos de forma alguma. For Honor é um game belo, com ótimas animações para heróis e outros personagens secundários, o trabalho da dublagem é feito com vontade – inclusive a brasileira. Mesmo com ótimos gráficos, o que mais chama a atenção é o cuidado estético da direção de arte do jogo. Entre os 11 cenários, temos diferentes estilos arquitetônicos entre as três facções: castelos medievais europeus, fascinantes vilas japonesas e algumas modestas aldeias vikings exibem esse bom trabalho de diferenciação e identidade. Tudo realmente recebe um cuidado artístico fascinante.
O mesmo cuidado se dá com os uniformes que, apesar de serem bastante estereotipados, conferem um ar absolutamente onipotente e poderoso para qualquer herói que escolher utilizar. Aliás, como parte do sistema de level up do jogo, a customização é uma característica para ser levada a sério. Com as recompensas recebidas pelas vitórias, podemos customizar as armaduras e armas dos personagens, alterando atributos que fazem diferença na hora do combate. É um esquema clássico de incentivo e recompensa para te prender ao jogo por muito tempo.
Mas no que a Ubisoft errou com For Honor? Bom, infelizmente, na conectividade do multiplayer que não possui servidores dedicados. É baseado no sistema P2P no qual um usuário funciona como servidor para todos os outros. Pode não estar relacionado, mas é difícil conectar com salas ou encontrar partidas. As coisas demoram bastante até mesmo na sala com “atividade muito alta”. Erros diversos de conectividade também assombram o game com uma frequência por vezes assustadora. Para jogar, é preciso manter a calma. O problema do matchmaking é tão evidente que diversas vezes, tive meu time e o do oponente completado por dois bots, algo grave para um jogo que não tem nem uma semana de vida.
Ocasionais bugs gráficos e de áudio também marcam presença – inimigos repetindo as mesmas falas eternamente. A trilha musical também decepciona bastante, porém o design de som consegue envolver com as gritarias de guerreiros, do barulho do aço batendo em aço ou nas armaduras dos oponentes – principalmente nas sanguinolentas finalizações. Se a Ubisoft consertar esse aberrante problema da conectividade, For Honor tem para ser bem-sucedido.
Pela Honra
For Honor não é um game para todos os jogadores. Apesar de ser menos punitivo que títulos como Nioh ou Dark Souls, é um jogo difícil para se adequar nas mecânicas que também exigem atenção com o uso de stamina/vigor dos heróis. Sua ênfase é mesmo no multiplayer que, apesar do modo Dominação, revela a verdadeira natureza de jogo de luta que ele se inspira. Logo, é restrito a um nicho.
Porém, mesmo assim, eu mesmo que nunca fui grande apreciador de jogos multiplayer e de games de luta, gostei muito da experiência proporcionada por For Honor. O jogo cumpre sua função primordial: é extremamente divertido e viciante. A sensação de progresso com cada herói é perceptível e o trabalho de balanceamento ajuda novos jogadores a enfrentarem outros que já possuem mais experiência. A dica é mesmo dominar os controles e compreender direito os perks de cada personagem.
Sobre a saúde do game, é possível ficar mais que tranquilo. Com base no belo trabalho que a desenvolvedora fez para manter Rainbow Six: Siege ativo por mais de um ano, sempre com novidades pertinentes, o mesmo deve ocorrer com For Honor que já possui um planejamento muito inteligente para o primeiro ano de vida com a adição de novos cenários e heróis a cada trimestre.
O modo singleplayer é uma bela preocupação que a Ubi teve com os jogadores. O treinamento que tive ao longo das seis horas de duração da campanha foi muito valioso para enfrentar outros jogadores. For Honor pode ser sim um game changer.
Em um mundo onde somente shooters e MOBAs dominam o mundo multiplayer, essa incrível empreitada sanguinária em terceira pessoa é uma adição que revigora a saúde criativa do gênero.
Pontos positivos: jogabilidade viciante, gráficos excelentes, direção artística afiada, aprendizado no modo singleplayer, lutar com vikings, samurais e cavaleiros é sensacional, espírito de games de luta, partidas divertidas, sistema inteligente para manter o jogo ativo, balanceado entre classes de heróis, cumpre sua proposta.
Pontos negativos: bugs ocasionais, problemas importantes de conectividade que prejudicam a experiência, fraca história na campanha singleplayer, música devia ser mais inspirada.
Essa análise foi possível graças a cópia gentilmente cedida pela Ubisoft ao nosso site.
For Honor (For Honor, Canadá – 2017)
Desenvolvedora: Ubisoft Montreal
Distribuidora: Ubisoft
Gênero: Luta, Multiplayer em 3ª pessoa, Medieval
Plataformas: Xbox One, PS4 e PC
Review | Dark Souls 3
Dark Souls 3 é o 5º jogo da franquia “Soulsborn”, da From Software e distribuído pela Namco Bandai, que engloba os jogos Demon Souls, Dark Souls 1 e 2, e Bloodborne. A história, como sempre, segue um Hollow (morto vivo) que tem o destino de se tornar o próximo Lord of Cinder, que traduzindo livremente é o Senhor das Cinzas, o rei do mundo praticamente. Com mais agilidade em seu gameplay e com os gráficos mais lindos da franquia, não vai ter descanso para os jogadores.
O Ciclo e a Narrativa
A história dos Dark Souls anteriores é a mesma que esse na superfície. A franquia se baseia na ideia de um ciclo interminável, onde um Senhor das Cinzas é ursurpado por um morto vivo, este se torna o novo rei, até o momento que um novo morto vivo apareça para tomar seu lugar, e assim por diante, até a eternidade. Nesse caminho, o “kingslayer” enfrenta diversos desafios e servos do atual rei, se tornando uma verdadeira máquina de matar.
A narrativa funciona mais como um pano de fundo, o jogador nem precisa se preocupar muito com ela, mas há a possibilidade de se aprofundar. O jogo não tem “cutscenes” de explicação, o jeito de descobrir a narrativa como um todo é conversar com os diversos NPCs do jogo, ler todos os avisos e todas as descrições de todos os itens. A From Software criou um lore magnífico para a série, aonde até mesmo a descrição de um anel pode contar uma grande história. Mas, a franquia Soulsborn consegue agradar gregos e troianos, pois se o jogador só quiser ir matando os chefes, sem se importar com a história, ele pode faze-lo sem maiores problemas.
Dark Souls traz uma grata opção, onde o jogador pode definir o final de sua jornada. A conclusão conta com 4 versões diferentes, e cada uma tem um grande impacto no mundo do jogo. Pode-se escolher tomar o lugar do Senhor das Cinzas ou renunciar ao ciclo, vai de cada um.
Além disso, temos as side quests. Muitos dos NPCs as fornecem para o jogador, que pode escolher faze-las ou não, mas vale a pena investir em cada uma delas. Algumas até podem modificar o final do jogo. Tudo isso e muito mais por volta de 60 horas de pura luta medieval.
A Beleza da Destruição
A família Soulsborn tem como ambiente lugares devastados, marcados pela guerra e por pragas, mas é ai que os gráficos brilham. O avanço da From Software pode ser notado em Bloadborn, mas como o jogo se passa a noite o tempo todo não foi possível para os desenvolvedores mostrarem do que são capazes.
Em Dark Souls 3 temos inúmeros cenários, uma mais bonita graficamente do que o outro. São catacumbas, castelos, florestas, vilas devastadas, entre outros.
Os itens, armas e armaduras são o que já se via anteriormente, mas com muito mais beleza. Mas o maior ponto vão para os inimigos. Novos monstros marcam presença, principalmente os chefões. A criatividade dos desenvolvedores sempre surpreende em cada novo jogo, e aqui temos belos e aterrorizantes inimigos.
O mapa é imenso e possui pouquíssimas telas de carregamento entre as localidades, e elas são bem rápidas. O bom é que tudo é interligado, um lugar está sempre perto do outro, por mais longe que eles pareçam, e ainda dá para se telestransportar entre os checkpoints, que são o único local onde você está 100% seguro. Lá você recupera sua vida e alguns de seus itens
A Raiva e o Prazer de Jogar Dark Souls
Inegavelmente, Dark Souls tem a fama de ser um dos jogos mais difíceis já feitos, e essa fama é a mais pura verdade. Porém Dark Souls 3 marca mais um ponto no declínio da dificuldade, que vem constante desde Demon Souls, mas não é e todo ruim. A cada novo Soulsborn, os jogos ficam um pouco mais acessíveis, com implementação de novas mecânicas, assim ampliando um pouco seu público.
O combate ficou muito mais ágil, sendo isso tirado de Bloadborn, jogo com o gameplay mais veloz da franquia. Temos também a inclusão de ataques especiais, que variam para cada arma, diferente de antes que o ataque era dividido em apenas forte e fraco. Com mais jeitos de jogar e se atacar você expande seu público.
Mas é claro que o jogo ainda continua difícil. Isso deve a uma nova mecânica dos chefões. Agora eles possuem duas ou mais “fases”, que mudam dependendo da quantidade de vida deles, cada fase possui padrões de ataques diferenciados, ou seja, quando você acha que já entendeu o movimento do inimigo, ele muda tudo e você tem que repensar sua estratégia.
A estratégia de combate, no geral, continua a mesma para quem já é velho de guerra na franquia. Suas principais armas são: o rolamento, a defesa e a paciência. O rolamento é sua esquiva, é o que mais se usa no jogo. Um escudo sempre é bem vindo, apesar de há jogadores que não usam. Mas o mais importante é manter a calma e não ser super confiante, pois esse é pior erro de quem vai jogar. Por exemplo: se você está quase matando um inimigo com o sistema “rola pro lado, seguido por dois ataques, rola pro lado, seguido por dois ataques...”, acrescentar um terceiro ataque pensando que “vai dar” pode ser fatal. Então o segredo é se manter na segurança.
Morrer em Dark Souls 3 é como morrer nos outros jogos, você perde toda a experiência/dinheiro, que são as almas, com a adição de ficar corrompido, o que pode dificultar certas ações no jogo.
O sistema de humanidade agora é feito com as “embers”, que quando consumidas dão humanidade ao personagem, além de um bônus de vida. Em forma humana você pode destravar ações novas, como poder jogar o multiplayer. Porém, se morrer, perde-se a humanidade e seus privilégios, e que já fique avisado, morrer é o que todos mais fazem nesse jogo, então se prepare.
Dark Souls 3 tem alguns dos chefões mais fáceis da franquia, como os Abyss Watchers, mas tembém tem uns dos mais difíceis de todos os tempos, como Pontiff Sulyvahn e Nameless King. Cada um com mecânicas únicas e extremamente divertidas e irritantes, tanto os fáceis quanto os difíceis. E não há nada mais prazeroso do que matar aquele chefe que te destruiu mais de 15 vezes. Digamos que esse é o jogo mais “balanceado” de todos os Soulsborn.
Dark Souls 3: O RPG Hardcore
Dark Souls 3 continua sem facilitar em seu sistema. Não se pode pausar o jogo para respirar, o que aumenta o desespero de quem joga. Não há mapa e não há nenhum indicador para onde seguir. A série Soulsborn não tem mapas vastos como The Witcher 3 ou Skyrim, mas ainda é possível se perder constantemente durante a jogatina, até o momento que você decora a região.
Como todo RPG têm diferentes classes para o personagem, DK 3 não é diferente. E a classe escolhida no começo do jogo não prende o jogador a seguir com ela até o final, dá para investir livremente o jogo. Por mais que ele aparenta ser um jogo bruto, aonde magos e ladrões não bem vindos é bem pelo contrário. Todas as classes têm coisas boas e ruins, mas as classes mágicas conseguem ter uma facilidade, por lançar feitiços de longo alcance.
O que torna Dark Souls 3 tão desafiador é a perda da experiência, que não foi usada, ao morrer, como já foi falado anteriormente. Evoluir de nível é a principal obrigação para se zerar qualquer RPG, e perder tudo que você conquistou depois de muita dor é frustrante. Porém não entenda errado, isso é algo muito positivo, pois causa o medo de morrer no jogo. A Amioria dos jogos hoje em dia, por mais que você morra, não há muitas consequências, mas Dark Souls não perdoa a morte, e é isso que torna o jogo único.
Tudo no jogo culmina para matar o jogador. Tem certos lugares que tem risco de cair, e a possibilidade de ser empurrado por um inimigo é gigante. Inimigos surgem da onde você menos espera, e se não reagir a tempo a morte é quase certa. Cada golpe de um chefe destrói a sua vida se não for defendido. Certos mapas possuem lugares para se pular de um lugar para o outro, e a mecânica de pulo não é fácil, principalmente durante uma luta.
Mas claro que nem tudo é um campo minado, e o modo online está ai para lhe ajudar. Ele funciona num sistema de visitação de mundos, por exemplo: o jogador deixa um selo no chão em qualquer lugar, podendo ser invocado por outro em seu mundo, assim ajudando ele a matar o próximo chefão. Porém tem como invadir outros jogadores, como inimigo, onde seu objetivo é matar o invadido, e vice versa. Essas invações podem acontecer a qualquer momente, desde que esteja em forma humana, e acredite quando eu falo, a maioria delas ocorrem nos piores momentos, menos em Boss Fights, pelo menos isso.
Conclusão
Dark Souls 3 é um excelente jogo, que deve ser jogado por todos. Seu gameplay está mais leve e mais fácil de pegar o ritmo e apesar de disso, ainda é um grande desafio para qualquer um, jogador hardcore ou não. Claro que nem tudo é perfeito, gliths e bugs acontecem frequentemente, tem momentos que ataques que não deveriam acertar acertam, mas tudo isso pode ser relevado. Mas fiquem avisados, em um jogo onde um pulo pode ser fatal, não se pode esperar moleza, mas a diversão é garantida, mesmo que acompanhada de frustração.
Texto escrito por Daniel Sodré
Dark Souls 3 (Japão, 2016)
Desenvolvedora: From Software, Bandai Namco
Gênero: RPG de ação, Fantasia, Medieval
Plataformas: PC, PS4, Xbox One
Review | Nioh
Desde os primeiros movimentos com um controle na mão, o videogame era conhecido por ser extremamente desafiador. Testando os reflexos dos jogadores nos arcades de Space Invaders e Pac-Man, alguns eram mais fáceis e amigáveis para aqueles que apenas queriam passar um tempo, enquanto outros eram notoriamente conhecidos pela sua dificuldade punitiva. Mas foi na era dos primeiros consoles de mesa que tivemos jogos como Battletoads e Mega Man do NES, que eram feitos milimetricamente para os jogadores que queriam testar os limites de seus reflexos.
De início, a dificuldade era muitas vezes inserida no jogo para que ele durasse mais tempo, assim o jogador sentia que o dinheiro tinha sido bem gasto e não percebia que o game consistia de 5 ou 6 telas. O tempo foi passando e as desenvolvedoras acabaram mudando de mentalidade e decidiram ir para o lado oposto. Para atrair mais e mais jogadores inexperientes era necessário dificuldades mais leves e níveis de aprendizado mais convidativos. E ainda existiam aqueles que lembravam de um período com jogos mais desafiadores, e por consequência, davam uma sensação maior de recompensa pelo esforço do jogador.
Muitos alegam que foi a franquia Souls da From Software que retornou com a dificuldade no mundo dos games, mas se esquecem de Ninja Gaiden (2004, originalmente exclusivo de Xbox), produzido por um estúdio da Tecmo (antes da fusão entre ela e a Koei), que ficou famoso por não só ressuscitar a franquia de Ryu Hayabusa, mas passar a sensação de dificuldade extrema da época punitiva do original de NES direto para os consoles modernos, além de um gameplay afiado e game design intuitivo. Tal time se tornaria o Team Ninja, e dali em diante teria a reputação de criar experiências desafiadoras para os que se intitulam “gamers hardcore”. Anos se passaram e a equipe que outrora estabeleceu um patamar de dificuldade retorna com um game em produção há mais de 10 anos: Nioh.
Mas será que ele faz jus ao passado da equipe? O que o Team Ninja trouxe para um gênero que já está tão bem estabelecido como o gênero de RPG de ação?
Um Estranho no Ninho (de Youkais)
A história narra a jornada de William Adams (baseado em uma figura histórica de mesmo nome), um bravo navegador inglês que se vê preso em uma torre em Londres logo após seu Espírito Guardião, chamada Saorise, ser capturada pelo sádico alquimista Edward Kelley, que deseja utilizar os poderes de detecção da fada para obter um mineral precioso chamado Amrita, criando assim um exército de youkais (os demônios da mitologia japonesa) e mortos-vivos. Após escapar da Torre onde estava aprisionado, William parte para o Japão em busca de sua companheira, levando-o a se envolver em uma guerra entre clãs e famílias pela unificação do país.
A trama é uma mistura interessante de figuras históricas reais com elementos fantásticos da mitologia japonesa. Personagens como Hattori Hanzo e Tokugawa Ieyasu, ambos aliados de William e importantes elementos para que seu objetivo seja alcançado, são adaptações de pessoas que realmente existiram. Quem está acostumado com o contexto político-histórico do Japão por jogos como Samurai Warriors e Dinasty Warriors estará em casa para entender os personagens.
Acaba sendo mais linear e com uma narrativa mais tradicional e convidativa do que jogos como Dark Souls e Bloodborne, onde o personagem principal era um mero avatar do jogador e a história é fragmentada e pouco explicada. Apesar do tom sério da situação e se basear em pessoas e momentos reais, a história não esquece de colocar momentos peculiares e até bem-humorados. Como os fofos Espíritos Guardiões mascotes de generais e líderes, pulando de lá pra cá na cabeça de seus mestres, sendo que William é o único que pode vê-los.
Infelizmente, o protagonista é um daqueles personagens que se saem melhor de boca fechada, já que além dos diálogos cafonas, a dublagem em inglês é preguiçosa e sem personalidade. Enquanto os outros personagens dialogam em japonês, os poucos personagens estrangeiros da história falam a língua inglesa. Essa mistura interessante só é interrompida quando se percebe a diferença na qualidade dos dubladores orientais e ocidentais. Apesar dos problemas, tudo isso é amarrado em uma excelente adaptação em português das legendas.
Tirando as vozes e os diálogos um tanto caricatos, o game sabe muito bem que a história não é a motivação maior para o jogador, já que há curtas cutscenes no começo e no fim de cada missão apenas para embasar os acontecimentos. O jogo não perde tempo tentando explicar muito de sua própria mitologia, deixando detalhes no glossário de personagens e criaturas. O que funciona muito bem para o ritmo do gameplay, que é o verdadeiro ponto forte da experiência.
A jornada para ser um Nioh
Como já dito, Nioh pega emprestado elementos da franquia Souls mas não se atém a somente a sua fórmula básica, trazendo novidades e criando novos parâmetros para o gênero. Não se engane em apenas vê-lo como um mero clone, o jogo na verdade busca muito da raiz do seu estúdio, o Team Ninja, para dar a mesma fluidez de combate que um game do Ninja Gaiden. Se pudéssemos resumir em apenas comparações, pode-se dizer que o jogo tem a estrutura de um Dark Souls com a velocidade de um game de Ryu Hayabusa. Há mais elementos de hack'n slash misturados com RPG de ação do que em qualquer título Souls ou Bloodborne.
As missões são divididas em fases no mapa. Cada área oferece a missão principal e também algumas missões paralelas, que podem ser encontradas após terminá-la pela primeira vez. Cada sidequest altera alguns elementos e posições de tesouros e inimigos, o que não deixa o jogo cansativo nem em suas missões secundárias. Fazer essas missões o tornará mais apto para avançar no mapa, tanto melhorando seu personagem quanto encontrando novos aliados que ajudarão a melhorar seus equipamentos. Além das fases especiais chamadas Missões Crepusculares, desafios ainda maiores em cenários previamente visitados. Essas missões vão sendo trocadas aleatoriamente e (geralmente) tem níveis de desafio bem maiores do que as missões comuns. O jogador provavelmente precisará passar por algumas delas para adquirir equipamento e level o suficiente para avançar na história, isso traz certo alívio já que toda ajuda é necessária devido a dificuldade do jogo.
Para ajudar em sua jornada, William tem um arsenal robusto e extremamente customizável. Passando pelas armas brancas como katanas simples ou duplas, machados, lanças ou kusarigamas (uma espécie de foice) até armas de fogo e de disparo, como arco e flechas e até pistolas, canhões e rifles. Além disso, William tem em mãos seres mágicos que ajudam na hora de confrontar os demônios. Os Espíritos Guardiões, estes seres que apresentam diferentes atributos físicos para a arma e corpo do personagem, podem ser ativados após sua energia ser acumulada ao longo das batalhas, dando um grande boost no ataque e que muitas vezes é uma mão na roda em combates longos contra chefes de fase.
É no combate mais dinâmico, arcade e voltado para a ofensiva que faz do jogo se destacar de outros do gênero. O s movimentos de ataque são divididos em três posturas com cada arma. Um na qual a espada fica em riste ao corpo, tendo o equilíbrio entre rapidez e potencia de ataque. O outro que faz a arma ficar acima da cabeça, tendo mais força no golpe mas menos velocidade. E o último, onde se coloca a arma abaixo da linha da cintura, fazendo os ataques serem mais rápidos, mas infringindo menos dano, além do complexo sistema de habilidades e movimentos com cada arma, que podem ser customizadas para cada movimento do jogador. É importante se ter em mente todas as possibilidades de customização de ataques e habilidades para enfrentar o que está por vir.
Como o Nioh do título, tirado de uma lenda japonesa que tinha como grande tema o equilíbrio entre a mente e o corpo, a jornada de William ensina isso ao jogador com a sua dificuldade punitiva mas extremamente satisfatória. Os riscos são altos, e o jogador deve prestar atenção constantemente ao seu redor. Há armadilhas por todo lado e os olhos do jogador estão constantemente atentos a tudo que está em volta. Buscar as melhores rotas para não se deparar com inimigos muito acima de seu nível que irão te estraçalhar a qualquer momento, sejam humanos ou youkais, (que emanam um miasma capaz de conter sua regeneração de Ki na batalha). As mesmas posturas de luta também são adotadas pelos inimigos munidos de armas, o que deixa os confrontos ainda mais imprevisíveis e tensos.
A curva de aprendizado é alta e o jogador pode demorar algum tempo para aprender todos os truques e a dinâmica de enfrentar cada tipo de inimigo, mas após algumas boas horas adentro da história, o game se torna fluído e o jogador realmente sente uma evolução descomunal de suas próprias habilidades. Para quem já está acostumado com outros games do gênero, sabe muito bem que a chave para o sucesso é a paciência. Aprender cada movimento do inimigo, não desperdiçar a sua energia e cansar o oponente para que ele esvazie a própria barra de Ki (a stamina do jogo), atacando na hora certa. Com isso em mente, o jogo não se torna tão difícil quanto parece e acaba sendo uma jornada recompensadora. A filosofia de ter calma para avançar mais rápido pode parecer contraditória, mas é palavra-chave aqui.
Onde os Fracos Não tem Vez
As principais ameaças do jogo vêm diretamente da mitologia japonesa como zumbis, onis com machados, ciclopes gigantes e até kappas (uma espécie de tartaruga com cabeça de sapo) e tengus (pássaros com vestes tradicionais japonesas capazes de soltar letais rajadas de vento). Você pode até conhecê-los de animes e mangás que abordam este universo, mas o design e a animação desses monstros, dentro do jogo, trazem um nível de detalhes e originalidade em seu visual que os tornam extremamente memoráveis e fascinantes, apesar de igualmente perigosos.
Além de soldados e samurais humanos, que geralmente dão trabalho por aparecerem em bandos e cercarem o jogador, eventualmente os inimigos vão se repetindo ao longo das telas. Lá pela metade da jornada, você pode sentir falta de um pouco de variedade, mas a dificuldade em enfrentá-los nunca é superada. Você ainda terá o mesmo frio na barriga ao avistar um youkai ou um oni ciclope, emanando miasma por todo o seu corpo, com sede de sangue e correndo diretamente para você. Apesar da repetição, os inimigos são muito bem integrados ao cenário, mostrando o planejamento dos desenvolvedores em dar vida a criaturas que pudessem se adaptar a diversos locais e situações e não parecessem deslocados. E obviamente uma das razões para que isso aconteça é o incrível game design.
Entre templos abandonados infestados de youkais e saqueadores, William irá passar por cenários variados e extremamente memoráveis. Visualmente, Nioh não é um primor visual mas também não perde seu brilho e originalidade, com ótimos efeitos de iluminação e partículas e o já citado incrível design e movimentação das criaturas e movimentos de combate de William. Tudo flui extremamente bem em uma taxa de quadros constante, com algumas ressalvas em áreas lotadas de inimigos em partes avançadas do jogo. Mas o obstáculo principal em locais fechados como templos e cavernas fica para a câmera, que muitas vezes torna o trabalho de acertar o derradeiro golpe mais difícil do que deveria. Encontros com inimigos grandes nessas áreas fechadas, como chefões e os já citados monges e onis, acabam sendo frustrantes e desagradáveis com a câmera constantemente travando na parede ou quando William acaba ficando em frente dela, perdendo a visão do que está em sua frente.
Como o protagonista, o jogador se sente como um estranho no ninho, adentrando terras estrangeiras que nunca foram exploradas antes por pessoas fora do Japão. O sistemas e o design acabam criando uma jornada cativante, apesar das incontáveis telas de Game Over (que tem um tempo de loading extremamente rápido). Repetir as ações não se torna metódico, há sempre algo novo que o jogador pode tentar ou uma rota diferente para tentar desviar de um inimigo mais complicado de vencer. As fases foram extremamente bem compostas e oferecem uma jornada única a cada novo local. Uma área que começa com alguns casebres ao redor de uma floresta pode levá-lo até uma luxuosa mansão abandonada infestada de demônios e saqueadores. É fascinante acompanhar o senso de progressão injetado em todas as telas.
O looping do jogo de drenar Amrita dos inimigos, pegar itens raros e encontrar pelo mapa os simpáticos kodamas, seres pequenos que aumentam a chance de se adquirir elixires e outros itens para melhorar seu arsenal, e no final de tudo isso morrer por algum inimigo muito mais poderoso (ou por algum vacilo mesmo) não cansa e na verdade se torna cada vez mais viciante. O sistema oferece sempre melhoras e incentivos para o jogador continuar e tentar mais vezes. E mesmo a dificuldade sendo alta, ela nunca é desleal. Se você está morrendo, culpa é sua, e não do jogo.
As brutais batalhas oferecem uma recompensa maior do que meros itens. É no momento a momento do combate que o gameplay se destaca. Finalizar o oponente e depois continuar atacando enquanto vê seu corpo se desmembrando, ao redor de uma poça de sangue e itens nunca se torna entediante, e o Team Ninja sabe muito bem disso.
Apesar de um multiplayer online interessante o game foi feito para ser primariamente jogado solo. Você não poderá desbloquear o co-op nas fases até terminá-las pela primeira vez. Não é possível usar o truque de chamar um amigo muito mais poderoso para passar daquele chefão difícil ou encontrar tesouros e passagens secretas como na série Souls/Bloodborne. Além do co-op, há um sistema interessante de clãs, que o jogador pode acessar para invadir mundos de outros jogadores e tentar derrotá-los para pegar seus itens.
A duração do jogo varia muito. Dependendo de quantas vezes você irá morrer, a jornada pode durar de 50 a 60 horas, além das diversas missões secundárias que estendem ainda mais o tempo total. Ou seja, há material o suficiente para passar a marca das centenas de horas com o jogo, sem medo de torná-lo entediante.
Veredito
Nioh é um daqueles jogos que marcam a vida de um jogador. Após vivenciá-lo, você não jogará algo do tipo da mesma maneira. O jogo tem problemas, mas o que ele acaba trazendo para o gênero e a experiência como um todo o torna um dos games mais satisfatórios, completos e incríveis do PS4. Após completar a jornada de William no Japão feudal, poucos jogo darão a mesma satisfação de conquista após uma árdua batalha contra um chefão ou de terminar aquela fase extremamente punitiva. A dificuldade não parece estar ali gratuitamente e é criada unindo um design inteligente com sistemas funcionais para criar uma experiência brutal, mas extremamente satisfatória. Trazendo elementos consagrados de títulos do passado (Ninja Gaiden, Dark Souls), Nioh traça seu próprio caminho no gênero e se torna um dos games mais complexos, viciantes e recompensadores da geração.
Nioh (Nioh, Japão – 2017)
Desenvolvedora: Team Ninja
Distribuidora: Koei Tecmo, Sony Interactive Entertainment
Gênero: RPG de Ação
Plataformas: Playstation 4
Review | Metal Gear Solid V: The Phantom Pain
Metal Gear Solid é uma franquia que existe há mais de duas décadas. Eu e ele jogamos praticamente todos os títulos da série. Sabemos realmente do que se trata quando o assunto é MGS: riqueza em história, desenvolvimento completo de seus personagens, atenção aos detalhes, batalhas fantásticas contra chefes, humor inusitado, críticas certeiras, mensagens impactantes, jogabilidade que dura por anos – pegue Sons of Liberty para jogar hoje e entenderá o que digo.
Entretanto, aqui em Phantom Pain, tivemos uma experiência fantástica nas primeiras horas para então virar uma das obras mais razoáveis de Hideo Kojima que já jogamos – convenhamos, Kojima fazer um jogo razoável é um demérito.
Mas por que exatamente The Phantom Pain falha em tantos e tantos aspectos? Por que esse jogo não consegue concluir por si só a história de Big Boss e realizar uma ponte decente para Metal Gear?
O game começa com Snake hospitalizado graças ao desfecho traumático de Ground Zeroes. Ele desperta de um coma de nove anos para voltar a viver a lenda de Big Boss. Descobrindo que foi Skull Face quem ordenou o ataque à sua antiga Mother Base, Big Boss, Kazuhira Miller e Ocelot fundam o grupo Diamond Dogs e declaram guerra contra a XOF para acertar as contas e eliminar de vez qualquer rastro do excêntrico Skull Face do planeta. O problema é que o vilão – assim como todos os outros anteriores da série – conta com a ajuda paranormal de seus cúmplices e tem planos muito mais ameaçadores para dominar o mundo.
Quem joga Metal Gear sabe que a ênfase da série se dá no gênero stealth. Matar seus inimigos na surdina e não ser notado. Em partes, a furtividade permanece, mas o gameplay desse game é convidativo para diversos estilos de jogatina. Seja o jogador que gosta de bancar o Rambo, o que deixa tudo para seu parceiro virtual – acredite, a sniper Quiet consegue ganhar as lutas contra os chefes do jogo sozinha – , o que prefere seguir a clássica tática do rasteja e atira ou até mesmo para quem quer usar veículos terrestres ou aéreos. O legal é que o game não te pune por você fugir do stealth, mas te recompensa com diversos emblemas que representam o seu estilo de jogatina – uma sacada brilhante.
O gameplay é simplesmente diversificado ao extremo. É tão rico que é possível desperceber uma das maiores falhas do jogo: a irritante semelhança de objetivos nas missões. Enquanto nos divertimos atirando caixas de suprimentos na cabeça dos soldados, extraindo tanques com o dispositivo Fulton, metralhamos granadas no ar para explodir na cara do inimigo, as missões se resumem a: resgate um personagem x, encontre o plano para a arma y e mate o oponente z. Na maioria, esses são os tipos de missões existentes em Phantom Pain. E isso passa a ser, no mínimo, desagradável quando nós percebemos.
As missões filler são a maioria do jogo – a história principal se concentra em apenas treze das cinquenta missões. Isso nunca existiu em jogos Metal Gear Solid. Lidem com isso. Elas contribuem pouco ou nada para história principal do game. É encheção de linguiça forçada, pois ajudam a obter recursos e melhorar suas armas até certo ponto. Muitos críticos estão aclamando essa jogada. “Oh, olhem só que lindeza, temos aqui 157 missões secundárias e 50 principais! Quanto conteúdo! Isso vai te manter muito ocupado, não é mesmo? Ho ho ho!”. Pois eu respondo: não! Um absurdo fazer tanta vista grossa para um game somente porque é de Hideo Kojima, além de ser o último Metal Gear da autoria dele. E olha que eu ainda nem comecei a tratar de fato sobre os problemas do game.
É simples. Depois de cinquenta horas jogando – acredite, você vai precisar dedicar todo esse tempo para terminar a história principal –, continuar fazendo as mesmas missões, invadindo as mesmas bases, tudo apenas com uma roupagem ligeiramente diferente. Isso vira uma verdadeira chateação. Um exercício para a mente: imagine que você está a fim de uma pessoa. Você sai com ela e repara em suas roupas. No dia seguinte, sai de novo com a mesma pessoa, mas repara que ela está com as mesmas roupas, mas trajando uma tiara. No dia seguinte, a mesma coisa, uma tiara e um brinco. No outro, apenas o brinco. É exatamente assim com The Phantom Pain.
O que muda nas missões são meros enfeites para os mesmos objetivos. Mas há quem defenda: “mas você pode realizar este objetivo de mil maneiras possíveis! ”. Sim, de fato é possível. Mas querendo ou não, uma hora seu gameplay vai encontrar um estilo, ele se provará muito eficiente para cumprir o objetivo e você acaba com um estilo de jogatina viciado. Isso aconteceu com absolutamente todos que eu conheço que possuem o game. Tanto eu, quanto o Guilherme, optamos por fazer o seguinte: aprimore seu sneaking suit – esqueça a camuflagem, jogaram o conceito no lixo aqui (saudades de Snake Eater e da Octocamo de Guns of the Patriots)–, use armas com silenciador, jogue de noite e use a Quiet como parceira. Pronto, aí está a receita do sucesso com uma curva de dificuldade pífia para zerar o jogo. Repito, isso nunca aconteceu antes com Metal Gear Solid que nunca te deixou em uma zona de conforto.
Infelizmente, isso é péssimo para o próprio jogo também, não somente para você. Dessa forma, nós nunca nos sentimos compelidos a realmente explorar todas as mecânicas possíveis para jogar. Ou a usar materiais diferentes dos quais estamos acostumados. É um monstro imenso de variedade para customização de armas, roupas, itens dos parceiros, itens do jogador, mas que fica apenas ali na sombra. Um verdadeiro elefante branco – algo caro para caramba e que tem pouco uso. Claro, isso não cabe a todos os jogadores, mas isso é comum para a maioria. Ou você é um entusiasta ou é um crítico de games para vasculhar todos os segredos de Phantom Pain.
O game é dividido em três partes: prólogo, capítulo um e capítulo dois. O prólogo é fantástico. Ele simplesmente esbanja o poderio gráfico da Fox Engine – criada especialmente para o jogo. O gráfico é absurdo de lindo. Arrisco-me a dizer, o mais bonito dessa geração. Nesse segmento, os efeitos de fogo, luz, água, partículas diversas são exuberantes. Dá até para notar os músculos de Snake respondendo sob a pele enquanto ele se arrasta pelas alas do hospital. Além do gráfico, o prólogo é uma das duas missões que tem um peso narrativo e dramático guiado com forte presença de roteiro. Ali é possível sentir a presença de Hideo Kojima e de sua competência.
Mas aí vem a maior ironia, nessas duas missões roteirizadas em peso – prólogo e missão 43, não há o uso do fator X do jogo: o famigerado mundo aberto. Detalhe: são as melhores do jogo inteiro, justamente pelo peso de sua narrativa, escapando, portanto, da mesmice presente na grande maioria das outras missões.
A partir do capítulo um, o jogador conhece o mundo aberto de Phantom Pain. São duas áreas: a região montanhosa e desértica do Afeganistão e a selva tropical da Angola-Zaire. Na teoria a ideia era ótima, mas na prática, a realidade atinge à tona. Seja lá por qual motivo, o sandbox de Phantom Pain é morto. Simplesmente não há justificativa para a escolha. A vida selvagem é escassa, não há movimento, não há vida e muito menos o que fazer, caso não esteja em missão. O cenário é belíssimo, mas, novamente, é limitado pela falta de conteúdo. Para se ter um ideia melhor do que falo basta observar que não existe um único civil dentro do jogo inteiro – todos são soldados. Um tanto conveniente, não? Em ponto algum sentimos como se aquelas fossem, de fato, regiões em guerra.
O sandbox do Afeganistão é o mais fraco dos dois, apesar de mais belo. Ele consiste, em boa parte, de um corredor largo cercado por montanhas. Como não há exploração vertical aqui como em Far Cry 4, Assassin’s Creed, Shadow of Mordor e Arkham Knight, o jogador se vê obrigado a seguir pelas estradas pré-determinadas. Esses desvios de rota incomodam muito, pois temos que dar uma volta imensa para chegar ao ponto da missão quando tudo poderia ser resolvido se pudéssemos escalar um pouco as montanhas – elas são desniveladas e possuem caminhos no meio delas. O pior de tudo é descobrir que existem paredes invisíveis nessas montanhas. Após muito esforço consegui subir consideravelmente por uma, quase atingindo a rota alternativa, e aí, para minha surpresa, fui impedido por uma parede invisível. Esse é o mundo aberto de MGS? Pois é.
Um fator positivo do gameplay é o enfoque no tempo real. Quando em missão, você pode solicitar equipamentos, parceiros e veículos pelo seu Idroid. Depois de trinta segundos, o Pequod – helicóptero de comando, larga seus itens no ponto escolhido. Além disso, é possível gerenciar sua Motherbase pelo Idroid, mandar suas tropas em expedições diversas, criar itens, ouvir fitas cassetes, músicas pop dos anos 1980 e temas de jogos anteriores, fator que felizmente ajuda quando tudo o que queremos é destravar o real desfecho do game e precisamos repetir sideops atrás de sideops.
Além do mundo aberto, das mudanças climáticas e do ciclo dia/noite, a maior novidade é a inserção dos parceiros. Podemos contar com a sniper Quiet – melhor parceira de longe, com o D-Dog, D-Horse e o D-Walker. Tanto Quiet, D-Dog e D-Walker realizam uma mesma função: são capazes de rastrear seus inimigos com facilidade. Assim você sempre os enxerga na tela e não tem a chance de ser surpreendido. O D-Walker é um Walker Gear desenvolvido para o Venom Snake. É uma máquina de guerra bípede que auxilia muito se você for um jogador de assalto.
O D-Horse tem a principal função de te ajudar na locomoção. É fácil cobrir grandes distâncias com o cavalo, mas ele não é muito sutil para ajudar nas infiltrações e os inimigos te percebem com relativa facilidade. Além disso, ele é melhor adequado para o terreno do Afeganistão. O D-Dog, companheiro que conhecemos desde filhote, tem um radar passivo de cem metros e detecta tudo ao redor dele. É de grande ajuda no começo, mas logo depois é substituído, assim como todos, pela Quiet.
As habilidades de assalto e infiltração da sniper tornam os outros parceiros praticamente obsoletos. Você não sente a menor vontade de utilizar eles quando sabe que tem a melhor sniper da história cobrindo sua retaguarda. Esse evidente desbalanceamento te deixa em uma zona de conforto ainda maior.
Ao contrário do mundo aberto, a inserção desses parceiros foi muito bem-vinda. Tornou o gameplay de MGS mais rico do que já era. Ainda sobre o sandbox, me pergunto por que Kojima não preferiu ainda seguir com o formato linear dos outros jogos só que inserindo as missões em espaços enormes. Sabe? Assim como em Ground Zeroes ou mesmo Snake Eater. Acredito que teria sido uma experiência melhor. Ou simplesmente misturando os dois formatos, por que não?
O fator de replay das missões é atrativo em certa medida – há muitos objetivos secundários para cumprir. A adição do modo reflexo ajuda muito também é outro acerto de Kojima. Com ele, o jogo te dá uma chance de redimir seus erros ao ser detectado por um inimigo. Agora se você não aproveitar a oportunidade, se prepare para encarar as consequências.
É interessante notar como a inteligência artificial do game se comporta com seu estilo de jogo. Se você atingir somente a cabeça dos inimigos, eles vão passar a usar capacetes. Se você só joga a noite, todos eles usarão lanternas para te encontrar. Se atira muito no peito, eles vão usar coletes a prova de balas. É um enfeite bacana, mas que dificilmente eleva a dificuldade do jogo. São os pequenos detalhes que Kojima adora se dedicar – existem vários no game.
Além do mundo aberto, temos a Mother Base – um lugar tão difícil de você se apegar quanto. É uma área imensa dividida em estações (incrivelmente similares ao Big Shell de Sons of Liberty) que ficam absurdamente longe uma da outra – dá para levar dois minutos dirigindo da base central para a médica ou outra qualquer. Na Mother Base é possível ver os itens que você extraiu em campo, assim como os soldados da Diamond Dogs que sempre te saúdam mesmo se você enfiar porrada neles – genial! Além de tomar um banho, a Mother Base não oferece mais do que isso e logo você perde interesse nela. Acaba voltando apenas na esperança de desbloquear mais uma das lindíssimas cutscenes do jogo.
Assim como outras decepções, a maior delas reside nas lutas contra os chefes. A série também é lembrada por lutas memoráveis contra chefões que te obrigavam a quebrar a cabeça para superá-los. Aqui, nada disso acontece. Temos que lutar três vezes contra os mesmos inimigos, os chamados Skulls, que sempre resultam em conflitos repetitivos e maçantes. São apenas bullet sponges que tornam a batalha ainda mais longas. Até mesmo o chefe final se resume a essa tática. Além disso, não há variedade e os encontros são poucos.
Enfim, o gameplay de Phantom Pain é fenomenal, mas um game não vive somente de jogabilidade. Outro fator de peso em todos os jogos da franquia é a história maciça. Tão rica que chega a ser confusa para novatos. E tenha isso em mente aqui, caso você for um jogador de primeira viagem, não vai aproveitar tanto o enredo como os veteranos. Mas não se decepcione, pois essa é uma das histórias mais fracas até então. Mas que fique claro, não foi por falta de potencial, mas sim por falta de crença da Konami no projeto.
Em The Phantom Pain, Kojima mira e atira com sua metralhadora de ideias em diversos tópicos: a problematização da linguagem, Guerra Fria, guerra biológica e química, pobreza na África, crianças na guerra, a mutilação, a deficiência, a “paternidade”, a discussão sobre as armas nucleares e a violência, a evolução da guerra, além de claro, o tema principal do jogo, a vingança.
Tudo isso é lançado e mastigado por tempos, mas nunca engolido. Fora a vingança, absolutamente nenhum desses assuntos tem um desfecho satisfatório ou um desenvolvimento competente. O mais mal trabalhado é a problematização da linguagem que envolve a motivação extremamente confusa de Skull Face – um vilão que você demora a entender e ainda assim, acaba sem entender nada. Infelizmente o encontro “épico” entre Snake e Skull Face traz um dos momentos mais fracos e esquisitos do jogo.
Já a mutilação, a deficiência física e a vingança são trabalhadas principalmente pelo coadjuvante Kazuhira Miller, o parceiro de Snake no comando da Mother Base. Assim como Skull Face, Kaz é um personagem redundante, de uma nota só. Sempre grunhindo, reclamando, proclamando monólogos com frases de efeito bonitas e repetitivas. E apesar de proclamar a vingança contra Major Zero e a Cipher, nós nunca vemos nada disso. O roteiro pouco menciona esses dois pontos que são cruciais para a história de Big Boss. Também há pouca explicação do projeto Les Enfant Terribles (que gerou os clones de Big Boss), o que é uma pena. O arco de Eli com Boss poderia render muito mais.
Kojima enfatiza muito o discurso de Kaz o que acaba torrando a paciência – o texto é poético em demasia, quase um monólogo já que Snake deixa ele falar sozinho. Um personagem que fala demais enquanto o principal fala de menos. Para nossa sorte, o ator Robin Atkin Downes interpreta Kazuhira. Sua performance é simplesmente a melhor do jogo e a do ano. O texto fraco pouco importa com o espetáculo que é a interpretação do ator – pesada, sombria e cheia de ódio. Certamente merece o VGA destinado à categoria.
Venom Snake/Big Boss passa a maior parte do jogo calado. Ele pouco contesta as ordens de Kazuhira para realizar as missões, também pouco conversa, não fala com ninguém, só escuta. É um personagem que está em constante luto desde o início do jogo. É possível interpretar de diversos motivos a súbita mudança de comportamento do personagem e Kojima deixa isso nas mãos do espectador.
The Phantom Pain não cumpre o principal objetivo de sua existência: mostrar como Big Boss passou de herói para vilão. Ele mostra lampejos disso, mas como o personagem é tão introspectivo, é praticamente impossível decifrar o que se passa na cabeça de Snake na maior parte do tempo. Somente na Missão 43, que o jogo se torna mais claro e o personagem passa a nos afetar mais. O problema é que na missão seguinte, o jogo acaba.
Nós só percebemos a maldade do personagem pela sua conveniência com os métodos cruéis de Kaz para lidar com muitos dilemas do jogo.
Outra polêmica é a troca do lendário David Hayter para Kiefer Sutherland. Mais bizarro ainda é notar constantemente que Sutherland trabalha pouco. Ele mantém expressões muito parecidas para Snake, sempre pensativo, um personagem em choque. O timbre da voz é sempre correto, embargado, pesado. Só é uma pena que ele fale tão pouco.
Snake começa a ganhar mais forma quando passamos a nos relacionar com Quiet, a sniper calada. Me limito a dizer que a relação entre os dois é muito bonita, traz os melhores momentos do jogo e se baseia na linguagem corporal. Aqui sim, Kojima explica os motivos do silêncio da personagem e também a origem de seus poderes. O desfecho da história dela é impactante. Nos afeta mais que o fim da história.
Ocelot também é um dos personagens que ganham um bom destaque em Phantom Pain. Aqui finalmente podemos como ele se comporta de fato perto de Snake e sua relação intrigante com ele. Destaque para Troy Baker, excelente como habitual. Aliás, os atores estão fenomenais. Esse é um dos jogos com uma das melhores dublagens e expressões faciais que já ouvi e vi. Os detalhes são tão mínimos que até mesmo Eli tem sotaque britânico, fazendo o vínculo com o restante da franquia. Outro ator que sobressai é James Horan como Skull Face adicionando um sotaque único e gestos singelos que misturam uma calma interior, soberba, prepotência e elegância.
Apesar do texto problemático, da progressão do enredo ser forçada e algumas vezes sem sentido, Kojima revolucionou a modo de contar uma história com suas cutscenes – cerca de cinco horas de filme, muito pouco para um game de cinquenta horas.
Aqui, o diretor usa apenas a técnica do plano sequência. Com a tecnologia fenomenal da Fox Engine, Kojima consegue montar uma decupagem fantástica para as cenas. A ritmo é tão fluido para variar os enquadramentos que é fácil se encantar com tudo aquilo. Para guiar a sua atenção, ele utiliza lens flares, zooms e desfoques selecionados. O resultado final é orgânico e nos leva a sonhar a ver um dinamismo tão perfeito um dia nos cinemas.
Kojima é apaixonado pelo jogo, é perceptível isso. Ele sempre busca dar toques à imagem de modo que ela fique fantástica, cheia de estilo quando assume as rédeas e insere um slow motion poderoso nos levando à loucura. É impossível não vibrar com o jogo ou ficar embasbacado pelas sequencias de ação, especialmente as que envolvem Quiet.
Além dos enquadramentos sempre acertados, Kojima se importa muito com a iluminação. Aqui, a “fotografia” supera a sua função de iluminar apenas e passa a enfatizar muito o que o diretor quer transmitir para nós. O prólogo é perfeito para elucidar isso a você, assim como a missão 20 e principalmente na missão 43 na qual acontece o momento mais poético da fotografia e encenação do jogo.
Vamos entrar agora na polêmica questão envolvendo o design da personagem Quiet, que anda praticamente nua durante todo o jogo, o que, naturalmente, recebeu uma série de críticas por parte de feministas e defensores do politicamente correto. Aqui abro uma pergunta: você já parou para pensar por que a maioria dos personagens principais dos jogos são fortes e de boa aparência? Indago, será para agradar o público feminino ou gay? Ou porque os designers simplesmente gostam de ver um homem musculoso à sua frente? Por que você acha que Snake, de uma hora para a outra, decidiu usar um rabo-de-cavalo?
A parcial nudez de personagens femininas em Metal Gear sempre foi uma constante na franquia, exemplos disso são Sniper Wolf, The Boss e Eva. Ao mesmo tempo, por anos e anos vimos Solid utilizar um collant que ressaltava todos os seus músculos e partes inferiores traseiras e não ouvimos ninguém reclamando.
Todo e qualquer produto conta com seu público-alvo e até pouco tempo atrás os video-games eram totalmente centrados no público masculino – MMORPGS são claros exemplos disso. Criticar um jogo somente porque uma das personagens está quase nua é, perdoem a expressão, pura frescura, especialmente neste caso, onde o fato é totalmente justificado pela narrativa (ainda que ela seja uma mera desculpa para colocar Quiet da maneira como ela é). Os militantes politicamente corretos que tentam censurar tais obras de nada diferem dos religiosos e políticos ao afirmarem que games são obras do demônio e que incitam a violência.
Acredito que muitos conheçam a loucura que foi o desenvolvimento do game. A tensão entre a Konami e Kojima foi tanta que o diretor abandonou o estúdio – ou foi convidado a se retirar.
A deadline do jogo estava chegando e Kojima queria trabalhar ainda mais, pedindo mais dinheiro. O orçamento do game estava superando os oitenta milhões, logo a produtora recusou e mandou ele fechar o projeto, já acreditando no prejuízo. Essa decisão estúpida da Konami é a principal responsável do jogo ser o que ele é hoje: incompleto.
Não é preciso ser cético para notar isso. O capítulo dois era para ser destinado a desenvolver melhor diversas questões do game – dizem por aí que Kojima queria fechar em cinco capítulos, algo que não duvido, pois encontraram indício do capítulo três nos arquivos locais da versão de PC. Assim como já veio a público o restante da missão 51 que estava nos planos de sair no jogo final, mas que nunca teve o desenvolvimento concluído – ela só fecharia um dos subplots mais importantes do jogo.
Acontece que o capítulo dois só vale a pena por conta das missões 43 e 45. De suas dezenove missões, treze são missões repetidas que você já havia finalizado no capítulo um, só que com condições mais extremas, aumentando a dificuldade. Até mesmo as cutscenes são iguais! É vergonhoso ver isso acontecer com MGS em seu jogo “final”.
Pode parecer pouca coisa, mas não é. Ter que cumprir objetivos semelhantes no capítulo um já era irritante, mas revisitar as missões mais difíceis novamente é um teste de paciência. Simplesmente não vale o esforço e deixa um gosto amargo na boca.
Graças a pressa da Konami em lançar o game, informações vitais para o entendimento do final do game ficaram presas nas fitas cassetes, já que as cutscenes nunca tiveram a chance de existir. Quando terminar o jogo, escute todas as fitas marcadas em amarelo. A informação “complementar” é mais relevante que a maioria dos acontecimentos que são expostos pelos filmes.
O desfecho do game é bom. Tem impacto e é poderoso. Uma das poucas reviravoltas que o game possui. Porém, mesmo assim, ele deixa tudo aberto à interpretação do jogador, explicitamente. Não há uma conexão canônica de Kojima deste game para Metal Gear. É uma pena. Ver um gênio como ele se limitar a citar Nietzsche, “Não existem fatos, apenas interpretações. ”, é um tanto deprimente.
Metal Gear Solid V: The Phantom Pain é o resultado de uma má gerência e da traição de sua desenvolvedora em não confiar no sucesso do que era para ser a conclusão épica da saga de um dos personagens mais importantes da História dos Videogames: Big Boss. Com isso, assim como seu protagonista, The Phantom Pain é um game mutilado, aleijado, incompleto.
O jogo é muito bom e divertido, o game mais sério da franquia, mas por causa do roteiro fraco, do desenvolvimento medíocre de boa parte de seus personagens, da escolha dúbia e cara de pau para o level design de diversas missões – principalmente as do capítulo dois, do desfecho que não resolve a mitologia de Big Boss de modo satisfatório, entre tantos outros motivos já listados aqui, se torna apenas um game decepcionante. Metal Gear Solid, Big Boss, os jogadores e Hideo Kojima mereciam algo muito maior que isso.
The Phantom Pain tenta mostrar a história de um herói que viveu tempo o suficiente para se tornar vilão, mas acabou mostrando a história de um jogo perfeito que é longo o suficiente para se tornar um jogo 3,5.
Pontos Positivos: Gameplay fluído, trilha musical original e licenciada soberbas, gráficos e efeitos sonoros exemplares, integração com companheiros, interpretações fabulosas em absolutamente todos os personagens, direção excepcional de Hideo Kojima para as cutscenes, mensagem bonita para o jogador ao final do game, final aberto para interpretação do jogador.
Pontos Negativos: Conceito de mundo aberto mal utilizado, missões repetitivas, muitas missões filler, batalhas medíocres contra chefes de fase, roteiro mal desenvolvido, personagens mal explorados, capítulo dois, o jogo está incompleto, informações vitais para o entendimento da história ficam restritas às fitas cassetes, poucas cutscenes para cinquenta horas de gameplay, resquícios de um sistema de micro-transições no modo single player, experiência decepcionante após a conclusão do game, final aberto para interpretação do jogador.
Metal Gear Solid V: The Phantom Pain
Desenvolvedor: Konami, Kojima Productions
Gênero: Stealth, Ação
Dísponivel para: PC, PS4, PS3, Xbox One, Xbox 360
Versões jogadas para análise: PC (GTX 980 Ti) e PS4
Crítica | O grifo de Abdera
Lourenço Mutarelli, Mauro Tulle Cornelli, Oliver Mulato e Raimundo Maria Silva. Autores de O grifo de Abdera. Se já havia qualquer estranhamento com a obra deste(s) autor(es), esse romance não será, também, uma porta de entrada. Quer dizer, nunca houve. Em entrevistas, Mutarelli afirma continuamente que o está cansado das imagens, por isso parou de ler e produzir quadrinhos profissionalmente, afirmando que o desenho é sempre um filtro para o leitor e que as ilustrações em seus romances anteriores foram exigências da editora. Afinal, sempre será reconhecido como um grande quadrinista brasileiro.
Passados cinco anos do seu romance mais regular, Nada me faltará, e quatro do lançamento de Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente, (deixando de lado o seu trabalho no teatro), Mutarelli, agora, sintetiza e organiza, de certa forma, os conflitos existencialistas que permearam estas últimas obras. Neste novo livro, dividido em três partes (O livro do fantasma, o livro do duplo e o livro do livro – sendo que a segunda é uma história em quadrinhos) uma aura de descobrimento e de conformação com o conceito de identidade preenchem as 260 páginas do romance. Mesmo que a sinopse de um escritor que perde seu parceiro e, após entrar em contato com uma moeda de 2424 a.C., o tal grifo de Abdera, iniciará uma conexão telepática à Quero Ser John Malkovich pareça mais uma batida na tecla de um tema nada inédito (vide mais recentemente A Desumanização, de Valter Hugo Mãe), é pelos elementos comuns da literatura de Mutarelli que vale a pena a leitura. Portanto, quem não gosta nem de O Cheiro do Ralo ou de Transubstanciação, não encontrará razões para renovar a opinião.
Em questão de paralelo, Jesus Kid é o romance que mais se aproxima da experiência aqui encontrada. Escrever a história de um escritor escrevendo, das loucuras de Barton Fink, no romance de 2004. Já em 2015, a autobiografia se mistura com mais intensidade com a ficção. Quem teve o privilégio de adentrar o universo de Mutarelli nos cinco sketchbooks fac-símile publicado pela editora POP, que são, em si, também, uma obra, reencontrará aqui o mesmo non sense. Anteriormente, era o trabalho com o depressivo, com o sujo e o sombrio, misturando o humor kafkiano com o espelho dostoiévskiano (ou nas palavras de Dalton Trevisan: “em cada esquina, um Raskolnikov te saúda, a mão na machadinha sob o paletó“). Recordando que já em 2008, com A Arte de Produzir Efeito sem Causa, este novo estilo já estava sendo experimentado.
Quando a moeda surge na vida do protagonista e é estabelecida a conexão com Oliver Mulato, esse começa a soltar, aleatoriamente, frases sujas em espanhol que Mauro havia, por brincadeira, inserido no Google Tradutor, por exemplo. O que aparece pontualmente na primeira parte do livro, domina a segunda, o quadrinho, denominado XXX, de autoria de Oliver que reproduziu frames de filmes antigos, em sua maioria, pornográficos, e adicionou falas e “personagens”. O estilo do desenho aqui é muito mais ligeiro e tem mesmo a aparência de um sketchbook, contando inclusive com colagens e rabiscos, divergindo completamente dos barrocos quadrinhos que Mutarelli fazia. São cem páginas de non sense, ou de frases ancestralmente feitas, como a epígrafe do livro: “Aquele que dança em sua própria casa, atrai incêndios.” Existem também referências a diversas áreas, como brincadeiras com o filme 2001 – Uma Odisséia no Espaço, com a figura do Diabo, do Xipetotec, do macaco, da cabeça de papagaio com uma cartola, e, mesmo que não tenha um sentido lógico, existe a simetria.
Continuando na análise dos conceitos de identidade, O grifo surge também como uma ferramenta de conformação para o autor. Uma sujeição consciente à uma série de características comuns à figura do artista e sua relação com a tecnologia enquanto usuário. Não apenas do artista genérico, mas da própria mitologia que Mutarelli criou entorno de si e vê que não há escapatória, justificando a criação dos duplos. Funciona, e, além do íntimo, o “mercado literário” desponta também como alvo de críticas. Mesmo que o processo não seja fluidamente osmótico, a pantomima que nos é passada, tanto pelas palavras e números, quanto pelas imagens, esclarecem as intenções do autor.
Dessa miscelânea labiríntica de Abdera com Google Maps, Mutarelli pare o grifo, alcançando seu ápice contextual. Espiritualmente, o encerramento digno de uma trilogia.
E assim como outros livros do autor, O grifo de Abdera será, também, filme.
O grifo de Abdera (2016)
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 272
Crítica | Fama e Anonimato
“Quando você percebeu que era talentoso?”, perguntou a jornalista Katie Roiphe a Gay Talese, em entrevista para a The Paris Review no ano de 2009. “Nunca”, respondeu. “Tudo o que eu tenho é uma curiosidade intensa. Eu me interesso muito por outras pessoas e, igualmente importante, eu tenho paciência ficar perto delas.” O que se percebe ao ler sua coletânea Fama e Anonimato, também, é a atenção e o respeito do jornalista com suas fontes de carne e osso – o que não está nos mandamentos dos viciados repórteres-técnicos. Pai primordial ou não do Novo Jornalismo norte-americano, importa é que Talese manifestou em seus trabalhos as características sensíveis de um repórter-escritor. Ou até mais a segunda nomeação, vide o título de sua autobiografia (Vida de escritor, 2006).
Hoje, aos 84 anos, Talese continua uma figura chamativa, ainda mais nesse ano, com o lançamento de seu novo livro-reportagem, O Voyeur – lançado em julho no Estados Unidos e lançado na última semana de setembro no Brasil. A edição brasileira, inclusive, traz como posfácio a entrevista supracitada. A história, dessa vez, retoma de maneira espantosa, o tema da sexualidade – de maneira menos abrangente do que em A mulher do próximo (1981) -, a partir das histórias de Gerald Foos, “um homem casado, com dois filhos, que comprou um motel de 21 quartos perto de Denver, há muitos anos, a fim de se tornar um voyeur residente”. Este novo trabalho e recentes declarações polêmicas evidenciaram o jornalista em veículos pelo mundo todo, colocando em xeque a validade do novo material. Após investigação do The Washington Post, que desqualificou a confiabilidade da fonte de Talese, o próprio escritor decidiu não mais promover sua nova reportagem – cotada, antes, para ser uma das melhores do ano. O caso, no entanto, não abala sua significância histórica, revela a (re)leitura do versátil compêndio Fama e Anonimato.
As minas do acaso
O fenômeno das cidades é estudado por diversas escolas de antropologia e sociologia desde seu surgimento, seja de pontos de vista patológicos ou neomarxistas. O papel da comunicação na formação dos centros urbanos e de seus cidadãos foi matricial para sistematizar o caos que a modernidade social carregou consigo. E suas consequências até hoje são latentes no cotidiano do nosso século. A jornada de um serendipitoso, primeira parte do livro, permanece inoxidável. Nada preocupado com as temperaturas elevadas do factual, Talese, garimpeiro do acaso, encontra ouro pelos paralelepípedos de Nova York. Uma centena de páginas com histórias do dia-a-dia e uma verborragia de informações isoladamente inúteis que podem ser lidas fora de ordem, funcionando em conjunto, assim como uma metrópole. Talese articula uma narrativa com várias perspectivas em um ambiente já múltiplo em si, cheio de dicotomias e paralelos. Não é, no entanto, o engenho, a maquinação, a secura dos aspectos objetivos que interessam ao escritor, mas a sua subjetividade e a dos seus personagens, sejam humanos ou construções.
Para isso, apela para uma meticulosidade cômica, mesmo que o autor confirme incessantes e árduas investigações. Quando são anunciados números precisos, como por exemplo a quantidade de pombos em Nova York, ou os 34 km diários de fio dental que a população de Nova York utiliza, o autor traz à tona um positivismo contrastante com seu próprio impressionismo. Destaque para a história de Edward Carmel, morador do Bronx, homem mais alto de Nova York e que “come feito um cavalo”. Por todo o segmento do livro abundam os adjetivos. Talese sabe que um perfil da cidade está no ambiente mais frio da caverna das pautas frequentada todos os dias por jornalistas desesperados. No entanto, o dândi encarna um monge capaz de meditar acerca das forças recíprocas entre o ambiente e seus habitantes. Os valores-notícia ultrapassam o sistema factual e chegam ao status de espelho.
Com altas doses de ironia, são analisadas mais do que histórias notáveis que passam despercebidas, mas também, em especial, a frieza do contato entre as pessoas – ou o porquê de existirem histórias “notáveis”. Incessante, a sociedade não possui tempo de se organizar ou passar da fatal função fática da linguagem. Talese nomeia: “a cidade da Conversa sobre o Clima”. Um dos poucos momentos de respiro, executado de supetão, descreve o cenário de um blecaute. Nessa situação, “só os cegos continuaram sua rotina normalmente”.
O acaso nada tem de útil. Por essa esquiva à instrumentalidade, A jornada de um serendipitoso é, além de um trabalho exemplar da literatura de não-ficção, um exercício estético engendrado com êxito.
A insustentável brevidade do ser
A história da engenharia é tão antiga quanto a história da humanidade. O progresso técnico e a ascensão da raça humana caminham juntos. No âmbito da engenharia civil, as pontes são um dos elementos mais recorrentes e importantes desse desenvolvimento. O que, primeiramente, a própria natureza revelou ao homem através de troncos caídos conectando as duas margens de um rio, tornaram-se colossos. Quantas pontes não são, só nos Estados Unidos, por exemplo, alvos de turistas e filmes-desastre?
Acompanhando a construção da Verrazano-Narrows, ponte suspensa que ligou o Brooklyn à Staten Island em Nova York, Talese evidenciou os limites da humanidade e de seus feitos. A figura dos boomers, ou seja, os trabalhadores responsáveis por erguer as pontes, não poderiam ter apelido melhor. Homens unem tudo, “menos as próprias vidas”. A ironia, que em poucas páginas poderia ser sutil, no entanto, é trabalhada extensivamente, até se tornar trágica. A fábula desses operários de diversas etnias (índios, brancos, negros), vindos de diversas partes do país e do mundo, em nenhum momento passivos ou despercebidos, evidencia a estreita relação do homem e seu trabalho.
Além de narrar as sagas, por vezes, muito ligadas a trajetórias familiares, desses homens brutos, sensibiliza a ponte, no caso, de tal forma, que quando um cabo se parte e uma importante peça cai na água, o peso e o desespero narrativo é o mesmo da perda de uma vida humana. A tensão dessa passagem em específico espelha-se a outra em que um boomer dirige embriagado em alta velocidade em seu caminho para casa: são ambos trechos detalhistas cuidadosamente lapidados, detalhistas.
Se em seu primeiro movimento Talese submerge no desconhecido e no imperceptível do dia-a-dia, em A ponte oferece uma interpretação epistemológica do jornalismo, das sinonímia das atividades, e dá um primeiro passo em direção a um aspecto mais conhecido da vida dos habitantes da região – a própria construção -, mas ainda reafirma a importância do processo, do como e do quem fez. Ciente do seu poder de fala, como construtor de narrativas, o próprio jornalista e suas frases transmutam-se em ponte de conexões atemporais. “Posteridade” seja, talvez, a palavra definitiva desta parte do livro. Assim como Talese enxerga sua arte cautelosa, baseada na checagem, na busca por uma verdade, como uma ferramenta para imortalidade, ironicamente, os boomers dispostos a arriscar suas vidas, confiantes no vigor e na força de seus corpos, buscam na ponte o pós-morte – já não mais como os escravos responsáveis pelas pirâmides, mas, em tom épico comparável, como filhos dessa América que ajudaram a erguer. Para isso, as duas partes, assim como qualquer verdadeiro jornalista e sua fonte, devem ser inseparáveis. Inclusive, a edição da Companhia das Letras, traz no apêndice o registro de Talese ao voltar para a Verrazano-Narrows 40 anos depois da conclusão da reportagem.
After the Party, Andy Warhol (1979)Por baixo das togas
L’Esprit du Temps de Morin, publicado em 1962, é lido até hoje para estudar a cultura de massas do século XX. No terceiro parágrafo do primeiro texto de Excursão ao interior, Talese começa desconstruindo as figuras que Morin definiu como olimpianos. O próprio título, Frank Sinatra está resfriado, linguisticamente simples, é carregado de semântica. Os vírus que impediriam um jornalista comum de fazer uma superficial entrevista com a celebridade foram a ferramenta do mais famoso texto de Talese. “Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível – só que pior”. A partir dessa fraqueza aquiliana, as entrevistas com pessoas que rondavam Sinatra (amigos, familiares, produtores…) possibilitaram ver o que estava debaixo das togas, inclusive das escondidas pelos holofotes artísticos. Togas vestidas não por Frank Sinatra, mas por il Padrone. Um descendente, assim como Talese, de italianos. Essa coincidência, também, o ajuda a expor os trejeitos, manias, a fúria em suas decisões. O perfil da estrela evidencia, no contexto dos guetos estadunidenses, os mitos de autorrealização da vida privada que seriam desenvolvidos em tantas peças artísticas a partir da década de 70. Todo o processo, por sua vez, é explanado no apêndice (Como não entrevistar Frank Sinatra), com muitos detalhes.
Produtos similares, metodologicamente próximos, são o recheio dessa terceira parte de Fama. No geral, são contos jornalísticos mesclados com elementos típicos de crônicas, como a inclusão de elementos que evidenciam a presença pessoal de Talese, na maioria dos textos, curtas passagens em primeira pessoa. Floyd Patterson, a redação da revista Vogue, Peter O’Toole – o ator que viveu T.E. Lawrence no épico de 1962; Joe DiMaggio, casado com Marilyn Monroe antes dela trocá-lo pelo autor de As Bruxas de Salem, Arthur Miller. Enfim, toda uma série de demolições da parede que separa o público e o privado. Esteticamente, porém, A festa acabou é uma crônica totalmente pessoal que traz uma perspectiva ácida de uma festa de Andy Warhol: “Nada está acontecendo. É um momento sem significado para a história”. No meia da efervescência contra-cultural, críticos dançam com hippies, honkies, garotas de minissaia. “Amanhã, em sua coluna, Lerner fará declarações pomposas sobre de Gaule e sobre o Vietnã, ou sobre a questão do poder, mas esta noite ele está numa festa de Warhol, dançando de olhos fechados”. Na última linha do parágrafo seguinte, mais didático, a expressão reverbera: “Os críticos dançam de olhos fechados”. Sintético e afiado.
E para fechar esse segmento que em conjunto talvez seja o menos interessante, uma investigação sobre o responsável pelos obituários do The New York Times, Alden Whitman. Talese encontra nesta figura perfeccionista o seu duplo diretamente relacionado à morte (epigrafada por um trecho do drama histórico Ricardo II). O sr. Más Notícias está sempre antenado, catalogando fatos importantes das figuras públicas porque, no final, sobra para ele. Nada mais justo, pensa ele, que fazer um último retrato sensível e completo na medida do possível. Igualmente, nada mais justo que colher do anônimo o reconhecimento merecido, e, da fama, a trivialidade invisível.
Fama e Anonimato (Fame and Obscurity, 1970)
Autor: Gay Talese
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 536
Crítica | Peter Pan, de J.M. Barrie
Em pleno século XXI é quase impossível existir alguém que não tenha tido contato com o lendário Peter Pan, principalmente a julgar a explosão de aceitação que o autor, James Matthew Barrie, teve com a estreia da peça teatral Peter Pan, ou O menino que não queria crescer, em 1904.
O clássico, totalmente atemporal, também fascinou os nascidos dos anos 90 através da animação da Disney e conta até hoje com diversas adaptações literárias e cinematográficas. Esta edição, criada pela Editora Martin Claret, é uma versão traduzida do romance original, Peter e Wendy, escrito em 1911.
A história se baseia na tênue ligação entre o mundo dos sonhos e a realidade vivida pelas crianças, já que todas conhecem Peter Pan e os detalhes da exótica Terra do Nunca sem nunca a terem visto pessoalmente. Logo na primeira página somos introduzidos a um dos principais dilemas do livro: o amadurecimento do ser humano e a perda da inocência que temos quando mais novos.
É interessante notar as brechas para imaginação que o autor deixa quando menciona a Terra do Nunca, sempre deixando claro que cada criança tem uma ilha própria em sua cabeça, mas que de alguma forma aquele era o universo onde todas a criam do mesmo modo e se encontram após deitarem em seus travesseiros.
Peter Pan é uma história com milhares de analogias que facilmente poderiam compor um livro de psicologia infantil. Apesar de ser focado no leitor infanto-juvenil, o livro apresenta detalhes, extremamente sutis, que são importantes para a caracterização dos personagens, mas que podem passar batido pela leitura das crianças – como é o caso dos meninos perdidos andarem livremente com facas, punhais e acharem normal a violência, o escalpelamento e o sangue derramado apenas porque sua única figura paterna, Peter, lhes dá esse exemplo. Ele explora a psicologia das crianças nos mostrando a importância da instrução paternal para o desenvolvimento delas como adultas.
Barrie escreve com uma suavidade e sensibilidade impressionante, pois cria uma atmosfera de conversa com o leitor que lembra os pais lendo histórias antes de dormir. Ele constrói o ambiente desde a primeira página e desenvolve a relação dos Meninos Perdidos com os Índios e os Piratas de uma forma natural, que faz o leitor naturalmente comprar os motivos para aquelas guerras – o autor não foi o mais cuidadoso ao narrar algumas partes das cenas de luta corporal, mas vale lembrar que na época em que o livro foi publicado a relação das crianças com guerras era diferente da atualidade, como exemplo os contos dos Irmãos Grimm.
Outro elemento extremamente bem trabalhado são os personagens. Wendy carrega a ideia de que meninas se desenvolvem mais rápido do que os meninos e, realmente, o autor a coloca como a mais madura da história, tornando-a responsável pelas crianças, afinal ela é carregada de instinto materno – que era o grande objetivo da mulher no período em que o livro foi escrito. Também temos o Capitão Gancho, um vilão de conto infantil curiosamente retratado como bonito, elegante e dotado de bons costumes – em outras palavras, é o oposto de Peter, que é a personificação da presunção e arrogância quando se trata dos bons modos apreciados pela Inglaterra. Ainda sobre o Peter Pan, podemos dizer que é um garoto bem ordinário, com sua dualidade explícita: ora bom, ora traiçoeiro – é uma inteligente forma de aproximar ainda mais as crianças do personagem, pois mesmo com todos os defeitos, sua lealdade aos Meninos Perdidos e à Wendy cativa e evidencia o ponto principal trabalhado no livro: a pureza da infância.
Em meio a inocência que permeia os meninos e a força exalada pelas personagens femininas, Barrie nos mostra interesses românticos de Wendy, Sininho e Tigrinha em relação a Peter Pan. Através de algumas falas e ações, como beliscões e beijos reprimidos, é bem notável que há sentimentos como ciúmes e afeição ali, mas o autor mal os explora, afinal são apenas crianças que não tem quase nenhuma noção a respeito disso. É muito divertido vermos que quem toma qualquer iniciativa na brincadeira de “casinha” nunca é o Peter, mas sim Wendy, reforçando ainda mais a ideia de admiração que o autor tinha sob as mulheres serem mais desenvolvidas.
Definitivamente, Peter Pan não é um mero livrinho infantil que conta a história de um menino que não cresceu e ficou pra sempre sobrevoando e tendo divertidas aventuras na Terra do Nunca, é uma fantástica crítica ao abandono, a exposição à violência e o medo do tempo que todos nós temos – até mesmo os adultos, como Gancho, que teme a morte pelo crocodilo “Tic Tac”.
Além da gigantesca qualidade textual de Barrie, as ilustrações de Weberson Santiago misturam primorosamente caneta e aquarela tornando o livro ainda mais bonito. Os capítulos são lotados de cores extravagantes para mostrar a vivacidade dos seres e paisagens da Terra do Nunca.
A edição, repleta de notas de rodapé, é finalizada com um apêndice incrível, que traz explicações e curiosidades sobre a obra e suas relações com o meio externo – como a escolha dos nomes da família Darling, a relação de Peter com o deus da mitologia grega Pan, hábitos ingleses da época, definições dos seres fantásticos e a predileção do autor por piratas e índios. Sem contar com as perguntas para reflexão da leitura e sugestões de atividades, minimamente explicadas, focando objetivos didáticos. É uma ótima forma de levar a história a outros níveis de aprendizado ministrado pelos pais ou professores de turmas.
Em suma, Peter Pan, apesar de suas poucas páginas, é um livro recheado de aventuras e cenas singelas, mas que trazem consigo uma mensagem de suma importância tanto para as crianças de outrora, como as de hoje, principalmente aquela que vive nos corações dos adultos.
Crítica | A Infância de um Líder
Vítima direta de regulação estatal e da burrice e manipulação do mercado de distribuição de cinema, o espectador brasileiro possivelmente sequer perceberá que A Infância de um Líder existe. Demonstrando o quanto o problema não é privilégio nosso, a produção - premiada em Veneza - encontra dificuldades em ser distribuída até mesmo em circuito internacional. Poderia passar despercebida, como tantas outras, não fosse a possibilidade de ser assistida no Netflix, o que corrige um pouco a injustiça: trata-se seguramente de um espetáculo invulgar e um dos melhores filmes de 2015.
Vagamente inspirado num conto de Jean-Paul Sartre e excepcionalmente bem produzido com um orçamento baixo para os padrões aos quais o filme está sujeito (falar de filme “bem produzido com orçamento baixo” no Brasil é equivalente a falar de “viagens tripuladas à Lua” na Venezuela), “A Infância de um Líder” é um delírio de estilo e significados a partir da máxima de que a História é um pesadelo do qual tentamos inutilmente despertar. O enredo acompanha os bastidores da negociação dos acordos pós-Primeira Guerra Mundial pelo ponto de vista da família de um diplomata norte-americano, sua mãe de formação católica e o filho pequeno problemático.
Não espere, entretanto, rebuscamento historiográfico ou didatismo: aqui, sentidos e ausências deles alternam-se vertiginosamente, entre imagens encenadas e material de arquivo, na construção de uma suposta lógica que - se existe - pertence ao território dos (maus) sonhos. Brady Corbet (na verdade, um jovem ator mais conhecido por participações em filmes como “Melancolia” e “Violência Gratuita”) dirige como um mestre, explorando ousadamente os movimentos de câmera e a trilha musical (de filme de terror), cedendo pouco espaço para a comodidade da plateia - mesmo aquela acostumada à “produção de arte”, a qual certamente preferiria o jogo de reações condicionadas e esquematismo típico a uma produção como “ A Fita Branca”, por exemplo, cujo material de partida guarda alguma semelhança com o de A Infância de um Líder.
Lançando mão de elegantes referências (o garotinho resiliente em sua androginia é clara alusão ao Tadzio de “Morte em Veneza”, ainda o título definitivo sobre a decadência europeia), Corbet dialoga ora com o rigor e niilismo tipicamente kubrickianos (a relação mãe-filho, bem como a tensão com a figura paterna, remetem ao triângulo familiar de “Barry Lyndon”), ora se insere no retrato tradicional da decadência europeia de Visconti e Pasolini, mas aonde chega é certamente uma paisagem nova: são poucos os filmes que conseguem ser fiéis ao “espírito de uma época” ao mesmo tempo que desperdiçam pouco de sua metragem com elaboradas explicações sociológicas (como alunos aplicados implorando pela atenção do professor).
Ainda que escorregue ao responder a um anseio narrativo (propondo um clímax desnecessário e inverossímil, durante o jantar de confraternização próximo de sua final), o filme recupera-se logo depois em mais um insight de pesadelo (e que coloca o astro Pattinson num segundo papel, ainda mais ligeiro que o primeiro, numa cartada possivelmente justificável pela necessidade de financiamento), uma cena vigorosamente filmada e que faz qualquer amante do cinema (acima de ideologias universitárias e algoritmos dos grandes estúdios) querer mais disto: a incômoda vibração entre imagem e som em movimento, ora incompreensível, ora ruidosa, onde as perguntas superam as respostas, mas diante da qual é impossível fechar os olhos.
https://www.youtube.com/watch?v=ZImswdV2q8o
Crítica | Desventuras em Série: Cidade Sinistra dos Corvos, Hospital Hostil e O Espetáculo Carnívoro
CIDADE SINISTRA DOS CORVOS
Cidade Sinistra dos Corvos, sétimo livro, além de marcar a metade da série, marca a transição entre a fórmula já conhecida de Snicket - órfãos designados a um novo tutor, Conde Olaf disfarçado e inutilidade do Sr. Poe - e um novo curso da história.
Após o plot twist de que a tutora mais rica da trama, Esmé, era namorada e cúmplice de Olaf no sequestro dos Quagmire, as crianças são colocadas aos cuidados dos moradores de uma cidade chamada Cultores Solidários de Corvídeos. Inevitavelmente, para o leitor que acompanhou a série até o momento, estas não são mais iniciais aleatórias, já que Lemony continua forçando nossa atenção para o real significado de C.S.C.
Mesmo contendo todos os ingredientes para ser guiado como suspense, o sétimo volume é repleto de detalhes que ridicularizam a cidade, o que torna mais cômico do que os livros anteriores. O autor insere várias regras sem sentido e contraditórias na cidade - como as regras 19.833, que afirma claramente que nenhum vilão é permitido dentro dos limites, e a 961, que determina a quantidade exata de castanhas que devem existir nos sundaes.
Embora a tutela da vez sejam todos os moradores da cidade, quem realmente cuida das crianças é o novo personagem, Hector - que pelas características lembra uma mescla entre a doçura e os cuidados de Tio Monty e a covardia de Jerome Squalor. É a primeira vez em que temos um personagem com mais de 14 anos que funciona em um nível básico humano e não é um criminoso intelectual, já que ele escuta as crianças com uma mente aberta, observa os outros fora de si e se desenvolve à medida que a história avança. Ao longo das páginas ele passa de um homem amável, embora covarde, à herói no momento em que finalmente aprende a falar por si e pelos outros afim de fazer a coisa certa, isso era algo que realmente estava faltando nas caricaturas dos personagens adultos da série.
Simbolicamente, além dos corvos estarem relacionados ao mau presságio e azar, são também ligados à sabedoria e, em algumas culturas, são considerados guias para os viajantes chegarem aos seus destinos. Snicket se supera e acerta em cheio ao escolher corvos como background para o sétimo livro, pois foca na mudança de curso da história, mistura o mau agouro da simbologia dos corvos com a temática da série e de quebra ainda faz alusão ao conto O Corvo, de Edgar Allan Poe.
Lembrando a proposta do quarto volume, Serraria Baixo Astral, Conde Olaf demora a aparecer e surge apenas no clímax, que, assim como nos outros livros, são as últimas páginas.
Para gerar ainda mais curiosidade nos leitores, Lemony nos apresenta Jacques Snicket, personagem que fisicamente se parece com nosso vilão, no entanto é apresentado como inocente, conhece os pais dos Baudelaire e, claro, tem o mesmo sobrenome do "autor" da série. Snicket está finalmente deixando pistas e mais pistas sobre o que parece ser uma grande conspiração contra os Baudelaire, os Quagmire e o recolho de órfãos em toda parte que têm grandes fortunas a serem adquiridas.
Ainda mais importante, a conspiração e a continuidade do enredo finalmente tomou o centro do palco. Estamos agora menos preocupados com os tristes incidentes isolados que acontecem aos Baudelaire e mais focados em consolidar e analisar pequenas dicas de todos os livros para resolver o quebra-cabeça abrangente. Ele aguça as habilidades dos leitores e aumenta cada vez mais o interesse do leitor.
O livro se encerra com a fuga de Olaf e Esmé, mas, pela primeira vez, o Sr. Poe não faz sua aparição nas páginas finais e as crianças não são transferidas para outra tutela.
HOSPITAL HOSTIL
O enredo do oitavo livro, Hospital Hostil, é completamente diferente de seus antecessores, já que os órfãos agora devem cuidar de si mesmos e são considerados fugitivos e assassinos do "Conde Omar" - que na realidade era Jacques, confundido com Olaf e assassinado pelo vilão para conseguir perseguir livremente as crianças. É o primeiro volume a introduzir a ideia de que as próprias crianças têm que optar por certas escolhas para sobreviver que, embora compreensíveis, não são "nobres" quando vistas isoladamente - como exemplo, mentir sobre suas identidades.
Isso começa sutilmente no oitavo volume, com a necessidade das crianças mentirem para enganar várias pessoas e se preservarem - como precisam fazer com Milt, dono de um armazém à beira da estrada. Snicket aumenta o tom irônico e faz brincadeiras logo no começo da trama, iniciada de modo desesperador para os Baudelaire que estão completamente perdidos até encontrem o "Armazém Geral Última Chance".
Neste momento, a série se mostra mais anacrônica do que nunca, já que as crianças precisam operar um telégrafo para enviar um pedido de socorro ao Sr. Poe. No entanto, em diversos volumes anteriores, já eram usados telefones e, em O Inferno no Colégio Interno, um computador de última geração.
Acusados de assassinato, com seus rostos publicadora no jornal, e procurados pela polícia, os órfãos não tem outra saída a não ser entrar em uma van repleta de desconhecidos alegres, que trabalham como voluntários para a organização C.S.C - igual a Jacques Snicket. No caso, as iniciais correspondem a Combatentes pela Saúde do Cidadão, que basicamente são como Doutores da Alegria.
Lemony demonstra uma crescente sofisticação na ideia e linguagem dos romances - talvez com o pensamento de que seu público estava envelhecendo ao longo dos anos em que os livros foram sendo publicados -, geralmente tínhamos um guardião que, embora bem intencionado - mesmo que muitas vezes profundamente estúpido - não tem a fibra moral para agir quando a atitude requer alguma bravura, o que claramente delimita a diferença entre o certo e o errado e a covardia e a coragem. Já neste livro, as ações das crianças lentamente são colocadas em dúvida - usar os mesmos métodos de Olaf, se disfarçar, mentir e se aproveitar da cegueira de Hal para roubar suas chaves e quebrar as regras sobre não ler os arquivos pessoais não é algo correto, por exemplo, mas algo necessário para a segurança de suas vidas.
Durante seu emprego na Biblioteca de Registros do Hospital Heimlich, os órfãos descobrem que Jacques realmente conhecera seus pais e que havia mais uma pessoa, também única sobrevivente, no incêndio que destruiu a mansão Baudelaire. O autor, então, acrescenta mais um mistério aos incidentes e nos permite fantasiar sobre uma possível aparição de um dos falecidos pais, é uma manobra ousada e que poderia novamente mudar o curso da história, se verdadeira.
Os leitores perspicazes já devem ter percebido que ao longo da série muitos dos nomes escolhidos para os disfarces de Olaf ou de seus capangas são anagramas para Count Olaf, porém é primeira vez em que Lemony insere essa brincadeira com as letras no próprio enredo - os Baudelaires menores devem salvar sua irmã e descobrir seu paradeiro através de anagramas com o nome de Violet.
O livro é iniciado e encerrado do mesmo modo: com fugas não apenas de Olaf, mas também dos órfãos. É um dos livros com mais ação até agora, já que a tensão nos acompanha em todas as páginas e não mais apenas no clímax.
O ESPETÁCULO CARNÍVORO
Assim como no oitavo livro, O espetáculo carnívoro foge da fórmula habitual de Lemony Snicket, fazendo com que os últimos livros tenham parcelas imprevisíveis que prendem o leitor em todos os momentos. Se você agonizou com os Baudelaires sendo perseguidos no meio do deserto, em Hospital Hostil, vai adorar o começo deste volume em que as crianças se escondem no porta-malas do maligno Conde Olaf, que segue em direção ao Parque Caligare.
Quando as crianças chegam ao Parque, que na verdade é um circo, elas descobrem a Casa dos Monstros e suas apresentações, com isso decidem que a melhor opção é se disfarçar e ficar ali por um tempo. Violet e Klaus se vestem como uma pessoa com duas cabeças, enquanto Sunny assume o disfarce de Chabo, o bebê lobo. Lá, eles se tornam os companheiros de outros três “defeituosos”, Hugo, um homem corcunda, Colette, uma contorcionista, e Kevin, que tem o infortúnio peculiar de ser ambidestro, isso guia o leitor em relação a questões sobre como a sociedade decide quem conta como uma aberração e pessoa normal.
É particularmente notável o estado de negação em que o assistente do conde Olaf, o homem com mão de gancho, se encontra, tentando afirmar a todos os momento que não é uma aberração. Em contrapartida, Kevin está convencido de que ter a mesma função em seus braços e pernas direita e esquerda é equivalente a uma deformidade terrível e deseja que ele fosse destro ou canhoto como as outras pessoas – o que chega a se tornar exagerado depois de muitas páginas de vitimização. Snicket introduz seus leitores às identidades políticas de deficiência, ele mostra as complexidades das questões desde o início, o que é primordial para guiar os jovens leitores à investigação filosófica da sociedade decidir o que é normal e o que é patológico. É um pouco perturbador ver como alguns dos “monstros” estão prontos a sacrificar qualquer princípio moral, a fim de ganhar amigos e ser tratados com respeito.
Além dos personagens novos, o autor nos permite conhecer e ficarmos mais próximos de outros, como a trupe de Olaf, por exemplo. Lemony, até então, os descreviam apenas com características físicas e os faziam soar tão cruéis quanto o nosso desprezível vilão. No volume, a namorada de Conde Olaf, Esmé, se mostra tão egoísta e ciumenta quanto ambiciosa – sem mencionar seu alto nível de manipulação e maldade para arquitetar assassinatos.
Snicket trabalha mais do que nunca na construção de seus personagens e em como o ambiente que os cercam podem transformá-los, como a ambígua Madame Lulu, que consegue trabalhar para os dois lados da série apenas seguindo o lema "dar às pessoas o que eles querem" – é uma personagem forte, no entanto é manipulada a todo momento por vilões e mocinhos.
Com inteligência, o autor acompanha o crescimento de seus leitores e desenvolve cada vez mais sua narrativa. Abusando da ironia, critica o lado negro das pessoas que pagam para assistir as aberrações, se divertem com os atos humilhantes e que estão dispostos a pagar mais se houver uma promessa de que a própria vida de alguém estará em risco. Os órfãos começam a enfrentar a difícil questão de sua própria moral posta em dúvida, já que em sua prolongada batalha com o Conde, eles mentiram e roubaram de pessoas que confiaram neles e destruíram bens valiosos, fazendo-os se aproximar e assumir truques e hábitos de Olaf – muitos leitores certamente serão levados a refletir sobre a natureza da virtude e a dificuldade de ser uma boa pessoa.
Sunny torna-se ainda mais presente e madura, demonstrando predileções culinárias e formando frases e palavras inteligíveis com mais frequência. Em relação ao vocabulário, Lemony começa a optar por escolhas mais sofisticadas como desmantelar, discernível, enervante, insípido, palatável, etc.
De modo sutil, o autor puxa assuntos mais pesados a cada livro, como a traição, crueldade animal, carnificina, homicídios em potencial e sequestros abordados em Espetáculo Carnívoro. No mais, é um excelente livro, com uma narrativa cada vez mais rica, e também o primeiro da série a terminar em um cliffhanger realmente puxado para o suspense.
Review | Assassin's Creed: Unity
Quando "Assassin's Creed Unity" foi anunciado, fiquei atônico e bastante empolgado com a possibilidade que o novo cenário histórico iria oferecer em termos de narrativa e gameplay, rapidamente se tornando o mais esperado da leva de 2014. Entretanto, o que recebi na época, foi um jogo parcialmente quebrado em termos de funcionalidade técnica, com uma história e personagens pouco inspirados e baixa inovação. De fato, até hoje alguns desses problemas ainda persistem porém, com uma segunda olhada, mais atenta dessa vez, para escrever a presente análise, e tendo jogado outros 3 jogos da franquia simultaneamente, fui capaz de perceber coisas que antes havia deixado passar batido, talvez pela sensação constante de decepão.
Nunca pensei que diria isso mas sim, "Unity" é um caso de jogo subestimado. Possui problemas devido majoritariamente ao fato de ser bem ambicioso mas, por conta da obrigação de a empresa entregar o game em determinado período para preencher os lançamentos que se tornaram anuais (até 2015), sofreu com sua própria ambição. Analisemos mais ao fundo os pontos.
Primeiramente, é válido mencionar que a empresa ouviu as reclamações em relação ao fato de a franquia estar perdendo a sua alma depois do lançamento de "Assassin's Creed III" com seu elemento sandbox grandioso e "Assassin's Creed IV: Black Flag" com seus combates navais em enorme escala - focado mais em ser um jogo de piratas, excelente por sinal, e se esquecendo do elemento "assassino". O objetivo aqui era retornar às raízes.
Saem os navios, saem até os cavalos e retornam a exploração vertical e o gameplay stealth com todas as forças. Uma melhora absurda, se comparado com os anteriores, acompanhada de uma ideia genial, diga-de passagem, trata-se do sistema de evolução, similar à de um RPG, do protagonista com direito a árvore de habilidades. Características, modos de ação, combate, saúde, armas, armaduras e outros equipamentos vão sendo conquistados, melhorados ou personalizados conforme o jogador vai aumentando de nível ao ir jogando missões da campanha ou paralelas. Some-se a isso a inteligência artificial estar mais agressiva - mesmo que ainda burra - e de inimigos atacarem em grupos mais numerosos e temos o jogo mais difícil da série. O combate, redesenhado para o estilo esgrima, só ajuda no feito.
"Unity" foi o jogo da série que mais me senti verdadeiramente como um assassino, sendo desafiado e tendo que repensar várias estratégias ao longo da campanha e do multiplayer durante missões de invasões por normalmente acabarem com um punhado de inimigos à minha volta sem eu ter todos os atributos para derrubá-los - a mecânica não é tão facilidade quanto a série Arkham - resultando em fuga.
Os méritos não param por aí. Antes as missão de assassinato dentro de um determinado espaço estavam limitadas a uma certa área de ação desse espaço. Agora, a área de ação é bem mais abrangente, fornecendo várias possibilidades diferentes de chegar do ponto A até o F, ao invés do B. Portanto, nesse aspecto, podemos ver que a identidade primária da franquia foi sim, reconquistada. Fora as missões normais de história, temos ainda a possibilidade de intervir em situações mundanas geradas aleatoriamente por processamento - como em uma briga ou assalto, a já tradicional caçadas a tesouros e objetos valiosos de arte e os objetivos dos estabelecimentos privados, resgatando o financiamento da "Trilogia Ezio", permitindo até ao jogador dono de bares e restaurantes. Os enigmas de Nostradamus são outra afiada adição para se investir mais algumas horas na jogatina. Há simplesmente muito o que fazer.
O problema na jogabilidade vem do fato das mecânicas não estarem 100% funcionais - mesmo com os movimentos extremamente fluídos do protagonista - ocasionando pulos para locais errados, cover ou saída de cover em momentos inoportunos, subidas e descidas equivocadas, problemas de colisão... erros usuais na série mas um pouco ampliados aqui por conta do teste das novas possibilidades.
Como mencionei no primeiro parágrafo, em seu lançamento, "Unity" contou com inúmeros problemas técnicos, com vários bugs e glitches que se não a chegavam a comprometer a imersão ou experiência do jogador, o fazia rir de forma involuntária, com alguns virando verdadeiros memes. A queda na taxa de quadros também era um problema grave, com casos que a jogatina de alguns se manteve por um tempo nos 15 FPS, não conseguindo passar disso. É inaceitável que um game de supostamente 3 anos de produção chegue às lojas em tal estado, mesmo com o altíssimo número de NPCs na tela, a interação do jogador com o ambiente e com os próprios transeuntes é baixa, não justificando o acontecimento.
Porém, como estou analisando o game em seu estado atual, posso dizer que, através dos patches e atualizações disponibilizadas, o produto roda tranquilamente sem grandes engasgadas e com a presença de bugs mínimos comuns em qualquer mundo aberto.
As missões da campanha e paralelas se não variam muito no objetivo, o fazem na sua execução. E, agora, com o novo formato de modo multiplayer cooperativo em que 4 jogadores cumprem juntos missões carregadas de conteúdo histórico que, depois de um tempo, para alguns, podem se tornar monótonas, a gama de possibilidades, antes inexistentes na série, aumentam. Os novos trechos das "falhas no Animus" também são uma ótima adição. Nelas, o protagonista viaja para outras épocas temporais do mesmo local, desde a Idade Média a Segunda Guerra, passando pela construção da Estátua da Liberdade e uma sensacional escalada a Torre Eiffel.
Algumas novidades como a "Phantom Blade" (Lâmina Fantasma) também são bem vindas para contribuir ao fator stealth possibilitando o jogador utilizar as mecânicas de uma besta para atirar a longas distâncias. A navegação no mapa também recebeu melhorias com as novas mecânicas de "Parkour Up" e "Parkour Down", tornando as escaladas e descidas nos edifícios, mais fácil, com o jogador aprimorando seus movimentos de parkour ao longo o jogo. Quanto aos trechos no presente, toda aquela urgência de que algo grande irá acontecer se perdeu. Não há mais personagens e arcos interessantes, apenas a câmera em primeira pessoa ouvindo instruções de terceiros.
E então chegamos aos gráficos. Provando de uma vez todas que é capaz de criar mundos abertos orgânicos em qualquer localidade ou época, a Ubisoft mais uma vez mostra que fez a lição de casa entregando um visual avassalador. A Paris do final do século XVIII beira a perfeição. Não podia segurar a ansiedade para a minha primeira sincronização do alto de uma construção para observar a beleza do mundo desenhado, gerando momentos que me fizeram escorrer lágrimas tamanha satisfação de ver algo tão belo e fiel. A vista da recriação externa e interna e da escala da Catedral de Notre -Dame foram um desses momentos.
Dava prazer de parar em uma edificação só para observar as texturas, o mármore, a madeira, a vidraça, os vitrais - observe o trabalho de iluminação neles. Um marco. Nem "The Witcher 3: Wild Hunt" conseguiu superar a qualidade visual que Unity apresentou 7 meses antes. Até mesmo as roupas de Arno - a melhor e mais bonita para um assassino na série, junto com a de Connor - são um primor em fluidez de movimentação e design refletindo bem a personalidade do protagonista e de seu país.
E agora vamos aos dois pontos finais, um que causou a minha maior decepção e o outro o meu total deslumbramento.
A história de "Unity" não é das mais originais e tem um rumo e finais bem clichê. Entretanto, o contexto muda tudo. Antes de partir para a análise mais profunda e incisiva sobre a proposta de retratação do período do jogo, vou focar superficialmente na narrativa e nos personagens.
A premissa de um jovem rebelde que tem sua família assassinada e resolve buscar vingança enquanto treina pela Ordem dos Assassinos, descobre intrigas políticas e luta por um bem maior, não é nova. Na verdade, muita coisa aparenta ser reciclada diretamente de "Assassin's Creed II". Até o caso de amor tão perto e distante ao mesmo tempo já foi retratado. Isso não seria um problema se o desenvolvimento fosse bom. Mas não é o caso. Arno Dorian, o novo protagonista, muda sua forma de agir e pensar de forma brusca demais. Jamais é suficientemente explicada como a sede do personagem por querer matar Templários se deu em determinado espaço de tempo. Os lapsos temporais no início também não ajudam.
Não há uma conexão emocional com o jogador em relação a luta de Arno, a morte de seu pai e padrasto e ao romance com Élise. Acontecimentos e objetivos vão e vem. Falta "momentum". Também há uma carência por coadjuvantes com mais substância e presença. Dentro da Ordem dos Assassinos, por exemplo, apenas Pierre Bellec, o carismático mentor de Arno, se sobressai, rendendendo uma ótima reviravolta, mesmo que previsível, porém não tem suficiente espaço em tela. O mesmo vale para os personagens históricos. Marquis de Sade, Napoleão Bonaparte, Charles Sivert, Maximillien de Robespierre, todos subaproveitados, nunca atingindo o status de um Leonardo DaVinci.
Sobra para a Élise segurar a onda dos coadjuvante seguindo a história "Romeu e Julieta" com Arno por ela ser uma templário e ele, um assassino. Conceito bem interessante, aliás é inédito até então, mas pouco aprofundado, sendo melhor aproveitado através das entrelinhas e detalhes. Por mais que Élise tenha uma personalidade forte, as cenas em que aparece sempre são no mesmo tom e com a mesma variante de diálogos ou atividades, nunca fugindo do padrão, perdendo o seu apelo em determinado momento.
Além disso, momentos cinematográficos prometidos em trailers não estão presentes. Se lembra da invasão popular a um dos castelos ao som de "Everybody Wants to Rule The World" no trailer da E3? Não há momentos assim aqui. Os que mais se aproximam disso são trechos que acompanham a fuga de Arno da prisão durante a famosa "Queda da Bastilha", a escapada de um incêndio e um passeio a balão com Élise. A falta de epicidade em momentos mais complexos talvez seja a opção da Ubisoft de dar um trato mais intimista por parte da história ao contexto histórico. E é aí que entra o segundo ponto em que eu queria chegar.
Saindo da crítica a história previsível com desenvolvimento mal ajambrado, podemos entrar na análise do ponto que talvez seja o maior mérito do jogo junto de seu visual. Mas antes, uma reflexão.
Perceberam como Arno não foi tão bem recebido pelos jogadores? Já pararam para pensar qual seria o motivo? Ele é bem dublado? Sim, nas três versões que joguei. Ele é carismático? Sim, possui uma personalidade fácil de cair no gosto popular do sujeito boa pinta. Tem bons diálogos? Sim, bem humorados e ácidos. Enfrenta um conflito interno? Sim, fortíssimo, tanto quanto Connor. Ele é um badass? Não. E talvez aí esteja o maior problema, ele é um personagem humanizado, assim como Connor, que também não caiu no gosto popular. Se notarem, alguns dos personagens mais icônicos da história dos games são sempre os badasses, às vezes unidimensionais. Exemplos não faltam, Ezio, Nathan Drake, Marcus Fênix, Kratos, Capitão Price...
Desenvolvimento nem sempre pode significar humanização de tal personagem. Se Ezio foi plenamente desenvolvido em sua trilogia, não dá para dizer que ele foi humanizado. Todos os contratempos, físicos e emocionais que chegavam para ele, eram resolvidos sem grandes dificuldades. Um personagem pouco vulnerável. Arno é o oposto disso, o personagem que erra o tempo inteiro, o mais suscetível a dúvida, o mais conflituoso, afastando da preferência do público que talvez não tenha amadurecido nesse sentido. Alguns o acham raso, eu acho o contrário, trata-se de um assassino imaturo e ingênuo que sempre se vê como uma bola de pingue pongue no meio da história, cheio de incertezas mesmo tentando ser um convencido - rendendo um excelente momento na campanha que ele abandona o manto. Creio que se ele fosse realmente bem desenvolvido como deveria através de um planejamento melhor de montagem de eventos e construção de catarse, estaríamos diante do melhor protagonista da série.
Ok, agora podemos entrar diretamente no tal ponto. Qual o motivo de Arno estar em conflito? Bem, trata-se da decisão mais corajosa da Ubisoft - e talvez de qualquer desenvolvedora - na história de sua existência de retratar o período da Revolução Francesa pela perspectiva histórica que lhe é devida - gerando até a fúria de alguns políticos franceses. Enquanto alguns chamam de "visão conservadora" ou "contra revolucionária", eu gosto de chamar de versão dos fatos. É de conhecimento de vários estudiosos que a Revolução Francesa trata-se, assim como tantos outros como a Inquisição, de um período moldado erroneamente por outros estudiosos, intelectuais e governantes como maniqueísta na base da pura e simples mentira e ocultação de fatos.
A palavra revolução sempre induz a um certo desconforto mental reflexivo, e com razão. A Francesa, no caso, acabou levando ao Terror e à ditadura napoleônica e a Bolchevique, que em poucos meses, degolou mais inocentes do que décadas de regime czarista.
Para entender o quadro, é necessário um paralelo com a revolução americana - esta que Gordon S. Wood descreve tão bem em seus livros. A diferença dos revolucionários americanos para os franceses é que os americanos não eram revolucionários impetuosos e violentos, constituindo o que Gertrude Himmelfarb chamou de "revolução relutante". Diferentemente da francesa, a americana arraigou as suas reaquisições na tradição constitucional britânica da Magna Carta, abstendo de planos abstractos sem raízes no passado e na experiência acumulada ao longo das gerações, firmes na penetração de âmbito nacional do novo regime republicano que iriam fundar.
Além da revolta contra a expansão do poder estatal, os colonos americanos lutavam pelos direitos do homem comum, em detrimento de uma visão mais aristocrática européia, alimentando a ideia de que o mérito valia mais do que o berço. Uma poderosa ideia, da igualdade perante as leis, do “self-made man”, tão bem captada no panfleto famoso de Thomas Paine que inflamou a nação.
Eles foram aptos de equilibrar o otimismo esperançoso de liberais como Paine e Jefferson com o ceticismo conservador de John Adams. Procuraram harmonia entre o extenso processo de descentralização de poder e uma determinada medida de permissão pragmática à esfera central, instigando o patriotismo dos americanos. Assentaram realce no homem comum, mas não jogaram no lixo a importância das elites, e sempre desconfiaram da democracia popular sem freios institucionais.
Ou seja, mesmo revolucionários, não havia entre eles um desejo de ruptura drástica com a cultura predominante na Inglaterra como houve nas demais revoluções. Não era subversiva. Um dos motivos porque somente esta deu certo. O conservador Edmund Burke realizou um exame de contexto, na véspera, em 1775, alegando que os americanos “temiam o desgoverno a distância e farejaram a aproximação da tirania em toda brisa maculada”, e, por isso, teriam antecipado o sofrimento antes que ele os atingisse.
Com o intuito de subversão de valores e cultura enraizado, a Revolução Francesa, de viés coletivista, não se sustentou sem a inevitável tramontana de durar e acabar da mesma forma selvagem que foi concebida. Autores como Simon Schama em "Cidadãos" já foram capazes de elaborar crônicas com um olhar mais honesto sobre o período.
O que "Unity" faz é questionar o método revolucionário, colocando a figura de Arno como um jovem perdido no meio de um turbilhão de atos contraditórios. Enquanto um rei é decapitado, um revolucionário faz de tudo para manter o caos enquanto busca controle perseguindo artefatos como a Maçã do Éden, elaborando até acordos com opositores. O impacto é ainda maior se tratando de uma empresa de origem francesa. Bravo, Ubisoft, bravo. Uma pena que a iria totalmente na contramão dessa atitude um ano depois com Syndicate.
Concluindo a análise, fico feliz em ter dado uma segunda chance ao jogo do qual nunca imaginaria extrair tanto conteúdo. Trata-se de um espetacular marco visual como poucos e um produto que sim, sofreu pela obrigação de cumprir com a data de lançamento estipulada - o ideal deveria ter sido 1 ano depois, sacrificando um melhor desempenho técnico, funcionalidade de algumas mecânicas e desenvolvimento de personagens e narrativa mas que também ousou ao não somente dar ouvidos ao pedido dos fãs para que retornasse ao terreno mais urbano com maior foco na estratégia stealth recuperando a identidade da franquia no caminho como também tendo a coragem de exibir uma visão histórica sincera e não proselitista de um dos períodos mais conturbados da história humana. E isso, meus amigos, principalmente nos dias de hoje, faz qualquer errinho de programação padecer frente a afoiteza incriticável da encarregada pela unidade do Credo dos Assassinos.